O que é o HAMAS?[*]
[parte 2]
José Catarino Soares
6. Como foi criado o
Hamas
O
Hamas foi oficialmente criado em 1987, quando foi fundada a sua componente
política. No entanto, embora seja hostil a Israel, beneficiou sempre,
paradoxalmente, da ajuda deste, que o financiou e apoiou (secretamente) de
várias maneiras desde 1973 (quando foi fundada a sua componente caritativa,
Mujama al-Islamiya), até, pelo menos, 2019.
Esta
afirmação não é uma calúnia. Resulta de confidências feitas por governantes e
chefes militares de Israel, incluindo o seu actual primeiro-ministro. Netanyahu
[4]. O objectivo confesso de Israel ao
apoiar e financiar o Hamas era dividir para reinar — dividir a Organização de Libertação
da Palestina (OLP) e, a partir de 1995 (Acordos de Oslo 2) desacreditar a
Autoridade Nacional da Palestina (ANP) dirigida pela Al-Fatha, a principal
componente da OLP. O que Israel
conseguiu fazer com êxito.
7. As tácticas de
combate do Hamas
As
táticas de combate do Hamas foram inteiramente decalcadas (no caso das TG),
ou decalcadas em grande medida (tt.3 e tt.4, no caso das TT [cf.
parte 1, secção 3 deste artigo]), das tácticas de combate do Irgun, do Lehi, do
Palmach e do Haganá — as organizações paramilitares sionistas que operaram
clandestinamente contra os palestinianos árabes (e algumas delas também contra
as autoridades militares e civis britânicas) durante o Mandato Britânico da
Palestina (1931-1948). Essas organizações constituíram o núcleo duro das
futuras Forças Armadas de Israel (“Tzahal”), criadas em 26 de Maio de 1948.
8. O ataque do Hamas a
Israel em 7 de Outubro de 2023
O
ataque dos combatentes do Hamas a Israel em 7 de Outubro de 2023, denominado
“Operação Tempestade Al-Aqsa”, foi uma operação que surpreendeu tudo e todos
pela sua audácia, dimensão e eficácia.
«As
autoridades israelitas não emitiram quaisquer avisos nem tomaram quaisquer
medidas preventivas antes do ataque, o que sugere que não dispunham de
informações sobre o planeamento e os preparativos do ataque, apesar do aumento
acentuado das tensões entre as autoridades israelitas e os palestinianos nos
últimos meses» (“IntelBrief: Complex Attack by Hamas into Israel has
Altered the Dynamics of the Conflict.” The Soufan Center. October 9,
2023).
O
New York Times também noticiou a surpresa, audácia, dimensão e eficácia
deste ataque:
«Com um planeamento meticuloso e um conhecimento
extraordinário dos segredos e fraquezas de Israel, o Hamas e os seus aliados
dominaram toda a extensão da frente de Israel com Gaza pouco depois do
amanhecer, chocando uma nação que há muito considera a superioridade das suas
forças armadas como um artigo de fé. Usando drones, o Hamas destruiu as
principais torres de vigilância e comunicação ao longo da fronteira com Gaza,
impondo vastos pontos cegos aos militares israelitas. Com explosivos e
tractores, o Hamas abriu brechas nas barricadas da fronteira, permitindo que
200 atacantes passassem na primeira vaga e outros 1.800 no final do dia,
segundo as autoridades. Em motociclos e camionetas, os atacantes avançaram para
Israel, dominando pelo menos oito bases militares e lançando ataques
terroristas contra civis em mais de 15 aldeias e
cidades» (Patrick Kings Ley & Ronen Bergman, “The Secrets Hamas
Knew About Israel’s Military.” October 13, 2023).
Combatentes do Hamas conduzem um jeep capturado ao exército israelita no sul de Israel, perto da fronteira norte de Gaza. Foto de Ahmed Zakot/REUTERS. |
Parece,
pois, ser incontroverso que esse ataque comportou duas componentes: uma
componente militar ⎼
que se enquadra no conceito de luta armada da resolução 37/43 da ONU, incluindo
as suas modalidades de guerrilha (TG), descritas na secção 4 deste
artigo ⎼ e uma componente
terrorista, que extravasa do conceito de luta armada para se enquadrar no
conceito de tácticas terroristas (TT), descrito na mesma secção.
É pela sua componente principal (a componente militar), exclusivamente, que o ataque do Hamas de 7 de Outubro 2023 tem muitas afinidades com a insurreição armada da Zob no gueto de Varsóvia de 12 de Abril de 1943, de que tornarei a falar na secção 9 deste artigo. Referindo-se à acção militar que a ZOB (acrónimo polaco para Zydowska Organizacja Bojowa, Organização Judaica Combatente) realizou nesse dia contra o exército da Alemanha nazi, a partir do gueto de Varsóvia, Marek Edelman comentou no seu espantoso testemunho (The Ghetto Fights: Warsaw 1941-1943 [1990]):
«Pela primeira vez, os planos alemães foram frustrados. Pela
primeira vez, a auréola de omnipotência e invencibilidade foi arrancada da
cabeça dos alemães. Pela primeira vez, o judeu na rua apercebeu-se de que era
possível fazer alguma coisa. Foi um ponto de viragem psicológica».
O
mesmo se pode dizer, mutatis mutandis, da acção militar contra Israel
que as brigadas Izz al-Din al-Qassam realizaram em 7 de Outubro de 2023, a
partir do “gueto” de Gaza.
«O ataque estilhaçou a aura de invencibilidade de Israel e
provocou um contra-ataque israelita em Gaza que matou mais de 1.900
palestinianos numa semana, com uma ferocidade nunca vista em Gaza.» (Patrick Kingsley & Ronen Bergman, New York
Times, ibidem).
O jornalista Samuel Forey escreveu:
«Três semanas após o ataque mais ambicioso da história do
movimento islamita [Hamas], o modus operandi
do que aconteceu nesse dia está a tornar-se mais claro. Mais de 2.000 homens [das
brigadas Izz al-Din al-Qassam] entraram em território
israelita através de 29 brechas na barreira que rodeia a Faixa de Gaza. A
invasão, um êxito militar, levou a atrocidades cometidas contra civis» (“Hamas
attack:October 7, a day of hell on earth in Israel.” Le Monde, October
30, 2023).
O Le Monde noticiou também que
«Depois de
atravessarem a barreira, os combatentes [do Hamas] atacaram simultaneamente pelo menos seis bases militares das
Forças Armadas de Israel e sete zonas civis, incluindo uma cidade, cinco
kibbutzim e um festival de música» (“Israel-Hamas war: Images reveal the
strategy behind the militant group’s attack.” October 14, 2023).
Repare-se
que o New York Times refere, como vimos, «pelo
menos oito bases militares» e não seis, como o Le Monde. A Aljazeera
identificou três dessas seis ou oito bases militares israelitas que os
combatentes do Hamas invadiram: «o posto fronteiriço
de Beit Hanoon (chamado Erez por Israel), a base de Zikim e o quartel-general
da divisão de Gaza em Reim» (“What happened in Israel? A breakdown of
how Hamas attack unfolded.” October 7, 2023). Não consegui ficar a saber quais
foram as outras três ou cinco bases militares referidas pelo Le Monde e
pelo New York Times, respectivamente, apesar de ter feito uma demorada
pesquisa no Google, no Bing e no Yahoo!
Vale
a pena notar, a este propósito, que os combatentes do Hamas que invadiram essas
bases militares israelitas «se apoderaram de armas e
equipamento e estabeleceram linhas logísticas a partir do território israelita»
(“IntelBrief: Complex Attack by Hamas into Israel has Altered the
Dynamics of the Conflict,” ibidem).
Segundo informações colhidas pelo jornalista Seymour Hersh, o ataque de 7 de
Outubro das brigadas do Hamas provocou 317 baixas mortais no exército israelita
(algumas dessas vítimas poderão ser militares contratados), além de 58 polícias
(“The Labyrinth War,” November 1, 2023, https:// seymourhersh.substack.com/).
Segundo a Reuters de 18 de Outubro, citando Netanyahu, o ataque de 7 de
Outubro gerou 1.400 vítimas mortais no lado israelita. Se subtrairmos a este
número, o número de militares e polícias indicado por Hersh, obtemos 1.025
vítimas mortais israelitas que não eram nem militares nem polícias.
Não
temos informação fidedigna e suficiente (a que temos é incompleta e quase
exclusivamente de origem israelita) sobre o modo como estas pessoas morreram
que nos permita avaliar a veracidade e a extensão de todas as atrocidades que,
alegadamente, terão sido cometidas pelos combatentes do Hamas no âmbito da
componente terrorista do seu ataque a Israel: o ataque a zonas civis. Na
verdade, não temos sequer informação exacta sobre a extensão desse ataque. O Le
Monde refere, como vimos, «sete zonas civis, incluindo
uma cidade, cinco kibbutzim e um festival de música». Por sua vez, o New
York Times refere, como vimos, «mais de 15 aldeias
e cidades». Em quem devemos acreditar neste particular: no Le Monde,
no New York Times ou em nenhum deles?
Por
outro lado, ao contrário
dos 242 reféns feitos pelo Hamas (que têm todos um nome e um rosto conhecido),
não foi publicada (salvo melhor informação) a lista dos nomes dos mortos civis israelitas
e dos locais onde morreram. Há testemunhos de israelitas que acusam o exército
israelita de ser o autor da morte dos seus companheiros, apanhados por “fogo
amigo”. É o caso, por exemplo, de Yasmin Porat, uma mulher israelita que foi
entrevistada no programa de rádio Haboker Hazeh, da emissora estatal
israelita Kan, em 15 de Outubro de 2023. Porat, que sobreviveu ao ataque do
Hamas aos colonatos perto da fronteira de Gaza em 7 de Outubro de 2023, afirma
que os civis israelitas foram «indubitavelmente»
(sic) mortos pelas suas próprias forças de segurança. Diz também que ela
e outros israelitas detidos pelos combatentes palestinianos foram tratados «com humanidade» (https://www.youtube.com/watch?v=3cPeRSVgUpQ).
Há ainda muita coisa por esclarecer relativamente às vítimas mortais civis do
ataque.
Seja como for, em matéria de tácticas terroristas, sabemos, pelo historial dos últimos 36 anos, que Israel e Hamas estão bem um para outro: se um diz “mata!”, o outro diz “esfola!”. As únicas diferenças neste particular ⎼ e não são de modo nenhum despiciendas ⎼ é que (i) um (Israel) é o carcereiro de Gaza e o outro (Hamas) uma das organizações de resistência dos encarcerados de Gaza, e que (ii) um (Israel) mata e aterroriza muito mais e há muito mais tempo do que o outro (Hamas), que, como vimos (cf. secção 7), com ele aprendeu a matar e aterrorizar, convencido que só dessa maneira o poderá derrotar.
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[*] Publicado originalmente no blogue Estátua de Sal, em 7 de Novembro de 2023 [https://estatuadesal.com/2023/11/07/o-que-e-o-hamas-parte-ii/]
Parte 1 aqui [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2023/11/o-que-e-o-hamas-parte-1-jose-catarino. html]
[continua]
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Notas e referências
[4] «Qualquer pessoa que queira
impedir a criação de um Estado palestiniano tem de apoiar o fortalecimento do
Hamas e transferir dinheiro para o Hamas. Isto faz parte da nossa estratégia —
isolar os palestinianos em Gaza dos palestinianos na Cisjordânia»,
explicou Netanyahu aos membros do seu partido, o Likud, em Março de 2019
(citado por Gidi Weitz, “Another Concept Implodes: Israel Can’t Be Managed by a
Criminal Defendant”. Haaretz, October 9, 2023). Num vídeo recente [a
partir do momento 12m36s], o embaixador da Autoridade Nacional Palestiniana em
Moscovo chegou mesmo a quantificar esse apoio financeiro de Israel ao Hamas: 36
milhões de dólares, mensalmente, nos últimos 5 anos (https://www.youtube.com/watc h?v=hS-Aa7E2-Hk).
Não
sei se este número é exacto. Mas sabemos que esse apoio começou há muito mais
do que cinco anos. Na verdade, começou há mais de quatro décadas. O general
Yitzhak Segev, que foi o governador militar israelita de Gaza no início da
década de 1980, confidenciou, alguns anos mais tarde, a David Schipler,
repórter do New York Times, que Israel ajudou a financiar o Hamas como
um contrapeso à OLP. «O governo israelita deu-me um
orçamento, e o governo militar dá-o às mesquitas» (David K. Shipler, Arab and Jew: Wounded
Spirits in a Promised Land. Crown, 2015), p.221. «O Hamas, para meu grande pesar, é uma criação de Israel. Foi
um erro enorme e estúpido», disse Avner Cohen, um governante israelita
responsável pelos assuntos religiosos israelitas que trabalhou em Gaza durante
mais de duas décadas, até 1994 (Andrew Higgins, “How Israel Helped to Spawn
Hamas.” The Wall Street Journal, January 24, 2009). «Quando Israel encontrou pela primeira vez islamistas em
Gaza, nos anos 70 e 80, eles pareciam concentrados no estudo do Alcorão e não
no confronto com Israel. O governo israelita reconheceu oficialmente um
precursor do Hamas, chamado Mujama Al-Islamiya, registando o grupo como uma
instituição de caridade. Permitiu que os membros do Mujama criassem uma
universidade islâmica e construíssem mesquitas, clubes e escolas». David
Hacham, que trabalhou em Gaza no final dos anos 1980 e início dos anos 1990
como especialista em assuntos árabes nas forças armadas israelitas, «lembra-se de ter levado um dos fundadores do Hamas, Mahmoud
Zahar, para se encontrar com o então ministro da defesa de Israel, Yitzhak
Rabin, no âmbito de consultas regulares entre funcionários israelitas e
palestinianos não ligados à OLP. O sr. Zahar, o único fundador do Hamas que se
sabe estar vivo actualmente, é agora o chefe político sénior do grupo em Gaza»
(ibidem). «Quando olho para trás e vejo a
cadeia de acontecimentos, penso que cometemos um erro» ⎼ diz David Hacham ⎼ «Mas, na altura,
ninguém pensou nos possíveis resultados» (ibidem).
Os
EUA estavam ao corrente desta longa relação de duplicidade mútua entre Israel e
o Hamas. David Long, que foi diplomata dos EUA na Arábia Saudita e chefe da
divisão do Próximo Oriente no Gabinete de Informações e Investigação do
Ministério dos Negócios Estrangeiros [State Department] dos EUA durante o
governo de Ronald Reagan, disse ao jornalista Robert Dreyfuss: «Pensei que os Israelitas estavam a brincar com fogo. Mas não
sabia que acabariam por criar um monstro. Não acho que nos devamos meter com
fanáticos potenciais»» (Devil’s Game, https://www.c-span.org/video/?190
584-1/devils-game, January 5, 2006).
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