Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

04 novembro, 2023

 Tema 3

O que é Gaza?

José Catarino Soares

A Faixa de Gaza (doravante Gaza, para abreviar) é uma parte do antigo território da Palestina, hoje quase todo ele ocupado por Israel. É um território exíguo, situado na costa leste do Mediterrâneo. Tem uma área de 365 km2, um pouco menor do que a do concelho de Redondo (369,5 km2) e um pouco maior do que a do concelho de Alter do Chão (362 km2), em Portugal continental.

A população actual de Gaza é de 2,1 milhões de habitantes, maioritariamente árabe-palestiniana. Não há judeus israelitas em Gaza, nem árabes israelitas, que representam 1,8 milhões de habitantes (21% da população de Israel) e que preferem autodenominar-se “palestinianos de Israel”. Cerca de metade da população de Gaza (47,3%) são crianças e jovens com menos de 18 anos. Gaza é a terceira região mais densamente povoada do mundo: 5.839 habitantes por quilómetro quadrado. Para se ter um termo de comparação, podemos recorrer outra vez aos dois concelhos portugueses supramencionados. O concelho de Redondo tem 6.300 habitantes e o de Alter do Chão tem 3.044 habitantes (números de 2021), com uma densidade populacional de 17 habitantes por km2 e 8,4 habitantes por km2, respectivamente.

Gaza tem uma linha de costa de 40 km. Tem duas fronteiras terrestres: uma, maior, com Israel, ao longo de 59 km, a norte e a oeste; outra, menor, com o Egipto, ao longo de 13 km, a sul (ver mapa abaixo).

Mapa da Faixa de Gaza. Autor: Lencer, retocado e traduzido para Português por Indech.
Fonte: 
Wikipédia.

Desde Junho 2007 que Israel, com a colaboração do Egipto, mantem um drástico bloqueio económico e comercial a Gaza, que se agravou a partir do dia 7 de Outubro de 2023. O bloqueio a Gaza é mantido, militarmente, por terra, mar e ar. O bloqueio impede a livre circulação de pessoas: ninguém pode entrar e sair de Gaza sem autorização das forças militares de Israel e do Egipto. Este regime só é um pouco menos apertado para os habitantes de Gaza que tenham necessidades médicas graves. Esses habitantes são, por vezes, autorizados a atravessar a fronteira e a procurar auxílio médico em hospitais de Israel.

 Por outro lado, o bloqueio só permite a entrada de bens considerados de primeira necessidade (água potável, electricidade, alimentos, vestuário, calçado, medicamentos, combustíveis, produtos de higiene) e de ajuda humanitária, após um controle minucioso de seu conteúdo. E mesmo a importação desses bens e o fornecimento dessa ajuda são discricionariamente reduzidos ou proibidos sempre que o governo de Israel entende fazê-lo. É o que acontece actualmente, depois de o governo de Netanyahu ter cortado a água, a electricidade, o combustível, os víveres e o medicamentos à população de Gaza, em represália pelo ataque do Hamas em 7 de Outubro último. 

O bloqueio económico e comercial a Gaza foi imposto depois do Hamas ter vencido as eleições parlamentares de 25 de Janeiro de 2006. Nesse dia, foram realizadas eleições nos territórios palestinos (Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental) para escolher os 132 membros do Conselho Legislativo da Palestina (CLP), órgão legislativo da Autoridade Nacional Palestiniana (ANP). Os resultados finais da eleição deram a vitória ao Hamas, com 74 assentos no CLP. A criatura (Hamas) começava a escapar ao seu patrocinador (Israel) [1] que julgou, ao instaurar o bloqueio, conseguir mantê-lo sob rédea curta. Mas tudo o que conseguiu foi, pelo contrário, aumentar o prestígio dos dirigentes do Hamas aos olhos da população palestiniana, em especial em Gaza, conferindo-lhe uma auréola de resistentes intransigentes, impolutos e incorruptíveis, ao contrário dos dirigentes da Al-Fatah, a componente (laica) até então maioritária da Organização de Libertação da Palestina (OLP) que domina a ANP.

Com o bloqueio económico e comercial, as condições de vida em Gaza deterioraram-se rápida e gravemente. A pobreza aumentou de 38,8% para 53,0%, de 2011 a 2016, deixando pobres um em cada dois gazenses. Durante a segundo trimestre de 2022, a taxa de desemprego era de 44% em Gaza. A insegurança alimentar em Gaza permanece alta: 63%. Jimmy Carter, ex-presidente dos EUA, não estava a exagerar quando disse, em 2009:

«[Os palestinianos da Faixa de Gaza] estão a ser tratados mais como animais do que como seres humanos... Nunca antes na história uma grande comunidade como esta foi devastada por bombas e mísseis e depois foi privada dos meios para se reparar» (Reuters, June 16, 2009).

Os seres humanos pertencem, biologicamente, ao reino Animalia. Somos, portanto, animais, pelo que presumo que Carter queria dizer “animais ferozes”. Vale a pena notar que Carter exprimiu, inadvertidamente e com 14 anos de antecedência, o pensamento profundo dos governantes israelitas. O actual ministro da defesa de Israel, Yoan Gallant, esclareceu que os palestinianos de Gaza são “animais ferozes” (“human animals” no seu Inglês macarrónico) e o embaixador de Israel na Alemanha, Ron Prosor, declarou que os palestinianos de Gaza são “animais [ferozes] sedentos de sangue” (“bloodthirsty animals” no original). E acrescentou:  

«As pessoas que vimos a violar, a matar e a disparar contra famílias, crianças pequenas e a queimar pessoas vivas nas suas próprias casas são as pessoas de Gaza» afirmou. «Por isso, tentar diferenciá-las [dos militantes do Hamas] é um verdadeiro problema» (Político, October 12, 2023).

Em 2010, o primeiro-ministro (conservador) britânico David Cameron chamou a Gaza «uma prisão a céu aberto», suscitando a ira de Israel, velho aliado do Reino Unido. Em Fevereiro de 2015, Banksy, o conhecido artista de rua britânico, deslocou-se a Gaza para chamar a atenção para a situação dos palestinianos após o devastador ataque israelita que ocorrera no Verão anterior. Relativamente aos murais que pintou em Gaza, escreveu:

«Gaza é frequentemente descrita como “a maior prisão a céu aberto do mundo” porque ninguém pode entrar ou sair. Mas isso parece um pouco injusto para as prisões — elas não têm a sua electricidade e água potável cortadas aleatoriamente quase todos os dias» (The Independent, February 27, 2015).

Como disse um residente de Rafah: «Isto é pior do que a prisão.... Na prisão, podemos estar seguros. Aqui estamos em perigo a toda a hora» (Reuters, August 19, 2001), nomeadamente por causa dos bombardeamentos.. E disse-o em Agosto de 2001, catorze anos antes de Banksy ter dito o mesmo por outras palavras.  

7 de Dezembro de 2021. Membros da Segurança Israelita gesticulam numa abertura da (então) recém-concluída barreira construída por Israel ao longo da fronteira com a Faixa de Gaza, em Erez, no Sul de Israel. Foto: Reuters/Ammar Awadi.

O que é, então, Gaza? Creio que Baruch Kimmerling (1939-2007), professor da Universidade Hebraica, deu a resposta mais certeira: «o maior campo de concentração que alguma vez existiu». Mas já não é suficiente. Hoje temos de acrescentar: é também «um campo de matança» [«a killing field», Norman Finkelstein] e a maior morgue a céu aberto do planeta [2]

 Gaza. 1 de Novembro de 2023. Fonte:Ammon News Agency
              

Notas

[1] Num texto a publicar ulteriormente, intitulado “O que é o Hamas?”, elucidarei a razão de ser desta relação patrocinador/criatura patrocinada. 

[2] Esta apreciação acaba de ser confirmada (28.11.2023) por Francesca Albanese, relatora especial da ONU para os territórios palestinianos ocupados, que declarou:

«Houve uma suspensão das hostilidades após 24 horas de intensificação dos bombardeamentos, muito violentos. As pessoas vêem o nível de violência. Vêem o nível de catástrofe. A ONU, com a qual estou em contacto permanente, diz que a situação em Gaza é muito pior do que o estimado. Mais de metade das infra-estruturas foi destruída. Há uma estimativa de 13 mil mortos, 30 mil feridos e três mil pessoas ainda debaixo dos escombros » (Francesca Albanese: “Israel tem a capacidade militar para levar a cabo um genocídio em Gaza”. Público, 28 de Novembro de 2023 [ênfase por meio de traço grosso acrescentado ao original]. https://www.publico.pt/2023/11/28/mundo/entrevista/francesca-albanese-israel-capacidade-militar-levar-cabo-genocidio-gaza-2071650?).

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