Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

09 dezembro, 2023

 Temas 2 e 3


Em 9 de Abril de 2022, Zelensky preferiu a guerra à paz

pelos motivos mais mesquinhos

 

José Catarino Soares

 

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10.º artigo da série 

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!

 

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1. Introdução

 

Este artigo elucida fornecendo-lhe o necessário contexto e uma chave interpretativa as recentes confidências de Davyd Arakhamia, também conhecido como David Braun, chefe do grupo parlamentar do partido Servente do Povo, o partido fundado pelo presidente Volodymyr Zelensky da Ucrânia, maioritário no parlamento ucraniano. 

 

Que eu saiba, nenhum órgão português do sistema mediático dominante de comunicação social noticiou ou comentou as declarações do senhor Arakhamia sobre os importantes episódios de que ele foi protagonista — uma variante laica da história bíblica de Jonas e a baleia, mas com um Jonas pusilânime. Mas é muito importante conhecê-las e dá-las a conhecer, porque elas lançam uma luz forte sobre as zonas mais recônditas da segunda guerra na Ucrânia (a que começou em 24 de Fevereiro de 2022) e, em particular, sobre as pesadíssimas responsabilidades de Zelensky na continuação dessa guerra até aos dias de hoje.  

 

2. As negociações de Março/Abril de 2022


Na secção 9.2 [“As responsabilidades de Zelensky”] do meu livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal (editora Primeiro Capítulo, Agosto 2023), descrevi sucintamente as negociações que ocorreram em Março de 2022, na Turquia, entre a Ucrânia e a Rússia, com vista a celebrar um acordo de paz entre os dois países beligerantes.

 

Estava em causa uma solução negociada que permitisse alcançar dois objectivos:

 

(i) pôr fim ao conflito armado entre as duas Repúblicas da Donbass – República Popular de Donetsk (RPD) e República Popular de Lugansk (RPL) e a Ucrânia, resultante do desrespeito dos Acordos de Minsk (2014-2015) — sistemática e cientemente violados pela Ucrânia com a cumplicidade, como ficámos recentemente a saber, de dois dos seus mediadores e padrinhos (França e Alemanha) [1];

e

(ii) garantir a neutralidade militar (incluindo a renúncia ao armamento nuclear) da Ucrânia, ameaçada pela intenção reiteradamente declarada da Ucrânia, expressa  pela boca e pelos actos dos seus governantes pós-golpe de Estado de Maidan (Fevereiro de 2014), de abandonar a sua neutralidade militar (que se comprometera a respeitar ao assinar o Memorando de Budapeste sobre Garantias de Segurança, em 1994), instalar armas nucleares (de fabrico próprio ou alheio) no seu território e aderir à OTAN (NATO no acrónimo inglês) — intenção essa que a Rússia encarava, fundadamente, como uma gravíssima ameaça à sua existência [2].

Essas negociações entre a Rússia e a Ucrânia ocorreram em Antália e Istambul, na Turquia, e chegaram a bom porto, como o atestam todos os testemunhos, incluindo os dos seus mediadores — Mevlut Cavusoglu (ministro dos Negócios Estrangeiros da Turquia), Gerhard Schröeder (ex-chanceler da Alemanha) e Neftali Bennett, à época primeiro-ministro de Israel.



Turquia, 29 de Março de 2022. Na foto vêm-se vários membros da delegação ucraniana nas negociações russo-ucranianas. O segundo homem a contar da esquerda, é Davyd Arakhamia, chefe dessa delegação e chefe do grupo parlamentar do partido Servente do Povo (o partido fundado pelo presidente Volodymyr Zelensky). Foto: Lokman Akkaya/Anadolu Agency via Getty Images.

Mais: chegou-se a um acordo entre as duas partes beligerantes que era muito favorável à Ucrânia.

 

«Os principais pontos do plano eram um cessar-fogo e a retirada russa [do território ucraniano], e a adopção pela Ucrânia de um estatuto de neutralidade semelhante ao da Áustria. A Ucrânia renunciaria a qualquer plano futuro de adesão à OTAN e prometeria não acolher instalações de armas ou bases militares estrangeiras, em troca de novas garantias de segurança de outros países. A língua russa seria também reconhecida como uma língua oficial na Ucrânia. Os pontos de atrito da Rússia envolviam a natureza das garantias de segurança e que países as forneceriam, e os pormenores de como o futuro da Crimeia e das duas Repúblicas Populares em Donbass seria decidido. Mas os contornos de um acordo de paz estavam em cima da mesa» [3].


Gerhard Schröeder, ex-chanceler da Alemanha (1998-2005) que foi também mediador em Istambul (a pedido da Ucrânia) entre a Ucrânia e a Rússia, e que tem acesso fácil ao Kremlin devido às suas funções profissionais [4] foi ainda mais explícito sobre o teor do acordo. Numa entrevista recente [5], Schröeder revelou que o acordo russo-ucraniano alcançado na Turquia em Março/Abril de 2022 incluía os seguintes pontos:

 

― A Ucrânia abandonaria as suas pretensões de vir a pertencer à OTAN;

 

― A revogação, pelo parlamento ucraniano pós-golpe de Estado de Maidan (2014), da lei que garantia o bilinguismo oficial (ucraniano + russo) [a lei Kivalov-Kolesnichenko de 2012] seria revertida;

 

― A região da Donbass [onde se situavam a RPD e a RPL] permaneceria na Ucrânia, mas como uma região autónoma (Schröeder: “Como o Tirol do Sul” relativamente à Itália);

 

― O Conselho de Segurança da ONU e a Alemanha deveriam fornecer à Ucrânia as garantias de segurança que ela pedia e a que tem direito.

 

O ex-chanceler alemão também falou sobre a Crimeia — uma república autónoma da ex-União Soviética que a Ucrânia anexou em 1995 [6]. Considerou-a uma parte da história russa.

 

«Há quanto tempo é que a Crimeia é russa? Para a Rússia, a Crimeia não é apenas uma região, mas uma parte da sua história. A guerra poderia ter terminado se não estivessem em jogo interesses geopolíticos», afirmou Gerhard Schröeder.

 

3.    A opinião de Davyd Arakhamia em 3 de Abril de 2022

 

O chefe da delegação ucraniana de negociadores, Davyd Arakhamia, considerou as negociações de Março/Abril de 2022, na Turquia, um êxito retumbante para a Ucrânia.

 

O The Telegraph (o jornal que apoia o Partido Conservador do Reino Unido, o partido actualmente no poder) deu conta disso mesmo ao publicar a seguinte manchete no dia 3 de Abril de 2022:



Tradução da manchete: «A Rússia concordou com quase todas as nossas propostas de paz, diz o negociador ucraniano. No início desta semana, a delegação da Ucrânia concordou em desistir das suas aspirações a entrar na OTAN [= NATO, no acrónimo inglês, n.e.se o Ocidente lhe oferecer garantias de segurança». [n.e.= nota editorial]


A manchete vinha acompanhada da seguinte fotografia e legenda.



Vladimir Medinsky (à esquerda) [chefe da delegação russa] e Davyd Arakhamia [chefe da delegação ucraniana] durante as conversações Russo-Ucranianas em Istambul, na terça-feira, 5 de Abril de 2022. Foto: Ukrainian Foreign Ministry Press Service.


A Agência Lusa noticiou na mesma altura algo que permite dar às palavras de Davyd Arakhamia a sua verdadeira dimensão.

 

«Kiev [entenda-se: o governo de Zelensky, n.e.] propõe a neutralidade da Ucrânia e a renúncia à adesão à NATO, desde que a sua segurança seja garantida por vários países, tendo proposto ainda um período de negociações para resolver o estatuto da região da  Donbass e da Crimeia.

 

 “Na realidade, todos os acordos obtidos em Istambul nada mais são do que aquilo que Rússia tem exigido desde 2014”, notou Medinsky [o chefe da delegação russa, n.e.], apontando para questões como a neutralidade ucraniana, a proibição de bases militares estrangeiras e a presença de tropas estrangeiras ou qualquer tipo de sistemas de mísseis» [7].

 

4.    A visita-surpresa de Boris Johnson a Kiev

 

Poucos dias depois do acordo alcançado na Turquia, Boris Johnson, à época primeiro-ministro do Reino Unido (RU), fez uma visita-surpresa a Kiev com dois potentes engodos na pasta: (i) uma promessa de 100 milhões de libras esterlinas em armamento britânico do mais moderno e outras avultadas benesses financeiras, e (ii) um recado seu e de Joe Biden, o chefe incontestado do “Ocidente alargado”.

 

Perante o resultado que se conhece dessa visita de Johnson [8], não é difícil conjecturar qual terá sido o teor fundamental desse recado a Zelensky que o próprio Johnson se encarregou de transmitir à sua maneira. Poderá ter sido algo como isto:

 

“Senhor Presidente. O senhor é livre, bem entendido, de fazer esse acordo de paz com a Rússia. Mas tem de estar ciente que, se o fizer, nós (RU, EUA, OTAN, UE — o núcleo duro do “Ocidente alargado” tão caro ao nosso saudoso mestre Zibgniew Brzezinski) deixaremos de o apoiar. Mas não há necessidade nenhuma disso acontecer. A Rússia não é um parceiro confiável. Putin é um criminoso de guerra. Se o senhor recusar esses cantos de sereia de Putin, nós apoiá-lo-emos em tudo armas, munições, treino de tropas, informações militares estratégicas e operacionais, logística, dinheiro, apoio diplomático e pelo tempo que for preciso. Eu trago-lhe hoje um cheque-promessa de mais de 100 milhões de libras esterlinas [=120 milhões de euros = 130 milhões de dólares americanos ao câmbio de então, n.e.] em armamento britânico da mais alta qualidade, além de um empréstimo de 500 milhões de dólares americanos do Banco Mundial, elevando assim a 100 mil milhões de dólares a garantia total de empréstimos do Reino Unido à Ucrânia. É uma prova concreta do nosso apreço por si e da nossa confiança no futuro da Ucrânia. E permita-me, sr. Presidente, que lhe diga mais uma coisa da máxima importância: a Ucrânia pode ganhar esta guerra contra a Rússia com o nosso apoio inabalável. Porque o nosso apoio inabalável ao seu país, não é apenas militar, financeiro e diplomático; é também económico. Nós vamos infligir sanções económicas à Rússia de Putin de uma dureza e numa escala nunca vistas, que, juntamente com a constante pressão militar, obrigarão Putin a claudicar e/ou a enfrentar uma revolta da sua própria população que o poderá derrubar”.



Boris Johnson e Volodymyr Zelensky no gabinete presidencial de Zelensky durante a visita-surpresa de Johnson a Kiev, em 9 de Abril de 2022. Esta foto foi divulgada no Twitter pela embaixada do Reino Unido na Ucrânia, com o título “Surpresa”. Fonte: @UkrEmbLondon.

    


    5. O papel pernicioso da dupla Johnson/Biden

 

Seja como for, uma coisa é certa: antes da visita-surpresa de Boris Johnson em 9 de Abril de 2022, a Ucrânia e a Rússia tinham chegado a um acordo de paz que ambas as partes beligerantes consideravam altamente satisfatório. Depois dessa visita, esse acordo foi recusado pela Ucrânia.

 

Não se trata de uma mera coincidência. Em 5 de Maio de 2022, os jornalistas ucranianos Iryna Balachuk e Roman Romaniuk, do Ukrayinska Pravda, escreveram:

 

«De acordo com fontes do Ukrayinska Pravda próximas de Zelensky, o Primeiro-Ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que apareceu na capital quase sem aviso prévio, trouxe duas mensagens simples: a primeira é que Putin é um criminoso de guerra, deve ser pressionado e não trazido para negociações; e a segunda é que, mesmo que a Ucrânia esteja pronta para assinar alguns acordos de garantias com Putin, eles [os membros do “Ocidente alargado”, n.e.] não estão.

 

A posição de Johnson era a de que o Ocidente alargado, que em Fevereiro tinha sugerido que Zelensky se rendesse e fugisse, sentia agora que Putin não era tão poderoso quanto imaginavam e que esta era uma oportunidade para o “pressionar”.

 

Três dias depois de Johnson ter partido para a Grã-Bretanha, Putin veio a público dizer que as conversações com a Ucrânia “tinham-se transformado num beco sem saída”»[9].

 

Por sua vez, Gerhard Schröeder confidenciou na sua entrevista ao Berliner Zeitung:

 

«As únicas pessoas que podem resolver a guerra da Ucrânia são os americanos. Durante as conversações de paz em Março de 2022, em Istambul, com Rustem Umierov [actual Ministro da Defesa da Ucrânia, n.e.], os ucranianos não concordaram com a paz porque não lhes foi permitido. Tiveram, primeiro, de coordenar tudo o que disseram com os americanos».

 

O antigo chanceler afirmou ainda, depois ter falado com Umierov e em “tête-à-tête com Putin”:

 

«No entanto, acabou por não acontecer nada. A minha impressão é que nada podia acontecer porque tudo o resto foi decidido em Washington. Foi fatal». [o realce, por meio de traço grosso, foi acrescentado ao original, n.e.]

 

6.    14 meses depois: o testemunho de Putin

 

Em 16 e 17 de Junho de 2023, uma delegação de governantes de vários países africanos África do Sul, Egipto, Zâmbia, República do Congo, Senegal, Uganda, União das Comores visitou, sucessivamente, Kiev e Moscovo para apresentar aos presidentes da Ucrânia e da Rússia um plano em 10 pontos destinado a pôr termo ao conflito armado entre esses dois países e para oferecer os seus préstimos como mediadora nas negociações que viessem a ocorrer nesse sentido.

 

Numa conferência de imprensa conjunta em Kiev, após a reunião com a delegação africana, Zelensky negou qualquer possibilidade de negociações com a Rússia e reiterou a posição do seu país de que as conversações de paz só poderão prosseguir depois de a Rússia se retirar completamente de todos os territórios ucranianos.


Durante a reunião com a delegação africana, o presidente russo, Vladimir Putin, mostrou o projecto final de acordo com a Ucrânia, elaborado em Março de 2022 em Istambul, que já descrevi na secção 2 deste artigo. Putin disse nessa ocasião: 

 

«Gostaria de chamar a vossa atenção para o facto de que, com a ajuda do Presidente [Tayyip] Erdogan, como sabem, teve lugar na Turquia uma série de conversações entre a Rússia e a Ucrânia, a fim de elaborar tanto as medidas de reforço da confiança que mencionaram, como o texto do acordo. Não acordámos com a parte ucraniana que este tratado seria confidencial, mas também nunca o apresentámos [publicamente], nem o comentámos [publicamente]. Este projecto de acordo foi rubricado pelo chefe da equipa de negociação de Kiev [o sr. Davyd Arakhamia, n.e.]. Ele colocou nele a sua assinatura. Aqui está ela»disse o Presidente russo, mostrando o documento à delegação africana.

 

De acordo com Putin, o projecto de acordo sobre a neutralidade militar permanente da Ucrânia (incluindo a componente nuclear) e as garantias de segurança da Ucrânia continha 18 artigos, com um anexo onde «tudo está especificado, desde o número de unidades de equipamento militar até ao pessoal das Forças Armadas», disse.

 

«Assim que a Rússia, conforme tinha prometido, retirou as suas tropas das cercanias de Kiev [num gesto de boa vontade demonstrativo do seu empenho no êxito do acordo, n.e.], a Ucrânia atirou o acordo para o caixote do lixo da história» — acrescentou Putin.

 

A intervenção completa de Putin nesta ocasião, com legendas em Inglês, pode ser vista e ouvida aqui [https://x.com/onlydjole/status/1670141702797967361?s=20].

 

O sistema mediático dominante de comunicação social do chamado “Ocidente alargado” deu pouca ou nula cobertura noticiosa a este discurso de Putin e os seus comentadores encartados dispensaram-se de comentar o seu conteúdo e as suas implicações. Quando o fizeram foi, o mais das vezes, para emitirem dúvidas quanto à autenticidade do documento exibido por Putin nessa ocasião. Veremos mais adiante (secções 8 e 9) quais as razões desse comportamento.

 

7.    19 meses depois: Arakhamia, outra vez

 

Cinco meses volvidos sobre as declarações de Putin à delegação africana sobre as negociações russo-ucranianas na Turquia e 18 meses volvidos sobre essas negociações, eis que o mesmo senhor David Arakhamia que continua  a ser o chefe do grupo parlamentar do partido Servente do Povo decide dar uma entrevista ao canal de televisão ucraniano 1+1, na qual…confirma tudo o que já sabíamos pela boca de Mevlut Cavusoglu, Ibrahim Kalin (porta-voz presidencial da Turquia) [10], Neftali Bennett, Vladimir Medinsky, Vladimir Putin, Gerhard Schröeder e do próprio Davyd Arakhamia!

 

A grande diferença, porém, é que, desta vez, a confirmação vem de alguém que esteve no ventre da baleia; alguém que participou directamente nas negociações de paz que tiveram lugar na Turquia como membro da parte que se apresenta como agredida; alguém que chefiou a delegação ucraniana nessas negociações; alguém que é um dos dirigentes mais proeminentes do partido Servente do Povo, o partido governante da Ucrânia; alguém em quem Zelensk tem plena confiança e que é um dos seus mais próximos colaboradores. Por isso, não é possível descartar o depoimento de Arakhamia afirmando que se trata do depoimento de um inimigo de Zelensky, de alguém que lhe quer mal, de alguém que pretende difamá-lo.

 

A entrevista a Arakhamia foi feita pela jornalista Natalia Moseichuk e, para quem saiba ucraniano, pode ser vista aqui [https://www.youtube.com/watch?v=6lt4E0DiJts]. Os trechos seguintes das declarações feitas por Arakhamia durante essa entrevista foram extraídos da transcrição feita pelo jornal ucraniano Ukrayinska Pravda na sua edição inglesa, em 24 de Novembro de 2023.

 

«Arakhamia: Eles [os membros da delegação russa, n.e.] estavam esperançados, e mantiveram essa esperança até quase ao último momento, que nos obrigariam a assinar um acordo desse género para que assumíssemos a neutralidade. Era o mais importante para eles. Estavam dispostos a acabar com a guerra se nós concordássemos com a neutralidade — como outrora fez a Finlândia — e nos comprometêssemos a não aderir à NATO [= OTAN, n.e.]. De facto, esse era o ponto-chave. Tudo o resto era apenas retórica e “tempero político” sobre a desnazificação, a população de língua russa e blá-blá-blá» [o realce, por meio de traço grosso, foi acrescentado ao original, n.e.]

 

Quando lhe foi perguntado porque é que a Ucrânia não concordava com esse ponto-chave, Arakhamia respondeu que os ucranianos [entenda-se: o governo ucraniano] não tinham confiança nos russos [entenda-se: no governo russo], porque eles estavam dispostos a prometer qualquer coisa.

 

«Arakhamia: Em primeiro lugar, para chegar a acordo sobre esse ponto, é necessário alterar a Constituição. O nosso caminho para a NATO está inscrito na Constituição. Em segundo lugar, não havia confiança nos russos de que eles fariam o que prometeram. Isso só seria possível se houvesse garantias».

 

Dois comentários que vêm a talho de foice.

 

1.º) O parlamento da Ucrânia inscreveu o desejo deste Estado de aderir à OTAN/NATO em 3 artigos da Constituição da Ucrânia (artigos 85, 102 e 116). A Constituição da Ucrânia já foi revista 6 vezes desde a sua aprovação (1996). Nada impede que seja revista uma 7.ª vez para desinscrever esse desejo que só trouxe morte e destruição em doses maciças a esse país e cuja realização, aliás, não depende sequer da vontade exclusiva da Ucrânia, mesmo que esse desejo não tivesse tais óbices. Como se sabe, um Estado só pode ser aceite na OTAN (i) se cumprir um certo número de requisitos e (ii) se os demais membros dessa organização estiverem de acordo por unanimidade, mesmo que o país candidato à adesão cumpra tais requisitos na íntegra. Que o diga a Suécia, por exemplo, que cumpre todos os requisitos exigidos, mas que continua à espera de entrar por causa da oposição da Turquia e da Hungria.

 

2.º) O que Arakhamia afirma sobre a falta de garantias de segurança que tinham sido pedidas pela Ucrânia não corresponde à verdade, a fazer fé no que Schröeder nos revelou na sua entrevista ao Berliner Zeitung. Segundo Schröeder, as partes puseram-se de acordo sobre quem forneceria essas garantias: a Alemanha e o Conselho de Segurança da ONU, como vimos.

 

Prossigamos. Arakhamia acrescentou que os parceiros ocidentais estavam a par das negociações e que leram os rascunhos dos documentos que foram redigidos enquanto as negociações duraram, mas que não tentaram substituir-se à Ucrânia tomando uma decisão por ela. O que fizeram, isso sim, foi dar conselhos, disse.

 

«Arakhamia: Na verdade, aconselharam-nos a não aceitar garantias de segurança efémeras [da parte dos russos — nota editorial da Ukrainska Pravda], que não poderiam de modo nenhum ser dadas nessa altura».

 

Mas, logo a seguir, acabou por confidenciar que, vindos de quem vêm, os conselhos desta natureza são ordens para os “Serventes do Povo”:

 

«Arakhamia: Além disso, quando regressámos de Istambul, Boris Johnson veio a Kiev e disse que não íamos assinar com eles [os russos, n.e.] coisíssima nenhuma, vamos mas é lutar contra eles» [o realce, por meio de traço grosso, foi acrescentado ao original, n.e.]

 

8. As pesadíssimas responsabilidades de Zelensky

 

Basta cotejar a avaliação que Arakhamia fez do acordo de paz russo-ucraniano de Março de 2022, em duas ocasiões distintas em 3 de Abril de 2022 (“excelente!”) e em 24 de Novembro de 2023 (“péssimo!”) para se perceber que este homem é um pau-mandado. É possível vê-lo (é o meu caso) como um Jonas a quem foi dada uma oportunidade única de reflectir sobre a sua experiência quando esteve no ventre protector da baleia, mas que renegou tudo o que aprendeu durante esse período, logo que a baleia o expeliu de volta às ondas revoltas do mar.

 

Seja como for, as cabriolas opinativas de Arakhamia não alteram os factos que este artigo pretende destacar, que Arakhamia confirmou na sua entrevista e para a existência dos quais o mesmo Arakhamia contribuiu com a sua quota-parte, malgrado a sua pusilanimidade.


O facto principal a destacar é este. Em 3 de Abril de 2022, Davyd Arakhamia, chefe da delegação ucraniana nas conversações de paz com a Rússia, assinou livremente e em nome do seu governo, um acordo com o governo russo que teria permitido ao seu país:

 

― Beneficiar de um cessar-fogo imediato;

 

― Evitar a morte em combate de centenas de milhares de soldados ucranianos;

 

― Evitar que centenas de milhares de soldados ucranianos fossem feridos, capturados como prisioneiros de guerra, dados como desaparecidos em combate ou que ficassem estropiados para o resto da vida;

 

 Evitar a fuga de milhões de ucranianos para o estrangeiro e a deslocação de milhões de outros dentro do seu país [11].

 

― Evitar a morte de milhares de civis ucranianos (incluindo centenas de crianças) [12], vítimas colaterais tanto dos bombardeamentos russos como, sobretudo, da política dita de “defesa total” do governo de Zelenzky, que aboliu a distinção basilar das leis da guerra entre combatentes e civis e transformou os civis ucranianos das cidades em escudos humanos das tropas e das instalações militares ucranianas [13].



«A Ucrânia não tem cidadãos civis. Agora todos estão na guerra contra a ocupação moscoviana». Este cartaz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia faz a apologia do conceito de defesa total”, um elemento central da doutrina militar aprovada pelo parlamento ucraniano — ou seja, a abolição da distinção entre combatentes e civis; a distinção que constitui a base do direito internacional humanitário (ou “leis da guerra”). É a justificação encontrada pelo governo de Zelensky para a utilização dos civis ucranianos dos centros urbanos, sobretudo os que vivem em bairros densamente povoados, como “escudos humanos” das tropas e instalações militares ucranianas. É também a justificação encontrada pelo governo de Zelensky para dar aos agentes do SBU [o serviço de vigilância policial da Ucrânia] e do HUR [os serviços secretos de informações, espionagem e acções especiais do Ministério da Defesa da Ucrânia] licença para prenderem e assassinarem civis (incluindo jornalistas) ou militares que sejam considerados como inimigos da Ucrânia, tenham ou não nacionalidade ucraniana e vivam dentro ou fora das fronteiras da Ucrânia. «Moscoviano» é um termo pejorativo dos grupos neonazis banderistas para denominar xenofobicamente os russos.


― Evitar danos físicos ou funcionais e destruições nas suas infraestruturas físicas (barragens, pontes, aeródromos, viadutos, estradas, ferrovias, centrais eléctricas térmicas não-nucleares, postos de transformação eléctrica, instalações portuárias), no seu parque habitacional e até, por vezes, no seu património edificado, com todo o seu cortejo de efeitos indirectos.


Uma ponte destruída pela guerra na Ucrânia. 

 

Além disso, o acordo firmado na Turquia pela delegação ucraniana e pela delegação russa teria permitido preservar a integridade territorial da Ucrânia tal como esta existia à data da sua declaração de independência (24 de Agosto de 1991) — ou seja, teria evitado a secessão definitiva da RPL e da RPD na região de Donbass (substituída por uma autonomia à tirolesa no âmbito da Ucrânia), a sua adesão ulterior à Federação Russa e a incorporação dos oblasts de Zaporíjia e Kherson na Federação Russa. Este aspecto do conteúdo do acordo ⎼ a fazer fé na exactidão das confidências de Gerhard Schröeder   seria, sem dúvida, a cereja em cima do bolo para os nacionalistas ucranianos, pelo menos para os mais moderados, e um sapo que seria engolido sem grandes dificuldades pelos mais ferrenhos, incluindo os ultranacionalistas neonazis seguidores de Stepan Bandera.  

 

Mas o presidente Volodymyr Zelensky e o seu regime repudiaram tudo isto. Preferiram aceitar, cheios de gratidão, a conta à ordem e o tapete rolante de material bélico que lhes foram oferecidos pelos seus patronos anglo-americanos (Johnson e Biden) e os seus prestimosos ajudantes europeus (Olaf Scholz, Charles Michel, Ursula von der Leyen, Emmanuel Macron, Joseph Borrell, Jens Stoltenberg). Em troca de quê? Do cumprimento de um mandato camicase destinado a «enfraquecer a Rússia» (Lloyd Austin, ipse dixit [14]), cujo teor foi muito bem resumido por Andrés López Obrador, o presidente do México: «Nós [Ucrânia] fornecemos os mortos; vós [Ocidente alargado] forneceis as armas».

 

9. A derrocada de uma pseudo-explicação 

 

O primeiro efeito da entrevista de Davyd Arakhamia é, portanto, o de revelar, da maneira mais terra a terra que é possível, o modo como Zelensky e os seus colaboradores arrastaram cientemente o seu país para uma guerra devastadora que poderiam facilmente ter evitado, não fora o breviário onde procuram inspiração e conselho para a sua actuação como governantes — um inebriante cacharolete de ignorância crassa, esperteza saloia, ganância, mesquinhez e hubris.

 

O segundo efeito dessa entrevista que convém destacar é o de fazer ruir, como um piparote num castelo de cartas, a pseudo-explicação favorita das guerras na Ucrânia (em particular a segunda) que é avançada pelos comentadores do sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado”. Para fins mnemónicos, podemos denominar essa pseudo-explicação como sendo a de “Putin, o conquistador” — uma explicação que faz dele um émulo russo de Dom Afonso Henriques (o primeiro rei de Portugal) nos dias de hoje.

 

Fiona Hill uma historiadora anglo-americana e assessora política de vários presidentes americanos expressou muito clara e sucintamente essa pseudo-explicação na seguinte passagem:

 

«O presidente da Rússia invadiu a Ucrânia não por se sentir ameaçado pela expansão da NATO ou por “provocações” ocidentais. Ele ordenou a sua “operação militar especial” porque acredita que a Rússia tem o direito divino de governar a Ucrânia, de acabar com a identidade nacional do país e de integrar o seu povo numa Grande Rússia» [15].

 

Já desmontei e refutei, longamente, a tese do “expansionismo da Rússia” ou das alegadas “ambições territoriais de Putin” (em suma, “Putin, o conquistador”) no meu livro Dissipando a Névoa Artificial da Ucrânia: um roteiro para fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa, e o desarmamento nuclear universal (cf. nota 10, pp.153-157). Não vou repetir aqui o que disse nesse livro, porque isso não serviria nenhum propósito útil.

 

Mas vale a pena dar aqui a conhecer, na íntegra, os argumentos principais que John Mearsheimer desenvolveu contra essa pseudo-explicação num artigo recente. Os seus argumentos vão no mesmo sentido que os meus, apesar das grandes diferenças que nos separam no plano epistemológico e no plano político [16].   

 

«Segundo todos os relatos, essas negociações [entre a Ucrânia e Rússia, na Turquia, n.e.], que tiveram lugar em Março-Abril de 2022, estavam a fazer progressos reais quando o Reino Unido e os EUA disseram ao presidente ucraniano Zelensky para as abandonar, o que ele fez.

 

A cobertura destes acontecimentos centrou-se na insensatez e irresponsabilidade que foi o Presidente Joe Biden e o primeiro-ministro Boris Johnson terem posto fim a estas negociações, tendo em conta toda a mortandade e destruição que a Ucrânia tem sofrido desde então — numa guerra que Kiev provavelmente perderá.

 

No entanto, um aspecto especialmente importante desta história, relativo às causas da guerra na Ucrânia, tem recebido pouca atenção. A opinião convencional bem enraizada no Ocidente é que o Presidente Putin invadiu a Ucrânia para conquistar o país e torná-lo parte de uma Grande Rússia. Depois, seguiria em frente e conquistaria outros países da Europa de Leste. O contra-argumento, que goza de pouco apoio no Ocidente, é que Putin foi motivado para invadir principalmente pela ameaça de a Ucrânia aderir à NATO e se tornar um baluarte ocidental na fronteira da Rússia. Para ele e para outras elites russas, a adesão da Ucrânia à NATO era uma ameaça existencial.

 

As negociações de Março-Abril de 2022 tornam claro que a sabedoria convencional sobre as causas da guerra está errada e que o contra-argumento está certo, por duas razões principais.

 

Em primeiro lugar, as conversações centraram-se diretamente na satisfação da exigência da Rússia de que a Ucrânia não fizesse parte da OTAN e, em vez disso, se tornasse um Estado neutro. Todos os envolvidos nas negociações compreenderam que a relação da Ucrânia com a OTAN era a principal preocupação da Rússia.

 

Em segundo lugar, se Putin estivesse empenhado em conquistar toda a Ucrânia, não teria concordado com estas conversações, uma vez que a sua própria essência contradizia qualquer possibilidade de a Rússia conquistar toda a Ucrânia. Poder-se-ia argumentar que Putin participou nestas negociações e falou muito de neutralidade para mascarar as suas ambições maiores. No entanto, não há provas que sustentem esta linha de argumentação, para além de que: 1) a pequena força de invasão da Rússia não era capaz de conquistar e ocupar toda a Ucrânia; e 2) não teria feito sentido atrasar uma ofensiva maior, pois isso daria tempo à Ucrânia para construir as suas defesas.

 

Em suma, Putin lançou um ataque limitado à Ucrânia com o objectivo de coagir Zelensky a abandonar a política de alinhamento de Kiev com o Ocidente e a não levar, por fim, a Ucrânia para dentro da OTAN. Se o Reino Unido e o Ocidente não tivessem intervindo para estragar as negociações, há boas razões para pensar que Putin teria atingido este objetivo limitado e concordado em acabar com a guerra.

 

Também vale a pena lembrar que a Rússia só anexou os oblasts ucranianos de Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporíjia em Setembro de 2022, muito depois de as negociações terem terminado. Se tivesse sido alcançado um acordo, a Ucrânia controlaria quase de certeza uma parte muito maior do seu território original do que aquela que controla actualmente. É cada vez mais claro que, no caso da Ucrânia, o nível de insensatez e desonestidade das elites ocidentais e dos principais meios de comunicação ocidentais é pasmoso »[17].


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Notas e Referências

 

[1] A ex-chanceler da Alemanha, Angela Merkel, e o ex-presidente da França, François Hollande, mediadores e garantes dos Acordos de Minsk 2 por parte da Ucrânia, deram recentemente entrevistas (Merkel ao Der Spiegel [1-12-2022] e ao Die Zeit [7-12-2022]; Hollande ao The Kyiv Independent [28-12-2022] e ao Frankfurter Allgemeine [24-03-2023]) durante as quais afirmaram que nunca foi sua intenção fazê-los cumprir. A sua única intenção foi, confessaram, a de permitir que o presidente Poroshenko da Ucrânia ganhasse o tempo necessário para poder construir, com a ajuda dos EUA e dos países da OTAN, umas Forças Armadas poderosas, capazes de destruir a RPD e a RPL, subjugar de novo a população russófona da Donbass e confrontar-se vitoriosamente com as Forças Armadas russas, caso estas viessem em socorro daquelas repúblicas.

[2] Os apologistas da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) costumam alegar, em seu abono, que esta é uma aliança benigna, puramente defensiva. Destarte, argumentam, a Rússia nada teria a temer com a expansão da OTAN em 5 ondas sucessivas (1999, 2004, 2009, 2017, 2020) em direcção às fronteiras russas e a eventual adesão da Ucrânia e da Geórgia seria apenas mais um episódio dessa inofensiva expansão da OTAN. Mas basta evocar as intervenções militares ofensivas da OTAN (Jugoslávia 1995 e 1999, Afeganistão 2003, Líbia 2011) e observar o rasto sangrento de morte e destruição que deixaram para verificar que essas alegações são uma facécia para consumo jornalístico.

[3] Medea Benjamin & Nicolas Davies, War in Ukraine: Making Sense of a Senseless Conflict [“Guerra na Ucrânia: para entender um conflito que não se entende”]. OR Books, December 21, 2022.

[4] Schröeder ocupa actualmente o cargo de presidente do conselho de administração da Rosneft, uma empresa pública russa, e de presidente do conselho de administração da Nord Stream 2, uma subsidiária da Gazprom, uma empresa pública russa.

[5] “Gerhard Schröeder im Interview: So scheiterten dienFriedensverhandlungen zwischen Ukraine und Russland”. Berliner Zeitung, 21-10-2023; “Former German Chancellor claims he ‘mediated’ situation between Ukraine and Russia in 2022”. Ukrayinska Pravda, October 21, 2023 [reproduzido em Yahoo! News].

[6] Consultar, a este propósito, o capítulo 3 (“A colossal patranha da anexação da Crimeia pela Rússia”) do meu livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal” (Editora Primeiro Capítulo, 2023).

[7] “Rússia fala em lento cumprimento dos acordos de Istambul por Kiev”. Lusa, 3 de Abril de 2022.

[8] Robert Sermones, “Former Israeli PM: West Blocked Russo-Ukraine Peace Deal”. The European Conservative, February 7, 2023; Iryna Balachuk & Roman Romaniuk, “Possibility of talks between Zelenskiy and Putin came to halt after Johnson’s visit — UP sources”. Ukrayinska Pravda, 5 May, 2022.  

[9] Iryna Balachuk & Roman Romaniuk,“Possibility of talks between Zelenskiy and Putin came to halt after Johnson’s visit — UP sources”. Ukrayinska Pravda, 5 May, 2022. 

[10] «Numa entrevista ao jornal diário Hurriyet, o porta-voz presidencial [da Turquia], Ibrahim Kalin, afirmou que as partes estavam a negociar seis pontos: A neutralidade da Ucrânia, o desarmamento e as garantias de segurança, a chamada “desnazificação”, a eliminação dos obstáculos à utilização da língua russa na Ucrânia, o estatuto das repúblicas separatistas na região da Donbass e o estatuto da Crimeia» (“Russia, Ukraine ‘close to agreement’ in negotiations, says Turkey». Aljazeera, 20 March 2022).

[11] Segundo os últimos dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), em 21 de Novembro de 2023, havia mais de 6 milhões (6.338.100) de refugiados ucranianos noutros países, e mais de três milhões (3.674.000) deslocados internos em 3 de Novembro de 2023, segundo os dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM) das Nações Unidas

[12] Pelo menos, 10.000 civis, incluindo mais de 560 crianças, foram mortos e mais de 18.500 ficaram feridos desde o início da 2.ª guerra na Ucrânia, em 24 Fevereiro de 2022, segundo o relatório de 24 de Novembro de 2023 do ACNUR.

[13] O emprego de escudos humanos é um crime de guerra, expressamente proibido pelo Direito Internacional Humanitário, também conhecido como Direito Internacional dos Conflitos Armados (vulgo, “as leis da guerra”) — nomeadamente pela Terceira Convenção de Genebra (relativa aos prisioneiros de guerra), pela Quarta Convenção de Genebra (relativa aos civis protegidos), pelo Protocolo Adicional I (relativa aos civis em geral), assim como pelo estatuto do Tribunal Penal Internacional. Tanto a Ucrânia como a Rússia subscreveram estas convenções e os seus protocolos adicionais.

Por “emprego de escudos humanos” entende-se, especificamente, «o emprego da presença (ou do movimento) de civis ou outras pessoas protegidas para tornar certos pontos ou áreas (ou forças militares) imunes às operações militares ou ainda, uma colocação intencional de civis ou pessoas fora de combate [tais como pessoal médico e paramédico, bombeiros, prisoneiros de guerra, n.e.] junto a objectivos militares [tais como bivaques militares, obuses, baterias DCA, carros de combate, depósitos de munições, radares, centros de comando e controlo, n.e.] com a finalidade específica de tentar evitar os ataques a esses objectivos (Jean-Marie Henckaerts & Louise Doswald-Beck, Direito Internacional Humanitário Consuetudinário. Volume 1. Normas. Comité Internacional da Cruz Vermelha. 2007, pp.381-2). O emprego, numa guerra, de civis como escudos humanos é uma das violações mais cínicas da abolição da distinção entre combatente e civil (ou pessoa fora de combate), a qual constitui a base de sustentação de todo o moderno edifício do direito internacional humanitário — a sua Norma nº.1.

«Norma 1. As partes em conflito devem distinguir entre civis e combatentes em todas as circunstâncias. Os ataques só podem ser dirigidos contra os combatentes. Os ataques não podem ser dirigidos contra os civis» (Henckaerts & Doswald-Beck, op.cit., p.3).

Zelensky não hesitou, desde o início da segunda guerra na Ucrânia, em violar a Norma Nº.1 do Direito Internacional Humanitário, empregando civis ucranianos, sobretudo nas cidades, como escudos humanos para defender as tropas e as instalações militares ucranianas dos ataques das tropas russas. Este é um facto praticamente desconhecido do grande público. Esse desconhecimento deve-se ao silêncio noticioso e comentarístico que o sistema mediático dominante da comunicação social tem feito sobre este assunto, salvo raras excepções. Esta é uma delas: Susan Raghavan, “Russia has killed civilians in Ukraine. Kyiv’s defense tactics add to the danger.” Washington Post.  March 22, 2022.

[14] «Numa conferência de imprensa na Polónia, após a sua visita [a Kiev], Austin [ministro da Defesa dos EUA, n.e.] disse aos jornalistas que os EUA querem ver a Rússia enfraquecida ao ponto de não poder fazer o tipo de coisas que fez ao invadir a Ucrânia»Matt Murphy, Ukraine war: US wants to see a weakened Russia”. BBC News, 25 April 2022. 

[15] Fiona Hill & Angela Stent, “The World Putin Wants. How Distortions About the Past Feed Delusions About the Future.” Foreign Affairs. September/October 2022. Published on August 25, 2022.

[16] John J. Mearsheimer é professor de politologia e relações internacionais na Universidade de Chicago, EUA, desde 1982. No domínio das relações internacionais, é o principal teórico da corrente denominada “realismo ofensivo”, uma variante da doutrina do realismo político.

[17] John J. Mearsheimer, “The Myth that Putin Was Bent on Conquering Ukraine and Creating a Greater Russia.” Substack, 27-11-2023.

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