Temas 5 e 3
“Se eu tiver de morrer” —
o último poema de Refaat Alareer
José Catarino Soares
O número de civis palestinianos assassinados
em Gaza, vítimas dos ataques das forças armadas de Israel nas últimas 11
semanas, atingiu os 20.258, enquanto 53.688 ficaram feridos, informou o
Ministério da Saúde palestiniano no sábado, dia 23 de Dezembro de 2023. Entre os
mortos, mais de 9.077 eram crianças, informou o Euro-Med Human Rights
Monitor. Presume-se que outros milhares de cadáveres, de adultos e crianças,
estejam presos sob os escombros em toda a faixa de Gaza.
Um dessas vítimas mortais foi Refaat Alareer (23 de Setembro de 1979 ⎼ 6 de Dezembro de 2023), um proeminente escritor, poeta,
professor e activista palestiniano da Faixa de Gaza.
Refaat Alareer (3 de Setembro de 1979 – 6 de Dezembro de 2023) |
Refaat Alareer ensinava
literatura inglesa (área onde se doutorou a muito custo devido às proibições de
viajar e estudar no estrangeiro que Israel lhe impôs) e escrita criativa na
Universidade Islâmica de Gaza — que foi, entretanto, completamente destruída pelos
bombardeamentos de Israel. Foi também co-fundador da organização We Are Not Numbers [“Nós não somos
números”], que junta autores experientes e jovens escritores em Gaza e promove a
narração de histórias como forma de resistência ao ocupante israelita.
Em Gaza
Writes Back: Short
Stories from Young Writers in Gaza, Palestine (Just World Books.2014) [“Gaza
riposta pela escrita: contos de jovens escritores em Gaza, Palestina”], uma antologia
que editou, o poeta e professor Refaat Alareer afirmou:
«A
Palestina começou por ser ocupada metaforicamente com palavras, histórias e
poemas».
Isto, porque são também
as histórias que nos contam desde crianças e as histórias que contamos que nos
fazem como pessoas, muitas vezes sem estarmos cientes do seu poder educativo [1].
Num país brutalmente
oprimido; num país, como a Palestina, ocupado há mais de 70 anos por um Estado colonizador
(Israel), cujos habitantes estão, na sua grande maioria, imbuídos até à ponta
dos cabelos de uma ideologia messiânica da “Terra Prometida” (o sionismo), condimentada
com uma série de versículos do Velho Testamento sobre a supremacia étnica do
povo escolhido por Javé (uma divindade carrancuda e vingativa), este problema do
poder das narrativas na formação e autoformação individual dos oprimidos
adquire uma acuidade especial. Um dos alunos de Alareer fez notar a este
propósito:
«Vivemos
num mundo que castiga os oprimidos sempre que estes reclamam o seu direito
básico de contar a sua versão da história. Vivemos num mundo que assassina as
vozes da verdade. Vivemos num mundo que prende os escritores que usam as suas
canetas em busca de justiça. Vivemos num mundo que silencia os desventurados
quando eles choram. Ainda assim, temos de continuar a contar histórias» [2].
Quando o fazemos,
salientou Rafaat Alereer no livro Gaza Writes Back:
«Por
vezes, uma pátria torna-se uma lenda. Gostamos da lenda porque é sobre a nossa
pátria e gostamos ainda mais da nossa pátria por causa da lenda».
Em 2014, Alareer
fez uma visita de estudo aos EUA a convite da Lannan Foundation, uma
fundação sediada em Santa Fé, Novo México, que apoia uma combinação de
actividades artísticas e causas políticas progressistas. Essa estadia nos EUA
teve um profundo impacto transformador em Alareer. Pela primeira vez na vida, teve
oportunidade de encontrar judeus que não eram sionistas (como o seu futuro grande
amigo, o jornalista Max Blumenthal), mas que, pelo contrário, apoiavam a causa
da Palestina, e judeus que não se apresentavam diante de si fardados e armados
até aos dentes prontos a disparar ou a falar-lhe num tom de arrogante superioridade.
«Israel quer que nos
fechemos, que nos isolemos — quer empurrar-nos para o extremo. Não quer que
sejamos educados. Não quer que nos vejamos como parte de uma luta universal contra a
opressão.
Não quer que sejamos educados ou que sejamos educadores» [3].
Depois dessa visita, Refaat Alareer decidiu iniciar os seus estudantes na literatura imaginativa hebraica. Entre os escritores judeus israelitas que lhes indicou estava Yehuda Amichai, um reputado poeta, cujo famoso poema, God Has Pity on Kindergarten Children [“Deus tem pena das crianças do jardim de infância”] fala de vidas curtas, consumidas pela guerra e pontuadas por encontros íntimos com a violência. As estrofes iniciais do poema calaram fundo nos alunos de Refaat Alaleer.
Deus tem pena das crianças do jardim de infância,
Tem pena das crianças da escola — destas menos.
Mas dos adultos não tem pena nenhuma.
Abandona-os,
E às vezes eles têm de rastejar a quatro patas
Na areia escaldante
Para chegar ao posto de socorros,
a escorrer sangue.
Em 6 de Dezembro
de 2023, aos 44 anos, Alareer foi assassinado num ataque aéreo israelita no
norte de Gaza, juntamente com o seu irmão, a sua irmã e os três filhos desta,
durante a invasão israelita da Faixa de Gaza iniciada em 27 de Outubro de 2023.
A sua mulher e seis filhos sobreviveram ao ataque que o matou.
O seu amigo Max
Blumenthal conta:
«Na
nossa última conversa, a 27 de Novembro [de
2023], quando o bombardeamento se aproximava da sua casa,
disse-me: “Está tudo a acabar. A comida. A água. Gás de cozinha. Israel está a
bombardear todas as fontes de vida. Painéis solares, tanques de água e canos de
água. Nem uma padaria está a funcionar”» [4].
O Euro-Med Human
Rights Monitor divulgou um comunicado em que afirmava que Alareer tinha
sido deliberadamente visado, já que todo o edifício em que vivia com os seus
familiares foi «cirurgicamente
bombardeado», e que o ataque ocorreu após semanas de «ameaças de morte que Refaat recebeu via
internet e por telefone de contas israelitas» [5]
Os seus cobardes assassinos
estavam perfeitamente cientes de que o seu alvo nada tinha de letal. Numa das suas
últimas entrevistas, Refaat Alareer, jurou que, se necessário e se pudesse, morreria
a lutar com as mesmas ferramentas com que viveu.
«Sou
um universitário. Provavelmente, a coisa mais rija que tenho em casa é um marcador de ponta de feltro. Mas se os israelitas invadirem, se os pára-quedistas nos atacarem,
indo de porta em porta, para nos massacrarem, vou usar esse marcador para o
atirar aos soldados israelitas, nem que seja a última coisa que faça» [6].
Como fez notar um
dos seus ex-alunos: «Refaat
Alareer foi morto porque a sua mensagem alcançava o mundo» [7] — entenda-se: o mundo que está para além do muro que cerca o maior
campo de concentração do planeta que é Gaza.
No dia 1 de
Novembro de 2023, Refaat Alareer escreveu o seu último poema, If
I must die [“Se eu
tiver de morrer”].
Cumprindo a sua
última vontade da única maneira que me é possível, contei acima, muito
sucintamente, a sua história [8] e publico aqui, neste blogue (o meu papagaio voador), o
seu poema, que traduzi para Português.
If I must die, Se eu tiver de morrer
you must live tu tens de viver
to tell my story para contares a minha
história
to sell my things para venderes os meus
pertences
to buy a piece of cloth e comprares um pedaço de pano
and some strings, e alguns cordéis
(make it white with a long tail) (façam-no de cor branca
com uma cauda comprida)
so that a child, somewhere in Gaza a fim de que uma
criança, algures em Gaza
while looking heaven in the eye ao virar os olhos para o céu
awaiting his dad who left in a blaze— à espera do seu
pai que morreu envolto em chamas —
and bid no one farewell sem se despedir de
ninguém
not even to his flesh nem sequer dos seus
not even to himself— nem sequer de si próprio —
sees the kite, my kite you made, veja o papagaio, o
papagaio que tu me fizeste
flying up above a voar alto no céu
and thinks for a moment an angel is there e pense por um momento
que vai ali um anjo
bringing back love que traz o amor de
volta
If I must die
Se eu tiver de morrer
let it bring hope deixem-no trazer a esperança
let it be a tale. deixem-no ser uma lenda.
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P.S. A cantora jordana Farah Siraj musicou e cantou o poema original. Pode ser escutada aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=sCP1KF2mDh
Uma mulher da qual só sei o nome que usa, Shamis, faz uma bela recitação do poema original. Pode ser escutada aqui: https://www.youtube.com/watch?v=3esWqn7Jbws
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P.S. (2). Uma das últimas entrevistas a Refaat Alareer foi feita pelos jornalistas americanos Aaron Maté e Katie Halper (ambos judeus, por sinal), no canal «Useful Idiots», em 11 de Outubro de 2023. Pode ser vista e escutada aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Nk0x_s_h-pU
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P.S. (3). O actor escocês Brian Cox interpretou também o último poema de Alareer. Pode ser visto e escutado aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=Ualqa-MIwpg
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P.S (4). Maxine Peake, actriz e activista inglesa, interpretou o último poema de Alareer, em 13 de Dezembro de 2023, durante uma manifestação pró-Palestina em Londres. Podemos vê-la e escutá-la aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=gonKClOAXrE
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P.S. (5). A jornalista americana Rania Khalek também evocou a memória e recitou o poema de Alareer no canal «BreakThrough News», há 3 semanas. Podemos vê-la e escutá-la aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=TbA9wdWkSPw
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P.S.(6). O cantor francês HK e o seu conjunto Les Saltibanks também interpretaram o poema de Alareer, xo um texto complementar. Podemos ouvi-lo aqui : https://www.youtube.com/watch?v=w6vdQJNwcxY
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Notas e referências
[1] Refaat Alareer desenvolveu este tema numa
palestra do TEDx Talks que ele fez em Shujaiya, a sua terra natal: “Stories
make us” [https://www.youtube.com/watch?v=YsbEjldJjOw]
[2] Alia Khaled
Madi, “Refaat Alareer and the power of words”. Electronic Intifada,
23 December 2023
[3] Max Blumenthal, “«If I must die, let it be a tale»: a tribute to Refaat
Alareer”. The Grayzone, December 7, 2023.
[4] Max Blumenthal,
op.cit.
[5] “Israeli Strike on Refaat al-Areer Apparently
Deliberate”. Euro-Mediterranean Human Rights Monitor, 8 December 2023.
[6] Max Blumenthal, op.cit.
[7] Asmaa Abu Matar, “Refaat Alareer was killed because
his message reached the world”. Electronic Intifada, 17 December 2023.
[8] A história de Alareer está mais amplamente contada,
até 2014, no livro de Max Blumenthal, The 51 Day War: Ruin and Resistance in Gaza (Nation Books/Verso
Books. 2015) e, após 2014, em “In memory of Dr. Refaat Alareer”. Electronic
Intifada, 7 December 2023, e Jennifer Bing, “Lessons from Refaat Alareer,
storyteller”. Electronic Intifada, 21 December 2023.
Lindo e comovente poema
ResponderEliminarSublime. Que injusto. O mundo fica mais pobre!!!
ResponderEliminarFOI POR MATAR A NARRATIVA DE ISRAEL QUE REFAAT ALAREER TEVE DE MORRER
ResponderEliminar[Um leitor, que assina “Whale project”, escreveu o seguinte comentário ao meu artigo «Se eu tiver de morrer — o último poema de Refaat Alareer». Concordo inteiramente com esse comentário, que julgo ir direito ao cerne da questão. Julgo, por isso, que merece a máxima divulgação, para a qual quero contribuir com os meus modestos meios. O título do comentário é meu, mas pretende resumir tão-somente a mensagem do comentário de Whale project] [n.e.= nota editorial]
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Compreende-se a vontade que uma gente sanguinária e genocida poderá ter de ver morto alguém como Refaat Alareer. Compreende-se que tenham transformado essa vontade em ação.
Porque esse tipo de gente faz toda a narrativa Israelita de desumanização dos palestinianos cair pela base.
Um bombista suicida é o melhor que lhes pode acontecer. Permite-lhes dizer a gente que nunca sentiu o desespero de uma ocupação por gente messiânica, com tara de superioridade e genocida, que os palestinianos são, se não animais pelo menos uma gente muito má. Uma gente que quer morrer — portanto, Israel só lhes faz a vontade quando os mata, antes que se joguem sobre eles com uma bomba. Não interessa que, em anos [e anos], pouco mais de duas dezenas, numa população de uns seis milhões de pessoas, tenham estado tão desesperados para fazer tal coisa. O bombista suicida alimenta a narrativa de diabolização e desumanização do outro.
Permite a nações que os apoiam [i.e. que apoiam os israelitas, n.e.], aliviar a má consciência, permite que olhemos para o lado quando mais palestinianos são mortos a tiro pela soldadesca, quando casas e terras são roubadas, quando cisternas de água são destruídas, quando Gaza é mais uma vez bombardeada, quando homens e mulheres estiolam anos a fio nas masmorras israelitas. O sangue derramado pelo bombista suicida lava todos os crimes. Lava perante o Ocidente o crime hediondo que é apoiar Israel.
Mas alguém que se limita a, denunciar com a sua caneta os crimes cometidos, alguém que apela à distinção entre sionistas e não sionistas; alguém que, apesar de toda a violência sofrida à mãos dos judeus, reconhece, com sinceridade, que nem todos são animais nem má gente, esse, sim, é um perigo.
Por isso, Israel mata sem dó nem piedade também esses. Porque esses são um perigo para a sua narrativa de “coitadinhos” que têm de matar todos os palestinianos antes que todos eles ponham um colete suicida e se lancem sobre Israel.
Foi por matar a sua narrativa [dos “coitadinhos de nós, israelitas”, n.e.] que Refaat Alareer teve de morrer.
Mas, para muita gente, essa narrativa de “coitadinhos” já está morta há muito. Pelo que não havia necessidade. Mas os sanguinários pensam sempre de outra forma.
Whale project, Estátua de Sal, Dezembro 30, 2023 às 10:00 pm