Temas 2 e 3
Conhecer-se a si próprio
e conhecer o adversário
(a propósito das eleições legislativas de 10 de Março de
2024 em Portugal)
José Catarino Soares
1.Introdução
Escrevi este ensaio, tal como
muitos outros no passado, para me esclarecer, à míngua de encontrar esse
esclarecimento em seara alheia. Quando não me resta outra solução, para me
esclarecer sobre um certo assunto de interesse geral, do que escrever eu
próprio um artigo (ou um ensaio ou um livro) sobre ele, faço-o, porque essa
tarefa implica pesquisa, estudo e reflexão q.b. Quando os resultados
desse esforço me parecem minimamente satisfatórios, publico-o no pressuposto de
que possa ser útil para o auto-esclarecimento de outras pessoas.
Foi o que aconteceu com a interpretação do significado da convocação e dos resultados das eleições legislativas de 10 de Março de 2024 em Portugal, sobre a qual tudo o que li até à data (e não foi pouco) me deixou, no cômputo global, muito insatisfeito [1]. Devo acrescentar, no entanto, que não me surpreenderia que a recíproca seja igualmente verdadeira no caso em apreço. De facto, suspeito que a análise proposta neste ensaio, da secção 3 em diante, esteja mais contra a corrente do que é costume.
Palácio de São Bento em Lisboa. Sede da Assembleia da República (nome do parlamento português). Foto: DeAgostini/Getty Images. |
2. Aritmética
eleitoral
2.1. Votantes
(incluindo brancos e nulos) e abstenção
O número de votantes nas eleições
legislativas de 10 de Março de 2024 foi de 6.473.789 (59,84%). A abstenção, que
foi de 48,58% em 2022, com 5.256.840
abstencionistas, baixou, desta vez, quase 8 pontos e meio percentuais, com 4.344.437
abstencionistas (40,16%). Para encontrar uma taxa de abstenção semelhante temos
de recuar até 2009 (40,3%). A título comparativo, recorde-se que a taxa de
abstenção nas três primeiras eleições legislativas do actual regime parlamentar
foi de 8,5% (1975), 16,7% (1976) e 12,9% (1979).
Houve mais 910.292 votantes em 2024
do que em 2022, apesar do número de inscritos ter sido um pouco inferior ao de
2022 (‒ 2.111). O número de votos em branco, 89.823 (1,39%), e de votos nulos,
189.676 (2,93%), foram superiores aos de 2022: 61.762 votos brancos (1,15%) e 49.537 votos nulos (0,95%).
2.2. Os triunfadores
O principal triunfador das eleições
legislativas de 10 de Março de 2024 em Portugal foi o Chega. Este
partido mais do que triplicou o número de votantes: passou de 385.573 votantes
[7,15%] em 2022, para 1 milhão e 169.836 [18,07
%] em 2024. Destarte, ganhou mais 784 mil eleitores, mais do que quadruplicou
o número de deputados (eram 12 em 2019 e são agora 50), venceu em dois círculos
eleitorais (Faro e Europa) e ficou em segundo lugar em todo o Alentejo, assim
como em vários outros círculos eleitorais (incluindo Setúbal e Fora da Europa).
O segundo triunfador destas eleições
foi o Partido Popular Democrático/Partido Social-democrata (PPD/PSD) e
os seus apêndices eleitorais: Centro Democrático Social- Partido Popular
(CDS-PP) e Partido Popular Monárquico (PPM). Estes três partidos
concorreram os três coligados na Aliança Democrática (AD), salvo na
Madeira, onde o PPM não fez parte da coligação. O grande beneficiário da AD foi
o CDS, que regressou ao Parlamento com 2 deputados, depois de se ter eclipsado
parlamentarmente em 2022, quando teve 86.577 votos (1,61%) e zero
deputados. O PPM que tinha elegido, concorrendo sozinho, 5 deputados em 1979, teve
260 votos (0%) e zero deputados em 2022. Em 2024, apesar de integrado na AD,
não elegeu nenhum deputado.
A AD obteve uma vitória escassa
sobre o PS, o 2.º partido mais votado (cujos resultados examinaremos mais
adiante). A AD (com e sem PPM) teve 1 milhão e 867.013 votos (28,04%), que
lhe permitiu eleger 80 deputados. Em 2019, os votos somados do PSD, CDS e PPM
foram 1 milhão e 577.809 (29,28%), que elegeram 76 deputados. O resultado dos
partidos coligados na AD foi o pior resultado eleitoral de sempre destes partidos
[2].
O vencedor extraconcurso (Fr. hors-concours)
destas eleições foi o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Graças
à sua actuação (à qual regressaremos mais adiante, na secção 3), os partidos
que se dizem de “direita” conseguiram, finalmente, realizar um velho sonho: um
presidente, uma maioria parlamentar (PSD, CDS, IL, Chega), um governo.
2.3. Os vencidos
O principal derrotado destas
eleições foi o Partido Socialista (PS). Este partido obteve 1 milhão e 812.469
votos (28,00 % dos votos expressos) e elegeu 78 deputados.
Em menos de dois anos, o PS perdeu
mais de 400 mil votos (434.168 exactamente) e 40 deputados em relação a 2022 —
quando teve 2 milhões e 246.637 votos (41,68 % dos votos expressos) e elegeu
117 deputados que lhe deram a maioria absoluta,
O segundo grande derrotado nestas
eleições foi a Coligacão Democrática Unitária que agrupava o Partido
Comunista Português (PCP) e o Partido Ecologista Os Verdes
(PEV). A CDU não elegeu nenhum deputado
no Alentejo, bastião tradicional do PCP, perdeu dois deputados a nível nacional
(eram 6 em 2022) e baixou o número de votantes (de 236.645 votantes [4,39%] em
2022 para 205.436 votos [3,17%] em 2024), apesar da abstenção ter diminuído mais de 8 pontos percentuais, como vimos.
2.4. Os que, sem triunfar, cresceram ou não encolheram
O Livre (L) cresce muito em
número de votos (de 68.975 para 204.676), em percentagem de votos (de 1,28%
para 3,16%) e em número de deputados (de 1 para 4) em relação às eleições
legislativas de 2022.
A Iniciativa Liberal (IL)
fica exactamente como estava em número de deputados (8 deputados) em relação às
eleições legislativas de 2022, mas cresceu em número de votos (de 273.399 votos
para 319.625 votos) e em percentagem de votos (de 4,91% para 4,94%).
O partido Pessoas, Animais e
Natureza (PAN) fica exactamente como estava em número de deputados (1
deputado) em relação às eleições legislativas de 2022, mas cresceu em número de
votos (de 88.127 para 126.085) e em percentagem de votos (de 1,58% para 1,95%).
Mesmo assim, ficou bem aquém do seu melhor resultado eleitoral, em 2019, quando
teve 174.511 votos (3,32%) e elegeu 4 deputados.
O Bloco de Esquerda (BE)
fica exactamente como estava em número de deputados (5), desceu ligeiramente em
percentagem de votos (de 4,40% para 4,36%) em relação às eleições legislativas
de 2022, mas cresceu em número de votos (de 244.596 votos para 282.314). Mesmo
assim, foi o seu segundo pior resultado eleitoral desde 2011, muito aquém dos
seus melhores resultados, obtidos em 2015, quando teve 550.892 votos (10,19%) e
em 2019, quando teve 500.017 votos (9,52%).
O Partido Alternativa
Democrática Nacional (ADN) ‒ nova denominação do Partido Democrático
Republicano (PDR) fundado por Marinho Pinho ‒ cresceu muito (dez vezes mais) em
votos (102.132) e em percentagem de votos (1,58%), em relação às eleições
legislativas de 2022, quando teve 10.111 votos (0,20 %), embora não tenha
conseguido eleger nenhum deputado.
Por terem tido mais de 50 mil votos por círculo eleitoral, todos os partidos referidos até aqui vão beneficiar, em função do número de votos obtidos, de subvenções do erário público ‒ que não tinham (caso do ADN) ou que serão maiores do aquelas que já tinham (caso da maioria dos restantes) ‒ que lhes permitirão desenvolver a sua actividade em melhores condições. O valor da subvenção pública é de 3,39 euros por cada voto. Por conseguinte, o resultado eleitoral do ADN, por exemplo, permite que este partido receba 346.227 euros.
3. Porquê estas
eleições dois anos antes do prazo normal?
O seu ao seu dono. A rasteira que derrubou
o governo e a maioria do PS não é obra da OTAN (/NATO) ‒ como argumenta oxisdaquestão [3] ‒ mas da
procuradora-geral da República, Lucília Gago (com o seu comunicado sibilino e
viperino de 7 de Novembro de 2023, que forçou a autodemissão do
primeiro-ministro António Costa, do PS) e do Presidente da República, Marcelo
Rebelo de Sousa, que recusou a formação de um novo governo (com um novo
primeiro ministro, formado e apoiado pela maioria absoluta parlamentar do PS),
dissolveu a AR e convocou eleições legislativas antecipadas.
A intervenção do Presidente da
República na véspera das eleições, 9 de Março de 2024, no chamado Dia de
Reflexão (!), apelando ao voto, foi a cereja em cima do bolo. Segundo Luís
Paixão Martins ‒ consultor de comunicação nas campanhas eleitorais vitoriosas
de José Sócrates (PS) em 2005, Cavaco Silva (PSD) em 2006 e António Costa (PS) em
2022 ‒ essa intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa poderá ter dado 200 mil
votos suplementares à AD [4].
Em resumo, o governo do PS chefiado
por António Costa e a sua maioria absoluta no parlamento conseguiram, com a sua
actuação, afastar mais de 400.000 eleitores em menos de 2 anos. É obra! Mas
quem os fez cair antes do prazo normal foram a Procuradora-Geral da República
(PRG) e o Presidente da República (PR).
Registe-se a propósito deste último facto, para memória futura, que o PS resmungou, mas acabou por aceitar, sem grandes protestos, a decisão do PR de dissolver a Assembleia da República e convocar eleições antecipadas. Registe-se também, com o mesmo propósito, que o PCP aprovou a decisão do PR, que considerou «corresponde[r] à clarificação da atual situação» [5]. Na opinião do PCP, as eleições antecipadas deveriam até ter sido marcadas ainda mais cedo (!!) do que a data de 10 de Março de 2024 escolhida pelo PR.
Os outros partidos que se dizem de
“esquerda” (BE e Livre) ou «nem de “esquerda” nem de “direita”»
(PAN) adoptaram uma posição semelhante de concordância, explícita ou tácita,
com a decisão do PR.
«Do lado dos bloquistas a opinião é a mesma. Pedro Filipe Soares,
deputado do Bloco de Esquerda, afirma que “para resolver esta crise política, a
única solução era a da saída pela democracia e pela convocação de eleições”. No
entanto, o ato legislativo deveria ser marcado “mais cedo”.
Já Inês Sousa Real, líder do PAN, apela aos portugueses que
participem nas eleições e espera que “os casos que marcaram este mandato não
afastem as pessoas”. A líder do partido garante que vai continuar a apresentar
propostas quanto ao Orçamento do Estado com o objetivo de que “o PS saia da
bolha da maioria absoluta”.
O líder do Livre, Rui Tavares, diz que “respeita” a decisão de
Marcelo Rebelo de Sousa, mas “para salvar a democracia, é preciso uma cidadania
inteira” e, dessa forma, pediu que os processos “sejam rigorosos” e
“transparentes”» [6].
4. Regresso ao tema do
Chega
Explicar porque é que os resultados
das eleições de 10 de Março de 2024 foram os que foram, e, sobretudo, explicar
o enorme crescimento eleitoral do Chega, deveria ser a principal tarefa
imediata dos outros partidos, especialmente os que se dizem de “esquerda”: PCP, PS, BE, Livre (por ordem de
antiguidade).
4.1. Certezas absolutas e indiscutíveis versus
dúvida cartesiana
Mas, se eu tivesse de apostar,
apostaria que o não farão, ou que o farão apenas de um modo perfunctório.
Se perguntados acerca desse
desinteresse em averiguar as razões pelas quais o Chega conseguiu atrair 1 milhão e 169.836 votantes ‒ partindo do princípio de que não são, na sua
grande maioria, nem fascistas requentados nem grunhos que viviam escondidos
debaixo das pedras até aparecer o Chega ‒ creio que alguns serão
tentados a responder mais ou menos de uma destas cinco maneiras:
M1) «Ficámos assim a saber que há um milhão de portugueses que
são do contra. O milhão do contra. É deprimente? É. Um
milhão é muita gente. Mas é um erro tentar apanhar esses votos.
São votos do contra. São votos anti-sistema. Só passarão para o PSD ou para o
PS no dia em que o PSD ou o PS se transformem em partidos do contra. Que será
nunca. /…/ É escusado ir atrás dos eleitores do
contra. Eles não estão apenas zangados: são mesmo do contra. E agora estão mais
zangados ainda: votaram para ganhar. E perderam» [7].
M2) «Os motivos pelos quais se votou no Chega foram
diversos, mas uma coisa já sabemos: ninguém o fez por bem. Foi sempre a pensar
em lixar a vida a alguém. A não ser um pobre, ou um velho ou outro que
acreditaram mesmo ser possível que as suas reformas miseráveis poderiam passar
de 300 para 1000 euros. Mas, aquela malta que nunca votou, porque dizia que
“são todos iguais” – não interessando nada haver quem nunca tenha estado no
Governo ‒ votou, basicamente, por querer virar do avesso a vida de alguém» [8].
M3) «O que mais acho engraçado, sem ter graça nenhuma, é ver gente
a afadigar-se para nos tentar convencer que não foi por racismo, xenofobia e
gosto pelo autoritarismo [do] tempo da
Outra Senhora que um em cada cinco portugueses [votou] na extrema-direita» [9].
M4) «Desculpem ir contra a corrente, mas há muito mais do que
19% de racistas em Portugal e em qualquer país do mundo» [10].
M5) «Afinal, o monstro estava apenas adormecido. Nem podia ser
de outra maneira. O monstro nunca morre. Bastou um par de anos para que o
partido de extrema-direita Chega, fundado em 2019, ganhasse importância
política em Portugal» [11].
M1, M2, M3, M4 e
M5 exprimem certezas absolutas e indiscutíveis. São, por isso, asserções
que não devem ser aceites como verdades óbvias, mas antes questionadas, por todos
quantos, como eu, tenham aprendido o que René Descartes ‒ já lá vão quase 4
séculos (!) ‒ se deu ao trabalho de elucidar para nosso proveito e
auto-educação, a saber:
― que a “dúvida
metódica” é indispensável para não sermos enganados pelas nossas “impressões” ou para não colocarmos no nariz o anel
com que outros nos conduzirão pela trela até ao seu redil ou ao até ao
matadouro.
4.2. O fascismo está aí e vai massacrar-nos?
Há quem tenha ficado impressionado
com o crescimento eleitoral do Chega a ponto de asseverar e vaticinar: «O fascismo está aí e vai massacrar-nos». Foi o que
fez o Oxisdaquestão no título do artigo
já citado (cf. nota [3]). Julgo que a asserção [«o fascismo está aí»] é falsa e que, por conseguinte,
o vaticínio [«e vai massacrar-nos»] não se realizará.
Vejamos porquê, indo por partes.
4.3. Natureza política do Chega
No conceito de fascismo temos de distinguir duas coisas bem
diferentes, embora estreitamente associadas: por um lado, os partidos políticos
que representam a ideologia fascista e combatem sob a sua bandeira, e, por
outro, os regimes políticos que alguns desses partidos conseguiram criar
nalguns países no decurso da história humana. Para fixar as ideias, podemos
designar esta distinção, abreviadamente, pelo par movimento/
regime — ou seja, o fascismo como
movimento organizado, ideologicamente específico, para a conquista do poder de
Estado por meios legais astuciosos e meios ilegais violentos, paramilitares, e
como regime político específico, forma específica de organização do poder de
Estado.
Ponto 1: O regime político vigente em
Portugal desde 1976 não é um regime fascista.
Creio que há acordo geral e até
unânime sobre esta caracterização pela negativa. Caracterizá-lo pela positiva,
já não é tão consensual. Mas podemos deixar esta questão de lado por não ser
indispensável para os nossos actuais propósitos e contentarmo-nos com uma
caracterização perfunctória, mas verdadeira e incontroversa: o regime vigente
em Portugal é um regime parlamentar e semipresidencial.
Ponto 2. O crescimento eleitoral do Chega
não altera esta caracterização.
Passemos à questão do movimento
fascista.
Na esteira de Daniel Guérin [12], caracterizo o
fascismo como um movimento/partido político específico ao serviço do grande capital, que se distingue dos demais partidos/movimentos ao serviço do grande capital por empregar meios legais astuciosos e, sobretudo, meios ilegais ‒ em particular,
neste último caso, métodos violentos e paramilitares de bandos armados de
arruaceiros ‒ para banir e destruir as organizações dos trabalhadores
assalariados (sindicatos, partidos, cooperativas, associações mútuas, etc.);
aniquilar o regime parlamentar; erradicar os direitos, liberdades e garantias políticas e administrativas constitucionalmente protegidos, com vista à construção de um Estado despótico ou totalitário que permita ao grande capital impor a sua vontade e aumentar os seus lucros sem oposição
organizada e sem freios e contrapesos legalmente instituídos.
Ponto 3. À luz desta caracterização, o
partido Chega não pode ser apodado de fascista.
Nada nos documentos programáticos
do Chega [13], nem no comportamento actual do seu chefe,
André Ventura, e dos seus dirigentes, justifica qualificá-lo de partido
fascista. (Se André Ventura pode ser apodado de racista é uma questão à parte [14]).
Para sustentar essa qualificação
também não colhe invocar a bravata e um acentuado pendor histriónico de André
Ventura, o fundador e dirigente máximo do Chega. Esses traços
comportamentais não são traços estruturais distintivos da ideologia e da
conduta fascista, mas antes atributos psicológicos comuns a muitos dirigentes
partidários e governantes oriundos de várias zonas do espectro político — Boris
Johnson, Emmanuel Macron, Volodymyr Zelensky, Joe Biden, Ursula von der Leyen,
Josep Borrell são alguns exemplos actuais.
O ponto principal de demarcação do Chega
relativamente à ideologia e ao movimento fascista é este:
«O CHEGA é reformista. Por ambicionar melhorar a vida coletiva, mas
em exclusivo pela via pacífica, constitucional, política, eleitoral,
democrática. Tal significa a rejeição liminar de caminhos revolucionários e de
todas as manifestações de violência política» (Ponto 15 do Programa
Político 2022 do Chega).
Então, que tipo de partido é o Chega?
Ponto 4. O Chega é um partido da
direita radical (“a direita identitária” ou “a direita de direita”, como também gostam de dizer os
dirigentes do Chega), conservador, liberal,
pseudonacionalista e reformista. Os seus principais mentores doutrinários são
Edmund Burke (1729-1799), Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich von Hayek
(1899-1992).
4.4. Os objectivos do Chega
Ponto 5. O Chega ambiciona ser o
partido maioritário do parlamento português.
Por essa razão, o Chega representa
uma séria ameaça para o PSD e o PS, dois partidos fundadores do regime
constitucional vigente e também os partidos dominantes do sistema político-partidário
português desde 1975.
Ponto 6. O Chega pretende erigir-se
como partido dominante desse sistema e relegar o PSD e o PS para um lugar muito
subalterno, se possível residual.
Ponto 7. Além disso, o Chega
pretende alterar profundamente a Constituição da República portuguesa, em
conformidade com os princípios do conservadorismo liberal e radical logo
que tenha (sozinho ou acompanhado) deputados em número suficiente para tanto.
Ponto 8. O objectivo último dessa revisão
constitucional é refundar o regime vigente (que o Chega apelida de “III República”) e lançar as bases de um novo regime
(que o Chega apelida de “IV República”).
Todavia ‒ e esta é uma ressalva essencial que é necessário, uma vez mais, salientar ‒ o Chega pretende alcançar os seus objectivos jogando o jogo eleitoral no quadro constitucional vigente, sem o recurso aos métodos violentos e aos bandos paramilitares de arruaceiros que são apanágio dos partidos fascistas. Se o fizesse (se o fizer) deixaria (deixará) automaticamente de ser um partido de direita radical, conservador, liberal, pseudonacionalista e reformista, para se converter num partido fascista.
Ponto 9. Por último, e em reforço da
ressalva feita no ponto anterior, convém ter bem presente que o Chega
não se distingue da maioria dos demais partidos parlamentares em questões de
fundo, como as seis seguintes:
― O Chega é um partido (a)
pró-União Europeia (UE), (b) pró-Euro e (c) pró-OTAN(/NATO).
Nestas três questões, o Chega tem a mesma posição que o PS, o PSD, a IL,
o Livre, o PAN e o CDS, e nas duas primeiras questões, (a) e (b),
tem a mesma posição que o BE [15].
― O Chega apoia (d) o
morticínio genocida que as Forças Militares de Israel levam a cabo em Gaza há
quase cinco meses, o qual justifica em nome do “direito
de defesa” de Israel. Nesta questão, o Chega tem a mesma posição
que o PSD, a IL e o CDS.
― O Chega apoia (e) a guerra que o regime filobanderista e liberticida dos presidentes ucranianos Petro Poroshenko e Volodymyr Zelensky desencadeou, a partir de Maio de 2014, para sufocar as populações russas, russófonas e russófilas do leste e sul da Ucrânia em luta pelo direito à autodeterminação e em rebelião contra o golpe de Estado sangrento de 22 de Fevereiro de 2014 que derrubou inconstitucionalmente o presidente da Ucrânia livremente eleito, Viktor Yanukóvych.
Nesta questão, o Chega
tem a mesma posição que o PS, o PSD, o CDS, a IL, o BE, o Livre e o PAN.
― O Chega apoia (f) a continuação do apoio dos EUA, Reino Unido, UE, OTAN, em armas, munições, equipamento militar, informações militares, conselheiros militares, instrutores militares e logística ao regime de Zelensky para que prossiga a guerra na Ucrânia contra a Rússia (para a enfraquecer, como lhe pediu o general Lloyd Austin, ministro da Defesa dos EUA) até ao último soldado ucraniano — e até, talvez, para além dessa meta, se a tese de Emmanuel Macron de enviar tropas para a Ucrânia tiver vencimento na UE.
Nesta questão, o Chega tem a mesma posição que o PS, o PSD, a IL, o CDS e o PAN. O BE e o Livre apoiam também esta posição, mas suavizada com o apelo a negociações entre os beligerantes. Tivemos recentemente uma prova disso. Quatro dias depois das eleições, no dia 14 de Março de 2024, o governo demitido do PS ainda aprovou, em Conselho de Ministros, uma verba de 100 milhões de euros de apoio à Ucrânia, associando-se assim ao programa de compra de munições para esse Estado que vários Estados da UE desenvolveram por iniciativa da Chéquia. Como seria de esperar, não se ouviu qualquer protesto por parte do BE e do Livre que, no entanto, afirmam que faltam muitas centenas de milhões de euros para o SNS e a escola pública...
Em resumo, se o Chega é “um monstro que estava adormecido”, há muitos outros “monstros” que o precederam no parlamento português, que estavam bem acordados e que lhe serviram de modelo.
4.5. Quem foram os eleitores do Chega?
Esta pergunta não pode ser
respondida com certezas inabaláveis baseadas em impressões avulsas, como, por
exemplo, as que respiguei em M1, M2, M3, M4 e M5
(secção 4.1). Também não se compadece com achismos: “eu acho que foram A, B, C…”; “pois eu não estou de acordo: acho que foram D, E, F…”. A pergunta
só pode ser respondida através de muitos trabalhos de reportagem jornalística
honesta e de investigação científica, investigação sociológica adequada.
São ambas tarefas que ultrapassam
em muito os meios de que disponho para as realizar. No entanto, remeto os
leitores interessados, a título de exemplos ilustrativos dessas duas vias de
conhecimento, para (i) as reportagens de Valentina Marcelino, na
freguesia onde o Chega teve mais votos, e de Hélio
Carvalho, na freguesia de Baleizão, bastião do PCP, onde nasceu e morreu
Catarina Eufémia; [16] e para (ii) os estudos sociológicos
feitos com base em sondagens conduzidas à boca das urnas e no resultado da votação
círculo eleitoral por círculo eleitoral e freguesia por freguesia [17].
A informação que essas sondagens fornecem
sobre os votantes em cada partido está limitada ao sexo, ao grupo etário e ao grau
de instrução, mas já dá algumas pistas sobre as bases sociais da votação.
Por exemplo, estas que colhi nas
fontes referidas na alínea (ii) mais acima e que estão mais
concretamente indicadas na nota [18]:
# 1― O Chega, tal como
muitos partidos de direita radical por essa Europa fora, tem uma clara maioria masculina
de eleitores. Os dados mostram que 58% dos eleitores do Chega são homens
e 42% são mulheres, o que é a maior percentagem masculina de todos os partidos
com assento parlamentar.
# 2 ― Semelhantemente ao Chega
neste particular, a CDU (PCP+PEV) e a IL atraem maioritariamente o voto
masculino. 56% dos eleitores da CDU são homens e 44% mulheres. Na IL, 54% dos
eleitores são homens e 46% são mulheres.
# 3 ― Em
contraste, o PAN tem uma maioria feminina maciça. 75% dos eleitores do PAN são mulheres
e 25% são homens. Logo a seguir, com um eleitorado também desproporcionalmente
feminino, vem o BE. 62% eleitores do BE são mulheres e 38% são homens. PS tem
também mais eleitores que são mulheres (54%) do que homens (46%).
# 4 ― Já a AD e o Livre se saíram quase tão bem com homens e mulheres. 49% dos eleitores da AD são homens e 51% mulheres. No Livre, 48% dos eleitores são homens e 52% são mulheres.
#
5 ― Os partidos mais recentes
têm eleitores mais jovens. 49% dos eleitores da IL tem entre 18 e 34 anos; no Livre
são 44%; no PAN 39%; no BE 33% e no Chega 32%. Assim, o Chega porta-se
bem entre os jovens, mas é o que menos jovens atraiu entre os partidos mais
recentes. Já a “velha” esquerda – o PS e o PCP/CDU – é particularmente fraca
entre os jovens adultos. 16% dos eleitores da CDU tem entre 18 e 34 anos. No PS
ainda são menos: 10%. A AD ocupa um lugar intermédio entre os partidos mais
recentes e os partidos da “velha” esquerda. 22% dos seus eleitores tem entre os
18 e os 24 anos.
# 6 ― O cenário é diferente quando se olha para eleitores ainda
mais novos, entre os 18 e os 24 anos.
Nesta faixa etária, é a AD que atrai mais eleitores, a seguir vem o Chega,
depois vem a IL e, só depois vêm o PS, o BE e o Livre, estes três por
igual.
#
7 ― Nos
eleitores com mais de 65 anos, os resultados, por ordem decrescente, dos
partidos mais recentes, são os seguintes: BE (12%), PAN (10%), Chega (9%), Livre (6%), IL (4%).
Como se vê, o Chega está em linha, neste particular, com todos os
partidos mais recentes. Já nos partidos mais antigos,
tanto de “esquerda” como de “direita”, os eleitores com mais de 65 anos são
parcelas importantes: no PS são 34%, na CDU, 30%, e na AD, 20%.
#8 ― Os eleitores com um curso superior são 64% dos eleitores
do Livre, 56% dos eleitores da IL, 43% dos eleitores do BE e da AD, 38%
dos eleitores do PAN, 29% dos eleitores da CDU, 28% dos eleitores do PS e 22%
dos eleitores do Chega. Os eleitores com o curso secundário são 55% dos
eleitores do Chega, 47% dos eleitores do PAN, 41% dos eleitores do BE,
39% dos eleitores da CDU, 38% dos eleitores da IL, 37% dos eleitores do PS e da
AD, e 32% do Livre. Os eleitores
com menos do que o ensino secundário são 35% dos eleitores do PS, 32% dos
eleitores da CDU, 24% dos eleitores do Chega, 20% dos eleitores da AD,
16% dos eleitores do BE, 15% dos eleitores do PAN, 6% dos eleitores da IL, e 4%
dos eleitores do Livre.
#9 ― Como se constata, o PS é o partido que tem a distribuição mais equilibrada no que respeita ao grau de instrução (28%, 37%, 35%) e o Livre é o partido que tem a distribuição mais desequilibrada (64%, 32%, 4%). Convém também notar que o Chega foi o partido hegemónico junto dos homens jovens menos escolarizados, onde obteve 41% dos votos. Contudo, como este grupo representa apenas 7% do eleitorado, este resultado é insuficiente, por si só, para explicar o enorme crescimento eleitoral deste partido.
#10 ― Em suma, não é entre os mais escolarizados (os que têm um curso
superior) nem entre os menos escolarizados (os que tem menos do que o ensino
secundário) que o Chega se sai melhor, mas com pessoas com um diploma do
ensino secundário, que constituem a maioria de seus eleitores (55%) — a maior
percentagem de todos os partidos. Em
contraste, quer a “nova esquerda” (BE e Livre), quer a “velha direita”
(PSD, CDS, PPM), quer a “nova direita” (IL), quer o PAN, apoiam-se
eleitoralmente numa quantidade desproporcional de diplomados do ensino superior
— num país onde existem poucos.
# 11 ―Mas há uma
mudança neste particular relativamente às eleições anteriores. A percentagem de
22% de eleitores do Chega que têm um curso superior é a menor
percentagem de todos os partidos, mas é uma das novidades destas eleições. «Ao
contrário do que vimos há cinco anos» ‒ salientou João António, investigador do
CESOP ‒ «o Chega está a entrar nas pessoas com ensino superior. O
partido já poderá ter entre 25% a 30% de eleitores licenciados».
# 12 ― Não é exacto ver uma
ligação directa e exclusiva entre o aumento da participação eleitoral
(diminuição do número de abstencionistas) e o crescimento eleitoral do Chega.
Basta um só exemplo para
refutar essa hipótese. No círculo eleitoral de Viana do Castelo ‒ onde a
abstenção só desceu 2,39% relativamente a 2022, configurando a menor variação
neste parâmetro ‒ o Chega, em 10 de Março de 2022, foi a escolha de 26.635
eleitores (18,64% dos votos expressos), ficando em 3.º lugar e elegendo 1
deputado — atrás da AD (1.º lugar, com 49.613 votos [34,72%]), que elegeu 2
deputados, e do PS (2.º lugar, com 40.237 [28,15%]), que ficou em 2.º lugar. Em 2022, o Chega tinha também ficado em
3.º lugar nesse distrito, mas apenas com 7.702 votos (6,06%), sem eleger nenhum
deputado. Nesse ano, o PS tinha ficado em 1.º lugar, com 53.435 votos (42,06%),
elegendo 3 deputados e o PSD tinha ficado em 2.º lugar, com 43.414 votos (34,17%)
elegendo também 3 deputados.
Para reforçar a refutação
da hipótese de que o Chega foi buscar todos ou a maioria dos seus votos
aos abstencionistas de 2022, convém saber que o círculo de Viana do Castelo
perdeu um deputado, por via de um decréscimo na população. Assim, em 2022
elegeu seis deputados e este ano elegeu cinco, sendo que um deles foi para o Chega
e os outros quatro deputados foram repartidos em partes iguais entre PS e AD.
# 13 ― Parece ser muito
plausível afirmar, com base nos dados
estatísticos disponíveis sobre as eleições de 10 de Março de 2024 e nos
(poucos) estudos já feitos, que o enorme crescimento eleitoral do Chega
tem três fontes principais: (i) votos que vieram dos abstencionistas de
eleições anteriores e de eleitores que não tinham idade para votar em 2022; (ii)
votos que vieram de eleitores que na eleição anterior votaram no PS; e, em
bem menor percentagem, (iii) votos que vieram de eleitores que em
eleições anteriores votaram no PSD.
Convém acrescentar, contrariando
o que é repetido muitas vezes, que «não é (nem nunca foi) a CDU que alimenta o Chega»,
conforme salientou João António, o responsável técnico pelas sondagens
políticas do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião (CESOP).
Em
resumo, os dados constantes dos pontos anteriores (#1-#13) não se coadunam com
a ideia de que houve 1 milhão e 169.836 adultos que votaram no Chega por
racismo, xenofobia e gosto pelo tipo de opressão e de repressão que eram
apanágio do regime fascista de Salazar-Caetano.
Mesmo
dando de barato, como hipótese não descartável logo à partida, que tenha havido
dezenas de milhares ou mesmo cem, duzentos ou trezentos milhares de adultos que
tenham votado no Chega por esses motivos, tal como o teriam feito em
2022, teríamos ainda de explicar de onde surgiram os oitocentos milhares que,
desta vez, teriam votado nele por esses mesmos motivos, mas que não o fizeram em 2022. Só
por um milagre mais espantoso do que o milagre das rosas é que mais de
oitocentos mil eleitores (muitos dos quais jovens) se transformariam, em dois anos, noutros tantos
racistas, xenófobos e candidatos ansiosos ao uso permanente da pulseira
electrónica e da mordaça.
4.6. O que desejam os
eleitores do Chega?
Ninguém
sabe responder a essa pergunta porque, primeiro, é preciso ir à procura deles,
saber mais concretamente quem são (profissão, emprego ou ocupação, posto de
trabalho, fontes de rendimento, condições de habitação, composição do agregado
familiar, etc.) e fazer-lhes
directamente a pergunta. Essa investigação ainda não foi feita e não sei se
alguém a fará.
Entretanto,
e à falta de melhor, parece plausível admitir que a maioria dos eleitores do Chega
votou nesse partido não para lixar alguém que votou noutro partido, mas porque
está de acordo, no todo ou em parte, com as propostas do partido Chega,
tal como estão formuladas no seu programa eleitoral 2024: “Limpar Portugal”.
Esse
programa eleitoral estende-se por 174 páginas, divididas em 25 capítulos
tematicamente distintos. Quem quiser saber o que é, concretamente, o partido Chega
‒ ou seja, quem quiser saber como se traduz, concretamente, o facto de ser um
partido de direita radical, conservador, liberal, peudonacionalista e reformista ‒ e
as razões do seu crescimento eleitoral, não pode deixar de o ler. Com maioria
de razão, quem quiser combater politicamente o partido Chega e
disputar-lhe as preferências do eleitorado tem não só de ler o seu programa,
mas também estudá-lo atentamente.
Vale
a pena recordar, a este propósito, o apotegma de Sun Tzu, sempre actual:
«Aquele que
conhece o adversário e se conhece a si próprio, travará cem batalhas sem nunca
correr o perigo de ser derrotado. Aquele que não conhece o adversário, mas se
conhece a si próprio, terá tantas vitórias quantas derrotas. Aquele que não
conhece o adversário nem se conhece a si próprio, será derrotado em todas as
batalhas» [19].
5. E agora?
Em 1976, houve cinco partidos a
garantir representação parlamentar: dois partidos grandes (PS e PSD), dois
médios (CDS e PCP) e um pequeno (UDP). Em 2015, ainda eram estes, em grande
medida, os mesmos partidos que conseguiram eleger deputados. Isto, porque o PEV
estava integrado na CDU (a coligação eleitoral com o PCP) e nunca foi a votos
de forma independente, e a UDP era uma das forças (a força principal) que, em
conjunto com o PSR e a Política XXI, deram origem ao Bloco de Esquerda (BE).
Com a passagem do tempo, os
partidos médios ficaram cada vez mais pequenos e o partido mais pequeno, depois
de um eclipse eleitoral de 5 anos, regressou ao parlamento, onde foi crescendo
(salvo em 2011, quando sofreu um grande desaire) até 2019, para depois cair a
pique. Pelo caminho ficaram a Acção Social Democrata Independente (ASDI) e a União
de Esquerda para a Democracia Socialista (UEDS) ‒ que elegeram ambos deputados
em 1980 numa coligação com o PS chamada FRS ‒, o Partido Renovador Democrático
(PRD), que elegeu deputados em 1985 e 1987, e o Partido da Solidariedade
Nacional (PSN) que elegeu 1 deputado em 1991 — quatro partidos que já não
existem.
Esta configuração bipolar (PS e
PSD) e pentapartidária [2+2+1], já erodida na sua componente
média, foi abalada em 6 de Outubro de 2019, com a entrada de dois novos
pequenos partidos no parlamento: IL (1 deputado) e Chega (1 deputado), e
com o reforço de um terceiro, o PAN (4 deputados) que se tinha estreado no
parlamento em 2015, com 1 deputado. A partir de 2019, passaram a existir 9
forças políticas no parlamento, quando até então só tinham existido quase
sempre 5, no máximo 6.
Mas foi sol de pouca dura. Em 30 de Janeiro de
2022, o parlamento sofreu novo abalo, com o desaparecimento do CDS, o recuo do
BE (de 19 deputados para 5), da CDU (de 12 deputados para 6), do PSD (de 79
deputados para 72), do PAN (de 4 deputados para 1) e do reforço do Chega (de
1 deputado para 12) e da IL (de 1 deputado para 8).
Em suma, o regime político vigente
em Portugal desde 1975, apoiava-se, na sua componente parlamentar, em dois
grandes partidos simétricos, um à “esquerda”
(PS) e outro à “direita” (PSD), de tamanho
equivalente, que alternavam no poder legislativo e executivo. Como vimos, até
2022 estes dois partidos centrais coexistiam parlamentarmente com partidos bem
mais pequenos situados à sua ilharga — três partidos (CDS,
PCP-PEV, BE) até 2015; quatro partidos (CDS, PCP-PEV, BE, + PAN) a partir
de 2015; seis partidos (CDS, PCP-PEV, BE, PAN + IL + Chega) a partir de
2019; ou cinco partidos (CDS, PCP-PEV, BE, PAN, IL, Chega, CDS) a
partir de 2022.
E agora? Agora essa configuração
básica, que perdurou durante 48 anos, foi varrida pelo terramoto eleitoral que
representaram os resultados da votação no Chega em 10 de Março de 2024.
Essa votação modificou profundamente a correlação de forças entre a “esquerda” (PS + BE + PCP + L = 94 deputados) e a “direita” (AD + Chega + IL =138 deputados) do regime
parlamentar e semipresidencialista vigente, deslocando o seu fulcro muito para
a “direita”. Agora existem três grandes
partidos parlamentares ‒ PSD (78 deputados), PS (78 deputados) e Chega
(50 deputados) ‒ e já não dois (PS e PSD), que disputam entre si o primeiro
lugar no pódio eleitoral com base num país e num parlamento claramente
inclinado à “direita”.
Apesar de se situarem ambos à “direita”, não é expectável que possa existir qualquer
aliança duradoura entre o PSD e o Chega pelas razões apontadas na secção
4.4 deste ensaio. Não é expectável, pelas mesmas razões, que seja constituído
um governo estável da AD (ou da AD + IL), com o apoio parlamentar do Chega,
ou que seja constituído um governo AD + Chega.
Por estas razões, a situação mais
expectável com que nos defrontamos no futuro próximo é, julgo eu, uma de grande
turbulência. Os tempos que aí vêm, vão ser
«uma balbúrdia imprevisível /…/ Vai dar-se início ao circo [parlamentar e
presidencial] com os números de equilibrismo, trapézio
e contorcionismo»
Concordo com este prognóstico feito
por Oxisdaquestão no artigo cujo título
já tive ocasião de discutir (cf. secção 4.2). É, aliás, um
prognóstico que está em contradição com esse título.
6. As escolhas
eleitorais de 10 de Março de 2024
Cabe evocar aqui, a este propósito, um velho aforismo português: «Na cama que farás, nela te deitarás». Vejo nele uma versão caseira, muito simplificada e muito abreviada do apotegma de Sun Tzu. Perguntemo-nos, então ‒ excluo deste “nós” os 10% mais ricos que detêm cerca de 55% da riqueza líquida distribuída em Portugal e os 5% mais ricos que têm nas suas mãos 42% de toda a riqueza (líquida e ilíquida) ‒ para concluir, se alguma das camas que os partidos concorrentes às eleições de 10 de Março de 2024 nos convidaram a fazer com eles era uma boa cama, uma cama susceptível de nos garantir um sono tranquilo e reparador.
7. Dois exemplos-teste
Creio que não. Consideremos dois
exemplos-teste: as guerras na Ucrânia e o genocídio em Gaza.
7.1. Os partidos parlamentares perante as duas guerras na
Ucrânia
PSD, CDS, IL e Chega dizem
ser partidos de “direita”. PS, BE e Livre dizem
ser partidos de “esquerda”. Todos, porém, se
declararam, desde o primeiro dia da “Operação Militar
Especial” (OME) que a Rússia desencadeou em 24 de Fevereiro de 2022 para
socorrer as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk (RPD e RPL) na Donbass (=
bacia do Donets) que estavam a ser alvo de um ataque em grande escala das Forças
Armadas da Ucrânia [20],
― A) incondicionalmente a favor do agressor
da RPD e da RPL (o Estado ucraniano, descrito por eles como uma benigna
democracia) e contra o agressor do agressor (o Estado russo, descrito por eles como
uma maligna autocracia);
― B) e incondicionalmente a favor da
ajuda (que o tempo viria a revelar ser colossal e constante) em armas,
munições, equipamento militar, informações militares, conselheiros e
instrutores militares, logística que tem sido fornecida pelos EUA, o Reino
Unido, a UE e a OTAN(/NATO) ao presidente Zelensky e ao seu regime russófobo,
filobanderista e liberticida para prosseguir a guerra que trava contra a Rússia
“pelo tempo que for preciso para que possa prevalecer
no campo de batalha”.
Note-se que poderiam ter tido outra
posição, se não quisessem reconhecer como legítimos os argumentos que Putin deu
para justificar a OME [21], sem que isso, no entanto, fosse entendido
como um apoio à guerra que o regime de Quieve travava há oito anos contra as
populações russas, russófonas e russófilas da Donbass. Ou seja, poderiam ter-se
declarado neutrais perante o conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia e oferecerem os
préstimos de Portugal (no
caso do PS, que estava no governo) ou pugnarem para que Portugal, através do
seu governo, oferecesse os seus préstimos (no caso dos outros partidos
parlamentares) como mediador de uma solução negociada, mutuamente aceitável
pelos beligerantes, para o conflito — em suma, uma solução razoada que pusesse
termo à guerra e estabelecesse uma paz sólida e duradoura.
Mas não foi isso o que fizeram. Pelo
contrário, adoptaram todos, em maior ou menor grau, o comportamento de corifeus
ou de elementos do coro belicista do “Ocidente
alargado” [22].
De todos os partidos com assento
parlamentar só o PCP não entrou nesse alucinado coro belicista. Cumpre
assinalar, por exemplo, que este foi o único partido com assento parlamentar
que se recusou a assistir no hemiciclo e a aplaudir o discurso feito por
teleconferência do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky perante a Assembleia
da República no dia 21 de Abril de 2022 — apenas 12 dias depois de Zelensky ter
rompido o acordo de paz muito favorável que tinha celebrado com a Rússia em
Istambul (!!) [23].
«O PCP não participará numa sessão da Assembleia da República
concebida para dar palco à instigação da escalada da guerra, contrária à
construção do caminho para a paz, com a participação de alguém como Volodymyr
Zelensky, que personifica um poder xenófobo e belicista, rodeado e sustentado
por forças de cariz fascista e neonazi, incluindo de caráter paramilitar, de
que o chamado Batalhão Azov é exemplo», declarou o PCP em comunicado [24].
Do mesmo modo, de todos os partidos
com assento parlamentar, só o PCP se pronuncia contra a continuação da guerra
na Ucrânia e a favor da paz pela via negocial. São posições meritórias, cujo
mérito é realçado pela circunstância de o PCP as ter tomado desacompanhado por
todos os restantes partidos parlamentares ditos de “esquerda”.
Mas esse posicionamento raramente
sai do plano simbólico (exemplificado pela atitude perante a arenga de Zelensky
ao parlamento português) e do plano proclamatório mais geral e abstracto, para
se converter num programa de mobilização e acção políticas. Sejam, por exemplo,
afirmações como esta: “o PCP condena a violação dos
princípios do direito internacional, da Carta da ONU e da Acta Final da
Conferência de Helsínquia». Que princípios, concretamente? E quem os
violou? E quando? E onde? E como?
Durante os debates televisivos que
precederam a campanha eleitoral das legislativas de 10 de Março de 2024, assim
como durante a campanha eleitoral, o secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo,
nunca enunciou nem explicou nenhuma das seis linhas orientadores incluídas mais
adiante no listador C) que dão um
conteúdo concreto e definido à luta pelo fim da guerra na Ucrânia e pela paz
nesse país.
7.2. Acabar com a guerra na Ucrânia
Para acabar com a guerra na Ucrânia
e estabelecer uma paz duradoura entre a Ucrânia e a Rússia é necessário:
C) um cessar-fogo imediato e a abertura
imediata de negociações de paz entre a Ucrânia e Rússia com base
― c.1) no reconhecimento de que a
Crimeia é uma república autónoma da Federação Russa e não um anexo da Ucrânia [25];
― c.2) no reconhecimento do direito à
autodeterminação (incluindo o direito de secessão) e ao autogoverno das
populações russas, russófonas e russófilas dos oblasti do leste (Lugansk
e Donetsk) e sul da Ucrânia (Zaporíjia, Quérson, Carcóvia e Odessa) [26];
― c.3) na garantia da neutralidade militar da Ucrânia perante os blocos e
as alianças militares existentes;
― c.4) na renúncia da Ucrânia à sua intenção de aderir à OTAN (/NATO);
― c.5) na renúncia da Ucrânia à instalação de armas nucleares (de fabrico
próprio ou alheio) no seu território;
― c.6) na renúncia da Ucrânia à instalação de bases militares e/ou
contingentes de tropas estrangeiras no seu território.
Na verdade, desde o início da
segunda guerra na Ucrânia (24 de Fevereiro de 2022), o PCP ficou-se amiúde por
afirmações genéricas, como, por exemplo, as seguintes: “o PCP está do lado da paz, não da guerra!” ou “o PCP não tem nada a ver com o governo russo e o seu
presidente. O projecto político do PCP é oposto ao das forças políticas que
governam a Rússia capitalista e dos seus grupos económicos” [27].
A insuficiência deste
posicionamento fica clara quando nos damos conta que a primeira afirmação
poderia ser subscrita pelas Testemunhas de Jeová: “As Testemunhas de Jeová estão do lado da paz, não da guerra!”.
No entanto (e é aqui que está o busílis) as Testemunhas de Jeová não
protestam, nem muito menos combatem, contra acções destinadas a alimentar as
guerras ‒ como as que foram descritas na secção 7.1, em B)
‒ nem se opõem a que outros cidadãos, que não eles, sejam obrigados a
participar em guerras.
O mesmo vale dizer relativamente à
segunda afirmação. É uma afirmação que poderia ser, mutatis mutandis,
subscrita por Joe Biden, Rishi Sunak, Emmanuel Macron, Olaf Scholz ou Volodymyr
Zelensky, cujo projecto político em defesa, respectivamente, da América
capitalista, do Reino Unido capitalista, da França capitalista, da Alemanha
capitalista e da Ucrânia capitalista, é, no entanto, oposto ao das forças
políticas que governam a Rússia capitalista e dos seus grupos económicos.
Não há nisto nada de surpreendente.
É apenas um exemplo claro das tensões, rivalidades e antagonismos geopolíticos
e geoeconómicos que se manifestam constantemente entre Estados contemporâneos,
sobretudo os mais poderosos, apesar de perfilharem todos o mesmo sistema
económico (o dito capitalismo) e fazerem todos parte da ONU.
7.3. Acabar com o genocídio em Gaza
Consideremos um segundo
exemplo-teste.
PS, BE, PCP, Livre, PAN são
todos contra o genocídio que Israel está a perpetrar em Gaza há 5 meses. Porém,
salvo melhor informação, nenhum deles (se) propôs passar das palavras aos
actos, mobilizando os cidadãos portugueses para exigirem do governo português
(seja ele qual for) medidas concretas e imediatas (D),
nomeadamente,
― d.1) Declarar o embaixador de Israel em Portugal persona
non grata ao abrigo do artigo 9 da Convenção de Viena sobre Relações
Diplomáticas.
― d.2) Retirar o embaixador de Portugal em Israel (na gíria diplomática,
“chamar o embaixador para consultas, sem prazo para retorno”), à semelhança do
que fez o Brasil e a República da África de Sul.
― d.3) Propor na ONU, como medida transitória até a constituição
da República democrática da Palestina (ver d.7), que os representantes
eleitos dos territórios de Gaza e da Cisjordânia beneficiem dos direitos e
prerrogativas conferidos aos Estados membros de pleno direito desta organização
internacional.
― d.4) Apoiar o processo judicial que a República da África
de Sul moveu contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça em 28 de
Dezembro de 2023, com base na declarada intenção genocida dos titulares do
Estado de Israel contra o povo palestiniano em Gaza.
― d.5) Suspender todos os acordos culturais de educação e
desporto e de cooperação económica, industrial, técnico-científica e de
segurança entre Portugal e Israel.
― d.6) Propor na Assembleia Geral da ONU uma resolução
destinada a constituir um c
― d.7) Defender a constituição na Palestina, do rio Jordão até ao mar Mediterrâneo, de uma República democrática, laica, palestiniana: (i) democrática, porque garantiria a igualdade de direitos, de deveres e de representação de todos os seus cidadãos (árabes, sabras, beduínos, drusos, circassianos); (ii) laica, porque garantiria a liberdade de culto a todos os seus cidadãos (muçulmanos, judeus, cristãos, etc.) e estaria isenta de discriminações de base religiosa, étnica ou outra; (iii) palestiniana, porque garantiria o direito de retorno dos refugiados palestinianos, poria um fim definitivo ao apartheid, à purga étnica e ao genocídio que o Estado de Israel tem organizado e mantido contra o povo palestiniano há mais de 60 anos e restauraria a sociedade palestiniana multicultural, tal como era antes de Israel: «um belo mosaico de vida» [28].
Crianças de Gaza sobreviventes a um dos inumeráveis bombardeamentos israelitas contra a população civil. Foto: Al Qahera News. |
Salvo melhor informação, não tenho conhecimento de nenhum partido com assento parlamentar que tenha inscrito estas medidas para acabar com o genocídio em Gaza no seu programa eleitoral, ou que tenha feito campanha por elas. O mesmo se aplica às medidas para acabar com a guerra na Ucrânia, tal como foram expostas na secção 7.2., sob o listador C) [29].
8. Conclusão
Com base em tudo o que foi dito na
secção 7 sobre as posições e propostas dos partidos portugueses com
assento parlamentar em matéria de política internacional (e sem necessidade
sequer de passar em revista as suas posições e propostas em matéria de política
nacional), concluo o seguinte:
― a escolha eleitoral ínsita nas
eleições legislativas de 10 de Março de 2024 era entre vários modelos de camas
de faquir (diferentes no número, tamanho e disposição dos pregos), vários
modelos de sacos-cama para dormir ao relento e um colchão de ar anti-escaras
com compressor.
― Mas uma boa cama ‒ ou até,
simplesmente, uma cama dobrável portátil ‒ era coisa que não havia para
escolher, pelo menos no meu entender.
………………………………………………………………………………………..................................
Notas e Referências
[1] Exceptuo três textos que li com proveito e agrado: Carlos Matos Gomes, “Portugal é uma ilha?”. In Medium.com, 22/02/2024 e Estátua de Sal, 24/02/2024; Whale project, “A esquerda, as eleições e a guerra na Ucrânia”, Estátua de Sal, 16/03/2024; Manuel Tavares, “Porque cresce a extrema-direita?”. In Facebook e Estátua de Sal, 14/03/2024.
[2] Pedro Magalhães, https://twitter.com/PCMagalhaes/status/1767120250430972197
[3] oxisdaquestão, “Chegou
a nossa vez: o fascismo está aí e vai massacrar-nos”. In blogue oxisdaquestao, 11/03/2024; e Estátua
de Sal, 11/03/2024.
[4] Entrevista
com Luís Paixão Martins, CNN Portugal, 11 de Março 2024, 00h02.
[5] https://www.pcp.pt/sobre-marcacao-de-eleicoes-antecipadas
[6] “Partidos à esquerda satisfeitos com dissolução do
parlamento e eleições antecipadas”. Porto Canal, 09-11-2023.
[7] Miguel
Esteves Cardoso, “O milhão do contra”. Público, 11-03-2024).
[8] Whale
project, “Ele, como não quer cá ver mais gente de turbante, votou no Chega”.
Estátua de Sal. 14/03/2024.
[9] Whale
project, Comentário ao artigo de Miguel Sousa Tavares ,“E agora, sr.
Presidente?” (In Expresso, 15/03/2024 e Estátua de Sal, 15/03/2024). Estátua de Sal, 15/03/2024.
[10] Daniel
Oliveira, “O Chega tinha de vir e aqui ficará até o sabermos explicar”. In Expresso,
13/03/2024 e Estátua de Sal, 13/03/2024.
[11] Dulce
Maria Cardoso, “Um brinquedo frágil em mãos brutas”. Público, 8 de Março
de 2024.
[12] Daniel Guérin, Fascisme et Grand Capital (1936,1945). Éditions Libertalia, 2014.Esta reedição é a mais completa
até à data. Inclui um prólogo do autor (“Quando o fascismo corria à nossa
frente”), um posfácio de Dwight Macdonald (“Fascismo e a cena americana”),
escrito como Introdução à tradução americana do original de Daniel Guérin, e um
glossário. A edição americana intitula-se Fascism and Big Business. Pathfinder Press,
Seventeenth printing, 2016. Esta
edição inclui os prefácios do autor de 1945 e 1965 à edição original francesa.
[13] Declaração de Princípios e Fins do Chega;
Manifesto Político fundador do Chega; Programa Político Chega 2019;
Programa Político Chega 2021; Programa Eleitoral Legislativas Chega
2022; Projecto de Revisão Constitucional do Chega (Outubro de 2022);
Limpar Portugal — Programa Eleitoral 2024 do Chega.
[14] Há
um ponto, neste particular, que precisa de ser esclarecido: diz respeito ao
posicionamento de André Ventura relativamente ao racismo e, por extensão, a
relação entre o racismo e o fascismo. Em Julho 2017, quando era candidato do
PSD à Câmara de Loures; em Maio de 2020, quando era deputado único do Chega;
e em Dezembro de 2020, quando era candidato pelo Chega à presidência da
República, André Ventura produziu declarações contra a etnia cigana que lhe
valeram ser acusado de ciganofobia e racismo. Por exemplo, (i) «Temos tido uma excessiva tolerância com alguns grupos e
minorias étnicas. Não compreendo que haja pessoas à espera de reabilitação nas
suas habitações, quando algumas famílias, por serem de etnia cigana, têm sempre
a casa arranjada. Já para não falar que ocupam espaços ilegalmente e ninguém
faz nada. Quem tem de trabalhar todos os dias para pagar as contas no final do
mês olha para isto com enorme perplexidade. Isto não é racismo nem xenofobia, é
resolver um problema que existe porque há minorias no nosso país que acham que
estão acima da lei» (entrevista ao Notícias ao Minuto, 12 Julho
de 2017), (ii) «Vou-lhe ser muito direto: eu
acho, e Loures tem sentido esse problema [da tolerância relativamente às
minorias étnicas], que estamos aqui a falar particularmente
da etnia cigana. É verdade que em Loures há mais, com uma multiculturalidade
grande, mas em Portugal temos uma cultura com dois tipos de coisas
preocupantes: uma é haver grupos que, em termos de composição de rendimento,
vivem quase exclusivamente de subsídios do Estado, outra é acharem que estão
acima das regras do Estado de direito» (entrevista ao Sol, 17 de
Julho de 2017); (iii) «Ouça, há um estudo de
2014 que diz que só 15% dos ciganos vivem do seu trabalho. Os outros vivem de
quê? Vivem provavelmente de economia paralela»(entrevista à RTP,
15 de Dezembro de 2020); (iv) «É preciso um
plano específico de abordagem e confinamento para as comunidades ciganas, face
à pandemia de Covid-19» (Lusa, 6 de Maio de 2020). Não encontrei
mais declarações deste teor em anos ulteriores (o que não quer dizer que não
possam existir) nem reflexos destas declarações de André Ventura nos programas
políticos e eleitorais do Chega de 2019, 2022, 2024.
Parece
claro, com base nestas declarações, que André Ventura detesta profundamente os
portugueses de etnia cigana. Isso faz dele um político ciganofóbico, um
anticigano. Podemos também conjecturar que a sua ciganofobia tem uma motivação
racista (embora a motivação do anticiganismo possa ser outra, etnofóbica e não
propriamente racista). Seja como for, isso não faz de André Ventura,
automaticamente, um fascista, porquanto o anticiganismo e o anti-semitismo,
como formas de etnofobia e/ou de racismo não são traços distintivos exclusivos
do fascismo, quer como movimento quer como regime.
Por exemplo, os regimes de apartheid ⎼ como os que existiram, outrora, nos EUA (de 1877 a 1964) e na África do Sul (1948 a 1994), ou como o que existe em Israel ⎼ são, por definição, profundamente etnofóbicos e racistas em relação a certos grupos étnicos. No entanto, nenhum desses regimes é qualificável de fascista à luz dos critérios que enunciei. Acresce que há diferenças importantes, neste particular, entre os regimes de apartheid. Os regimes de apartheid que existiam nos EUA e na África de Sul eram etnofóbicos e racistas em relação às populações que segregavam. Mas não eram genocidas (África de Sul) ou quando foram genocidas não o eram em relação a todas as populações que segregavam (e.g., os escravos importados de África no caso dos EUA), até porque isso era contraditório com a possibilidade de as explorar economicamente. E mesmo quando foram genocidas (como sucedeu relativamente às populações nativas da América do Norte, vulgo os “índios”) não o foram durante toda a sua vigência. A partir de um certo momento, depois de terem derrotado as suas derradeiras batalhas de resistência armada (lanças, arcos e flechas, contra canhões e espingardas de repetição), contentaram-se em confiná-las em “reservas territoriais”. Já o regime de apartheid existente em Israel é não só etnofóbico e racista em relação à população segregada (os palestinianos árabes de Gaza e da Cisjordânia), mas também, cumulativamente e consistentemente, genocida em relação a ela, ao longo dos anos. Encontramos também diferenças deste género entre os movimentos e regimes fascistas. O fascismo mussoliniano, a variante italiana do fascismo, era racista mas não genocida, e era etnofóbico, mas não de um modo consistente: o seu anticiganismo era muito mais forte do que o seu incipiente anti-semitismo, e este só se acentuou bruscamente a partir de 1938, numa fase tardia do regime, quando este se associou estreitamente à Alemanha nazi. Convém lembrar que, em 1934, Vladimir Ze'ev Jabotinsky (um proeminente dirigente sionista e fascista) criou uma academia naval militar para o Betar (um movimento juvenil sionista de inspiração fascista) nos arredores de Roma, com o apoio do duce Benito Mussolini.
O “Estado Novo” salazarista, a variante
portuguesa do fascismo enquanto regime, não era racista [N.B. Ver o meu P.S., publicado hoje, 25-03-2024, às 22h07]. Em 1934, por exemplo, Salazar
esclareceu que o «nacionalismo português não incluía
“o ideal pagão e anti-humano de decifrar uma raça ou um império”, para além de,
no ano seguinte, ter criticado, sem as nomear, as Leis de Nuremberga»
(Bernardo Oliveira, “O Antissemitismo em Portugal [parte I]. Comunidade
Cultura e Arte, 3 de Agosto de 2021). Não surpreende, por isso, que mesmo
um autor que detectou a existência em Portugal de «vetores
de antissemitismo antes e após o eclodir da Segunda Guerra Mundial e do
Holocausto», possa, no entanto, conceder: «confirma-se
a avaliação segundo a qual o salazarismo não dinamizou nem tolerou discursos,
legislação ou práticas – político-administrativas e sociais – antissemitas de
cariz sistémico e explícito» (João Paulo Avelãs Nunes, “A memória
histórica enquanto instrumento de controlo durante o Estado Novo: o exemplo do
antissemitismo”. Revista de História das Ideias, Vol. 34. 2.ª série [2016]).
Presumo que o mesmo se poderá dizer do posicionamento do Estado Novo
salazarista relativamente aos ciganos portugueses, embora não conheça nenhum
estudo sobre o assunto. Nada disto é surpreendente tendo em conta o carácter sui
generis do Estado Novo salazarista: um regime fascista edificado não a
partir de um movimento civil fascista com uma forte componente arruaceira e
paramilitar, mas a partir de um golpe de Estado militar planeado e executado
por generais e almirantes. Já o nazismo
hitleriano, a variante alemã do fascismo, desenvolveu formas extremas de
racismo, etnofobia e xenofobia contra certos povos eslavos (e.g. polacos e
russos) e certas minorias étnicas (judeus e ciganos). Formas extremas — isto é,
mortíferas, genocidas.
[15] Recorde-se
que a posição do BE sobre a questão (b) se modificou em 2019 e que houve
uma tentativa deste partido de reescrever a história para esconder essa mudança
drástica de posição. Em 26 de Março 2017, Catarina Martins, coordenadora do BE,
declarou que o seu partido era favor da saída de Portugal do euro (https://arquivos.rtp.pt/conteudos/bloco-de-esquerda-defende-a-saida-do-euro/).
Em 25 de Março de 2019, Marisa Matias, dirigente do BE e eurodeputada,
declarou: «não defendemos a saída do euro, nunca o
fizemos. Muitas vezes o que se tenta fazer é confundir [isto com] uma posição conjuntural do Bloco justificada porque o preço
para a Grécia e para a UE foi inaceitável» (entrevista de Vasco Gandra a
Marisa Matias. Eco, 25 de Março de 2019).
[16] Valentina
Machado, «Na terra onde Ventura é ‘rei’. “Tive amigos a pedirem-me desculpa por
votarem Chega”». Diário de Notícias, 12 de Marco de 2024; Hélio Carvalho
“Filha de Catarina Eufémia percebe o voto no Chega (como Beja, o velho bastião
do PCP) mudou de cor”. Expresso, 14 de Março de 2024.
[17] Como,
por exemplo, as que foram realizadas pelo Centro de Estudos e Sondagens de
Opinião (CESOP) da Universidade Católica, ou pelo Instituto de Ciências de
Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, o ISCTE e a GfK Metris, e que
envolveram investigadores como João António e Ricardo Ferreira Reis (CESOP),
Pedro Magalhães (ICS) e João Cancela (NOVA FCSH).
[18] https://twitter.com/PCMagalhaes/status/1767120250430972197; https://www.publico.pt/2024/03/12/politica/noticia/ sao-onde-vem-eleitores-quadruplicaram-bancada-chega-2083316;
https://expresso.pt/politica/eleicoes/legislativas-2024/ 2024-03-14-As-mulheres-votaram-mais-a-esquerda-e-os-jovens-afastaram-se-dos-partidos-antigos-quem-escolheu-quem-nas-legislativas-37730132;
https://www.publico.pt/2024/03/15/politica/noticia/eleitores-chega-homens-idosos-universitarios-2083658;
https://www.dn.pt/1584625214/abstencao-caiu-mas-isto-nao-explica-tudo-chega-foi-buscar-a-todo-o-lado/
[19]
Minha tradução, a partir de Sun Tzu on The
Art of War: the oldest military treatise in the world. Translated from
the Chinese by Leonel Giles, M.A, (1910) (Allandale Online Publishing,
Leicester, England, 2000, p.11). Substituí “inimigo” no original por “adversário”,
porque o contexto do primeiro termo é a guerra, ao passo que o contexto do
segundo é a política no quadro de um regime parlamentar.
[20] Sobre
esta questão, ver a secção 1 do meu livro, Dissipando a Névoa Artificial da
Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o
desarmamento nuclear universal (Editora Primeiro Capítulo, Agosto
de 2023).
[21] Analisei
exaustivamente esses argumentos nas secções 5 e 6 do meu livro, Dissipando a Névoa Artificial da Guerra…
[22] “Ocidente alargado”
é uma expressão cara a Zbigniew Brzezinski (1928-2017) ‒ um dos mais cínicos
ideólogos da supremacia dos EUA sobre todos os outros países do mundo ‒ que a
empregava para designar o conjunto formado pelos EUA e os seus aliados/clientes
na América do Norte [Canadá], Europa [os Estados-membros da OTAN e da UE], Ásia
[Japão, Coreia do Sul] e Australásia [Austrália e Nova Zelândia]. Emprego aqui
a palavra “clientes” num sentido afim daquele
que tinha na Roma antiga. Os clientes constituiam uma classe constituída por
plebeus, escravos libertos, estrangeiros ou filhos ilegítimos que se
associavam, de forma subalterna, aos patrícios, a classe romana superior,
prestando-lhes diversos serviços em troca de auxílio económico e protecção
social e militar.
[23] Sobre este assunto, ver José Catarino Soares, “Em 9 de Abril de 2022 Zelensky preferiu a guerra à paz pelos motivos mais mesquinhos”, Estátua de Sal
[24] “Zelensky
fala ao Parlamento português com PCP ausente”. RTP Notícias, 21 de Abril
de 2023.
[25] Sobre
este assunto, ver a secção 3 [“A colossal patranha da anexação da Crimeia pela
Rússia] do livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras
na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal (pp.
39-49) e o meu estudo “Quem anexou a Crimeia: foi a Rússia ou a Ucrânia?”.Tertúlia
Orwelliana [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2022/08/falsidades-e-mentiras-1.html ]
[26] O
estatuto constitucional da República Popular de Lugansk (RPL), da República
Popular de Donetsk (RPD), ambas na Donbass, no leste da Ucrânia, e dos oblasti de
Zaporíjia e Quérson (no sul da Ucrânia) já foi decidido por via referendária, em 23-27 Setembro de 2022. Estas quatro regiões, ou a maior parte delas, são
hoje parte integrante da Federação Russa. Poderia não ter sido assim, se o
acordo de Istambul celebrado entre a Ucrânia e a Rússia no fim de Março de 2022
não tivesse sido rompido pela Ucrânia em 9 de Abril de 2023, depois da
visita-surpresa de Boris Johnson a Quieve nesse dia. O acordo de Istambul
previa um estatuto autonómico para estes oblasti,
no quadro da Ucrânia, semelhante ao do Tirol do Sul relativamente à Itália
(sobre este assunto, ver José Catarino Soares, “Em 9 de Abril de 2022, Zelensky
preferiu a guerra à paz pelos motivos mais mesquinhos”. Tertúlia Orwelliana,
9 de Dezembro de 2023, já indicado na nota 23).
O
estatuto constitucional dos oblasti de Carcóvia e Odessa (no sul da Ucrânia) é ainda uma
questão em aberto. Só vejo duas saídas justas possíveis, qualquer delas devendo
ser objecto de referendo pelas populações interessadas: (a) ou a adopção
de um estatuto autonómico semelhante ao do Tirol do Sul no âmbito da Ucrânia, (b)
ou a sua integração na Federação Russa à semelhança do que sucedeu com a RPD, a
RPL, Zaporíjia e Quérson.
[27] Folheto
do PCP, “Paz
sim, Guerra Não!”, sem data.
[28] Sobre este assunto, consultar One Democratic State Initiative [https://odsi.co/en/]
[29] Ninguém,
bem entendido, sabe o que poderia ter acontecido nessa eventualidade. Todavia, julgo
não ser disparatado supor que se o PCP tivesse adoptado vigorosamente a
plataforma C enunciada na secção 7.2. deste
ensaio, não teria sofrido o revés eleitoral que sofreu, bem pelo contrário.
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N.B. Empreguei
ao longo deste ensaio os exónimos para a toponímia ucraniana sugeridos por
Paulo Correia (“Ucrânia: Ficha de País”, A folha, n.º 68 — Primavera
de 2022). Assim: Quieve (Ingl. Kyiv), Carquive ou Carcóvia
(Ingl. Kharkiv), Quérson (Ingl. Kherson), Odessa (Ingl.grafia
igual), Donetsk (Ingl. grafia igual), Lugansk (Ingl. grafia
igual), Zaporíjia (Ingl. Zaporizhzhia),
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P.S. (25/03/2024) Um amigo meu, historiador com vasta obra publicada, chamou-me à atenção, em correspondência privada, para o regime do "indigenato" a que o regime implantado em Portugal pelo golpe de Estado militar de 1926 sujeitou a esmagadora maioria das populações africanas de Angola, Moçambique e Guiné , excluindo-as da cidadania e sujeitando-as ao trabalho forçado. «Esse regime», salientou, «a par do correlativo trabalho forçado, dificilmente distinguível da escravatura, foi mantido até 1961, quando foi formalmente revogado pelo ministro do Ultramar, Adriano Moreira, em consequência da deflagração da luta de libertação nacional em Angola em Fevereiro/Março desse ano. Mas o trabalho forçado só acabou após a independência das colónias».
Concordo com esta crítica. Quando afirmei que o regime salazarista não era racista estava a referir-me aos seus «discursos, legislação ou práticas – político-administrativas e sociais – de carácter sistémico» em relação aos portugueses judeus e portugueses ciganos em Portugal (continente europeu e ilhas europeias). Não me estava a referir às colónias africanas. Mas é óbvio que o era se tivermos em consideração esses outros territórios. Aqui fica a rectificação e o meu agradecimento pela crítica supramencionada.
P.S.-2. No dia 30-03-2023, corrigi o ponto 4 da secção 4.3. Onde anteriormente estava “nacionalista”, passou a estar “pseudonacionalista”. A razão é a seguinte: embora o Chega afirme ser um partido nacionalista, não o é, na prática — e é a prática que conta decisivamente neste contexto, não as palavras. A prova disso é que o Chega é um partido (a) pró-União Europeia (UE), (b) pró-Euro e (c) pró-OTAN (/NATO), como é dito no ponto 9 da secção 4.4. Essa tripla opção é incompatível com qualquer veleidade nacionalista.
Obrigado pelo trabalho que teve.
ResponderEliminarObrigado pela consideração.
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