Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

23 março, 2024

 Temas 2 e 3

Conhecer-se a si próprio

e conhecer o adversário

(a propósito das eleições legislativas de 10 de Março de 2024 em Portugal)

 

José Catarino Soares

 

1.Introdução

Escrevi este ensaio, tal como muitos outros no passado, para me esclarecer, à míngua de encontrar esse esclarecimento em seara alheia. Quando não me resta outra solução, para me esclarecer sobre um certo assunto de interesse geral, do que escrever eu próprio um artigo (ou um ensaio ou um livro) sobre ele, faço-o, porque essa tarefa implica pesquisa, estudo e reflexão q.b. Quando os resultados desse esforço me parecem minimamente satisfatórios, publico-o no pressuposto de que possa ser útil para o auto-esclarecimento de outras pessoas.

Foi o que aconteceu com a interpretação do significado da convocação e dos resultados das eleições legislativas de 10 de Março de 2024 em Portugal, sobre a qual tudo o que li até à data (e não foi pouco) me deixou, no cômputo global, muito insatisfeito [1]. Devo acrescentar, no entanto, que não me surpreenderia que a recíproca seja igualmente verdadeira no caso em apreço. De facto, suspeito que a análise proposta neste ensaio, da secção 3 em diante, esteja mais contra a corrente do que é costume. 

Palácio de São Bento em Lisboa. Sede da Assembleia da República (nome do parlamento                português). Foto: DeAgostini/Getty Images.

     

2. Aritmética eleitoral

2.1. Votantes (incluindo brancos e nulos) e abstenção

O número de votantes nas eleições legislativas de 10 de Março de 2024 foi de 6.473.789 (59,84%). A abstenção, que foi de 48,58% em 2022, com 5.256.840 abstencionistas, baixou, desta vez, quase 8 pontos e meio percentuais, com 4.344.437 abstencionistas (40,16%). Para encontrar uma taxa de abstenção semelhante temos de recuar até 2009 (40,3%). A título comparativo, recorde-se que a taxa de abstenção nas três primeiras eleições legislativas do actual regime parlamentar foi de 8,5% (1975), 16,7% (1976) e 12,9% (1979).

Houve mais 910.292 votantes em 2024 do que em 2022, apesar do número de inscritos ter sido um pouco inferior ao de 2022 (‒ 2.111). O número de votos em branco, 89.823 (1,39%), e de votos nulos, 189.676 (2,93%), foram superiores aos de 2022: 61.762 votos  brancos (1,15%) e 49.537 votos nulos (0,95%).

2.2. Os triunfadores

O principal triunfador das eleições legislativas de 10 de Março de 2024 em Portugal foi o Chega. Este partido mais do que triplicou o número de votantes: passou de 385.573 votantes [7,15%] em 2022, para 1 milhão e 169.836 [18,07 %] em 2024. Destarte, ganhou mais 784 mil eleitores, mais do que quadruplicou o número de deputados (eram 12 em 2019 e são agora 50), venceu em dois círculos eleitorais (Faro e Europa) e ficou em segundo lugar em todo o Alentejo, assim como em vários outros círculos eleitorais (incluindo Setúbal e Fora da Europa).

O segundo triunfador destas eleições foi o Partido Popular Democrático/Partido Social-democrata (PPD/PSD) e os seus apêndices eleitorais: Centro Democrático Social- Partido Popular (CDS-PP) e Partido Popular Monárquico (PPM). Estes três partidos concorreram os três coligados na Aliança Democrática (AD), salvo na Madeira, onde o PPM não fez parte da coligação. O grande beneficiário da AD foi o CDS, que regressou ao Parlamento com 2 deputados, depois de se ter eclipsado parlamentarmente em 2022, quando teve 86.577 votos (1,61%) e zero deputados. O PPM que tinha elegido, concorrendo sozinho, 5 deputados em 1979, teve 260 votos (0%) e zero deputados em 2022. Em 2024, apesar de integrado na AD, não elegeu nenhum deputado. 

A AD obteve uma vitória escassa sobre o PS, o 2.º partido mais votado (cujos resultados examinaremos mais adiante). A AD (com e sem PPM) teve 1 milhão e 867.013 votos (28,04%), que lhe permitiu eleger 80 deputados. Em 2019, os votos somados do PSD, CDS e PPM foram 1 milhão e 577.809 (29,28%), que elegeram 76 deputados. O resultado dos partidos coligados na AD foi o pior resultado eleitoral de sempre destes partidos [2].

O vencedor extraconcurso (Fr. hors-concours) destas eleições foi o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Graças à sua actuação (à qual regressaremos mais adiante, na secção 3), os partidos que se dizem de “direita” conseguiram, finalmente, realizar um velho sonho: um presidente, uma maioria parlamentar (PSD, CDS, IL, Chega), um governo.

2.3. Os vencidos

O principal derrotado destas eleições foi o Partido Socialista (PS). Este partido obteve 1 milhão e 812.469 votos (28,00 % dos votos expressos) e elegeu 78 deputados.

Em menos de dois anos, o PS perdeu mais de 400 mil votos (434.168 exactamente) e 40 deputados em relação a 2022 — quando teve 2 milhões e 246.637 votos (41,68 % dos votos expressos) e elegeu 117 deputados que lhe deram a maioria absoluta,   

O segundo grande derrotado nestas eleições foi a Coligacão Democrática Unitária que agrupava o Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Ecologista Os Verdes (PEV).  A CDU não elegeu nenhum deputado no Alentejo, bastião tradicional do PCP, perdeu dois deputados a nível nacional (eram 6 em 2022) e baixou o número de votantes (de 236.645 votantes [4,39%] em 2022 para 205.436 votos [3,17%] em 2024), apesar da abstenção ter diminuído mais de 8 pontos percentuais, como vimos. 

2.4. Os que, sem triunfar, cresceram ou não encolheram

O Livre (L) cresce muito em número de votos (de 68.975 para 204.676), em percentagem de votos (de 1,28% para 3,16%) e em número de deputados (de 1 para 4) em relação às eleições legislativas de 2022.

A Iniciativa Liberal (IL) fica exactamente como estava em número de deputados (8 deputados) em relação às eleições legislativas de 2022, mas cresceu em número de votos (de 273.399 votos para 319.625 votos) e em percentagem de votos (de 4,91% para 4,94%).

O partido Pessoas, Animais e Natureza (PAN) fica exactamente como estava em número de deputados (1 deputado) em relação às eleições legislativas de 2022, mas cresceu em número de votos (de 88.127 para 126.085) e em percentagem de votos (de 1,58% para 1,95%). Mesmo assim, ficou bem aquém do seu melhor resultado eleitoral, em 2019, quando teve 174.511 votos (3,32%) e elegeu 4 deputados.

O Bloco de Esquerda (BE) fica exactamente como estava em número de deputados (5), desceu ligeiramente em percentagem de votos (de 4,40% para 4,36%) em relação às eleições legislativas de 2022, mas cresceu em número de votos (de 244.596 votos para 282.314). Mesmo assim, foi o seu segundo pior resultado eleitoral desde 2011, muito aquém dos seus melhores resultados, obtidos em 2015, quando teve 550.892 votos (10,19%) e em 2019, quando teve 500.017 votos (9,52%).

O Partido Alternativa Democrática Nacional (ADN) ‒ nova denominação do Partido Democrático Republicano (PDR) fundado por Marinho Pinho ‒ cresceu muito (dez vezes mais) em votos (102.132) e em percentagem de votos (1,58%), em relação às eleições legislativas de 2022, quando teve 10.111 votos (0,20 %), embora não tenha conseguido eleger nenhum deputado.

Por terem tido mais de 50 mil votos por círculo eleitoral, todos os partidos referidos até aqui vão beneficiar, em função do número de votos obtidos, de subvenções do erário público ‒ que não tinham (caso do ADN) ou que serão maiores do aquelas que já tinham (caso da maioria dos restantes) ‒ que lhes permitirão desenvolver a sua actividade em melhores condições. O valor da subvenção pública é de 3,39 euros por cada voto. Por conseguinte, o resultado eleitoral do ADN, por exemplo, permite que este partido receba 346.227 euros.

3. Porquê estas eleições dois anos antes do prazo normal?

O seu ao seu dono. A rasteira que derrubou o governo e a maioria do PS não é obra da OTAN (/NATO) ‒ como argumenta oxisdaquestão [3] ‒ mas da procuradora-geral da República, Lucília Gago (com o seu comunicado sibilino e viperino de 7 de Novembro de 2023, que forçou a autodemissão do primeiro-ministro António Costa, do PS) e do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que recusou a formação de um novo governo (com um novo primeiro ministro, formado e apoiado pela maioria absoluta parlamentar do PS), dissolveu a AR e convocou eleições legislativas antecipadas.

Lucília Gago, procuradora-geral da República, e Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República portuguesa. A primeira foi responsável pelo pedido de demissão do primeiro-ministro António Costa (do PS), o segundo pela dissolução da Assembleia da República (onde o PS tinha maioria absoluta) e pela convocação de eleições legislativas antecipadas em 10 de Março de 2024. Foto: José Sena Goulão. Lusa. 

A intervenção do Presidente da República na véspera das eleições, 9 de Março de 2024, no chamado Dia de Reflexão (!), apelando ao voto, foi a cereja em cima do bolo. Segundo Luís Paixão Martins ‒ consultor de comunicação nas campanhas eleitorais vitoriosas de José Sócrates (PS) em 2005, Cavaco Silva (PSD) em 2006 e António Costa (PS) em 2022 ‒ essa intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa poderá ter dado 200 mil votos suplementares à AD [4].

Em resumo, o governo do PS chefiado por António Costa e a sua maioria absoluta no parlamento conseguiram, com a sua actuação, afastar mais de 400.000 eleitores em menos de 2 anos. É obra! Mas quem os fez cair antes do prazo normal foram a Procuradora-Geral da República (PRG) e o Presidente da República (PR).

Registe-se a propósito deste último facto, para memória futura, que o PS resmungou, mas acabou por aceitar, sem grandes protestos, a decisão do PR de dissolver a Assembleia da República e convocar eleições antecipadas. Registe-se também, com o mesmo propósito, que o PCP aprovou a decisão do PR, que considerou «corresponde[r] à clarificação da atual situação» [5]. Na opinião do PCP, as eleições antecipadas deveriam até ter sido marcadas ainda mais cedo (!!) do que a data de 10 de Março de 2024 escolhida pelo PR. 

Os outros partidos que se dizem de “esquerda” (BE e Livre) ou «nem de “esquerda” nem de “direita”» (PAN) adoptaram uma posição semelhante de concordância, explícita ou tácita, com a decisão do PR.

«Do lado dos bloquistas a opinião é a mesma. Pedro Filipe Soares, deputado do Bloco de Esquerda, afirma que “para resolver esta crise política, a única solução era a da saída pela democracia e pela convocação de eleições”. No entanto, o ato legislativo deveria ser marcado “mais cedo”.

Já Inês Sousa Real, líder do PAN, apela aos portugueses que participem nas eleições e espera que “os casos que marcaram este mandato não afastem as pessoas”. A líder do partido garante que vai continuar a apresentar propostas quanto ao Orçamento do Estado com o objetivo de que “o PS saia da bolha da maioria absoluta”.

O líder do Livre, Rui Tavares, diz que “respeita” a decisão de Marcelo Rebelo de Sousa, mas “para salvar a democracia, é preciso uma cidadania inteira” e, dessa forma, pediu que os processos “sejam rigorosos” e “transparentes”» [6].

4. Regresso ao tema do Chega

Explicar porque é que os resultados das eleições de 10 de Março de 2024 foram os que foram, e, sobretudo, explicar o enorme crescimento eleitoral do Chega, deveria ser a principal tarefa imediata dos outros partidos, especialmente os que se dizem de “esquerda”: PCP, PS, BE, Livre (por ordem de antiguidade).

4.1. Certezas absolutas e indiscutíveis versus dúvida cartesiana

Mas, se eu tivesse de apostar, apostaria que o não farão, ou que o farão apenas de um modo perfunctório.

Se perguntados acerca desse desinteresse em averiguar as razões pelas quais o Chega conseguiu atrair 1 milhão e 169.836 votantes ‒ partindo do princípio de que não são, na sua grande maioria, nem fascistas requentados nem grunhos que viviam escondidos debaixo das pedras até aparecer o Chega ‒ creio que alguns serão tentados a responder mais ou menos de uma destas cinco maneiras:

M1) «Ficámos assim a saber que há um milhão de portugueses que são do contra. O milhão do contra. É deprimente? É. Um milhão é muita gente. Mas é um erro tentar apanhar esses votos. São votos do contra. São votos anti-sistema. Só passarão para o PSD ou para o PS no dia em que o PSD ou o PS se transformem em partidos do contra. Que será nunca. /…/ É escusado ir atrás dos eleitores do contra. Eles não estão apenas zangados: são mesmo do contra. E agora estão mais zangados ainda: votaram para ganhar. E perderam» [7].

M2) «Os motivos pelos quais se votou no Chega foram diversos, mas uma coisa já sabemos: ninguém o fez por bem. Foi sempre a pensar em lixar a vida a alguém. A não ser um pobre, ou um velho ou outro que acreditaram mesmo ser possível que as suas reformas miseráveis poderiam passar de 300 para 1000 euros. Mas, aquela malta que nunca votou, porque dizia que “são todos iguais” – não interessando nada haver quem nunca tenha estado no Governo ‒ votou, basicamente, por querer virar do avesso a vida de alguém» [8].

M3) «O que mais acho engraçado, sem ter graça nenhuma, é ver gente a afadigar-se para nos tentar convencer que não foi por racismo, xenofobia e gosto pelo autoritarismo [do] tempo da Outra Senhora que um em cada cinco portugueses [votou] na extrema-direita» [9].

M4) «Desculpem ir contra a corrente, mas há muito mais do que 19% de racistas em Portugal e em qualquer país do mundo» [10].

M5) «Afinal, o monstro estava apenas adormecido. Nem podia ser de outra maneira. O monstro nunca morre. Bastou um par de anos para que o partido de extrema-direita Chega, fundado em 2019, ganhasse importância política em Portugal» [11].

M1, M2, M3, M4 e M5 exprimem certezas absolutas e indiscutíveis. São, por isso, asserções que não devem ser aceites como verdades óbvias, mas antes questionadas, por todos quantos, como eu, tenham aprendido o que René Descartes ‒ já lá vão quase 4 séculos (!) ‒ se deu ao trabalho de elucidar para nosso proveito e auto-educação, a saber:

― que a “dúvida metódica” é indispensável para não sermos enganados pelas nossas “impressões” ou para não colocarmos no nariz o anel com que outros nos conduzirão pela trela até ao seu redil ou ao até ao matadouro.

4.2. O fascismo está aí e vai massacrar-nos?

Há quem tenha ficado impressionado com o crescimento eleitoral do Chega a ponto de asseverar e vaticinar: «O fascismo está aí e vai massacrar-nos». Foi o que fez o Oxisdaquestão no título do artigo já citado (cf. nota [3]). Julgo que a asserção [«o fascismo está aí»] é falsa e que, por conseguinte, o vaticínio [«e vai massacrar-nos»] não se realizará.

Vejamos porquê, indo por partes.

4.3. Natureza política do Chega

No conceito de fascismo temos de distinguir duas coisas bem diferentes, embora estreitamente associadas: por um lado, os partidos políticos que representam a ideologia fascista e combatem sob a sua bandeira, e, por outro, os regimes políticos que alguns desses partidos conseguiram criar nalguns países no decurso da história humana. Para fixar as ideias, podemos designar esta distinção, abreviadamente, pelo par movimento/ regime ou seja, o fascismo como movimento organizado, ideologicamente específico, para a conquista do poder de Estado por meios legais astuciosos e meios ilegais violentos, paramilitares, e como regime político específico, forma específica de organização do poder de Estado.

Ponto 1: O regime político vigente em Portugal desde 1976 não é um regime fascista.

Creio que há acordo geral e até unânime sobre esta caracterização pela negativa. Caracterizá-lo pela positiva, já não é tão consensual. Mas podemos deixar esta questão de lado por não ser indispensável para os nossos actuais propósitos e contentarmo-nos com uma caracterização perfunctória, mas verdadeira e incontroversa: o regime vigente em Portugal é um regime parlamentar e semipresidencial.

Ponto 2. O crescimento eleitoral do Chega não altera esta caracterização.

Passemos à questão do movimento fascista.

Na esteira de Daniel Guérin [12], caracterizo o fascismo como um movimento político específico ao serviço do grande capital que emprega meios legais astuciosos e, sobretudo, meios ilegais ‒ em particular, neste último caso, métodos violentos e paramilitares de bandos armados de arruaceiros ‒ para banir e destruir as organizações dos trabalhadores assalariados (sindicatos, partidos, cooperativas, associações mútuas, etc.); aniquilar o regime parlamentar; anular os direitos, liberdades e garantias pessoais, assim como os direitos económicos, sociais e culturais constitucionalmente protegidos, com vista à construção de um Estado despótico que lhes permita impor a sua vontade e aumentar os seus lucros sem oposição organizada e sem freios e contrapesos legalmente instituídos.

Ponto 3. À luz desta caracterização, o partido Chega não pode ser apodado de fascista.

Nada nos documentos programáticos do Chega [13], nem no comportamento actual do seu chefe, André Ventura, e dos seus dirigentes, justifica qualificá-lo de partido fascista. (Se André Ventura pode ser apodado de racista é uma questão à parte [14]).

Para sustentar essa qualificação também não colhe invocar a bravata e um acentuado pendor histriónico de André Ventura, o fundador e dirigente máximo do Chega. Esses traços comportamentais não são traços estruturais distintivos da ideologia e da conduta fascista, mas antes atributos psicológicos comuns a muitos dirigentes partidários e governantes oriundos de várias zonas do espectro político — Boris Johnson, Emmanuel Macron, Volodymyr Zelensky, Joe Biden, Ursula von der Leyen, Josep Borrell são alguns exemplos actuais.

O ponto principal de demarcação do Chega relativamente à ideologia e ao movimento fascista é este:

«O CHEGA é reformista. Por ambicionar melhorar a vida coletiva, mas em exclusivo pela via pacífica, constitucional, política, eleitoral, democrática. Tal significa a rejeição liminar de caminhos revolucionários e de todas as manifestações de violência política» (Ponto 15 do Programa Político 2022 do Chega).

Então, que tipo de partido é o Chega?

Ponto 4. O Chega é um partido da direita radical (“a direita identitária” ou “a direita de direita”, como também gostam de dizer os dirigentes do Chega), conservador, liberal, pseudonacionalista e reformista. Os seus principais mentores doutrinários são Edmund Burke (1729-1799), Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich von Hayek (1899-1992).

4.4. Os objectivos do Chega

Ponto 5. O Chega ambiciona ser o partido maioritário do parlamento português.

Por essa razão, o Chega representa uma séria ameaça para o PSD e o PS, dois partidos fundadores do regime constitucional vigente e também os partidos dominantes do sistema político-partidário português desde 1975.

Ponto 6. O Chega pretende erigir-se como partido dominante desse sistema e relegar o PSD e o PS para um lugar muito subalterno, se possível residual.

Ponto 7. Além disso, o Chega pretende alterar profundamente a Constituição da República portuguesa, em conformidade com os princípios do conservadorismo liberal e radical logo que tenha (sozinho ou acompanhado) deputados em número suficiente para tanto.

Ponto 8. O objectivo último dessa revisão constitucional é refundar o regime vigente (que o Chega apelida de “III República”) e lançar as bases de um novo regime (que o Chega apelida de “IV República”).

Todavia ‒ e esta é uma ressalva essencial que é necessário, uma vez mais, salientar ‒ o Chega pretende alcançar os seus objectivos jogando o jogo eleitoral no quadro constitucional vigente, sem o recurso aos métodos violentos e aos bandos paramilitares de arruaceiros que são apanágio dos partidos fascistas. Se o fizesse (se o fizer) deixaria (deixará) automaticamente de ser um partido de direita radical, conservador, liberal, pseudonacionalista e reformista, para se converter num partido fascista.

Ponto 9. Por último, e em reforço da ressalva feita no ponto anterior, convém ter bem presente que o Chega não se distingue da maioria dos demais partidos parlamentares em questões de fundo, como as seis seguintes:

― O Chega é um partido (a) pró-União Europeia (UE), (b) pró-Euro e (c) pró-OTAN(/NATO). Nestas três questões, o Chega tem a mesma posição que o PS, o PSD, a IL, o Livre, o PAN e o CDS, e nas duas primeiras questões, (a) e (b), tem a mesma posição que o BE [15].

― O Chega apoia (d) o morticínio genocida que as Forças Militares de Israel levam a cabo em Gaza há quase cinco meses, o qual justifica em nome do “direito de defesa” de Israel. Nesta questão, o Chega tem a mesma posição que o PSD, a IL e o CDS.

― O Chega apoia (e) a guerra que o regime filobanderista e liberticida dos presidentes ucranianos Petro Poroshenko e Volodymyr Zelensky desencadeou, a partir de Maio de 2014, para sufocar as populações russas, russófonas e russófilas do leste e sul da Ucrânia em luta pelo direito à autodeterminação e em rebelião contra o golpe de Estado sangrento de 22 de Fevereiro de 2014 que derrubou inconstitucionalmente o presidente da Ucrânia livremente eleito, Viktor Yanukóvych. 

Nesta questão, o Chega tem a mesma posição que o PS, o PSD, o CDS, a IL, o BE, o Livre e o PAN.

  O Chega apoia (f) a continuação do apoio dos EUA, Reino Unido, UE, OTAN, em armas, munições, equipamento militar, informações militares, conselheiros militares, instrutores militares e logística ao regime de Zelensky para que prossiga a guerra na Ucrânia contra a Rússia (para a enfraquecer, como lhe pediu o general Lloyd Austin, ministro da Defesa dos EUA) até ao último soldado ucraniano — e até, talvez, para além dessa meta, se a tese de Emmanuel Macron de enviar tropas para a Ucrânia tiver vencimento na UE. 

Nesta questão, o Chega tem a mesma posição que o PS, o PSD, a IL, o CDS e o PAN. O BE e o Livre apoiam também esta posição, mas suavizada com o apelo a negociações entre os beligerantes. Tivemos recentemente uma prova disso. Quatro dias depois das eleições, no dia 14 de Março de 2024, o governo demitido do PS ainda aprovou, em Conselho de Ministros, uma verba de 100 milhões de euros de apoio à Ucrânia, associando-se assim ao programa de compra de munições para esse Estado que vários Estados da UE desenvolveram por iniciativa da Chéquia. Como seria de esperar, não se ouviu qualquer protesto por parte do BE e do Livre que, no entanto, afirmam que faltam muitas centenas de milhões de euros para o SNS e a escola pública... 

Em resumo, se o Chega é “um monstro que estava adormecido”, há muitos outros monstros que o precederam no parlamento português, que estavam bem acordados e que lhe serviram de modelo.

4.5. Quem foram os eleitores do Chega?

Esta pergunta não pode ser respondida com certezas inabaláveis baseadas em impressões avulsas, como, por exemplo, as que respiguei em M1, M2, M3, M4 e M5 (secção 4.1). Também não se compadece com achismos: “eu acho que foram A, B, C…”; “pois eu não estou de acordo: acho que foram D, E, F…”. A pergunta só pode ser respondida através de muitos trabalhos de reportagem jornalística honesta e de investigação científica, investigação sociológica adequada.

São ambas tarefas que ultrapassam em muito os meios de que disponho para as realizar. No entanto, remeto os leitores interessados, a título de exemplos ilustrativos dessas duas vias de conhecimento, para (i) as reportagens de Valentina Marcelino, na freguesia onde o Chega teve mais votos, e de Hélio Carvalho, na freguesia de Baleizão, bastião do PCP, onde nasceu e morreu Catarina Eufémia; [16] e para (ii) os estudos sociológicos feitos com base em sondagens conduzidas à boca das urnas e no resultado da votação círculo eleitoral por círculo eleitoral e freguesia por  freguesia [17].  

A informação que essas sondagens fornecem sobre os votantes em cada partido está limitada ao sexo, ao grupo etário e ao grau de instrução, mas já dá algumas pistas sobre as bases sociais da votação.

Por exemplo, estas que colhi nas fontes referidas na alínea (ii) mais acima e que estão mais concretamente indicadas na nota [18]:    

# 1― O Chega, tal como muitos partidos de direita radical por essa Europa fora, tem uma clara maioria masculina de eleitores. Os dados mostram que 58% dos eleitores do Chega são homens e 42% são mulheres, o que é a maior percentagem masculina de todos os partidos com assento parlamentar.

# 2 ― Semelhantemente ao Chega neste particular, a CDU (PCP+PEV) e a IL atraem maioritariamente o voto masculino. 56% dos eleitores da CDU são homens e 44% mulheres. Na IL, 54% dos eleitores são homens e 46% são mulheres.

# 3 ― Em contraste, o PAN tem uma maioria feminina maciça. 75% dos eleitores do PAN são mulheres e 25% são homens. Logo a seguir, com um eleitorado também desproporcionalmente feminino, vem o BE. 62% eleitores do BE são mulheres e 38% são homens. PS tem também mais eleitores que são mulheres (54%) do que homens (46%).

# 4 ― Já a AD e o Livre se saíram quase tão bem com homens e mulheres. 49% dos eleitores da AD são homens e 51% mulheres. No Livre, 48% dos eleitores são homens e 52% são mulheres.

# 5 Os partidos mais recentes têm eleitores mais jovens. 49% dos eleitores da IL tem entre 18 e 34 anos; no Livre são 44%; no PAN 39%; no BE 33% e no Chega 32%. Assim, o Chega porta-se bem entre os jovens, mas é o que menos jovens atraiu entre os partidos mais recentes. Já a “velha” esquerda – o PS e o PCP/CDU – é particularmente fraca entre os jovens adultos. 16% dos eleitores da CDU tem entre 18 e 34 anos. No PS ainda são menos: 10%. A AD ocupa um lugar intermédio entre os partidos mais recentes e os partidos da “velha” esquerda. 22% dos seus eleitores tem entre os 18 e os 24 anos.

# 6O cenário é diferente quando se olha para eleitores ainda mais novos, entre os 18 e os 24 anos.  Nesta faixa etária, é a AD que atrai mais eleitores, a seguir vem o Chega, depois vem a IL e, só depois vêm o PS, o BE e o Livre, estes três por igual.

# 7 Nos eleitores com mais de 65 anos, os resultados, por ordem decrescente, dos partidos mais recentes, são os seguintes: BE (12%), PAN (10%), Chega (9%), Livre (6%), IL (4%). Como se vê, o Chega está em linha, neste particular, com todos os partidos mais recentes. Já nos partidos mais antigos, tanto de “esquerda” como de “direita”, os eleitores com mais de 65 anos são parcelas importantes: no PS são 34%, na CDU, 30%, e na AD, 20%.

#8 ― Os eleitores com um curso superior são 64% dos eleitores do Livre, 56% dos eleitores da IL, 43% dos eleitores do BE e da AD, 38% dos eleitores do PAN, 29% dos eleitores da CDU, 28% dos eleitores do PS e 22% dos eleitores do Chega. Os eleitores com o curso secundário são 55% dos eleitores do Chega, 47% dos eleitores do PAN, 41% dos eleitores do BE, 39% dos eleitores da CDU, 38% dos eleitores da IL, 37% dos eleitores do PS e da AD, e 32% do Livre.  Os eleitores com menos do que o ensino secundário são 35% dos eleitores do PS, 32% dos eleitores da CDU, 24% dos eleitores do Chega, 20% dos eleitores da AD, 16% dos eleitores do BE, 15% dos eleitores do PAN, 6% dos eleitores da IL, e 4% dos eleitores do Livre. 

#9 ― Como se constata, o PS é o partido que tem a distribuição mais equilibrada no que respeita ao grau de instrução (28%, 37%, 35%) e o Livre é o partido que tem a distribuição mais desequilibrada (64%, 32%, 4%). Convém também notar que o Chega foi o partido hegemónico junto dos homens jovens menos escolarizados, onde obteve 41% dos votos. Contudo, como este grupo representa apenas 7% do eleitorado, este resultado é insuficiente, por si só, para explicar o enorme crescimento eleitoral deste partido.

#10 ― Em suma, não é entre os mais escolarizados (os que têm um curso superior) nem entre os menos escolarizados (os que tem menos do que o ensino secundário) que o Chega se sai melhor, mas com pessoas com um diploma do ensino secundário, que constituem a maioria de seus eleitores (55%) — a maior percentagem de todos os partidos.  Em contraste, quer a “nova esquerda” (BE e Livre), quer a “velha direita” (PSD, CDS, PPM), quer a “nova direita” (IL), quer o PAN, apoiam-se eleitoralmente numa quantidade desproporcional de diplomados do ensino superior — num país onde existem poucos.

# 11 ―Mas há uma mudança neste particular relativamente às eleições anteriores. A percentagem de 22% de eleitores do Chega que têm um curso superior é a menor percentagem de todos os partidos, mas é uma das novidades destas eleições. «Ao contrário do que vimos há cinco anos» ‒ salientou João António, investigador do CESOP ‒ «o Chega está a entrar nas pessoas com ensino superior. O partido já poderá ter entre 25% a 30% de eleitores licenciados».

# 12 ― Não é exacto ver uma ligação directa e exclusiva entre o aumento da participação eleitoral (diminuição do número de abstencionistas) e o crescimento eleitoral do Chega.

Basta um só exemplo para refutar essa hipótese. No círculo eleitoral de Viana do Castelo ‒ onde a abstenção só desceu 2,39% relativamente a 2022, configurando a menor variação neste parâmetro ‒ o Chega, em 10 de Março de 2022, foi a escolha de 26.635 eleitores (18,64% dos votos expressos), ficando em 3.º lugar e elegendo 1 deputado — atrás da AD (1.º lugar, com 49.613 votos [34,72%]), que elegeu 2 deputados, e do PS (2.º lugar, com 40.237 [28,15%]), que ficou em 2.º lugar.  Em 2022, o Chega tinha também ficado em 3.º lugar nesse distrito, mas apenas com 7.702 votos (6,06%), sem eleger nenhum deputado. Nesse ano, o PS tinha ficado em 1.º lugar, com 53.435 votos (42,06%), elegendo 3 deputados e o PSD tinha ficado em 2.º lugar, com 43.414 votos (34,17%) elegendo também 3 deputados.

Para reforçar a refutação da hipótese de que o Chega foi buscar todos ou a maioria dos seus votos aos abstencionistas de 2022, convém saber que o círculo de Viana do Castelo perdeu um deputado, por via de um decréscimo na população. Assim, em 2022 elegeu seis deputados e este ano elegeu cinco, sendo que um deles foi para o Chega e os outros quatro deputados foram repartidos em partes iguais entre PS e AD.

# 13 Parece ser muito plausível  afirmar, com base nos dados estatísticos disponíveis sobre as eleições de 10 de Março de 2024 e nos (poucos) estudos já feitos, que o enorme crescimento eleitoral do Chega tem três fontes principais: (i) votos que vieram dos abstencionistas de eleições anteriores e de eleitores que não tinham idade para votar em 2022; (ii) votos que vieram de eleitores que na eleição anterior votaram no PS; e, em bem menor percentagem, (iii) votos que vieram de eleitores que em eleições anteriores votaram no PSD. 

Convém acrescentar, contrariando o que é repetido muitas vezes, que «não é (nem nunca foi) a CDU que alimenta o Chega», conforme salientou João António, o responsável técnico pelas sondagens políticas do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião (CESOP).

Em resumo, os dados constantes dos pontos anteriores (#1-#13) não se coadunam com a ideia de que houve 1 milhão e 169.836 adultos que votaram no Chega por racismo, xenofobia e gosto pelo tipo de opressão e de repressão que eram apanágio do regime fascista de Salazar-Caetano.

Mesmo dando de barato, como hipótese não descartável logo à partida, que tenha havido dezenas de milhares ou mesmo cem, duzentos ou trezentos milhares de adultos que tenham votado no Chega por esses motivos, tal como o teriam feito em 2022, teríamos ainda de explicar de onde surgiram os oitocentos milhares que, desta vez, teriam votado nele por esses mesmos motivos, mas que não o fizeram em 2022. Só por um milagre mais espantoso do que o milagre das rosas é que mais de oitocentos mil eleitores (muitos dos quais jovens) se transformariam, em dois anos, noutros tantos racistas, xenófobos e candidatos ansiosos ao uso permanente da pulseira electrónica e da mordaça.

4.6. O que desejam os eleitores do Chega?

Ninguém sabe responder a essa pergunta porque, primeiro, é preciso ir à procura deles, saber mais concretamente quem são (profissão, emprego ou ocupação, posto de trabalho, fontes de rendimento, condições de habitação, composição do agregado familiar, etc.)  e fazer-lhes directamente a pergunta. Essa investigação ainda não foi feita e não sei se alguém a fará.

Entretanto, e à falta de melhor, parece plausível admitir que a maioria dos eleitores do Chega votou nesse partido não para lixar alguém que votou noutro partido, mas porque está de acordo, no todo ou em parte, com as propostas do partido Chega, tal como estão formuladas no seu programa eleitoral 2024: “Limpar Portugal”. 

Esse programa eleitoral estende-se por 174 páginas, divididas em 25 capítulos tematicamente distintos. Quem quiser saber o que é, concretamente, o partido Chega ‒ ou seja, quem quiser saber como se traduz, concretamente, o facto de ser um partido de direita radical, conservador, liberal, peudonacionalista e reformista ‒ e as razões do seu crescimento eleitoral, não pode deixar de o ler. Com maioria de razão, quem quiser combater politicamente o partido Chega e disputar-lhe as preferências do eleitorado tem não só de ler o seu programa, mas também estudá-lo atentamente.

Vale a pena recordar, a este propósito, o apotegma de Sun Tzu, sempre actual:

«Aquele que conhece o adversário e se conhece a si próprio, travará cem batalhas sem nunca correr o perigo de ser derrotado. Aquele que não conhece o adversário, mas se conhece a si próprio, terá tantas vitórias quantas derrotas. Aquele que não conhece o adversário nem se conhece a si próprio, será derrotado em todas as batalhas» [19].

5. E agora?

Em 1976, houve cinco partidos a garantir representação parlamentar: dois partidos grandes (PS e PSD), dois médios (CDS e PCP) e um pequeno (UDP). Em 2015, ainda eram estes, em grande medida, os mesmos partidos que conseguiram eleger deputados. Isto, porque o PEV estava integrado na CDU (a coligação eleitoral com o PCP) e nunca foi a votos de forma independente, e a UDP era uma das forças (a força principal) que, em conjunto com o PSR e a Política XXI, deram origem ao Bloco de Esquerda (BE).

Com a passagem do tempo, os partidos médios ficaram cada vez mais pequenos e o partido mais pequeno, depois de um eclipse eleitoral de 5 anos, regressou ao parlamento, onde foi crescendo (salvo em 2011, quando sofreu um grande desaire) até 2019, para depois cair a pique. Pelo caminho ficaram a Acção Social Democrata Independente (ASDI) e a União de Esquerda para a Democracia Socialista (UEDS) ‒ que elegeram ambos deputados em 1980 numa coligação com o PS chamada FRS ‒, o Partido Renovador Democrático (PRD), que elegeu deputados em 1985 e 1987, e o Partido da Solidariedade Nacional (PSN) que elegeu 1 deputado em 1991 — quatro partidos que já não existem.

Esta configuração bipolar (PS e PSD) e pentapartidária [2+2+1], já erodida na sua componente média, foi abalada em 6 de Outubro de 2019, com a entrada de dois novos pequenos partidos no parlamento: IL (1 deputado) e Chega (1 deputado), e com o reforço de um terceiro, o PAN (4 deputados) que se tinha estreado no parlamento em 2015, com 1 deputado. A partir de 2019, passaram a existir 9 forças políticas no parlamento, quando até então só tinham existido quase sempre 5, no máximo 6.

Mas foi sol de pouca dura. Em 30 de Janeiro de 2022, o parlamento sofreu novo abalo, com o desaparecimento do CDS, o recuo do BE (de 19 deputados para 5), da CDU (de 12 deputados para 6), do PSD (de 79 deputados para 72), do PAN (de 4 deputados para 1) e do reforço do Chega (de 1 deputado para 12) e da IL (de 1 deputado para 8).

Em suma, o regime político vigente em Portugal desde 1975, apoiava-se, na sua componente parlamentar, em dois grandes partidos simétricos, um à “esquerda” (PS) e outro à “direita” (PSD), de tamanho equivalente, que alternavam no poder legislativo e executivo. Como vimos, até 2022 estes dois partidos centrais coexistiam parlamentarmente com partidos bem mais pequenos situados à sua ilharga — três partidos (CDS, PCP-PEV, BE) até 2015; quatro partidos (CDS, PCP-PEV, BE, + PAN) a partir de 2015; seis partidos (CDS, PCP-PEV, BE, PAN + IL + Chega) a partir de 2019; ou cinco partidos (CDS, PCP-PEV, BE, PAN, IL, Chega, CDS) a partir de 2022.

E agora? Agora essa configuração básica, que perdurou durante 48 anos, foi varrida pelo terramoto eleitoral que representaram os resultados da votação no Chega em 10 de Março de 2024. Essa votação modificou profundamente a correlação de forças entre a “esquerda” (PS + BE + PCP + L = 94 deputados) e a “direita” (AD + Chega + IL =138 deputados) do regime parlamentar e semipresidencialista vigente, deslocando o seu fulcro muito para a “direita”. Agora existem três grandes partidos parlamentares ‒ PSD (78 deputados), PS (78 deputados) e Chega (50 deputados) ‒ e já não dois (PS e PSD), que disputam entre si o primeiro lugar no pódio eleitoral com base num país e num parlamento claramente inclinado à “direita”.

Apesar de se situarem ambos à “direita”, não é expectável que possa existir qualquer aliança duradoura entre o PSD e o Chega pelas razões apontadas na secção 4.4 deste ensaio. Não é expectável, pelas mesmas razões, que seja constituído um governo estável da AD (ou da AD + IL), com o apoio parlamentar do Chega, ou que seja constituído um governo AD + Chega.

Por estas razões, a situação mais expectável com que nos defrontamos no futuro próximo é, julgo eu, uma de grande turbulência. Os tempos que aí vêm, vão ser

«uma balbúrdia imprevisível /…/ Vai dar-se início ao circo [parlamentar e presidencial] com os números de equilibrismo, trapézio e contorcionismo»

Concordo com este prognóstico feito por Oxisdaquestão no artigo cujo título já tive ocasião de discutir (cf. secção 4.2). É, aliás, um prognóstico que está em contradição com esse título.

6. As escolhas eleitorais de 10 de Março de 2024

Cabe evocar aqui, a este propósito, um velho aforismo português: «Na cama que farás, nela te deitarás». Vejo nele uma versão caseira, muito simplificada e muito abreviada do apotegma de Sun Tzu. Perguntemo-nos, então ‒ excluo deste “nós” os 10% mais ricos que detêm cerca de 55% da riqueza líquida distribuída em Portugal e os 5% mais ricos que têm nas suas mãos 42% de toda a riqueza (líquida e ilíquida) ‒ para concluir, se alguma das camas que os partidos concorrentes às eleições de 10 de Março de 2024 nos convidaram a fazer com eles era uma boa cama, uma cama susceptível de nos garantir um sono tranquilo e reparador.

7. Dois exemplos-teste

Creio que não. Consideremos dois exemplos-teste: as guerras na Ucrânia e o genocídio em Gaza.

7.1. Os partidos parlamentares perante as duas guerras na Ucrânia

PSD, CDS, IL e Chega dizem ser partidos de “direita”. PS, BE e Livre dizem ser partidos de “esquerda”. Todos, porém, se declararam, desde o primeiro dia da “Operação Militar Especial” (OME) que a Rússia desencadeou em 24 de Fevereiro de 2022 para socorrer as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk (RPD e RPL) na Donbass (= bacia do Donets) que estavam a ser alvo de um ataque em grande escala das Forças Armadas da Ucrânia [20],

A) incondicionalmente a favor do agressor da RPD e da RPL (o Estado ucraniano, descrito por eles como uma benigna democracia) e contra o agressor do agressor (o Estado russo, descrito por eles como uma maligna autocracia);

B) e incondicionalmente a favor da ajuda (que o tempo viria a revelar ser colossal e constante) em armas, munições, equipamento militar, informações militares, conselheiros e instrutores militares, logística que tem sido fornecida pelos EUA, o Reino Unido, a UE e a OTAN(/NATO) ao presidente Zelensky e ao seu regime russófobo, filobanderista e liberticida para prosseguir a guerra que trava contra a Rússia “pelo tempo que for preciso para que possa prevalecer no campo de batalha”.  

Note-se que poderiam ter tido outra posição, se não quisessem reconhecer como legítimos os argumentos que Putin deu para justificar a OME [21], sem que isso, no entanto, fosse entendido como um apoio à guerra que o regime de Quieve travava há oito anos contra as populações russas, russófonas e russófilas da Donbass. Ou seja, poderiam ter-se declarado neutrais perante o conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia e oferecerem os préstimos de Portugal (no caso do PS, que estava no governo) ou pugnarem para que Portugal, através do seu governo, oferecesse os seus préstimos (no caso dos outros partidos parlamentares) como mediador de uma solução negociada, mutuamente aceitável pelos beligerantes, para o conflito — em suma, uma solução razoada que pusesse termo à guerra e estabelecesse uma paz sólida e duradoura.

Mas não foi isso o que fizeram. Pelo contrário, adoptaram todos, em maior ou menor grau, o comportamento de corifeus ou de elementos do coro belicista do “Ocidente alargado[22].  

De todos os partidos com assento parlamentar só o PCP não entrou nesse alucinado coro belicista. Cumpre assinalar, por exemplo, que este foi o único partido com assento parlamentar que se recusou a assistir no hemiciclo e a aplaudir o discurso feito por teleconferência do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky perante a Assembleia da República no dia 21 de Abril de 2022 — apenas 12 dias depois de Zelensky ter rompido o acordo de paz muito favorável que tinha celebrado com a Rússia em Istambul (!!) [23].

«O PCP não participará numa sessão da Assembleia da República concebida para dar palco à instigação da escalada da guerra, contrária à construção do caminho para a paz, com a participação de alguém como Volodymyr Zelensky, que personifica um poder xenófobo e belicista, rodeado e sustentado por forças de cariz fascista e neonazi, incluindo de caráter paramilitar, de que o chamado Batalhão Azov é exemplo», declarou o PCP em comunicado [24].

9 de Abril de 2022. Boris Johnson (à época 1.º ministro do Reino Unido [RU]) faz uma visita-surpresa a Quieve. Hoje sabemos que o propósito dessa visita foi transmitir a Zelensky, de viva-voz, o ultimato dos EUA, RU, Alemanha e França: “Escolha: ou vai por diante com o acordo de paz que fez em Istambul com a Rússia, e nunca mais conte connosco, ou rompa esse acordo e terá todo o nosso apoio para vencer a guerra com a Rússia”. Zelensky escolheu romper o acordo e prosseguir a guerra. Foto: Alliance/dpa.

Do mesmo modo, de todos os partidos com assento parlamentar, só o PCP se pronuncia contra a continuação da guerra na Ucrânia e a favor da paz pela via negocial. São posições meritórias, cujo mérito é realçado pela circunstância de o PCP as ter tomado desacompanhado por todos os restantes partidos parlamentares ditos de “esquerda”.

Mas esse posicionamento raramente sai do plano simbólico (exemplificado pela atitude perante a arenga de Zelensky ao parlamento português) e do plano proclamatório mais geral e abstracto, para se converter num programa de mobilização e acção políticas. Sejam, por exemplo, afirmações como esta: “o PCP condena a violação dos princípios do direito internacional, da Carta da ONU e da Acta Final da Conferência de Helsínquia». Que princípios, concretamente? E quem os violou? E quando? E onde? E como?

Durante os debates televisivos que precederam a campanha eleitoral das legislativas de 10 de Março de 2024, assim como durante a campanha eleitoral, o secretário-geral do PCP, Paulo Raimundo, nunca enunciou nem explicou nenhuma das seis linhas orientadores incluídas mais adiante no listador C) que dão um conteúdo concreto e definido à luta pelo fim da guerra na Ucrânia e pela paz nesse país.

7.2. Acabar com a guerra na Ucrânia

Para acabar com a guerra na Ucrânia e estabelecer uma paz duradoura entre a Ucrânia e a Rússia é necessário:

C) um cessar-fogo imediato e a abertura imediata de negociações de paz entre a Ucrânia e Rússia com base

― c.1) no reconhecimento de que a Crimeia é uma república autónoma da Federação Russa e não um anexo da Ucrânia [25];

― c.2) no reconhecimento do direito à autodeterminação (incluindo o direito de secessão) e ao autogoverno das populações russas, russófonas e russófilas dos oblasti do leste (Lugansk e Donetsk) e sul da Ucrânia (Zaporíjia, Quérson, Carcóvia e Odessa) [26];

― c.3) na garantia da neutralidade militar da Ucrânia perante os blocos e as alianças militares existentes;

― c.4) na renúncia da Ucrânia à sua intenção de aderir à OTAN (/NATO);

― c.5) na renúncia da Ucrânia à instalação de armas nucleares (de fabrico próprio ou alheio) no seu território;

― c.6) na renúncia da Ucrânia à instalação de bases militares e/ou contingentes de tropas estrangeiras no seu território.

Na verdade, desde o início da segunda guerra na Ucrânia (24 de Fevereiro de 2022), o PCP ficou-se amiúde por afirmações genéricas, como, por exemplo, as seguintes: “o PCP está do lado da paz, não da guerra!” ou “o PCP não tem nada a ver com o governo russo e o seu presidente. O projecto político do PCP é oposto ao das forças políticas que governam a Rússia capitalista e dos seus grupos económicos[27].

A insuficiência deste posicionamento fica clara quando nos damos conta que a primeira afirmação poderia ser subscrita pelas Testemunhas de Jeová: “As Testemunhas de Jeová estão do lado da paz, não da guerra!”. No entanto (e é aqui que está o busílis) as Testemunhas de Jeová não protestam, nem muito menos combatem, contra acções destinadas a alimentar as guerras ‒ como as que foram descritas na secção 7.1, em B) ‒ nem se opõem a que outros cidadãos, que não eles, sejam obrigados a participar em guerras.

O mesmo vale dizer relativamente à segunda afirmação. É uma afirmação que poderia ser, mutatis mutandis, subscrita por Joe Biden, Rishi Sunak, Emmanuel Macron, Olaf Scholz ou Volodymyr Zelensky, cujo projecto político em defesa, respectivamente, da América capitalista, do Reino Unido capitalista, da França capitalista, da Alemanha capitalista e da Ucrânia capitalista, é, no entanto, oposto ao das forças políticas que governam a Rússia capitalista e dos seus grupos económicos.

Não há nisto nada de surpreendente. É apenas um exemplo claro das tensões, rivalidades e antagonismos geopolíticos e geoeconómicos que se manifestam constantemente entre Estados contemporâneos, sobretudo os mais poderosos, apesar de perfilharem todos o mesmo sistema económico (o dito capitalismo) e fazerem todos parte da ONU [28].

7.3. Acabar com o genocídio em Gaza

Consideremos um segundo exemplo-teste.

PS, BE, PCP, Livre, PAN são todos contra o genocídio que Israel está a perpetrar em Gaza há 5 meses. Porém, salvo melhor informação, nenhum deles (se) propôs passar das palavras aos actos, mobilizando os cidadãos portugueses para exigirem do governo português (seja ele qual for) medidas concretas e imediatas (D), nomeadamente,  

d.1) Declarar o embaixador de Israel em Portugal persona non grata ao abrigo do artigo 9 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas.

d.2) Retirar o embaixador de Portugal em Israel (na gíria diplomática, “chamar o embaixador para consultas, sem prazo para retorno”), à semelhança do que fez o Brasil e a República da África de Sul.

d.3) Propor na ONU, como medida transitória até a constituição da República democrática da Palestina (ver d.7), que os representantes eleitos dos territórios de Gaza e da Cisjordânia beneficiem dos direitos e prerrogativas conferidos aos Estados membros de pleno direito desta organização internacional.  

d.4) Apoiar o processo judicial que a República da África de Sul moveu contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça em 28 de Dezembro de 2023, com base na declarada intenção genocida dos titulares do Estado de Israel contra o povo palestiniano em Gaza.

d.5) Suspender todos os acordos culturais de educação e desporto e de cooperação económica, industrial, técnico-científica e de segurança entre Portugal e Israel.

d.6) Propor na Assembleia Geral da ONU uma resolução destinada a constituir um contingente de “capacetes azuis” da ONU encarregado de proteger os palestinianos da Faixa de Gaza e da Cisjordânia dos ataques das Forças Armadas de Israel e das agressões dos colonos israelitas armados por elas.

d.7) Defender a constituição na Palestina, do rio Jordão até ao mar Mediterrâneo, de uma República democrática, laica, palestiniana: (i) democrática, porque garantiria a igualdade de direitos e de representação de todos os seus cidadãos (árabes, sabras, beduínos, drusos, circassianos); (ii) laica, porque garantiria a liberdade de culto a todos os seus cidadãos (muçulmanos, judeus, cristãos, etc.) e estaria isenta de discriminações de base religiosa, étnica ou outra; (iii) palestiniana, porque garantiria o direito de retorno dos refugiados palestinianos, poria um fim definitivo ao apartheid mantido contra o povo palestiniano e  restauraria a sociedade palestiniana multicultural, tal como era antes de Israel: um belo mosaico de vida [28].

 Crianças de Gaza sobreviventes a um dos inumeráveis bombardeamentos israelitas contra a população civil. Foto: Al Qahera News.

Salvo melhor informação, não tenho conhecimento de nenhum partido com assento parlamentar que tenha inscrito estas medidas para acabar com o genocídio em Gaza no seu programa eleitoral, ou que tenha feito campanha por elas. O mesmo se aplica às medidas para acabar com a guerra na Ucrânia, tal como foram expostas na secção 7.2., sob o listador C).

8. Conclusão

Com base em tudo o que foi dito na secção 7 sobre as posições e propostas dos partidos portugueses com assento parlamentar em matéria de política internacional (e sem necessidade sequer de passar em revista as suas posições e propostas em matéria de política nacional), concluo o seguinte:

― a escolha eleitoral ínsita nas eleições legislativas de 10 de Março de 2024 era entre vários modelos de camas de faquir (diferentes no número, tamanho e disposição dos pregos), vários modelos de sacos-cama para dormir ao relento e um colchão de ar anti-escaras com compressor. 

― Mas uma boa cama ‒ ou até, simplesmente, uma cama dobrável portátil ‒ era coisa que não havia para escolher, pelo menos no meu entender.

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Notas e Referências

 

[1] Exceptuo três textos que li com proveito e agrado: Carlos Matos Gomes, “Portugal é uma ilha?”. In Medium.com, 22/02/2024 e Estátua de Sal, 24/02/2024; Whale project, “A esquerda, as eleições e a guerra na Ucrânia”, Estátua de Sal, 16/03/2024; Manuel Tavares, “Porque cresce a extrema-direita?”. In Facebook  e Estátua de Sal, 14/03/2024.

[2] Pedro Magalhães, https://twitter.com/PCMagalhaes/status/1767120250430972197

[3] oxisdaquestão, “Chegou a nossa vez: o fascismo está aí e vai massacrar-nos”. In blogue  oxisdaquestao, 11/03/2024; e Estátua de Sal, 11/03/2024.

[4] Entrevista com Luís Paixão Martins, CNN Portugal, 11 de Março 2024, 00h02.

[5] https://www.pcp.pt/sobre-marcacao-de-eleicoes-antecipadas

[6] “Partidos à esquerda satisfeitos com dissolução do parlamento e eleições antecipadas”. Porto Canal, 09-11-2023.

[7] Miguel Esteves Cardoso, “O milhão do contra”. Público, 11-03-2024).

[8] Whale project, “Ele, como não quer cá ver mais gente de turbante, votou no Chega. Estátua de Sal. 14/03/2024.

[9] Whale project, Comentário ao artigo de Miguel Sousa Tavares ,“E agora, sr. Presidente?” (In Expresso, 15/03/2024 e Estátua de Sal, 15/03/2024). Estátua de Sal, 15/03/2024.

[10] Daniel Oliveira, “O Chega tinha de vir e aqui ficará até o sabermos explicar”. In Expresso, 13/03/2024 e Estátua de Sal, 13/03/2024.

[11] Dulce Maria Cardoso, “Um brinquedo frágil em mãos brutas”. Público, 8 de Março de 2024.

[12] Daniel Guérin, Fascisme et Grand Capital (1936,1945). Éditions Libertalia, 2014.Esta reedição é a mais completa até à data. Inclui um prólogo do autor (“Quando o fascismo corria à nossa frente”), um posfácio de Dwight Macdonald (“Fascismo e a cena americana”), escrito como Introdução à tradução americana do original de Daniel Guérin, e um glossário. A edição americana intitula-se Fascism and Big Business. Pathfinder Press, Seventeenth printing, 2016. Esta edição inclui os prefácios do autor de 1945 e 1965 à edição original francesa.

[13] Declaração de Princípios e Fins do Chega; Manifesto Político fundador do Chega; Programa Político Chega 2019; Programa Político Chega 2021; Programa Eleitoral Legislativas Chega 2022; Projecto de Revisão Constitucional do Chega (Outubro de 2022); Limpar Portugal — Programa Eleitoral 2024 do Chega

[14] Há um ponto, neste particular, que precisa de ser esclarecido: diz respeito ao posicionamento de André Ventura relativamente ao racismo e, por extensão, a relação entre o racismo e o fascismo. Em Julho 2017, quando era candidato do PSD à Câmara de Loures; em Maio de 2020, quando era deputado único do Chega; e em Dezembro de 2020, quando era candidato pelo Chega à presidência da República, André Ventura produziu declarações contra a etnia cigana que lhe valeram ser acusado de ciganofobia e racismo. Por exemplo, (i) «Temos tido uma excessiva tolerância com alguns grupos e minorias étnicas. Não compreendo que haja pessoas à espera de reabilitação nas suas habitações, quando algumas famílias, por serem de etnia cigana, têm sempre a casa arranjada. Já para não falar que ocupam espaços ilegalmente e ninguém faz nada. Quem tem de trabalhar todos os dias para pagar as contas no final do mês olha para isto com enorme perplexidade. Isto não é racismo nem xenofobia, é resolver um problema que existe porque há minorias no nosso país que acham que estão acima da lei» (entrevista ao Notícias ao Minuto, 12 Julho de 2017), (ii) «Vou-lhe ser muito direto: eu acho, e Loures tem sentido esse problema [da tolerância relativamente às minorias étnicas], que estamos aqui a falar particularmente da etnia cigana. É verdade que em Loures há mais, com uma multiculturalidade grande, mas em Portugal temos uma cultura com dois tipos de coisas preocupantes: uma é haver grupos que, em termos de composição de rendimento, vivem quase exclusivamente de subsídios do Estado, outra é acharem que estão acima das regras do Estado de direito» (entrevista ao Sol, 17 de Julho de 2017); (iii) «Ouça, há um estudo de 2014 que diz que só 15% dos ciganos vivem do seu trabalho. Os outros vivem de quê? Vivem provavelmente de economia paralela»(entrevista à RTP, 15 de Dezembro de 2020); (iv) «É preciso um plano específico de abordagem e confinamento para as comunidades ciganas, face à pandemia de Covid-19» (Lusa, 6 de Maio de 2020). Não encontrei mais declarações deste teor em anos ulteriores (o que não quer dizer que não possam existir) nem reflexos destas declarações de André Ventura nos programas políticos e eleitorais do Chega de 2019, 2022, 2024.

Parece claro, com base nestas declarações, que André Ventura detesta profundamente os portugueses de etnia cigana. Isso faz dele um político ciganofóbico, um anticigano. Podemos também conjecturar que a sua ciganofobia tem uma motivação racista (embora a motivação do anticiganismo possa ser outra, etnofóbica e não propriamente racista). Seja como for, isso não faz de André Ventura, automaticamente, um fascista, porquanto o anticiganismo e o anti-semitismo, como formas de etnofobia e/ou de racismo não são traços distintivos exclusivos do fascismo, quer como movimento quer como regime.

Por exemplo, os regimes de apartheid como os que existiram, outrora, nos EUA (de 1877 a 1964) e na África do Sul (1948 a 1994), ou como o que existe em Israel são, por definição, profundamente etnofóbicos e racistas em relação a certos grupos étnicos. No entanto, nenhum desses regimes é qualificável de fascista à luz dos critérios que enunciei. Acresce que há diferenças importantes, neste particular, entre os regimes de apartheid. Os regimes de apartheid que existiam nos EUA e na África de Sul eram etnofóbicos e racistas em relação às populações que segregavam. Mas não eram genocidas (África de Sul) ou quando foram genocidas não o eram em relação a todas as populações que segregavam (e.g., os escravos importados de África no caso dos EUA), até porque isso era contraditório com a possibilidade de as explorar economicamente. E mesmo quando foram genocidas (como sucedeu relativamente às populações nativas da América do Norte, vulgo os “índios”) não o foram durante toda a sua vigência. A partir de um certo momento, depois de terem derrotado as suas derradeiras batalhas de resistência armada (lanças, arcos e flechas, contra canhões e espingardas de repetição), contentaram-se em confiná-las em “reservas territoriais”. Já o regime de apartheid existente em Israel é não só etnofóbico e racista em relação à população segregada (os palestinianos árabes de Gaza e da Cisjordânia), mas também, cumulativamente e consistentemente, genocida em relação a ela, ao longo dos anos. Encontramos também diferenças deste género entre os movimentos e regimes fascistas. O fascismo mussoliniano, a variante italiana do fascismo, era racista mas não genocida, e era etnofóbico, mas não de um modo consistente: o seu anticiganismo era muito mais forte do que o seu incipiente anti-semitismo, e este só se acentuou bruscamente a partir de 1938, numa fase tardia do regime, quando este se associou estreitamente à Alemanha nazi. O “Estado Novo” salazarista, a variante portuguesa do fascismo enquanto regime, não era racista [N.B. Ver o meu P.S., publicado hoje, 25-03-2024, às 22h07]. Em 1934, por exemplo, Salazar esclareceu que o «nacionalismo português não incluía “o ideal pagão e anti-humano de decifrar uma raça ou um império”, para além de, no ano seguinte, ter criticado, sem as nomear, as Leis de Nuremberga» (Bernardo Oliveira, “O Antissemitismo em Portugal [parte I]. Comunidade Cultura e Arte, 3 de Agosto de 2021). Não surpreende, por isso, que mesmo um autor que detectou a existência em Portugal de «vetores de antissemitismo antes e após o eclodir da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto», possa, no entanto, conceder: «confirma-se a avaliação segundo a qual o salazarismo não dinamizou nem tolerou discursos, legislação ou práticas – político-administrativas e sociais – antissemitas de cariz sistémico e explícito» (João Paulo Avelãs Nunes, “A memória histórica enquanto instrumento de controlo durante o Estado Novo: o exemplo do antissemitismo”. Revista de História das Ideias, Vol. 34. 2.ª série [2016]). Presumo que o mesmo se poderá dizer do posicionamento do Estado Novo salazarista relativamente aos ciganos portugueses, embora não conheça nenhum estudo sobre o assunto. Nada disto é surpreendente tendo em conta o carácter sui generis do Estado Novo salazarista: um regime fascista edificado não a partir de um movimento civil fascista com uma forte componente arruaceira e paramilitar, mas a partir de um golpe de Estado militar planeado e executado por generais e almirantes.  Já o nazismo hitleriano, a variante alemã do fascismo, desenvolveu formas extremas de racismo, etnofobia e xenofobia contra certos povos eslavos (e.g. polacos e russos) e certas minorias étnicas (judeus e ciganos). Formas extremas — isto é, mortíferas, genocidas.

[15] Recorde-se que a posição do BE sobre a questão (b) se modificou em 2019 e que houve uma tentativa deste partido de reescrever a história para esconder essa mudança drástica de posição. Em 26 de Março 2017, Catarina Martins, coordenadora do BE, declarou que o seu partido era favor da saída de Portugal do euro (https://arquivos.rtp.pt/conteudos/bloco-de-esquerda-defende-a-saida-do-euro/). Em 25 de Março de 2019, Marisa Matias, dirigente do BE e eurodeputada, declarou: «não defendemos a saída do euro, nunca o fizemos. Muitas vezes o que se tenta fazer é confundir [isto com] uma posição conjuntural do Bloco justificada porque o preço para a Grécia e para a UE foi inaceitável» (entrevista de Vasco Gandra a Marisa Matias. Eco, 25 de Março de 2019).

[16] Valentina Machado, «Na terra onde Ventura é ‘rei’. “Tive amigos a pedirem-me desculpa por votarem Chega”». Diário de Notícias, 12 de Marco de 2024; Hélio Carvalho “Filha de Catarina Eufémia percebe o voto no Chega (como Beja, o velho bastião do PCP) mudou de cor”. Expresso, 14 de Março de 2024.

[17] Como, por exemplo, as que foram realizadas pelo Centro de Estudos e Sondagens de Opinião (CESOP) da Universidade Católica, ou pelo Instituto de Ciências de Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, o ISCTE e a GfK Metris, e que envolveram investigadores como João António e Ricardo Ferreira Reis (CESOP), Pedro Magalhães (ICS) e João Cancela (NOVA FCSH).

[18] https://twitter.com/PCMagalhaes/status/1767120250430972197; https://www.publico.pt/2024/03/12/politica/noticia/ sao-onde-vem-eleitores-quadruplicaram-bancada-chega-2083316; https://expresso.pt/politica/eleicoes/legislativas-2024/ 2024-03-14-As-mulheres-votaram-mais-a-esquerda-e-os-jovens-afastaram-se-dos-partidos-antigos-quem-escolheu-quem-nas-legislativas-37730132; https://www.publico.pt/2024/03/15/politica/noticia/eleitores-chega-homens-idosos-universitarios-2083658; https://www.dn.pt/1584625214/abstencao-caiu-mas-isto-nao-explica-tudo-chega-foi-buscar-a-todo-o-lado/

[19] Minha tradução, a partir de Sun Tzu on The Art of War: the oldest military treatise in the world. Translated from the Chinese by Leonel Giles, M.A, (1910) (Allandale Online Publishing, Leicester, England, 2000, p.11). Substituí “inimigo” no original por “adversário”, porque o contexto do primeiro termo é a guerra, ao passo que o contexto do segundo é a política no quadro de um regime parlamentar.  

[20] Sobre esta questão, ver a secção 1 do meu livro, Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal (Editora Primeiro Capítulo, Agosto de 2023). 

[21] Analisei exaustivamente esses argumentos nas secções 5 e 6 do meu livro, Dissipando a Névoa Artificial da Guerra…

[22] Ocidente alargado” é uma expressão cara a Zbigniew Brzezinski (1928-2017) ‒ um dos mais cínicos ideólogos da supremacia dos EUA sobre todos os outros países do mundo ‒ que a empregava para designar o conjunto formado pelos EUA e os seus aliados/clientes na América do Norte [Canadá], Europa [os Estados-membros da OTAN e da UE], Ásia [Japão, Coreia do Sul] e Australásia [Austrália e Nova Zelândia]. Emprego aqui a palavra “clientes” num sentido afim daquele que tinha na Roma antiga. Os clientes constituiam uma classe constituída por plebeus, escravos libertos, estrangeiros ou filhos ilegítimos que se associavam, de forma subalterna, aos patrícios, a classe romana superior, prestando-lhes diversos serviços em troca de auxílio económico e protecção social e militar.

[23] Sobre este assunto, ver  José Catarino Soares, “Em 9 de Abril de 2022 Zelensky preferiu a guerra à paz pelos motivos mais mesquinhos”, Estátua de Sal 

[24] “Zelensky fala ao Parlamento português com PCP ausente”. RTP Notícias, 21 de Abril de 2023.

[25] Sobre este assunto, ver a secção 3 [“A colossal patranha da anexação da Crimeia pela Rússia] do livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal (pp. 39-49) e o meu estudo “Quem anexou a Crimeia: foi a Rússia ou a Ucrânia?”.Tertúlia Orwelliana      [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2022/08/falsidades-e-mentiras-1.html ]

[26] O estatuto constitucional da República Popular de Lugansk (RPL), da República Popular de Donetsk (RPD), ambas na Donbass, no leste da Ucrânia, e dos oblasti de Zaporíjia e Quérson (no sul da Ucrânia) já foi decidido por via referendária, em 23-27 Setembro de 2022. Estas quatro regiões, ou a maior parte delas, são hoje parte integrante da Federação Russa. Poderia não ter sido assim, se o acordo de Istambul celebrado entre a Ucrânia e a Rússia no fim de Março de 2022 não tivesse sido rompido pela Ucrânia em 9 de Abril de 2023, depois da visita-surpresa de Boris Johnson a Quieve nesse dia. O acordo de Istambul previa um estatuto autonómico para estes oblasti, no quadro da Ucrânia, semelhante ao do Tirol do Sul relativamente à Itália (sobre este assunto, ver José Catarino Soares, “Em 9 de Abril de 2022, Zelensky preferiu a guerra à paz pelos motivos mais mesquinhos”. Tertúlia Orwelliana, 9 de Dezembro de 2023, já indicado na nota 23).  

O estatuto constitucional dos oblasti de Carcóvia e Odessa (no sul da Ucrânia) é ainda uma questão em aberto. Só vejo duas saídas justas possíveis, qualquer delas devendo ser objecto de referendo pelas populações interessadas: (a) ou a adopção de um estatuto autonómico semelhante ao do Tirol do Sul no âmbito da Ucrânia, (b) ou a sua integração na Federação Russa à semelhança do que sucedeu com a RPD, a RPL, Zaporíjia e Quérson.

[27] Folheto do PCP, “Paz sim, Guerra Não!”, sem data.

[28] Ninguém, bem entendido, sabe o que poderia ter acontecido nessa eventualidade. Todavia, julgo não ser disparatado supor que se o PCP tivesse adoptado vigorosamente a plataforma C enunciada na secção 7.2. deste ensaio, não teria sofrido o revés eleitoral que sofreu, bem pelo contrário.

[29] Sobre este assunto, consultar One Democratic State Initiative [https://odsi.co/en/

N.B. Empreguei ao longo deste ensaio os exónimos para a toponímia ucraniana sugeridos por Paulo Correia (“Ucrânia: Ficha de País”, A folha, n.º 68 — Primavera de 2022). Assim: Quieve (Ingl. Kyiv), Carquive ou Carcóvia (Ingl. Kharkiv), Quérson (Ingl. Kherson), Odessa (Ingl.grafia igual), Donetsk (Ingl. grafia igual), Lugansk (Ingl. grafia igual), Zaporíjia (Ingl. Zaporizhzhia), 

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P.S. (25/03/2024) Um amigo meu, historiador com vasta obra publicada, chamou-me à atenção, em correspondência privada, para o regime do "indigenato" a que o regime implantado em Portugal pelo golpe de Estado militar de 1926 sujeitou a esmagadora maioria das populações africanas de Angola, Moçambique e Guiné , excluindo-as da cidadania e sujeitando-as ao trabalho forçado. «Esse regime», salientou, «a par do correlativo trabalho forçado, dificilmente distinguível da escravatura, foi mantido até 1961, quando foi formalmente revogado pelo ministro do Ultramar, Adriano Moreira, em consequência da deflagração da luta de libertação nacional em Angola em Fevereiro/Março desse ano. Mas o trabalho forçado só acabou após a independência das colónias». 

Concordo com esta crítica. Quando afirmei que o regime salazarista não era racista estava a referir-me aos seus «discursos, legislação ou práticas – político-administrativas e sociais – de carácter sistémico» em relação aos portugueses judeus e portugueses ciganos em Portugal (continente europeu e ilhas europeias). Não me estava a referir às colónias africanas. Mas é óbvio que o era se tivermos em consideração esses outros territórios. Aqui fica a rectificação e o meu agradecimento pela crítica supramencionada. 

P.S.-2. No dia 30-03-2023, corrigi o ponto 4 da secção 4.3. Onde anteriormente estava “nacionalista”, passou a estar “pseudonacionalista”. A razão é a seguinte: embora o Chega afirme ser um partido nacionalista, não o é, na prática — e é a prática que conta decisivamente neste contexto, não as palavras. A prova disso é que o Chega é um partido (a) pró-União Europeia (UE), (b) pró-Euro e (c) pró-OTAN (/NATO), como é dito no ponto 9 da secção 4.4. Essa tripla opção é incompatível com qualquer veleidade nacionalista.




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Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana