Temas 2 e 3
O Ministério da
Verdade à luz do caso Navalny
e do desmembramento da
Jugoslávia
José Catarino Soares
1.Introdução
A
narrativa do romance “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro”, de George
Orwell, situa-se num país chamado Oceania, onde existe um “Ministério da Verdade” encarregado de zelar para que
toda a informação e todas as notícias se conformem com o lema da oligocracia dirigente: «Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força».
A existência de um “Ministério da Verdade” como o do romance de Orwell pode parecer pura ficção. Mas não é. É uma realidade à frente do nosso nariz ‒ embora passe despercebida a muita gente ‒ como mostraram Edward S. Herman e Noam Chomsky no seu livro “Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media” (1988), tradução brasileira, “A manipulação do público” (2003, São Paulo: Futura).
No período subsequente à Segunda Guerra Mundial e sobretudo nos últimos 30 anos, o “Ministério da Verdade” do chamado “Ocidente alargado” (pois é só dele que o livro de Herman & Chomsky trata) tomou a forma de um gigantesco sistema mediático de comunicação social. A sua parte visível e de aparência anódina é constituída por jornais e revistas de grande circulação, estações de rádio e de radiotelevisão de grande audiência, agências noticiosas globais (Associated Press, Agence France-Press, Reuters, EFE, Deutsche Presse-Agentur) e agências de comunicação estratégica (Bellingcat, Coda Media, Hill & Knowlton Strategies e outras).
A
recente morte de Alexei Navalny, por causas naturais, numa prisão da Rússia
forneceu uma ocasião propícia para vermos como este sistema mediático actua
sincronizadamente e de mão dada com a elite política dirigente do “Ocidente alargado” [1].
Mas
a morte de Navalny está muito longe de ter sido a única ocasião propícia para
conhecer o modo como funciona o “Ministério da Verdade”
do “Ocidente alargado” [2]. Há
muitas outras. Os dois depoimentos seguintes, ambos relacionados com o modo
como a Jugoslávia foi desmembrada a ferro e fogo em sete (7) Estados distintos,
mostram-no muito bem.
Dão-nos
a conhecer duas ocasiões em que o “Ministério da
Verdade” do “Ocidente alargado” foi
apanhado em flagrante delito.
2. O depoimento do
general Carlos Branco
«O caso Navalny
trouxe-me à memória muitos outros casos, em que as opiniões públicas, resultado
da ação da designada Comunicação Estratégica, são levadas a acreditar em versões
enviesadas dos acontecimentos. Para se atingirem determinados objetivos
políticos, versões deturpadas dos factos são apresentadas de modo a serem
percebidas como verdades indiscutíveis. Falamos de manipulação das perceções.
A minha atenção para
este fenómeno foi despertada por um acontecimento que relatei num livro
publicado em 2016. Quando um jornalista perguntou ao responsável de uma empresa
de Relações Públicas (RP), contratada por croatas e muçulmanos bósnios, para
promover as suas causas, ou, se quisermos, as suas imagens públicas, qual era o
feito de que mais se orgulhava, a resposta saiu pronta e sem hesitação:
“Colocar a opinião pública judaica do nosso lado”, leia-se, contra os sérvios
bósnios acusando-os de nazis.
Esta “tese” punha em
causa toda a história da Segunda Guerra Mundial, nos Balcãs. Quem, na verdade,
combateu as forças de Hitler foram os sérvios, tanto os que alinharam com os
partisans como os monárquicos. Os croatas e os muçulmanos estiveram do lado errado
da história, engrossando as fileiras da Wehrmacht e das SS com unidades
próprias. Milhares de judeus morreram às mãos dos croatas em campos de
concentração na Croácia.
Ambos os presidentes
Tudman (croata) e Izetbegović (muçulmano bósnio) tinham escrito livros onde
expressavam ideias muito inconvenientes e inapropriadas. O primeiro defendia,
com grande convicção, ideias antissemitas e racistas, enquanto o segundo defendia,
como objetivo último da sua ação política, a criação de um Estado islâmico
fundamentalista. As questões ideológicas não foram impedimento para o Ocidente
se colocar do lado dos croatas e dos muçulmanos na guerra que dilacerou o país,
entre 1992 e 1995.
Perante cartões de
visita tão inapresentáveis, como dizia o responsável da empresa de RP, havia
todas as razões para que intelectuais e organizações judaicas fossem hostis,
tanto a croatas como a muçulmanos. “O nosso desafio [da empresa de RP] era reverter esta atitude. E nós fizemos isso
magistralmente. Foi um tremendo golpe”. E foi mesmo. Conseguiram colocar as
opiniões públicas ocidentais contra os supostos sérvios nazis. É para isto que
servem as empresas de Relações Públicas. Limpar imagens, alterar perceções. Foi
dinheiro bem empregue!
Apesar do Tribunal de
Haia ter, em 2016, ilibado Milosevic da responsabilidade pelos crimes de que
foi acusado, ficou para a história como o “carniceiro dos Balcãs”. O mal já
estava feito, pouco ou nada serviu a “retificação.” A verdade histórica apurada
a posteriori não produz efeitos retroativos. Não faz breaking news»
[3].
3. Slobodan Milošević
Convém saber ‒ para compreender plenamente o último parágrafo supracitado ‒ que Slobodan Milošević, presidente da Sérvia (1989-1997) e da República Federal da Jugoslávia (1997-2000), foi extraditado, em 22 de Junho de 2001, para Haia, onde foi encarcerado na Unidade de Detenção do Tribunal Penal Internacional para a (ex-)Jugoslávia (TPIJ), também conhecida como o “Haia Hilton”.
Slobodan Milošević (1941-2006). Foto: Lara Joseph.Quotesgram.com. |
Começou depois a ser julgado
pelo TPIJ, onde respondia por mais de 60 acusações de crimes de guerra, crimes contra
a humanidade e genocídio devido ao seu alegado protagonismo no decurso da
desintegração da Jugoslávia ― um processo longo, muito violento e atribulado que
incluiu: (i) a intervenção militar da OTAN na Bósnia e Herzegovina em 1993-1995;
(ii) a intervenção militar da OTAN na República Federal da Jugoslávia (RFJ)
em 1999 (sem que nenhum Estado-membro da OTAN tivesse sido atacado pela Sérvia
ou pela RFJ); (iii) as guerras que assolaram a Croácia (1991-1995); (iv)
a Bósnia e Herzegovina (1992-1995); e (v) o Kosovo (1998-1999), culminando (vi) na declaração de independência
do Kosovo em 2008 [4].
Abril de 1999. As forças da OTAN destroem a Ponte da Liberdade na cidade de Novi Sad, na província de Vojvodia, Sérvia. Foto:Balkan Transational Justice. |
Milošević acabaria por morrer no Haia Hilton, em 2006, de enfarte de miocárdio. Ao contrário do que sucedeu com Navalny, nenhum governo do “Ocidente alargado” duvidou um instante da certidão de óbito dos médicos-legistas ao serviço da prisão do Tribunal de Haia.
Dez anos depois, em 2016, o TPIJ acabaria por, envergonhadamente, ilibar Milošević de todas as acusações [5], uma decisão que o sistema mediático dominante da comunicação social do “Ocidente alargado” nunca se dignou sequer noticiar...Longe iam os tempos em que o mesmo sistema se empenhava esforçadamente por apresentar Milošević como o odioso “carniceiro dos Balcãs”(!!)
Uma cela da prisão do Tribunal Penal Internacional, conhecida chistosamente como “Haia Hilton”. Foi aqui que Milošević esteve encarcerado 5 anos e onde morreu. Foto: Público |
4. O depoimento de
Joaquim Camacho
«A propósito das vigarices merdiáticas no desmembramento da
Jugoslávia, vou contar-vos uma história. Quando a tropa independentista croata
combatia o ainda exército jugoslavo, nessa altura já maioritariamente composto
por sérvios, porque os outros se passavam automaticamente para o lado independentista,
um noticiário da RTP mostrou a seguinte cena, filmada na praça de uma povoação,
tudo indica que a partir de um primeiro ou segundo andar de um prédio da dita
praça: militares croatas armados até aos dentes rodeavam e agrediam
barbaramente, a murro e pontapé, soldados sérvios do exército jugoslavo feitos
prisioneiros, obviamente desarmados, entre eles uma mulher-soldado. Que os
agressores eram militares croatas sei-o porque a RTP o disse na peça. E pela
mesma peça fiquei a saber que os agredidos eram soldados sérvios do exército
jugoslavo. Pouco subliminarmente, porém, ou seja, sem qualquer ambiguidade, a
mesmíssima RTP “explicava-nos” que as agressões mais não eram, afinal, do que
“represálias” por maldades antes cometidas pelos agredidos, implicitamente bem
merecidas. Que maldades merecedoras de tão bárbaras “represálias” tinham os
sérvios feito, isso não nos disse a bendita “peça” da RTP, mas sendo os
sérvios, oficialmente, os únicos maus da fita, só não digo que estava meio
caminho andado para convencer os crentes (como no Euromilhões) porque na
verdade o caminho estava todo feito.
Alguns meses depois,
continuando os sérvios com o exclusivo de maus da fita oficiais, e estando a
guerra de desmembramento da Jugoslávia já então assanhadíssima no Kosovo, um
noticiário da RTP-2 indignava-se e indignava-nos com as maldades infligidas pelos
demónios sérvios aos pobres kosovares albaneses, esses conhecidos e ternurentos
escuteiros. Como não podia deixar de ser, a peça da RTP ilustrava as ditas
maldades com elucidativas imagens. E que imagens eram essas? As mesmíssimas que
a mesmíssima RTP nos mostrara meses antes, de prisioneiros sérvios a levar
porrada de militares croatas, seus captores. Saída, porém, da competentíssima
Divisão de Alquimia da RTP, explicava-nos agora a bendita “peça” que os
agressores eram energúmenos sérvios e os agredidos pobres kosovares muçulmanos,
desgraçadas vítimas inocentes dos demónios oficiais.
Não é difícil imaginar a
cena. Diz um lacaio merdiático para o outro: “Eh pá, arranja-me aí umas imagens
para ilustrar uma peça que refere agressões bárbaras de demónios sérvios a
escuteiros kosovares muçulmanos.” Responde o outro: “Meu, só tenho imagens
antigas de prisioneiros sérvios a levar porrada de militares croatas. Serve?”
Responde o primeiro: “Claro que serve. O pagode é estúpido e ignorante [além de
sereno] e não dá por nada. Para quem é bacalhau basta e o patrão não se
esquecerá de nos recompensar a criatividade e capacidade de desenrascanço.”
Genial, não é?» [6]
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Notas e Referências
[1] Cf. José Catarino Soares, «As lágrimas de crocodilo da “Ocidente alargado” por Alexei Navalny». In Tertúlia Orwelliana [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2024/02/as-lagrimas-de-crocodilo-dos.html] e Estátua de Sal [https://estatuadesal.com/2024/02/20/as-lagrimas-de-crocodilo-dos-dignitarios-do-ocidente-alargado-por-alexei-navalny/];«O alarido internacional sobre a morte de Alexei Navalny: cui bono?». In Tertúlia Orwelliana [https:// tertuliaorwelliana.blogspot.com/2024/02/o-alarido-internacional-sobre-morte-de.html] e Estátua de Sal [https://estatuadesal.com/2024/02/25/tertulia-orwelliana/]; Carlos Branco, «O estranho caso do dr. e do sr. Navalny». In Jornal Económico [https://jornal economico.sapo. pt/noticias/o-estranho-caso-do-dr-e-do-sr-navalny/] e Estátua de Sal [https://estatuadesal. com/2024/02/22/o-estranho-caso-do-dr-e-do-sr-navalny/].
[2] “Ocidente alargado” é uma expressão cara a Zbigniew
Brzezinski (1928-2017) ‒ um dos mais cínicos ideólogos da supremacia dos EUA
sobre todos os outros países do mundo ‒ que a empregava para designar o
conjunto formado pelos EUA e os seus aliados/clientes na América do Norte
[Canadá], Europa [os Estados-membros da OTAN e da UE], Ásia [Japão, Coreia do Sul]
e Australásia [Austrália e Nova Zelândia]. Emprego aqui a palavra “clientes” num sentido afim daquele que tinha na Roma
antiga. Os clientes constituiam uma classe constituída por plebeus, escravos
libertos, estrangeiros ou filhos ilegítimos que se associavam, de forma
subalterna, aos patrícios, a classe romana superior, prestando-lhes diversos
serviços em troca de auxílio económico e protecção social e militar.
[3] Carlos Branco, “Com papas e bolos…”.
In Jornal Económico [https://jornaleconomico. sapo.pt/noticias/com-papas-e-bolos/];
e Estátua de Sal [https://estatuadesal.com/2024/03/ 04/com-papas-e-bolos/].
[4] Sobre este assunto, ver o excelente estudo do major-general Raul Cunha (que conheceu de perto e em primeira mão a situação que analisa), Kosovo —
a incoerência de uma independência inédita (2019), Edições Colibri,
Lisboa.
[5] Envergonhadamente porque as considerações que ilibam Milošević constam de um relatório do TIPJ de 2590 páginas, sobre Radovan Karadžić, ex-político sérvio, condenado a 40 anos de prisão em Março de 2016 por causa do sucedido em Srebrenica. A ilibição de Milošević não mereceu qualquer declaração ou conferência de imprensa por parte do Tribunal. Foi graças ao jornalista Andy Wilcoxson que este relatório passou a ser conhecido. (cf. “Tribunal de Haia iliba Milošević”. Abril Abril, 10 de Agosto de 2016).
[6] Joaquim Camacho, in Estátua de
Sal, 5 de Março de 2024.
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