Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

07 março, 2024

 Temas 2 e 3

O Ministério da Verdade à luz do caso Navalny

e do desmembramento da Jugoslávia

José Catarino Soares

 

1.Introdução

A narrativa do romance “Mil Novecentos e Oitenta e Quatro”, de George Orwell, situa-se num país chamado Oceania, onde existe um “Ministério da Verdade” encarregado de zelar para que toda a informação e todas as notícias se conformem com o lema da oligocracia dirigente: «Guerra é Paz; Liberdade é Escravidão; Ignorância é Força».

A existência de um “Ministério da Verdade” como o do romance de Orwell pode parecer pura ficção. Mas não é. É uma realidade à frente do nosso nariz ‒ embora passe despercebida a muita gente ‒ como mostraram Edward S. Herman e Noam Chomsky no seu livro “Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media” (1988), tradução brasileira, “A manipulação do público” (2003, São Paulo: Futura).

No período subsequente à Segunda Guerra Mundial e sobretudo nos últimos 30 anos, o “Ministério da Verdade” do chamado “Ocidente alargado” (pois é só dele que o livro de Herman & Chomsky trata) tomou a forma de um gigantesco sistema mediático de comunicação social. A sua parte visível e de aparência anódina é constituída por jornais e revistas de grande circulação, estações de rádio e de radiotelevisão de grande audiência, agências noticiosas globais (Associated Press, Agence France-Press, Reuters, EFE, Deutsche Presse-Agentur) e agências de comunicação estratégica (Bellingcat, Coda Media, Hill & Knowlton Strategies e outras). 

A recente morte de Alexei Navalny, por causas naturais, numa prisão da Rússia forneceu uma ocasião propícia para vermos como este sistema mediático actua sincronizadamente e de mão dada com a elite política dirigente do “Ocidente alargado[1].

Mas a morte de Navalny está muito longe de ter sido a única ocasião propícia para conhecer o modo como funciona o “Ministério da Verdade” do “Ocidente alargado[2]. Há muitas outras. Os dois depoimentos seguintes, ambos relacionados com o modo como a Jugoslávia foi desmembrada a ferro e fogo em sete (7) Estados distintos, mostram-no muito bem.  

Dão-nos a conhecer duas ocasiões em que o “Ministério da Verdade” do “Ocidente alargado” foi apanhado em flagrante delito.

2. O depoimento do general Carlos Branco

«O caso Navalny trouxe-me à memória muitos outros casos, em que as opiniões públicas, resultado da ação da designada Comunicação Estratégica, são levadas a acreditar em versões enviesadas dos acontecimentos. Para se atingirem determinados objetivos políticos, versões deturpadas dos factos são apresentadas de modo a serem percebidas como verdades indiscutíveis. Falamos de manipulação das perceções.

A minha atenção para este fenómeno foi despertada por um acontecimento que relatei num livro publicado em 2016. Quando um jornalista perguntou ao responsável de uma empresa de Relações Públicas (RP), contratada por croatas e muçulmanos bósnios, para promover as suas causas, ou, se quisermos, as suas imagens públicas, qual era o feito de que mais se orgulhava, a resposta saiu pronta e sem hesitação: “Colocar a opinião pública judaica do nosso lado”, leia-se, contra os sérvios bósnios acusando-os de nazis.

Esta “tese” punha em causa toda a história da Segunda Guerra Mundial, nos Balcãs. Quem, na verdade, combateu as forças de Hitler foram os sérvios, tanto os que alinharam com os partisans como os monárquicos. Os croatas e os muçulmanos estiveram do lado errado da história, engrossando as fileiras da Wehrmacht e das SS com unidades próprias. Milhares de judeus morreram às mãos dos croatas em campos de concentração na Croácia.

Ambos os presidentes Tudman (croata) e Izetbegović (muçulmano bósnio) tinham escrito livros onde expressavam ideias muito inconvenientes e inapropriadas. O primeiro defendia, com grande convicção, ideias antissemitas e racistas, enquanto o segundo defendia, como objetivo último da sua ação política, a criação de um Estado islâmico fundamentalista. As questões ideológicas não foram impedimento para o Ocidente se colocar do lado dos croatas e dos muçulmanos na guerra que dilacerou o país, entre 1992 e 1995.

Perante cartões de visita tão inapresentáveis, como dizia o responsável da empresa de RP, havia todas as razões para que intelectuais e organizações judaicas fossem hostis, tanto a croatas como a muçulmanos. “O nosso desafio [da empresa de RP] era reverter esta atitude. E nós fizemos isso magistralmente. Foi um tremendo golpe”. E foi mesmo. Conseguiram colocar as opiniões públicas ocidentais contra os supostos sérvios nazis. É para isto que servem as empresas de Relações Públicas. Limpar imagens, alterar perceções. Foi dinheiro bem empregue!

Apesar do Tribunal de Haia ter, em 2016, ilibado Milosevic da responsabilidade pelos crimes de que foi acusado, ficou para a história como o “carniceiro dos Balcãs”. O mal já estava feito, pouco ou nada serviu a “retificação.” A verdade histórica apurada a posteriori não produz efeitos retroativos. Não faz breaking news» [3].  

3. Slobodan Milošević

Convém saber ‒ para compreender plenamente o último parágrafo supracitado ‒ que Slobodan Milošević, presidente da Sérvia (1989-1997) e da República Federal da Jugoslávia (1997-2000), foi extraditado, em 22 de Junho de 2001, para Haia, onde foi encarcerado na Unidade de Detenção do Tribunal Penal Internacional para a (ex-)Jugoslávia (TPIJ), também conhecida como o “Haia Hilton”. 

Slobodan Milošević (1941-2006). Foto: Lara Joseph.Quotesgram.com.

Começou depois a ser julgado pelo TPIJ, onde respondia por mais de 60 acusações de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio devido ao seu alegado protagonismo no decurso da desintegração da Jugoslávia ― um processo longo, muito violento e atribulado que incluiu: (i) a intervenção militar da OTAN na Bósnia e Herzegovina em 1993-1995; (ii) a intervenção militar da OTAN na República Federal da Jugoslávia (RFJ) em 1999 (sem que nenhum Estado-membro da OTAN tivesse sido atacado pela Sérvia ou pela RFJ); (iii) as guerras que assolaram a Croácia (1991-1995); (iv) a Bósnia e Herzegovina (1992-1995); e (v) o Kosovo (1998-1999), culminando (vi) na declaração de independência do Kosovo em 2008 [4].

  Abril de 1999. As forças da OTAN destroem a Ponte da Liberdade na cidade de Novi Sad, na província de Vojvodia, Sérvia. Foto:Balkan Transational Justice.

    

Milošević acabaria por morrer no Haia Hilton, em 2006, de enfarte de miocárdio. Ao contrário do que sucedeu com Navalny, nenhum governo do “Ocidente alargado” duvidou um instante da certidão de óbito dos médicos-legistas ao serviço da prisão do Tribunal de Haia. 

Dez anos depois, em 2016, o TPIJ acabaria por, envergonhadamente,  ilibar Milošević de todas as acusações [5], uma decisão que o sistema mediático dominante da comunicação social do “Ocidente alargado” nunca se dignou sequer noticiar...Longe iam os tempos em que o mesmo sistema se empenhava esforçadamente por apresentar Milošević como o odioso “carniceiro dos Balcãs”(!!)

 Uma cela da prisão do Tribunal Penal Internacional, conhecida chistosamente como “Haia Hilton”. Foi aqui que Milošević esteve encarcerado 5 anos e onde morreu. Foto: Público

    

4. O depoimento de Joaquim Camacho

«A propósito das vigarices merdiáticas no desmembramento da Jugoslávia, vou contar-vos uma história. Quando a tropa independentista croata combatia o ainda exército jugoslavo, nessa altura já maioritariamente composto por sérvios, porque os outros se passavam automaticamente para o lado independentista, um noticiário da RTP mostrou a seguinte cena, filmada na praça de uma povoação, tudo indica que a partir de um primeiro ou segundo andar de um prédio da dita praça: militares croatas armados até aos dentes rodeavam e agrediam barbaramente, a murro e pontapé, soldados sérvios do exército jugoslavo feitos prisioneiros, obviamente desarmados, entre eles uma mulher-soldado. Que os agressores eram militares croatas sei-o porque a RTP o disse na peça. E pela mesma peça fiquei a saber que os agredidos eram soldados sérvios do exército jugoslavo. Pouco subliminarmente, porém, ou seja, sem qualquer ambiguidade, a mesmíssima RTP “explicava-nos” que as agressões mais não eram, afinal, do que “represálias” por maldades antes cometidas pelos agredidos, implicitamente bem merecidas. Que maldades merecedoras de tão bárbaras “represálias” tinham os sérvios feito, isso não nos disse a bendita “peça” da RTP, mas sendo os sérvios, oficialmente, os únicos maus da fita, só não digo que estava meio caminho andado para convencer os crentes (como no Euromilhões) porque na verdade o caminho estava todo feito.

Alguns meses depois, continuando os sérvios com o exclusivo de maus da fita oficiais, e estando a guerra de desmembramento da Jugoslávia já então assanhadíssima no Kosovo, um noticiário da RTP-2 indignava-se e indignava-nos com as maldades infligidas pelos demónios sérvios aos pobres kosovares albaneses, esses conhecidos e ternurentos escuteiros. Como não podia deixar de ser, a peça da RTP ilustrava as ditas maldades com elucidativas imagens. E que imagens eram essas? As mesmíssimas que a mesmíssima RTP nos mostrara meses antes, de prisioneiros sérvios a levar porrada de militares croatas, seus captores. Saída, porém, da competentíssima Divisão de Alquimia da RTP, explicava-nos agora a bendita “peça” que os agressores eram energúmenos sérvios e os agredidos pobres kosovares muçulmanos, desgraçadas vítimas inocentes dos demónios oficiais.

Não é difícil imaginar a cena. Diz um lacaio merdiático para o outro: “Eh pá, arranja-me aí umas imagens para ilustrar uma peça que refere agressões bárbaras de demónios sérvios a escuteiros kosovares muçulmanos.” Responde o outro: “Meu, só tenho imagens antigas de prisioneiros sérvios a levar porrada de militares croatas. Serve?” Responde o primeiro: “Claro que serve. O pagode é estúpido e ignorante [além de sereno] e não dá por nada. Para quem é bacalhau basta e o patrão não se esquecerá de nos recompensar a criatividade e capacidade de desenrascanço.”

Genial, não é?» [6]

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Notas e Referências

[1] Cf. José Catarino Soares, «As lágrimas de crocodilo da “Ocidente alargado” por Alexei Navalny». In Tertúlia Orwelliana [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2024/02/as-lagrimas-de-crocodilo-dos.html] e Estátua de Sal [https://estatuadesal.com/2024/02/20/as-lagrimas-de-crocodilo-dos-dignitarios-do-ocidente-alargado-por-alexei-navalny/];«O alarido internacional sobre a morte de Alexei Navalny: cui bono?». In Tertúlia Orwelliana [https:// tertuliaorwelliana.blogspot.com/2024/02/o-alarido-internacional-sobre-morte-de.html] e Estátua de Sal [https://estatuadesal.com/2024/02/25/tertulia-orwelliana/]; Carlos Branco, «O estranho caso do dr. e do sr. Navalny». In Jornal Económico [https://jornal economico.sapo. pt/noticias/o-estranho-caso-do-dr-e-do-sr-navalny/] e Estátua de Sal [https://estatuadesal. com/2024/02/22/o-estranho-caso-do-dr-e-do-sr-navalny/].

[2] Ocidente alargado” é uma expressão cara a Zbigniew Brzezinski (1928-2017) ‒ um dos mais cínicos ideólogos da supremacia dos EUA sobre todos os outros países do mundo ‒ que a empregava para designar o conjunto formado pelos EUA e os seus aliados/clientes na América do Norte [Canadá], Europa [os Estados-membros da OTAN e da UE], Ásia [Japão, Coreia do Sul] e Australásia [Austrália e Nova Zelândia]. Emprego aqui a palavra “clientes” num sentido afim daquele que tinha na Roma antiga. Os clientes constituiam uma classe constituída por plebeus, escravos libertos, estrangeiros ou filhos ilegítimos que se associavam, de forma subalterna, aos patrícios, a classe romana superior, prestando-lhes diversos serviços em troca de auxílio económico e protecção social e militar.

[3] Carlos Branco, “Com papas e bolos…”. In Jornal Económico [https://jornaleconomico. sapo.pt/noticias/com-papas-e-bolos/]; e Estátua de Sal [https://estatuadesal.com/2024/03/ 04/com-papas-e-bolos/].

[4] Sobre este assunto, ver o excelente estudo do major-general Raul Cunha (que conheceu de perto e em primeira mão a situação que analisa), Kosovo — a incoerência de uma independência inédita (2019), Edições Colibri, Lisboa.

[5] Envergonhadamente porque as considerações que ilibam Milošević constam de um relatório do TIPJ de 2590 páginas, sobre Radovan Karadžić, ex-político sérvio, condenado a 40 anos de prisão em Março de 2016 por causa do sucedido em Srebrenica. A ilibição de Milošević não mereceu qualquer declaração ou conferência de imprensa por parte do Tribunal. Foi graças ao jornalista Andy Wilcoxson que este relatório passou a ser conhecido. (cf. “Tribunal de Haia iliba Milošević”. Abril Abril, 10 de Agosto de 2016).

[6] Joaquim Camacho, in Estátua de Sal, 5 de Março de 2024.

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