Temas 2 e 3
Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 sob o signo do niilismo neoliberal:
(II) a
negação da diferenciação sexual pelo Comité Olímpico InternacionaI
José Catarino Soares
1. Lembrete e introdução
Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 já pertencem ao passado.
Mas as trapaças de que foram palco não devem ser esquecidas e os ensinamentos
que delas se podem colher não devem ficar no tinteiro. (São demasiadamente
importantes para o futuro do desporto e da própria sanidade mental para deixarmos
que isso aconteça). Este artigo em série (I, II, …) é um contributo para essa
dupla tarefa.
Jogos Olímpicos de Paris 2024. Imagem gerada por IA (inteligência artificial). Concebida por Freepik. |
A sua primeira parte, Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 sob o signo do niilismo neoliberal (I) [que pode ser lida aqui:
https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2024/08/os-jogos-olimpicos-de-paris-2024-sob-o.html],
analisou a usurpação do olimpismo
pelo Comité Olímpico Internacional (COI) — um processo que se desenvolve há 40
anos.
A continuação do artigo analisará outra faceta reveladora
do niilismo neoliberal que impregna o modo de actuação do Comité Olímpico
Internacional e que impregnou o modo de actuação do Comité de Organização dos
Jogos Olímpicos de Paris 2024 (JOP 2024). Essa faceta niilista neoliberal
manifestou-se com grande vigor nos dois eventos do JOP 2024 que, não por acaso,
causaram maior controvérsia: o campeonato olímpico de boxe feminino de 66 kg e
a cerimónia de abertura desses Jogos.
A articulação mais forte entre esses dois eventos
aparentemente tão díspares é a da negação da realidade biológica do
sexo e da diferenciação sexual. Será essa articulação, por conseguinte, que
constituirá o fio condutor da análise desses eventos. Teremos, no entanto, de
proceder por partes, porque há muito matagal ideológico a desbastar e remover para
conseguirmos ter uma vista desafogada sobre esses eventos.
Para não alongar demasiado o tempo de leitura e evitar,
porventura, que se torne indigesta, vou dividir a continuação do artigo em cinco
partes sensivelmente do mesmo tamanho, 10-12 páginas, a publicar em dias
diferentes. Assim sendo, os assuntos que eu tinha julgado, inicialmente, poder
tratar em duas partes, vão exigir seis partes para esse efeito: esta (a
segunda) e mais quatro que se lhe seguirão.
2.
A diferenciação sexual como critério fundacional dos Jogos Olímpicos
Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 (tal como sucedeu em muitas edições anteriores dos Jogos Olímpicos) estão organizados em seis categorias distintas e estanques de modalidades e provas segundo o sexo dos participantes:
― (A) modalidades “comuns de dois”, mas cujas provas são exclusivamente acessíveis
a mulheres (e.g. natação, esgrima, atletismo);
― (B) modalidades “comuns de dois”, mas cujas provas são exclusivamente acessíveis
a homens (e.g. natação, esgrima, atletismo);
― (C) modalidades
exclusivamente femininas (ginástica rítmica, natação
artística, softbol);
― (D) modalidades exclusivamente masculinas (luta
greco-romana, pistola de velocidade a 25 metros, basebol);
― (E) modalidades “comuns
de dois”, mas cujas provas são também realizadas por pares mistos, ou
equipas mistas ⎼ ou seja, realizadas através da cooperação de atletas de
ambos os sexos ⎼ que se opõem umas às outras, a saber:
(E.1) ténis: pares
mistos; (E.2) ténis de mesa: pares mistos; (E.3) badmington:
pares mistos; (E.4) ginástica acrobática: par misto; (E.5) tiro
com arco: par misto; (E.6) natação 4x100 m estilos: quarteto misto; (E.7)
estafetas 4x400 m: quarteto misto; (E.8) maratona de marcha atlética de
estafeta mista; (E.9) judo: sexteto misto; (E.10) tiro desportivo
com carabina de ar comprimido a 10 m: par misto; (E.11) tiro desportivo
com pistola de ar comprimido a 10 m: par misto; (E.12) fosso olímpico [tiro
aos pratos com arma de caça]: par misto; (E.13) triatlo: estafeta mista; (E.14) vela multicasco (Nacra
17): par misto; (E.15) vela 470: par misto; (E.16) patinagem artística no gelo:
par misto; (E.17) dança no gelo: par misto.
― (F) modalidades “sobrecomuns”, aquelas em que homens e mulheres competem uns com os outros sem distinção de sexo em todas as provas (hipismo) [1].
Como se constata, sem esta classificação de base
sexual os Jogos Olímpicos desmoronar-se-iam na sua forma actual.
Suponhamos, então, que ela deixava de existir. Isso
equivale a dizer que as categorias (A), (B), (C), (D),
(E), desapareciam e que todas as modalidades, quer individuais quer
supra-individuais, passavam a ser sobrecomuns, como é a única modalidade da
categoria (F).
Qual seria então o resultado? Julgo que, nessas
condições, os Jogos Olímpicos passariam a ser, na prática (embora não
nas palavras), jogos unissexuais, como eram os Jogos Olímpicos da Grécia antiga
— ou seja, seriam completamente dominados por atletas de sexo masculino em
todas as modalidades de todas as categorias, com algumas excepções (hipismo, ginástica
rítmica, natação artística, patinagem artística no gelo e, pelo menos, em
algumas subcategorias do tiro desportivo).
Porquê?
3.
A necessidade de uma classificação de base sexual dos desportos olímpicos
Antes de responder a esta pergunta, recordemos o lema do
Jogos Olímpicos modernos proposto por Pierre de Coubertin: citius, altius, fortius [“mais rápido, mais alto,
mais forte”].
Ora, sucede que os homens correm 10% mais depressa do que
as mulheres, saltam 20% mais alto, lançam bolas 50% mais longe e levantam pesos
65% mais pesados. Os ombros mais largos
e a maior massa da parte superior do corpo masculino significam que os homens
são quase duas vezes mais fortes do que as mulheres nas costas e nos ombros e
que podem executar um movimento semelhante a um murro 2,5 vezes mais forte do
que as mulheres [3] — uma grande vantagem no pugilismo, à qual
regressaremos na quarta (ou na quinta) parte deste artigo.
Outro exemplo: a maior estatura, as mãos mais largas e os
dedos mais compridos dos homens permitem que a bola de basquetebol seja mais
facilmente agarrada com a palma da mão durante um afundanço, um movimento
rotineiro em todos os jogadores gigantes do sexo masculino da NBA [National
Basket Association] dos EUA, mas que muito poucas jogadoras de basquetebol conseguem
executar.
As muitas e grandes diferenças físicas entre homens e
mulheres acentuam-se drasticamente na puberdade.
«A puberdade masculina é responsável tanto pela formação do caçador-guerreiro [de outrora] como pela formação do velocista da corrida dos 100 metros em menos de 10 segundos — uma proeza realizada por mais de 150 homens nos tempos modernos, mas por nenhuma mulher, até à data. O que é que leva ao desenvolvimento da vantagem atlética masculina na puberdade? As hormonas: especificamente, a testosterona.
Esta é a hormona que “faz homem”, a hormona
que “faz altura” e que “faz músculo”. Na puberdade, os homens têm níveis de
testosterona até 20 vezes superiores aos das mulheres, que orientam o
desenvolvimento, durante a adolescência, das características sexuais
secundárias masculinas, as quais, no contexto do desporto, são traduzidas em
vantagens atléticas masculinas.
Mas a vantagem dos machos humanos sobre as
fêmeas humanas não se limita às diferenças físicas e funcionais conferidas pela
morfologia, forma e tamanho masculinos. Mais obviamente, as atletas do sexo
feminino têm de lidar com os efeitos do ciclo menstrual e com os efeitos
cíclicos das hormonas na capacidade de treino e desempenho. Sabe-se que o ciclo
menstrual afecta a função cardiovascular, respiratória, cerebral, a resposta a
ajudas ergogénicas, a ortopedia e os parâmetros metabólicos, e que representa
uma barreira à capacidade atlética que não é sentida pelos homens.
Além disso, a susceptibilidade a lesões difere
entre homens e mulheres, com o consequente impacto no tempo de treino. A
investigação emergente mostra que, em comparação com os homens, as jogadoras de
râguebi parecem ser mais susceptíveis a lesões concussivas, com resultados mais
graves. Este facto tem sido atribuído a uma menor resistência ao impacto nos
seus músculos do pescoço e nas estruturas cerebrais mais delicadas. Estudos
sobre a fragilidade neuronal em células nervosas masculinas e femininas numa
placa de Petri descobriram que os neurónios femininos são mais facilmente danificados por lesões por estiramento» [4].
Por todas estas razões, fica claro que não existe o perigo (ou é puramente residual) de alguém do sexo feminino se fazer passar fraudulentamente como sendo do sexo masculino a fim de poder participar em modalidades das categorias (B) e (D), ou de se infiltrar, sob essa falsa identidade sexual, nas modalidades que são subcategorias da categoria (E). Porquê? Pela boa e simples razão que isso seria aumentar exponencialmente as suas possibilidades individuais de derrota, ou de derrota do par misto/equipa mista em que participasse. E ninguém concorre aos Jogos Olímpicos com o objectivo de perder…
Não se pode dizer o mesmo da possibilidade de um atleta
do sexo masculino se fazer passar fraudulentamente (ou até inadvertidamente,
como veremos no 5.º artigo desta série) como sendo do sexo feminino a fim de
poder participar em modalidades das categorias (A) e (C) (neste
último caso, pelo menos na modalidade de softbol), ou de se infiltrar,
sob essa falsa identidade sexual, nas modalidades que são subcategorias da
categoria (E). Pelo contrário, o perigo de isso poder acontecer é muito
grande, pela boa e simples razão de que isso aumentaria exponencialmente as
possibilidades individuais de vitória dos impostores, ou de vitórias dos pares
mistos/equipas mista em que os impostores participassem.
Daqui se seguem duas implicações lógicas, que vou
identificar com letras gregas, α e β, para facilitar a sua
referenciação futura:
— α) A necessidade imperiosa de proteger os
atletas do sexo feminino da concorrência desleal de impostores do sexo
masculino nas modalidades das categorias (A), (C) e (E).
— β) A
responsabilidade que cabe aos órgãos constituintes do Movimento Olímpico ⎼ e, em primeiro lugar, à sua instância máxima, o Comité
Olímpico Internacional (COI) ⎼ de assegurar,
através de regras e medidas adequadas, a protecção α devida aos atletas do
sexo feminino.
4.
O COI abdicou da sua responsabilidade de proteger os atletas do sexo feminino
Acontece, porém, que o COI é pródigo em declarações a
favor de α, sem, contudo, mexer uma palha para concretizar β.
Pelo contrário, tudo faz, há 25 anos, para tornar β letra morta.
Não foi sempre assim. Sob a presidência de Avery Brundage
(1952-1972), o último grande defensor do desporto amador no movimento olímpico,
e a partir da preparação dos Jogos Olímpicos de Helsínquia (1952), o COI passou
a solicitar que as atletas olímpicas apresentassem uma declaração juramentada,
assinada por um médico, atestando que eram mulheres. No entanto, a preocupação
de que alguns atletas ou médicos sem escrúpulos pudessem utilizar ou passar documentos
fraudulentos levou à realização de um exame visual, um requisito que acabou por
se tornar a norma, a partir de 1966.
Nesse ano, na preparação do Campeonato Europeu de
Atletismo, a Federação Internacional de Atletismo Amador (mais conhecida por
IAAF [International Amateur Athletic Federation]), introduziu um teste de
elegibilidade para todas as mulheres que competiam nas provas de atletismo das
categorias (A) e (E). As concorrentes tinham de dar alguns
passos, nuas, perante um júri constituído por um painel de 3 médicas (os
chamados “desfiles nus”) e/ou submeter-se a exames ginecológicos em caso de
dúvida por parte do júri. As atletas consideradas pelo júri como tendo uma
anatomia reprodutiva feminina típica eram elegíveis para competir. As demais
eram eliminadas [5].
A partir de 1967, os desfiles nus perante um júri de
médicas foram eliminados em benefício de um método mais expedito, além de estar
isento de qualquer alegada ofensa ao pudor feminino. De 1968 a 1998, durante 30 anos, todas as mulheres que competiam nos Jogos Olímpicos, em todas
as modalidades de todas as categorias (A), (C), e (E), tinham
de fazer um teste cromossómico realizado por um laboratório acreditado pelo
COI. Esse teste destinava-se a verificar, pela presença ou não do cromossoma Y
(característico dos indivíduos do sexo masculino, cariótipo 46, XY), se
a atleta estaria ou não a trapacear o sistema.
Sabemos que foram testadas 11.370 mulheres apuradas para
5 edições dos Jogos Olímpicos: Munique (1972), Montreal (1976), Los Angeles
(1984), Barcelona (1992), Atlanta (1996). Durante esse período, as 27 concorrentes
que foram consideradas anormais do ponto de vista cromossómico foram
aconselhadas a retirar-se discretamente, a menos que concordassem em
submeter-se a exames clínicos e ginecológicos de acompanhamento para decidir se
deveriam ser proibidas definitivamente de concorrer aos Jogos Olímpicos, ou se
lhes deveria ser concedida a elegibilidade olímpica [6]. Às concorrentes que
superavam o teste de verificação sexual era entregue um cartão que comprovava que
eram do sexo feminino. As atletas tinham de trazer sempre esse cartão consigo
se quisessem competir.
A fiabilidade dos testes de verificação sexual evoluiu
com o progresso da biologia molecular, da genética, da genómica e da
biotecnologia. Os primeiros testes cromossómicos de verificação sexual eram
testes da cromatina sexual extraída das células bucais com uma espátula [7]. O corpúsculo
de Barr, ou cromatina sexual, é encontrado em indivíduos do sexo feminino (cariótipo
46, XX) — ou seja, que têm duas cópias do cromossoma X, uma das quais é inactivada
durante o processo de desenvolvimento do embrião e reduzida a um corpúsculo, o sobredito
corpúsculo de Barr. Nos indivíduos masculinos da espécie humana (cariótipo
46, XY) ⎼ ou seja, que têm um cromossoma X e um Y ⎼, não há, em princípio, corpúsculo de Barr.
No entanto, é necessário acrescentar que a sensibilidade e a exactidão do teste de cromatina sexual varia em função de vários parâmetros [8]. Ulteriormente, os diagnósticos de cromatina sexual foram substituídos por um tipo de teste mais aperfeiçoado: o diagnóstico do gene RYS [SRY no acrónimo inglês], um gene exclusivo dos indivíduos do sexo masculino e situado no cromossoma Y.
O teste consiste em produzir (e ampliar em muitas ordens
de grandeza) milhões de cópias de uma amostra de ADN (que é extraído por
raspagem de células bucais nucleadas) através de uma reacção química denominada
“amplificação por reacção em cadeia da polimerase (RCP)”
e em analisar a amostra de RCP [PCR na sigla inglesa] por eletroforese em gel.
A presença no gel de uma banda de ADN correspondente ao RYS determinava a
desqualificação do atleta para competir em provas femininas. A última vez que
este teste de verificação sexual foi realizado foi em 1996. A partir
dessa data, este teste de verificação sexual foi abandonado pelo COI e nada o
veio substituir entretanto.
A justificação para essa drástica mudança de atitude
foram
— (i) a surpresa causada pelos resultados
invulgares dos testes de verificação sexual que surgiam em atletas presumidamente
do sexo feminino, mas com anomalias de
diferenciação sexual (ADS) ⎼ ou, em inglês, DSD (“Disorders of Sexual Development”) ⎼ que as revelavam como sendo de facto, geneticamente, do
sexo masculino;
— (ii) o traumatismo psicológico que o resultado desses testes podia provocar nessas atletas naqueles casos em que “elas” próprias não suspeitavam da sua real identidade genotípica, e
— (iii) a crença, então prevalecente, de que um cariótipo
ADS XY masculino numa “mulher” provavelmente não tinha importância no
desporto feminino, no sentido de não conferir uma vantagem fisiológica e física
indevida ao seu detentor.
Presumo que seja óbvia a fraqueza destes argumentos para
justificar a decisão de eliminar qualquer teste de verificação sexual nas
modalidades das categorias (A), (C) e (E). A verdade, por
muito amarga que seja, não deve ser varrida para debaixo do tapete para dar lugar a
um mundo do faz-de-conta. Presumo, portanto, que será também óbvio que a única
função útil dos argumentos (i), (ii) e (iii) é a de
funcionarem como outros tantos biombos para ocultar a dura realidade: a
renúncia do COI em continuar a assumir a responsabilidade β.
A prova mais evidente dessa renúncia foi a decisão do
COI, em 2004, de permitir a participação de indivíduos impropriamente chamados
“mulheres transexuais” ou “mulheres transgénero” nas categorias (A), (C)
e (E) mediante três condições:
(a) Os atletas assim
designados deveriam ter sido submetidos a uma cirurgia de “mudança de sexo” [mas é impossível mudar de sexo,
como veremos no próximo artigo desta série], incluindo alterações dos órgãos
genitais externos e uma gonadectomia [castração cirúrgica];
(b) Os atletas assim
designados devem demonstrar o reconhecimento legal do seu “género” [um conceito tudo menos claro, que examinaremos
no 4.º artigo desta série];
(c) Os atletas assim
designados deveriam ter sido submetidos a “terapia
hormonal” durante um período de tempo adequado antes da participação,
sendo o período sugerido de dois anos.
Em 2015, o COI modificou estas diretrizes, abolindo a condição (a); exigindo que a declaração de “género” da condição (b) não fosse alterada durante quatro anos; e modificando a condição (c) do seguinte modo: a “mulher trans” teria de demonstrar ter um nível de testosterona inferior a 10 nanomoles por litro durante, pelo menos, um ano antes da competição e durante todo o período de elegibilidade. Na mesma ocasião, os atletas que tivessem completado a “transição” (?!) de “mulher” para “homem” foram autorizados a competir sem restrições.
Estas diretrizes estiveram em vigor nos Jogos Olímpicos
do Rio de Janeiro em 2016, embora, que se saiba, nenhum atleta abertamente “transgénero” tenha competido. Mas nos Jogos Olímpicos
de Tóquio de 2020-2021, o COI autorizou uma “mulher
trans”, Laurel Hubbard, a competir no levantamento de peso.
As últimas diretrizes (2023) do COI [9] vão
ainda mais longe na abdicação da responsabilidade de proteger as mulheres da
concorrência desleal de homens que se apresentam (com intenção dolosa ou não)
como mulheres.
Fazem-no ao renunciar a qualquer teste de verificação do
sexo das concorrentes às modalidades das categorias (A), (C) e (E)
e ao omitir completamente os conceitos biológicos fundamentais de sexo, diferenciação
sexual e dimorfismo sexual dos seres humanos (que nunca são mencionados nos seus
documentos oficiais, incluindo as suas diretrizes), em proveito dos conceitos
de “género”, “identidade
de género” e “igualdade de género”.
5.
Antevisão das partes seguintes deste artigo
A parte III deste artigo será dedicada à elucidação dos
conceitos biológicos fundamentais de sexo, diferenciação
sexual e dimorfismo sexual
que o COI baniu desde 2004 do seu ideário e da sua prática, mas que são a base
indispensável para garantir a igualdade de oportunidades aos homens e mulheres
nos Jogos Olímpicos, nos Jogos Paraolímpicos e, de um modo geral, em todas a
competições desportivas.
A parte IV, por sua vez, apoiar-se-á nesses resultados
para escalpelizar os conceitos de “género”,
“identidade de género” e “igualdade de género” que o COI perfilhou em
detrimento dos conceitos supramencionados. Mostrarei que esses conceitos não são
apenas obscuros e difusos. São também supérfluos e, de facto, contraproducentes
para a tarefa de organizar as provas dos Jogos Olímpicos, dos Jogos Paraolímpicos
e de outros eventos desportivos de índole semelhante (campeonatos nacionais,
campeonatos continentais, campeonatos mundiais das diferentes modalidades
desportivas) de modo a garantir a igualdade de oportunidades para mulheres e
homens.
As partes V e VI examinarão, à luz das aquisições das partes
anteriores, os dois eventos mais controversos do JOP 2024: respectivamente, as
provas de boxe feminino de 66 kg e a cerimónia de abertura desses Jogos.
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P.S. [5 Agosto 2024] Parti o braço direito numa queda estúpida há 8 dias. Como não vou poder escrever nas próximas 5-6 semanas, vejo-me obrigado a interromper a continuação deste artigo (que terá mais 4 partes) por igual período de tempo. Por este motivo, apresento as minhas desculpas aos leitores.
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Notas
e Referências
[1] Os termos que empreguei entre
aspas (“comum de dois” e “sobrecomum”) foram tomados de empréstimo à Gramática
Filosófica da Língua Portuguesa, de Jerónimo Soares Barbosa (Academia Real
da Ciência, 1830, 2.ª edição), p.127.
[2] Teoricamente, isso também deveria ser o caso na vela [/ “iatismo” para os brasileiros, até 2000], como, de facto, já foi. Porém, na prática, o que sucede é que as diferenças físicas dão vantagem atlética (não necessariamente técnica) aos homens, pelo menos em certas classes de barcos à vela, apesar dos barcos serem projectados para serem cada vez menores e mais leves. Houve oito classes de barcos à vela nos Jogos Olímpicos de 2024. Todas elas seguem regras rígidas, que determinam as medidas exactas para as velas e para o casco, o número de tripulantes e, em alguns casos, até o limite de peso dos atletas. «Existe um biótipo ideal para cada classe. Quanto maior a vela, mais pesado deve ser o atleta para fazer o contrapeso», explica o velejador brasileiro Tobin Grael, bicampeão olímpico [https://super.abril.com.br/mundo-estranho/qual-e-a-diferenca-entre-as-classes-do-iatismo]. Esta seria a razão pela qual as mulheres se inscrevem nas regatas comuns de dois exclusivamente reservadas para mulheres (modalidade A), ou em equipas mistas (modalidade E).
A classe de veleiros Nacra 17 Foiling em competição no nono dia dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. Foto: Phil Walter, Getty Imagens. |
Curiosamente, o mesmo não se verifica na vela adaptada, uma modalidade dos Jogos Paraolímpicos com três classes de barcos e que é disputada em três categorias sobrecomuns de atletas — isto é, sem divisão por sexo. Assim, homens e mulheres competem juntos nas classes 2.4mr, Sonar e SKUD-18. A 2.4mr é individual, enquanto a Sonar leva três pessoas (que podem ser todas elas mulheres ou todas elas homens) e a SKUD-18 é composta por duplas mistas: um homem e uma mulher.
Outra
modalidade em que não é óbvia a necessidade de diferenciação das provas por
sexo é o tiro desportivo. Não sei se também aqui haverá um biótipo ideal consoante
o tipo de arma, a natureza (fixa ou móvel) dos alvos e a distância do alvo que
favoreça os atletas do sexo masculino. (Regressaremos a este assunto na parte 5 deste
artigo).
[3] Emma Hilton. “Sex Differences between Men
and Women and why they matter in sport”. Beetle Bomb. August 18, 2022.
[4] Ibidem
[5] Lindsay
Parks Pieper, Policing Womanhood: The International Olympic Committee, Sex Testing and
the Maintenance of Hetero-Femininity in Sport (2013). Doctoral
Dissertation, Ohio State University. USA.
[6] Louis J. Elsas
et al. “Gender verification of female athletes”. Genetics in
Medicine, July-August 2000. Vol.2. No 4.
[7] O esfregaço bucal é o método mais comum de colheita porque as células epiteliais
bucais podem ser colhidas facilmente de forma simples, económica, rápida e não invasiva. No entanto,
também podem ser recolhidas amostras da bainha da raiz do cabelo, sangue, osso,
tecido pulpar, saliva e sémen. Navdeep Kaur et al., “Buccal Barr Bodies: Accuracy and
Reliability in Sex Determination”. Saudi J. Oral.Dent. Res., Vol.2, Iss-7(Jul. 2017).
[8] Navdeep Kaur et al., op.cit.; R.
Amirthaa Priyadharscini & T.R. Sabarinath, “Barr bodies in sex
determination”. Journal of Forensic Dental Sciences. January-June 2013;
Vol. 5, Issue 1.
[9] Portrayal Guidelines. Gender-equal, fair and inclusive representation in sport. International Olympic Committee. 3rd edition. 2024. Actualmente, as posições do COI são designadas por “linhas orientadoras” ou “quadros de referência” porque a Carta Olímpica confere às federações desportivas internacionais (FDI), e não ao COI, a autoridade para estabelecer as regras de elegibilidade para os respectivos desportos. No entanto, como autoridade máxima do Movimento Olímpico, as posições políticas do COI são muito influentes ou mesmo determinantes, como veremos na 5.ª parte deste artigo.
Artigo excepcional, como é habitual.
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