Temas 2,3 e 4
Os
Jogos Olímpicos de Paris 2024
sob o signo do niilismo neoliberal:
(I) a usurpação do olimpismo
José Catarino Soares
Este artigo tem cinco ou seis partes (ainda não sei bem). A primeira parte, que começa mais abaixo, trata da usurpação do olimpismo pelos Jogos Olímpicos de Paris 2024 (JOP 2024), um processo que se desenvolve há 40 anos. As partes seguintes tratam de duas trapaças dos JOP 2024 (houve mais, mas não entram no âmbito desta série de artigos) que têm a ver com o pugilismo feminino e a cerimónia de abertura desses Jogos.
Como qualquer trapaça, para ter êxito, necessita de muita lábia, dei à espécie de lábia que foi empregue nas grandiosas trapaças dos JOP 2024 o nome de “niilismo neoliberal” — um termo que será devidamente elucidado na última parte (a quinta ou a sexta) do artigo.
1.
Jogos Olímpicos da Grécia antiga vs. Jogos Olímpicos de Paris 2024
Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 pouco se assemelham, para
além do nome, com os Jogos Olímpicos da Grécia antiga (séculos VIII a.C.-IV d.C.)
— uma celebração da excelência atlética masculina realizada em Olímpia, no Peloponeso,
que mais tarde evoluiu para uma competição atlética pacífica quadripolar (Olímpia,
Nemeia, Delfos, Corinto) entre os atletas de cidades gregas do Peloponeso, da Grécia
continental e insular, da Itália, do Norte de África e da Ásia Menor, denominada
Jogos Pan-Helénicos (do século VI a.C. em diante) pelos seus participantes e
organizadores.
A principal diferença dos Jogos Olímpicos da Grécia antiga relativamente aos Jogos Olímpicos de Paris 2024 é esta: durante a sua realização, de quatro em quatro anos, era declarada uma “trégua sagrada” (gr. ekecheiria, que significava “depor as armas”) que proibia a guerra entre as cidades gregas e que tinha o propósito de proteger os espectadores, atletas, treinadores e juízes/árbitros das provas atléticas durante o período inteiro que começava pela sua vinda aos Jogos Olímpicos, continuava com a sua estadia durante o desenrolar das provas e terminava com o seu regresso a casa.
A segunda diferença importante é que os Jogos Olímpicos
da Grécia antiga estavam reservados quase exclusivamente a atletas do sexo
masculino. Acresce, como terceira diferença, que ninguém tinha dúvidas no que
respeita a distinguir um adulto do sexo masculino de um adulto do sexo feminino.
(Este é um assunto ao qual regressaremos na 4.ª parte deste artigo).
A quarta diferença é que esses jogos eram exclusivamente
constituídos por modalidades atléticas individuais, não por um misto de
modalidades individuais e de equipa.
As principais semelhanças entre os Jogos Olímpicos da Grécia
antiga e os Jogos Olímpicos de Paris 2024 são duas:
— 1) a preparação dos atletas em competição (muito prolongada
e exigente, em ambos os casos)
— 2) a motivação dos atletas em competição (competir pela glória atlética e por recompensas com alto valor monetário ou de grande prestígio, em ambos os casos).
No entanto, não deixa de ser digno de nota a extrema modéstia
⎼ relativamente aos padrões dos Jogos Olímpicos do século
em curso ⎼ da recompensa mais cobiçada pelos atletas gregos: uma
simples coroa de folhas (de oliveira, de loureiro, de pinheiro ou de aipo
selvagem) e uma fita de lã vermelha (a “taenia”, que era amarrada à cabeça)
para os vencedores (uma distinção reservada apenas para os primeiros lugares), além
de uma folha de palmeira que podiam segurar na mão [1].
2.
Jogos Olímpicos da era Coubertin vs. Jogos
Olímpicos de Paris 2024
Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 também têm poucas semelhanças
com a recriação do ideal olímpico grego por William Penny Brookes, Evángelos
Záppas e, sobretudo, no final do século XIX, por Pierre de Fredy (barão de
Coubertin), a que este deu o nome de “olimpismo”.
O olimpismo é um esforço concertado de «promoção da
paz universal» através de um campeonato reunindo «todos os desportos e todas as nações» (P. de
Coubertin, Discurso de 25 de Novembro de 1892; Carta Olímpica XXI, 17 de Maio
de 1921).
Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 estão a uma distância astronómica deste ideal [2].
Em 21 de Novembro de 2023, Tony Estanguet, presidente do Comité de Organização dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, apresentou, perante a Assembleia Geral da ONU, uma resolução intitulada “Por um mundo melhor e mais pacífico através do desporto e do ideal olímpico”, para defender o princípio da “trégua sagrada” de todas guerras que lavram por esse mundo fora durante a realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Paris 2024 — concretamente a partir do sétimo dia anterior ao início dos Jogos Olímpicos de Paris (26 de Julho a 11 de Agosto de 2024) e até ao sétimo dia seguinte ao final dos Jogos Paraolímpicos (28 de Agosto a 8 de Setembro) [3]. Essa iniciativa veio na sequência da resolução aprovada pela 77.ª sessão da Assembleia Geral da Nações Unidas de 1 de Dezembro de 2022, reconhecendo e apoiando a neutralidade política do Movimento Olímpico ⎼ nomeadamente a neutralidade política dos seus três principais constituintes (o Comité Olímpico Internacional, as Federações Desportivas Internacionais e os Comités Olímpicos Nacionais) ⎼ e a autonomia do desporto.
Seria pois natural que o Comité Olímpico Internacional (COI) actuasse em conformidade com essas duas resoluções. Mas o que o COI fez ⎼ para satisfazer as exigências do então presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky [4], e da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, entre outros ⎼ foi outra coisa, bem diferente: proibir os atletas da Rússia e da Bielorrússia de participarem nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, com a alegação de que os governos desses países estão envolvidos numa guerra na Ucrânia. A única maneira de os atletas desses dois países serem admitidos nos JOP 2024 seria, estipulou, (i) renegarem a sua nacionalidade, ou (ii) declararem publicamente a sua oposição ao governo do seu país na questão da guerra e (iii) não terem contratos com as Forças Armadas dos seus países [5]. Os atletas que preencham estas condições são rotulados, na Novilíngua do Comité Olímpico Internacional, “atletas individuais neutros”.
Thomas Bach, presidente do COI, cumprimenta Volodymyr Zelensky em Quieve. Foto: Comité Olímpico da Ucrânia. |
Mas tal proibição viola ostensiva e grosseiramente os parágrafos
5.º e 6.º do capítulo 2 da Carta Olímpica [missão e papel do Comité Olímpico
Internacional], que estipulam que este organismo deve «actuar
para o reforço do movimento olímpico, proteger a sua
independência, manter e promover a sua neutralidade política e preservar
a autonomia do desporto», assim como «opor-se a
qualquer forma de discriminação que afecte o Movimento olímpico».
[realce por meio de traço grosso acrescentado ao original]
Esta violação grosseira da Carta Olímpica foi feita sem qualquer oposição ou protesto (mas corrijam-me se eu estiver mal informado) do secretário-geral da ONU, da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), da Amnistia Internacional, da Human Rights Watch, da Federação Internacional dos Direitos Humanos, da EuroMedRights, da Coligação Informal para a Defesa do Estado de Direito [Netherlands Helsinki Committee], e de tantas outras entidades que se proclamam intransigentes defensoras da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nomeadamente no que respeita aos artigos seguintes:
«Artigo 1.º ‒ Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e
as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer
espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou
de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição.
Artigo 2.º ‒ Não será também feita nenhuma distinção
fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou
território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território
independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra
limitação de soberania.
Artigo 30.º ‒ Nenhuma disposição da presente
Declaração poder ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo
ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer acto
destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui
estabelecido» [realce por meio de traço
grosso acrescentado ao original].
Deste modo, foram ilegalmente afastados da competição nos
Jogos Olímpicos de Paris 2024 atletas que não cometeram nenhuma infracção
desportiva. E que atletas!
«Entre 1994 e 2020 os atletas russos
conquistaram 426 medalhas, 149 das quais de ouro, números que apenas são
ultrapassados por competidores dos Estados Unidos [que têm uma população duas vezes maior do que a da
Rússia, n.e.]. Um número relevante de troféus
olímpicos será assim distribuído este ano por desportistas que, em
circunstâncias normais, não os conquistariam. Isto significa viciação,
corrupção competitiva» [6]. [n.e.=
nota editorial]
Esta é Viyaleta Bardzilouskaya, atleta da Bielorrússia, que conquistou a medalha de prata da ginástica de trampolins nos Jogos Olímpicos de Paris 2024 (JOP 2024). Mas como o Comité Olímpico Nacional da Bielorrússia aceitou, ainda que a contragosto, que esta sua atleta concorresse como “atleta individual neutra”, Viyaleta compareceu no pódio sem a bandeira do seu país natal, por ter sido banido dos JOP 2024. Mais: se alguém for procurar o seu nome no quadro das medalhas presente no sítio electrónico oficial dos JOP 2024, não encontrará qualquer referência a Viyaleta Bardzilouskaya nem aos “atletas individuais neutros” medalhados. Foram duas vezes “apagados” (em inglês woke: “cancelled”) pelo Comité Olímpico Internacional: uma como cidadãos naturais de um país, outra como atletas vencedores. |
A melhor prova de que o Comité Olímpico Internacional (COI) é uma correia de transmissão de poderes ocultos reside no facto de não se preocupar sequer em disfarçar a sua falta de escrúpulos e de coerência. O seu presidente, Thomas Bach, está bem ciente da hipocrisia dos governos que o compeliram a excluir a Rússia e a Bielorrússia dos Jogos Olímpicos de Paris 2024.
«É deplorável ver que os governos não querem respeitar a vontade da maioria das partes interessadas no movimento olímpico ou a autonomia do desporto, e é deplorável ver que esses governos não abordam a questão dos dois pesos e duas medidas. Não vimos um único comentário sobre a sua atitude relativamente à participação de atletas de países envolvidos em mais de 70 guerras e conflitos armados em todo o mundo» [7].
O exemplo mais flagrante dessa duplicidade de critérios do COI e dos governos que lhe impõem a sua vontade é a participação nos Jogos Olímpicos de
Paris 2024 dos atletas de Israel, apesar de o governo de Israel levar a cabo
acções de guerra, genocídio e purga étnica contra o povo palestiniano desde há
75 anos, como sucede presentemente em Gaza e na Cisjordânia há 7 meses
consecutivos com uma violência inaudita.
3.
Os Jogos Olímpicos na era neoliberal
A esta duplicidade de critérios nos planos ético, político e estatutário, acresce a corrupção comercial. Desde os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, que o COI decidiu comercializar os símbolos dos Jogos Olímpicos: (i) o Símbolo Olímpico dos cinco aros interligados e de várias cores que representam os cinco continentes; (ii) a Bandeira Olímpica (com o símbolo olímpico sobre fundo branco); (iii) o Lema Olímpico ‒ “Citius-Altius-Fortius” [“mais rápido, mais alto, mais forte”] ‒ que Pierre de Coubertin pediu de empréstimo ao frade dominicano Henri Didon, seu amigo, para o converter no lema dos Jogos Olímpicos; (iv) o Hino Olímpico, composto por Spyridon Samaras, e (v) a Tocha olímpica, que foram, todos eles, transformados em marcas registadas.
Na verdade, toda a organização dos Jogos Olímpicos foi comercializada: os Jogos são financiados por cidades anfitriãs e pelos governos dos respectivos países, pelo que o COI não incorre em nenhum custo, mas controla todos os direitos relativos aos jogos e os lucros dos símbolos olímpicos. O COI tem os direitos de transmissão televisiva dos Jogos e os direitos de marketing e merchandising (p.ex., uma percentagem de todas as receitas de publicidade e patrocínio dos jogos e na venda de bilhetes para os seus eventos e de objectos de recordação dos Jogos Olímpicos).
O COI tem também um enorme poder negocial no planeamento
urbano e na construção de estádios e de outras instalações e equipamentos desportivos
necessários à realização dos Jogos; na restauração, hotelaria e alojamento
local (“Aldeia Olímpica”) dos atletas,
treinadores e outros membros das delegações nacionais; nos meios de transporte
e viagens turísticas suscitadas pela realização dos Jogos, etc. E tudo isto começou
em grande nos Jogos Olímpicos de 1984. «Em Los Angeles tudo estava à venda» [8].
Concomitantemente, a partir de 1988, o desporto amador,
tão prezado por Pierre de Coubertin como garante do olimpismo, foi relegado definitivamente
para um lugar residual.
«No entanto, o facto mais significativo, que
demonstra a introdução do profissionalismo nos Jogos, são os patrocínios
concedidos a atletas individuais. Estes patrocínios representam enormes somas
de dinheiro, especialmente quando o atleta não só ganha como também estabelece
um recorde mundial. Os patrocínios aos atletas introduziram uma concorrência
desleal nos Jogos, de tal forma que o conceito olímpico da lisura desportiva foi
posto em causa, e representam a forma mais extrema de comercialização dos Jogos
Olímpicos. /…/
É um fenómeno em constante evolução para
finalmente assumir o carácter de uma grande festa, com os inevitáveis
confrontos políticos, os enormes custos e os escândalos envolvendo atletas
dopados. A introdução do profissionalismo nos Jogos, a partir da década de
1980, e a inversão da ideologia do amadorismo, a perturbação das ideologias, o
desenvolvimento de percepções nacionalistas, a sobrevalorização da vitória e o
desprezo pela simples participação e, de um modo geral, o enfraquecimento dos
valores do espírito olímpico são, potencialmente, os maiores riscos que os
Jogos Olímpicos enfrentam.
No entanto, o maior risco é a “venda” dos
próprios atletas a empresas comerciais e a exploração comercial dos seus
desempenhos. A história mostra que, desde a introdução do profissionalismo nos
Jogos e a subsequente entrada de empresas comerciais no desporto, o número de
atletas que utilizam substâncias controladas se multiplicou, com as conhecidas
consequências para a sua saúde, bem como a contínua erosão dos ideais olímpicos»
[9].
Daí que não seja de modo nenhum surpreendente que este
processo de ultracomercialização neoliberal dos Jogos Olímpicos e dos atletas
que neles participam, que se desenvolve há 40 anos, tenha atingido um ponto
alto nos Jogos Olímpicos de Paris 2024. Deles se pode dizer que são
«um megafestival desportivo
internacional viciado sob os pontos de vista competitivo e ético muito antes de
iniciado; um acontecimento gigantesco com laivos de feira popular e de certame
comercial financiado e patrocinado pela rentável ostentação do poder
transnacional (e sem controlo) de velhos e novos-ricos para quem todo o mundo é
seu» [10].
Segundo uma reportagem da revista Forbes, que
contactou os Ministérios do Desporto e as delegações nacionais dos 206 países e
territórios presentes em Paris, 33 confirmaram que os atletas olímpicos recebem
um prémio monetário caso conquistem uma medalha (de ouro, prata ou bronze) durante
a competição [11].
Dentro deste grupo, 15 países oferecem um prémio superior
a 100 mil dólares americanos [91,2 mil euros]. Neste particular, o primeiro
lugar da classificação vai para Hong-Kong, que compete independentemente da
China e que oferece 768 mil dólares [700,7 mil euros] ao vencedor de uma
medalha de ouro. Destarte, a esgrimista Vivian Kong, que conquistou a terceira
medalha de ouro na história olímpica de Hong-Kong no Jogos Olímpico de Paris
2024, vai embolsar bem mais de meio milhão de euros. Contudo, a medalha de
prata conquistada por um atleta de Hong-Kong também é recompensada com 346,7
mil euros, uma quantia acima da que qualquer outro país oferece pela medalha de
ouro.
Israel ocupa o 2.º lugar dos países que
atribui prémios monetários com valores mais altos aos seus atletas olímpicos
medalhados, com o campeão olímpico a receber 251 mil euros pela medalha de ouro.
Segue-se a Sérvia, que atribui 200 mil euros ao atleta que ganhe uma medalha de
ouro.
A investigação da Forbes revelou também que nem todas
as recompensas olímpicas se cingem a prémios em dinheiro. A Polónia, além de um
prémio monetário de 74,8 mil euros, oferece a cada atleta medalhado um quadro
de artistas polacos “talentosos e respeitados”,
um diamante de investimento e um vale de férias para duas pessoas, oferecido
por uma agência de viagens. Os treinadores dos
atletas medalhados obtêm os mesmos prémios que os seus pupilos. Adicionalmente,
no ano em que se comemora o 100.º aniversário da sua primeira presença do
comité polaco nos Jogos Olímpicos, o país vai ainda oferecer um apartamento com
dois quartos em Varsóvia para os vencedores nos desportos individuais, ao passo
que os vencedores nas modalidades coletivas receberão um apartamento com um
quarto.
Não são só os Comités Olímpicos Nacionais, ou os governos
que os patrocinam, que oferecem prémios e outras recompensas de alto valor
monetário ou monetizável. As federações desportivas internacionais também o
fazem. Por exemplo, a Federação Internacional de Pugilismo (IBA no acrónimo
inglês) oferece um prémio de 100 mil dólares americanos (cerca de 91 mil euros)
ao vencedor de uma medalha de ouro, a ser distribuído pelo pugilista (50 mil
dólares), pela federação do respectivo país (25 mil dólares) e pelo treinador
do atleta (25 mil dólares).
Por último, mas não menos importante, cabe referir o
patrocínio das grandes marcas comerciais a atletas e equipas nacionais
participantes nos jogos. Por exemplo, a Adidas lançou estojos para as equipas
olímpicas que patrocina: Alemanha, Reino-Unido, Polónia, Bahrein, Cuba, Hungria
e Turquia. Os seus estojos incluem vestuário especialmente concebido para os
atletas que competem em cadeira de rodas.
«A Adidas e as suas congéneres
também estão interessadas em gerar um burburinho em torno dos Jogos junto da
Geração Z e dos consumidores adolescentes, um grupo demográfico fundamental
para o futuro destas empresas. /…/
“O que está em causa é o esbatimento das
linhas entre o que é moda e o que é desempenho, e o facto de as pessoas se
identificarem com os atletas como criadores de gostos nesse espaço”,
contextualiza Abbie Zvejnieks, analista de vestuário desportivo e de retalho na
Piper Sandler, em Nova Iorque» [12].
4.
A cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024
Todos os aspectos dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 referidos
nas três secções anteriores (russofobia, otanização [= alinhamento pelas
posições e decisões da OTAN] do COI, ultracomercialização das provas desportivas
e dos atletas, corrupção competitiva) se reflectiram de maneira
espectacular na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024.
Já foi dita muita coisa díspar sobre essa cerimónia. O veredicto
de António Guerreiro parece-me resumir bem o que aconteceu.
«A abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024
foi certamente a mais grandiosa manifestação Kitsch da história dos
espectáculos públicos» [13].
Aqui pretendo salientar a convergência ideológica entre a
usurpação neoliberal do olimpismo levada a cabo pelo Comité Olímpico
Internacional, presidido por Thomas Bach, e, em particular, pelo Comité de Organização
dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, presidido por Tony Estanguet, e a opção kitsch [14] do director artístico da sua
cerimónia de abertura, Thomas Jolly, seleccionado pelo dito Comité de
Organização. Mas esse é um assunto que ficará para a quinta parte deste artigo
a publicar oportunamente.
………………………………………………………………………………..........
P.S. [20-08-2024]. Alterei ligeiramente o primeiro e o último parágrafo deste texto de modo a reflectir a extensão que tomou, entretanto, o artigo subordinado ao título principal (antes do algarismo romano) e que me levou a dividi-lo em cinco (ou seis) partes. Inicialmente, julguei que teria duas.
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Notas e Referências
[1] Os vencedores dos Jogos Olímpicos da Grécia antiga recebiam com frequência, nas suas cidades-natais, brindes com um grande valor monetário — como, por exemplo, ânforas cheias de azeite, trípodes (grandes vasos com três pés) de bronze, escudos de bronze, taças de prata, refeições grátis para o resto da vida, pensões vitalícias ou mesmo prémios em dinheiro vivo. No entanto, nem todas as recompensas consistiam em benefícios materiais. Algumas consistiam simplesmente em brindes honoríficos, como, por exemplo, lugares especiais nos espectáculos de teatro ou uma entrada festiva e cerimonial na cidade-natal. Alguns atletas extraordinários eram, além disso, homenageados com estátuas, poemas ou inscrições lapidares.
[2] A este propósito, pode argumentar-se, como o faz Marc Perelman («Sportifs russes et biélorusses aux JO 2024: ‘Les Jeux Olympiques ont toujours été politiques’». Le Figaro, 14.04.2023) que o mesmo vale dizer relativamente ao COI da era de Pierre de Coubertin. Concedido. Contraponho, porém, que a distância entre o ideal olímpico de Coubertin e a realidade dos Jogos Olímpicos realizados sob a sua égide não era, como é hoje, “astronómica”.
[3] Recordemos que o Comité Olímpico Internacional (COI) tem, desde 2009, o estatuto de observador permanente na Assembleia Geral da ONU — o que lhe confere o direito de se envolver diretamente na Agenda da ONU, participar nas reuniões da Assembleia Geral da ONU e tomar a palavra nessa assembleia.
[4] Actualmente, Volodymyr Zelensky usurpa o
cargo de Presidente da Ucrânia. O seu mandato de cinco anos terminou em 21 de
Maio de 2024 e não há nenhuma disposição na Constituição da Ucrânia que permita
prolongá-lo. Por conseguinte, a sua legitimidade constitucional é, actualmente,
nula. Acresce que o senhor Zelensky não marcou eleições presidenciais nos
prazos previstos e não dá mostras sequer de o querer fazer tão cedo. Estes
factos são totalmente silenciados pelo sistema mediático dominante de
comunicação social do chamado “Ocidente alargado”. Imaginem, agora, o banzé que esse mesmo sistema mediático faria se Vladimir Putin procedesse da mesma forma na Rússia…
[5] A este propósito, Marc Perelman (op.cit.) perguntou, na altura, com pertinência: «Quem é que vai verificar todas estas condições? Quem é que pode acreditar em tais compromissos?»
[6] José Goulão,
“Requiem pelo Olimpismo”. Abril Abril, 29 Julho 2024.
[7] «Le CIO juge « déplorables » les pressions occidentales dans le dossier russe, dit son président». La Croix, 30.03. 2023; «Le CIO juge « déplorables » les pressions occidentales». La Presse, 30.03.2023.
[8] A. Tomlinson,“The commercialization of the Olympics: Cities,
corporations and the Olympic commodity”. In: Kevin Young and Kevin Wamsley,
(eds.). Global Olympics: Historical and Sociological Studies
of the Panagiota
Papanikolaou Modem Games. Oxford: Elsevier. 2006.
[9] Panagiota Papanikolaou, “The Spirit of the Olympics
vs. Commercial Success: A Critical Examination of the Strategic Position of the
Olympic Movement”. International Journal of Humanities and Social Science. Vol.
2 No. 23; December 2012.
[10] José Goulão, op.cit.
[11] “These
Countries Pay Olympians Six-Figure Bonuses for Winning Gold”. Forbes.
July 27, 2024.
[12] Helen Reid,
“In Olympics launch, Adidas seeks to broaden sport appeal”. Reuters. April 18,
2024.
[13] António
Guerreiro, “As Olimpíadas e as suas Máscaras”. Público, 02.08.2024; Estátua
de Sal, 03.08.2024.
[14] Há várias definições de kitsch.
As que prefiro, uma breve e uma longa, são as (i) de João Pais Machado e
(ii) Fritz Karpfen, respectivamente. (i) «O Kitsch
é uma arte da corrupção, da trapaça, da mentira, do faz-de-conta» (J.
Pais Machado, “Kitsch”. In Cardoso, J. L., Magalhães, P., Pais, J.M. (org), Portugal social
de A a Z: temas em aberto. Lisboa: Impresa Publishing, 2013). (ii)
O kitsch são
«futilidades baratas e desprovidas de gosto,
enfeitadas com atributos artísticos; presunção ridícula com chavões diletantes /…/; coisa que não quer dizer nada e nada exige ao pensamento;
adorno no convívio pacato do burguês à mesa do café; /…/ bluff que quer fazer bluff
ao coração e faz verter lágrimas como uma cebola; /…/ em suma, pechisbeque que especula com a alegria infantil por
aquilo que brilha» (F. Karpfen, Kitsch: Um estudo sobre a degenerescência da arte. tradução e introdução de João Tiago Proença. Lisboa: Antígona,
2017). O livro de Karpfen foi publicado originalmente em 1925.
Cometi um erro na numeração das notas (por ter omitido uma, agora com o número 7), que já corrigi. Pelo facto, peço desculpa aos leitores que já tenham lido o artigo.
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