Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

13 maio, 2025

 

PREÂMBULO À TRADUÇÃO DO ARTIGO

A história desconhecida do papel crucial das chefias militares inglesas na Ucrânia 

José Catarino Soares

O general Valery Zalujny (à esquerda) , à época chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Ucranianas, com o almirante Tony Radakin, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas do Reino Unido [Ingl. Chief of Defense Staff].

1. As duas fases principais da guerra em curso na Ucrânia

A guerra em curso na Ucrânia --- a 2.ª guerra, a que se seguiu  à que começou em Maio de 2014 entre a Ucrânia, de um lado, e a RPL + RPD, do outro --- teve até agora, política e militarmente, duas fases principais bem distintas. 

A primeira fase teve o seu início em 24 de Fevereiro de 2022, com a “Operação Militar Especial” (OME) desencadeada pela Rússia na Ucrânia, e o seu término na segunda semana de Abril de 2022. A segunda fase teve o seu início na terceira semana de Abril de 2022 e prolongou-se até aos nossos dias, sem fim à vista [1].

Durante a primeira fase, havia quatro beligerantes em liça: de um lado a Rússia, coadjuvada pela República Popular de Lugansk (RPL) e pela República Popular de Donetsk (RPD) na região da Donbass; do outro lado, a Ucrânia.

Estes dois lados chegaram a um acordo de paz no fim da última semana de Março de 2022, em Istambul, cujo teor tive ocasião de descrever em pormenor noutras ocasiões [2].

2. O ultimato de Boris Johnson

Porém, no dia 8 de Abril de 2022, Boris Johnson, à época primeiro-ministro do Reino Unido, fez uma visita-surpresa a Zelensky, em Quieve. Era o mensageiro portador, como noticiou na altura o jornal ucraniano Ukrainska Pravda, de uma proposta-ultimato previamente acordada entre o Reino Unido, EUA, Alemanha e França. Essa proposta-ultimato tinha, em substância, o seguinte, conteúdo:

«Putin não é confiável e a hora não é de negociações com a Rússia, mas de luta para a derrotar. Se a valente Ucrânia estiver disposta a fazê-lo, como esperamos, nós e connosco a OTAN [/NATO], a UE e todo o “Ocidente alargado” garantimos-lhe uma ajuda e um apoio totais (salvo em tropas no campo de batalha) e pelo tempo que for necessário.

Sr. Presidente Volodymyr Zelensky: se o governo da Ucrânia decidir ir por diante e celebrar com a Rússia o acordo de paz elaborado em Istambul de que tivemos conhecimento, recusando a generosa proposta que lhe acabo de fazer, então, sr. Presidente lamento ter de o dizer tão incerimoniosamente, mas as coisas são como são a Ucrânia ficará, doravante, por sua conta e risco».

3. O fim abrupto dos Acordos de Istambul e o massacre de Bucha

Sabemos qual foi o resultado da proposta-ultimato de Boris Johnson. Algures entre os dias 10 e 15 de Abril de 2022, seis semanas depois do início da OME da Rússia, a Ucrânia repudiou oficialmente o acordo de paz com a Rússia (muito vantajoso para a Ucrânia) que o chefe da sua delegação de negociadores, Davyd Arakhamia, tinha rubricado em Istambul, no início de Abril, em nome do presidente e do governo da Ucrânia, e empenhava-se numa guerra de alta intensidade com a Rússia (+ RPL + RPD) que perdura até aos nossos dias, com os efeitos calamitosos para a Ucrânia que todos conhecemos.

Para justificar este abrupto vira-face de 180.º aos olhos da opinião pública do “Ocidente alargado”, as tropas russas que tinham retirado em 30 de Março dos arredores de Quieve, num gesto de boa-vontade destinado a assinalar o resultado positivo das negociações de Paz de Istambul foram acusadas de terem perpetrado a matança de mais de 1700 civis em Bucha (uma das pequenas cidades próximas de Quieve onde as tropas russas tinham estado estacionadas). A partir dos primeiros dias de Abril de 2022, foi orquestrada uma campanha cerrada de desinformação destinada a apresentar os russos como monstros sanguinários, com os quais não é possível estabelecer qualquer acordo de paz e que seria necessário exterminar sem dó nem piedade [3].

Há uma dupla mistificação em torno desta matança, conhecida como o “Massacre de Bucha”. A primeira mistificação diz respeito ao número das suas vítimas, que são da ordem das dezenas, e não dos milhares, ou sequer das centenas. As centenas de civis que foram encontrados em valas comuns em Bucha foram vítimas colaterais dos violentos combates que tiveram lugar nesta cidade, durante cerca de um mês, entre as tropas russas e ucranianas, assim como dos bombardeamentos constantes de que a cidade de Bucha foi alvo por parte das tropas ucranianas enquanto esteve ocupada pelas tropas russas.  

A segunda mistificação diz respeito às dezenas de civis cujos corpos foram encontrados insepultados em ruas, quintais, poços e caves e que parecem ter sido assassinados à queima-roupa. Há muitos factos e indícios que apontam no sentido de atribuir a autoria dessa matança não às tropas russas que estiveram estacionadas em Bucha, mas a uma das duas unidades militarizadas ucranianas, ou a ambas  o regimento AZOVE e o regimento especial SAFARI da Polícia Nacional Ucraniana  que entraram em Bucha em 31 de Março e 1 de Abril com a missão declarada de a “limpar de sabotadores e cúmplices” — entenda-se: de liquidar a tiro alegados sabotadores ucranianos ao serviço da Rússia e aqueles moradores de Bucha que tivessem alegadamente estabelecido um modo de convívio pacífico com as tropas russas  [4].

4. Alteração da natureza da guerra na segunda quinzena de Abril de 2022

Seja como for, uma coisa é certa. A partir da segunda quinzena de Abril de 2022 a guerra na Ucrânia entra numa segunda fase em que o número e qualidade dos beligerantes se altera drasticamente. A partir dessa data os beligerantes em liça são: de um lado, a Rússia (coadjuvada pela RPD e a RPL) e do outro lado, a Ucrânia, coadjuvada pelos EUA, o Reino Unido, a Alemanha, a França, a UE (com excepção da Hungria), a OTAN [/NATO] (com excepção da Hungria e da Turquia), a Suíça, a Noruega e o resto do “Ocidente alargado” — Japão, Coreia do Sul, Austrália, Nova-Zelândia.  

E assim aconteceu, de facto, com as armas (incluindo mísseis, artilharia, defesa aérea, carros de combate e outros veículos blindados, helicópteros e aviões de combate, drones), as munições, o treino militar, o aconselhamento militar, as informações militares (incluindo a obtenção de imagens por meio de satélites e aeronaves de vigilância e reconhecimento), a contra-informação e a logística militar que, desde há três anos, têm vindo a ser fornecidas continuamente, em quantidades gigantescas, à Ucrânia pelo “Ocidente alargado” — além do apoio económico e financeiro (também ele gigantesco) para ajudar o regime político, a administração pública e a economia da Ucrânia a manterem-se à tona. 

5. EUA e Reino Unido assumem o comando das tropas ucranianas

Só não sabíamos até que ponto e como, concretamente, é que os EUA e o Reino Unido (os dois principais patrocinadores e aliados militares da Ucrânia) estiveram e estão envolvidos no planeamento e na condução prática (incluindo comando e controlo) dessa guerra contra a Rússia por interposta Ucrânia.

Pois bem, ficámos a sabê-lo muito recentemente por intermédio de dois extensos e pormenorizados artigos: um da autoria de Adam Entous, no The New York Times, em 29 de Março de 2025, relativamente ao envolvimento dos EUA, e outro da autoria de Larisa Brown, no The Times (de Londres), em 11 de Abril de 2025, relativamente ao envolvimento do Reino Unido.

Através destes artigos ficámos a saber que os EUA e o Reino Unido (RU) não são apenas os principais patrocinadores e aliados militares do esforço de guerra da Ucrânia contra a Rússia em todas as facetas descritas no fim da secção 4. São também eles quem assegura o comando e controlo centrais das operações militares ucranianas, em parceria com o Estado-Maior ucraniano, através de um Posto de Comando tricéfalo (EUA, RU, Ucrânia) e extraterritorial, porquanto sediado na base militar americana de Wiesbaden, na Alemanha. Segundo o general Valery Zalujny, ex-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Ucranianas, o Posto de Comando de Wiesbaden foi, até há poucas semanas,  a arma secreta” da Ucrânia (Realcei a amarelo essa afirmação de Zalujny no artigo de Larisa Brown por constituir o seu mais curto e melhor resumo). 

A tradução do artigo de Adam Entous foi publicada em 16 de Abril de 2025 na Tertúlia Orwelliana [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/04/preambulo-traducao-do-artigo-parceria.html]. A tradução do artigo de Larisa Brown é hoje também publicada aqui. Ambas as traduções são de Fernando Oliveira.

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Notas e Referências

[1] Por sua vez, a segunda fase da guerra subdivide-se em vários períodos distintos. Mas este é um assunto que não vem agora o caso.

[2] Ver José Catarino Soares, “Em 9 de Abril de 2022, Zelensky preferiu a guerra à paz pelos motivos mais mesquinhos”. Tertúlia Orwelliana, 9 de Dezembro de 2023 [https://estatuadesal.com/2023/12/ 12/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos/]; “Em 9 de Abril de 2022, Zelensky preferiu a guerra à paz pelos motivos mais mesquinhos – Parte II”. Estátua de Sal, 12/02/2024 [https://estatuadesal.com/2024/02/12/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos-parte-ii/]; “Em 9 de Abril de 2022, Zelensky preferiu a guerra à paz pelos motivos mais mesquinhos – Parte III”. Estátua de Sal, 13/02/2024 [https://estatua desal.com/2024/02/13/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos-parte-iii/]; “Em 9 de Abril de 2022, Zelensky preferiu a guerra à paz pelos motivos mais mesquinhos Parte IV”, Estátua de Sal, 17/02/2024 [https://estatuadesal.com/2024/02/17/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos-parte-iv/]; “Em 9 de Abril de 2022, Zelensky preferiu a guerra à paz pelos motivos mais mesquinhos – Parte V e última”, Estátua de Sal, 21/02/2024 [https://estatuadesal.com/2024/02/21/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos-parte-v-e-ultima/].

[3] Tenciono reexaminar este assunto e outros conexos num artigo a publicar em breve, intitulado: O morticínio de Bucha: um reexame três anos depois.

[4] Existe uma bibliografia e uma videografia considerável sobre este assunto. Refiro-me, entre outros, aos seguintes artigos e vídeos: Raul Cunha, “Desinformação e perfídia, é o que temos na comunicação social” (in Estátua de Sal, 3/04/022);); Joe Lauria, “Questions abound About Bucha Massacre” (Consortium News, April 4, 2022); Scott Ritter, “The truth about Bucha is out there, but perhaps too inconvenient to be discovered” (RT, April 4, 2022); “Interview with Scott Ritter, by Don Bar” (YouTube, April 6, 2022 [https://www.youtube.com/watch?v=kfHohl6gCJY]; Jason Michael McCann, “The Bucha Massacre” (Standpoint Zero, 4 April 2022 [https://standpointzerocom.wordpress.com/2022/04/04/the-bucha-massacre/]; Jason Michael McCann, “Serious Questions about Bucha”, StandPoint Zero, 5 April 2022 [https://standpointzerocom.wordpress.com/2022/04/05/serious-questions-about-bucha/]; Jason Michael McCann, “The Anatomy of a Russian Massacre” (StandPoint Zero, 7 April 2022[https://standpointzerocom.wordpress.com/2022/04/07/the-anatomy-of-a-russian-massacre/];Carlos Branco, “As inteligências inúteis e as interrogações necessárias” (Público,15/04/2022); Tony Kevin, “Lies, truth, and forensics in Ukraine. The case of Bucha” (The Floutist, 16/04/2022 [https://thefloutist.substack.com/ p/lies-truth-and-forensics-in-ukraine]; Jean Neige, “Retour sur les allégations de crimes de guerre russes en Ukraine: Boutcha (3/6)” (France Soir, 7 septembre 2022); Alexandre Guerreiro,“Valas comuns” ? Não. Fake news que nem 24h duraram” (in Estátua de Sal, 16/09/2022); Scott Ritter, “Bucha, Revisited” (Scott Ritter Extra, 21 October 2022 [https://www.scottritterextra.com]; Michel Collon, Ukraine, La guerre de Images: 50 exemples de desinformation. Investig’Action, 2023; Raul Cunha, “Sobre Bucha”. FaceBook, 20 de Março de 2025 [https://www.facebook.com/share/p/16VX 7T3BUt/]; Raul Cunha, Canal Multipolar, 27 de Março de 2025 [https://www.youtube.com/watch?v=abZROfDzDHI], a partir do instante 33m45segundos até ao instante 41m30s.

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A história desconhecida do papel crucial das chefias militares inglesas na Ucrânia

 

Larisa Brown [*]

(in The Times, 11 de Abril de 2025)

(Tradução de Fernando Oliveira [**])

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A dimensão do envolvimento do Reino Unido na ofensiva da Primavera de 2023 contra a Rússia – corridas de última hora para Quieve, planos de batalha e informações secretas – permaneceu em larga medida oculta. Até agora.

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Illustration of a man, a burning building, and missiles, depicting the war in Ukraine.

Ben Wallace,  ex-Secretário da Defesa do Reino Unido, foi alcunhado de «o homem que salvou Quieve»


No princípio do Verão de 2023, quando o exército ucraniano lançou a tão esperada «Ofensiva da Primavera», o nome de código de um movimento tão importante não foi atribuído para homenagear uma figura ou localidade ucraniana famosa, mas sim um político britânico.

O eixo «Wallace» remete para Ben Wallace, à data Secretário da Defesa [o equivalente a um Ministro da Defesa, Nota do Tradutor], que desempenhara um papel destacado na obtenção das armas de que a Ucrânia necessitava nos primeiros dias da guerra. O apoio que prestou valeu-lhe a afectuosa alcunha de «o homem que salvou Quieve», segundo uma fonte militar ucraniana.

Se a Grã-Bretanha não fez qualquer segredo do apoio inabalável que concedeu ao seu aliado da Europa de Leste, o mesmo não sucedeu quanto ao envolvimento e à influência que exerceu – as corridas de última hora para Quieve, a ajuda na elaboração de planos de batalha e a recolha de informações secretas vitais sobre os russos – que se mantiveram em grande medida envoltos em secretismo. Até agora.

Nos bastidores, os ucranianos referem-se às chefias militares britânicas como sendo os «cérebros» da coligação «anti-Putin», constituída por Estados Unidos da América, Reino Unido e dezenas de outros países que compartilham os mesmos objectivos. Sendo conhecida a sua ousadia de colocar tropas no interior do país quando ninguém estava disposto a fazê-lo, o Reino Unido teve um papel na guerra que foi bem mais longe do que muitos observadores poderão pensar.

O The Times está em condições de revelar outro aspecto ainda mais importante: se foram os americanos a fornecer à Ucrânia a «nata» do armamento e os dados exactos dos alvos para a sua eficaz utilização, foram as chefias militares britânicas que seguraram as difíceis relações entre Washington e Quieve.

Collage of military and political leaders.
Os principais actores. A partir do topo, à esquerda, os ingleses: almirante Sir Tony Radakin, secretário de Defesa do Reino Unido Ben Wallace, general Sir Roly Walker, general Sir Jim Hockenhull e tenente-general Charlie Stickland; os americanos: general Christopher Cavoli, secretário de Defesa dos EUA (e também general) Lloyd Austin e general Mark Milley; e os ucranianos: general Valery Zalujny, general Oleksandr Syrsky e general Kyrylo Budanov.


Na retaguarda

Pouco mais de um ano após o início da guerra, o governo do Presidente Biden continuava a apresentar uma frente unida e sem falhas com os seus aliados ucranianos. Mas, nos bastidores, há meses que as tensões não cessavam de se acumular, e no início do Verão de 2023 chegaram a um ponto em que ameaçavam ficar descontroladas.

A Ucrânia tinha lançado a sua tardia ofensiva – um momento decisivo na guerra numa altura em que, depois de surpreender o mundo ao repelir a Rússia que se encontrava às portas de Quieve logo nos primeiros dias [1], a Ucrânia viu aqui uma oportunidade de reconquistar terreno na região da Donbass e alterar a dinâmica de um campo de batalha que mais não era do que uma picadora de carne. Só que as coisas não corriam bem.

Foi nessa altura que o almirante Sir Tony Radakin, natural de Oldham e que fizera a sua formação em escolas públicas [no Reino Unido as escolas privadas recebem o nome de… “escolas públicas” (!!), N. do Editor] mais os seus dois «principais lugar-tenentes», o tenente-general Sir Roly Walker e o tenente-general Sir Charlie Stickland, consolidaram o respeito de ucranianos e americanos.

Admiral Sir Tony Radakin shaking hands with Valerii Zaluzhnyi.

O general Valery Zalujny (à esquerda) , à época chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas Ucranianas, com o almirante Tony Radakin, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas do Reino Unido [Ingl. Chief of Defense Staff].  


No entanto, a história deste momento crucial e do papel desempenhado pela Grã-Bretanha começa seis meses antes.

Dezembro de 2022

Em 23 de Dezembro, Radakin recebeu um telefonema do seu homólogo norte-americano, o general Mark Milley, chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Nesta altura, a guerra decorria há já quase um ano e Radakin, o optimista sedutor, e Milley, truculento e sem qualquer problema em fazer gala da sua teimosia, conheciam-se bem.

Os ucranianos tinham manifestado uma clara vontade de lançar uma ofensiva contra a Rússia na Primavera de 2023, algo que fora anunciado com grande entusiasmo em público como sendo a «ofensiva da Primavera». Todavia, tanto americanos como ingleses exprimiram dúvidas quanto à prontidão da Ucrânia.

«Era óbvio que eles iam em frente com a ofensiva,» disse um militar inglês no activo, conhecedor das discussões que decorriam naquela altura. Por isso, a lógica passou a ser, «se eles vão em frente com a ofensiva, então vamos fazer com que seja o mais forte possível».

Naquele telefonema de Dezembro, Milley disse a Radakin que os americanos tinham decidido apoiar a ofensiva e empenhar-se a fundo na mesma.

Ukrainian soldier atop an armored vehicle during military training.
Treino de tropas ucranianas para a «ofensiva da Primavera» de 2023. Foto: SCOTT PETERSON/GETTY IMAGES

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Janeiro de 2023

Em Janeiro de 2023, quando cerca de 50 países se reuniam em Ramstein, na Alemanha, para debater as necessidades militares da Ucrânia, Lloyd Austin, à data Secretário da Defesa dos EUA, anunciou que o seu país e outros membros da OTAN iriam enviar um gigantesco pacote de armamento pesado de longo alcance para a Ucrânia.

«Isto comprova o nosso empenhamento a longo prazo no apoio à Ucrânia contra a agressão não provocada da Rússia», disse Austin numa conferência de imprensa, o que foi interpretado como um sinal claro de uma previsível escalada da guerra contra a Rússia.

A Casa Branca anunciou então que os Estados Unidos iriam enviar 31 tanques M1 Abrams para ajudar a Ucrânia a repelir as forças russas, contrariando o velho nervosismo inerente ao fornecimento de veículos blindados ofensivos a Quieve.

A Grã-Bretanha, pelo seu lado, iria ser o primeiro país ocidental a fornecer à Ucrânia mísseis de cruzeiro de longo alcance Storm Shadow para aumentar as suas possibilidades de êxito, informou Wallace. Secretamente, foram enviados militares ingleses para montar os mísseis nos aviões da Ucrânia e formar militares na sua utilização. Não era a primeira vez que soldados britânicos eram colocados no terreno: algumas dúzias de militares regulares ingleses tinham já sido enviados para Quieve para dar instrução a novos recrutas e a outros que regressavam ao activo na utilização de NLAW [acrónimo inglês para «mísseis anti-tanque ligeiros de nova geração», Nota do T.], mísseis anti-tanque que os britânicos forneceram logo no início da invasão, em Fevereiro de 2022.

Uma imagem com texto, aeronave, avião, captura de ecrã

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M1 Abrams

Tripulação ……………… 4

     Comprimento ………… 9,7 m

        Peso …………………….63 ton

                          Armamento ………….. canhão de 120 mm

       Velocidade …………... 70 km/h

                     Autonomia …………… 425 quilómetros

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Storm Shadow/SCALP-EG

(míssil lançado em voo)

Comprimento … 5,1 m

        Velocidade ……. 960 km/h

                       Ogiva ……    Penetração profunda

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NLAW (mísseis anti-tanque ligeiros de nova geração)

Comprimento ……………………1 m

   Raio de acção ………………….. 800 m

               Penetração …………………     500 mm (máx.)

          Orientação ………………    Linha de visão



Embora já houvesse formadores militares britânicos destacados na Ucrânia desde 2015, estes foram obrigados a retirar-se em Fevereiro de 2022, devido ao receio de que a Rússia pudesse lançar um ataque a qualquer momento.

A contra-ofensiva

Assumia-se que a contra-ofensiva que se avizinhava seria um momento crucial na guerra. O optimismo reinava no seio da coligação: aquela seria a última batalha que a Ucrânia teria de travar e o Presidente Putin seria obrigado a pedir a paz.

Uma imagem com texto, mapa, atlas

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Legenda:

Lines of control in January 2023… Linhas de controlo em Janeiro de 2023

Russian-held territory.…………….. Território detido pelos russos

Ukrainian counteroffensives…….. Contra-ofensivas ucranianas

Escala: 100 milhas (160 km)


Maio

Nas semanas que antecederam a data prevista para o início, o general Sir Jim Hockenhull, chefe do Comando Estratégico e antigo responsável pelos Serviços Secretos da Defesa, encontrou-se com Kyrylo Budanov, o chefe dos serviços secretos militares da Ucrânia, para discutir a forma como poderiam trabalhar em conjunto na concretização dos objectivos de contra-ataque – Hockenhull possuía meios militares de elevada sensibilidade.

Os dois homens tinham-se encontrado pela primeira vez por volta de 2019. Hockenhull, que fora destacado para o Intelligence Corps em 1986 e concentrara os primeiros anos da sua actividade como jovem oficial na Rússia, reconhecera a necessidade de começar a cultivar relações com os ucranianos anos antes do início da guerra em larga escala. Estava em Berlim quando o Muro caiu, em 1989, e assistiu ao início do conflito logo no Verão de 2021, quando outros no seio do Ministério da Defesa (MoD) não acreditavam nele.

« Ele viu a necessidade de fazer o possível para os preparar para o que estava para vir», afirmou uma fonte militar, acrescentando que Hockenhull foi decisivo, com Wallace, para  assegurar que os ucranianos teriam os NLAW colocados antes da invasão.

Ukrainian soldiers firing a cannon.
Soldados ucranianos disparam sobre linhas russas perto de Bakhmut durante a ofensiva de 2023, numa tentativa de recuperarem território na região de Donetsk. Foto: LIBKOS/AP


Dado que Walker e Stickland estavam em condições de ajudar no planeamento, a contribuição de Hockenhull, a trabalhar na sombra, foi colocar em cima da mesa informações secretas sobre os russos. «Eles precisavam de informação suficiente que lhes permitisse serem eficazes no que estavam a fazer, precisavam de ter vantagem contra um adversário numericamente superior», disse a fonte.

Mas os ucranianos tinham um problema. O plano previa que todo o material proveniente de EUA, Reino Unido e outros países chegasse em finais de Março. Mas ao final de Março sucedeu-se o final de Abril, e depois o final de Maio.

«A Ucrânia continuava à espera de ter o material todo, nós continuávamos a dizer que só é preciso que avancem, a Rússia está fraca. Têm de os atacar já, o material que têm é suficiente,» disse a fonte militar do Reino Unido.

Nessa altura, as armas de que dispunham para a contra-ofensiva igualavam as que estavam disponíveis para todo o exército inglês.

O tempo foi passando, os russos aproveitaram a oportunidade e cavaram trincheiras.

Uma imagem com texto, mapa, atlas, diagrama

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Legenda:

Lines of control in January 2023… Linhas de controlo em Janeiro de 2023

Russian-held territory.…………….. Território detido pelos russos

Ukrainian counteroffensives…….. Contra-ofensivas ucranianas

Escala: 100 milhas (160 km)


Junho

Quando os ucranianos começaram finalmente a mexer-se, no início de Junho, surgiu mais um problema. Radakin e os seus homólogos norte-americanos sustentavam que a Ucrânia devia adoptar uma estratégia de «enfraquecer, esticar e atacar». O elemento «enfraquecer» dizia respeito a atacar os centros logísticos no sentido de procurar limitar os abastecimentos russos e o elemento «esticar» referia-se a ensaios e simulações a realizar em vários eixos, um dos quais se denominava «Wallace». «Se NLAW, tanques e Storm Shadow chegaram com a prontidão com que chegaram foi por causa de Wallace», afirmou um oficial.

Por outro lado, Wallace estava a ser pressionado em simultâneo pelo MoD e pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros pelo nervosismo de que o aumento das entregas de armamento pesado à Ucrânia pudesse fazer escalar as tensões com a Rússia. O Kremlin agitava a fanfarronice nuclear e em Março anunciou que iria destacar armas nucleares tácticas para a Bielorrússia – pela primeira vez desde o colapso da União Soviética, iria destacar armas nucleares para fora das suas fronteiras.

Quanto ao elemento da estratégia de «atacar», era preciso que se fizesse um grande esforço. Os ucranianos tinham de reunir forças e poder de fogo num ponto escolhido que apresentasse a melhor possibilidade de romper o inimigo, tal era o conselho das chefias militares inglesa e americana.

Mas o Presidente Zelensky tinha outras ideias. O general Oleksandr Syrsky, comandante das forças terrestres da Ucrânia, convencera-o a, em vez disso, tentar semear o caos no Norte e atacar o mais fortemente possível no Sudeste. Em vez de penetrar no Sul (e cortar a passagem terrestre que liga a Rússia à Crimeia ocupada), os ucranianos dividiram a sua força de combate. E a penetração nunca ocorreu.

 

Uma imagem com texto, mapa, atlas, Tipo de letra

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Legenda:

Land bridge in June 2023……………… Ponte terrestre em Junho de 2023

A ponte terrestre é uma fracção da Ucrânia ocupada que liga a Crimeia à região da Donbass. Permite à Rússia transportar forças e abastecimentos recorrendo a vias rodoviárias e ferroviárias capturadas.

Lines of control in June 2023…Linhas de controlo em Junho de 2023

Russian-held territory.………… Território detido pelos russos

Ukrainian counteroffensives… Contra-ofensivas ucranianas

Escala: 100 milhas (160 km)


Impacientes pela acção

Tudo isto, e ainda o facto de as forças ucranianas no terreno se deslocarem muito mais devagar do que o que os EUA queriam, frustrou os americanos.

«Os americanos estavam impacientes. Já tinham passado a fase dos jogos de guerra e chegara o momento de avançar», afirmou uma antiga fonte altamente colocada da Defesa. Os ucranianos diziam que todos, incluindo americanos e ingleses, tinham subestimado os obstáculos russos que havia pela frente e os factos inerentes ao moderno campo de batalha. O percurso estava pejado de minas terrestres russas e qualquer tentativa de as desactivar enfrentava a ameaça adicional de apanhar com um drone em cima da cabeça.

O comandante das Forças Armadas da Ucrânia, general Valery Zalujny, superior hierárquico de Syrsky, que tinha uma fotografia de Radakin na parede do seu gabinete, tentava desesperadamente gerir uma crise moral. Para isso, explicou ele às chefias militares britânicas, os soldados, muitos deles recrutas – já na casa dos trinta e quarenta anos, em vez dos vinte – ficavam apenas três dias na linha da frente. No primeiro dia ambientavam-se, no segundo dia avançavam 200 ou 300 metros e no terceiro dia consolidavam as posições enquanto aguardavam a rendição por tropas frescas. Era um processo lento e fastidioso, pensaram os aliados mais próximos da Ucrânia.

Os americanos interrogavam-se, «mas que raio é que se passa aqui» e terão insistido com os ucranianos para imprimirem «um ritmo muito mais acelerado».

Foi neste ponto que as relações entre ucranianos e americanos bateram no fundo. Miley e o general Christopher Cavoli, comandante do exército americano para a Europa e África, estavam muito frustrados em relação a Zalujny e este, por seu lado, estava frustrado com a pressão dos americanos.

Ukrainian soldiers training with British Defence Secretary Ben Wallace at Bovington Camp.

Wallace, à frente, terceiro a contar da direita, com soldados ucranianos durante treinos com tanques Challenger 2 em Bovington Camp, Dorset. Foto: BEN BIRCHALL/AFP/GETTY IMAGES]


Interrompendo umas férias há muito planeadas, Radakin disse a Wallace, com quem trabalhava em estreita colaboração, que precisava de ir à Ucrânia para ajudar as duas partes a unir esforços. As coisas estavam a ficar «demasiado divididas», terá Radakin comentado com Wallace.

O plano era que Radakin se sentasse com Zalujny, ouvisse os ucranianos e tentasse explicar os pontos de vista destes aos americanos por videochamada a partir de Quieve. Embarcou então no comboio nocturno que desde os tempos soviéticos liga a Polónia a Quieve para falar pessoalmente com Zalujny, que mais tarde viria a ser o principal diplomata da Ucrânia na Grã-Bretanha e um dos favoritos à sucessão de Zelensky.

Era uma guerra invulgar aquela em que os americanos estavam envolvidos, com uma chefia forte, mas remota, e prestando um apoio extraordinário que ultrapassava de longe o dos seus aliados. Quase desde o início, Biden fora questionado sobre a preocupação de que os Estados Unidos estivessem mais envolvidos na Ucrânia do que o seu governo deixava transparecer e o facto de o conflito correr o risco de se transformar numa guerra por procuração, possivelmente com consequências nucleares. «[Essas preocupações] não correspondem à verdade», disse o Presidente aos jornalistas em Abril de 2022. «Revela o desespero sentido pela Rússia quanto ao seu abjecto fracasso». No mês de Fevereiro seguinte, numa conferência de imprensa da OTAN, Austin afirmou o óbvio: «Não cairemos no modelo de guerra escolhido por Putin».

Nos meses que se seguiram, as chefias americanas iniciaram as simulações militares para a ofensiva da Primavera. Os americanos iam à Ucrânia muito raramente devido à preocupação de se poder considerar que estavam demasiado envolvidos na guerra, ao contrário das chefias militares inglesas a quem foi concedida liberdade de irem sempre que necessário. Por vezes, as suas visitas eram tão confidenciais que iam à civil.

Ofensiva de sedução

Na mesma altura em que Radakin fazia a sua visita secreta, Walker, um antigo responsável das forças especiais que sofrera um atentado à bomba dos Talibã, estabelecia contactos com os seus amigos americanos e ucranianos.

À data, Walker era chefe-adjunto do Estado-Maior da Forças Armadas [do Reino Unido]  encarregado da estratégia militar e operações. Os seus contemporâneos consideravam-no «brilhante» e era muitíssimo apreciado pelos ucranianos. Uma fonte militar ucraniana afirmou mesmo que ele era o «cérebro» por detrás das ideias de combate dos ingleses e uma «inspiração» para aqueles com quem se encontrava. Um oficial ucraniano de topo referiu-se ao antigo Guardsman como «o general das calças cor-de-rosa» depois de ter participado numa reunião em Quieve envergando precisamente umas calças cor-de-rosa, para divertimento dos ucranianos.

Walker era um «crente», referiu a antiga fonte de defesa de topo. «Era, sem qualquer dúvida, um dos melhores. Tal como Wallace, Walker acreditava que podíamos repelir os russos, que a Ucrânia podia combater e resistir mais do que três semanas [no início da guerra]. Radakin não lhes ficava atrás

Ukrainian soldiers firing a cannon near Bakhmut.

Tropas ucranianas perto de Bakhmut. A diplomacia inglesa manteve o planeamento para a ofensiva da Primavera. Foto: LIBKOS/AP]


Agosto

A diplomacia britânica conseguiu que as duas partes se voltassem a sentar à mesa e, em meados de Agosto, Radakin, Zalujny e Cavoli reuniram-se pessoalmente na fronteira polaco-ucraniana. No decurso de uma reunião de cinco horas, discutiram planos para a contra-ofensiva e esboçaram outros para o Inverno e também para o ano seguinte. Era um sinal de que os americanos não iriam partir tão cedo.

À medida que o Natal se aproximava, cerca de seis meses depois da contra-ofensiva de Verão, as forças de Quieve pouco tinham progredido contra a entrincheirada resistência russa. A guerra arrastava-se sem fim à vista.

Com o decorrer do tempo, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos foram abrandando as restrições impostas à utilização de armas de longo alcance do tipo dos Storm Shadow contra alvos no interior da Rússia. O centro nevrálgico da expedição de armamento ocidental para a Ucrânia foi transferido de um poeirento sótão num edifício da Segunda Guerra Mundial em Estugarda, no Sul da Alemanha, para uma base militar dos EUA em Wiesbaden.

Wiesbaden (Alemanha), sede do Posto de Comando tricéfalo (EUA, RU, Ucrânia) e extraterritorial das Forças Armadas Ucranianas. Fonte: The Times e The Sunday Times


Zalujny, agora colocado em Londres, afirmou que Wiesbaden se transformou «na nossa arma secreta» na coordenação com os parceiros do planeamento operacional e na identificação dos recursos necessários para a linha da frente.

As simulações de guerra envolvendo ingleses e americanos prosseguiram, tendo sido identificadas necessidades de abastecimento e comunicadas a Londres, Washington e outras capitais europeias. As chefias inglesas colocaram questões sobre o funcionamento do plano de ataque, e se os números eram suficientes para determinadas ofensivas.

Radakin assumiu um papel mais amplo do que o que é tradicionalmente atribuído a um chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas [Ingl. Chief of Defense Staffconduzindo os esforços do Reino Unido sobre a Ucrânia junto do governo.

«Radakin era a pessoa que aguentava o apoio dos EUA e que mantinha o governo Biden debruçado sobre a Ucrânia», explicou um colega.

A missão prosseguia. Em Agosto de 2024, tropas da Ucrânia atravessaram a fronteira Sudoeste da Rússia, na região de Kursk, sem informarem os americanos ou qualquer outro aliado. Havia preocupações de que pormenores do ataque planeado pudessem chegar a Moscovo após uma fuga de informação dos EUA em Abril de 2023, antes da contra-ofensiva, segundo revelou uma fonte militar ucraniana. Documentos secretos do Pentágono publicados em redes sociais evidenciavam graves carências de munições nas forças armadas ucranianas. Ambas as partes sentiam uma diminuição nos níveis de confiança.

Aprofundamento

De volta ao Ministério da Defesa do Reino Unido [Ingl. MoD], sob a direcção de Hockenhull, preparam-se equipas no comando estratégico que reunissem as lições retiradas da Ucrânia para proceder a uma revisão estratégica da defesa.

«A Ucrânia pagou um preço elevadíssimo na sua defesa, mas também nos abriu uma janela sobre a guerra moderna», afirmou a fonte militar.

Walker, promovido a Chefe do Estado-Maior General, aproveitou as lições aprendidas no decurso da Primavera e do Verão de 2023 para as utilizar no exército, que está a procurar transformar numa força mais letal e ágil.

• Tivemos três anos para nos prepararmos para a guerra, diz o chefe do exército

Radakin, que esperava sair no Outono após quatro anos em funções, encontrou-se com Zelensky umas dez vezes. Zelensky refere-se a ele de forma cordial como «o almirante», observando que não é um general, como a maior parte das altas patentes militares com quem se encontra.

A mais recente reunião entre ambos foi no gabinete presidencial em Quieve, na sexta-feira, quando Radakin, o tenente-general Nick Perry, o seu chefe de operações conjuntas, e os homólogos franceses apresentaram o plano para uma «força de garantia» na Ucrânia na eventualidade de um acordo de paz.

Zelenskyy, Macron, and Starmer in trilateral meeting.
Zelensky, Sir Keir Starmer (ao centro) e o Presidente Macron realizaram diversas reuniões sobre uma «coligação de boas-vontades». Foto: LUDOVIC MARIN/AP.


A Grã-Bretanha e a França organizaram uma reunião de ministros da Defesa integrados numa «coligação de boas-vontades» [2] em Bruxelas, na quinta-feira, para debater os planos com 50 países. John Healey, Secretário da Defesa do Reino Unido, declarou: «Embora as discussões de hoje sejam à porta fechada, o nosso projecto é real e concreto. Os nossos planos estão bem elaborados.»

À medida que o empenho dos ingleses na defesa da Ucrânia se aprofunda, começam a surgir vozes de preocupação quanto aos resultados finais de todo o processo. John Foreman, antigo adido da Defesa em Moscovo e Quieve, está preocupado com a perspectiva ameaçadora de um empenho militar ilimitado na Ucrânia, com uma «missão incerta» susceptível de durar mais de uma década, para além do impacto que tudo poderia ter sobre a OTAN [/NATO].

«Temos de ser claros nesta matéria e não podemos deixar-nos levar pela emoção. Chegou o momento de lançar alguma clareza política real», disse Foreman. «Qual é a missão? Se tivermos tropas no terreno para prestar garantia ou dissuasão, o que é que acontece se o cessar-fogo for violado? Qual é o risco para os nossos soldados e quais vão ser as suas regras de participação? O que acontece se os soldados começarem a morrer? Há o risco de nos envolvermos no conflito e não me parece que esse risco tenha sido realmente explicado ao povo britânico. É fácil ficar-se envolvido numa guerra, o difícil é sair dela.»

Na sexta-feira, na reunião do grupo de contacto para a defesa da Ucrânia em Bruxelas – mais de dois anos depois do encontro em Ramstein em que Lloyd Austin se comprometeu com um amplo apoio – Healey e o seu homólogo alemão, Boris Pistorius, irão assumir a direcção. Pete Hegseth, o Secretário da Defesa dos EUA, participaria «em ligação» a partir dos EUA em vez de se deslocar à Europa para discutir as formas de armar a Ucrânia a seguir. Um dirigente do Reino Unido justificou com «problemas quotidianos», embora a sua ausência física tenha sido vista como mais um sinal de que os EUA estão a dar passos atrás — enquanto a Europa se prepara para um envolvimento mais profundo.

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O artigo original pode ser lido aqui:

https://archive.is/2025.04.17-081304/https://www.thetimes.com/uk/defence/article/the-untold-story-of-british-military-chiefs-crucial-role-in-ukraine-3j2zpgrxg

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Notas e Referências

[*] Larisa Brown é editora para assuntos de Defesa do The Times, e correspondente para assuntos de diplomacia e segurança do Sunday Times.  O The Times é um jornal diário de direita conservadora (no  sentido tradicional do termo conservador no Reino Unido,  onde é coloquialmente qualificado de Tory) que é publicado em Londres há 240 anos.  O Sunday Times é a edição domingueira do The Times. Os dois jornais têm, em conjunto, uma circulação de mais de 1 milhão e 200 mil exemplares. Antes de ingressar no The Times, no início de 2021, Larisa Brown (LB) desempenhou funções como correspondente no Médio Oriente, no Líbano, e editora para assuntos de Defesa e Segurança, em Westminster, para o Daily Mail. LB fez reportagens sobre várias zonas de conflito armado, incluindo a Síria e a Líbia, e venceu em 2018 a Campanha do Ano dos Prémios de Jornalismo Britânico pelo seu trabalho sobre a situação dos intérpretes afegãos através da campanha “Betrayal of the Brave” do Daily Mail.

[**] Fernando Oliveira é um cidadão português, engenheiro químico e tradutor-intérprete de conferência. Esta sua tradução do artigo de Larisa Brown que aqui publico com a devida vénia e um forte abraço  é encarada por ele (e também por mim) como um serviço pro bono prestado ao público leitor português ou de língua portuguesa que não quer ficar dependente da propaganda, omissões selectivas e desinformação veiculadas em doses cavalares pelo sistema mediático oligopolista de comunicação social (SMOCS) do chamado “Ocidente alargado”.

O SMOCS é constituído pelos jornais e revistas mundanas de grande circulação (incluindo os jornais e revistas ditos de referência); pelos canais de televisão e emissoras de rádio de grande audiência; pelas agências noticiosas globais mais importantes [Associated Press (AP), Agence France Press (AFP), Reuters, Agencia EFE, Deutsche Presse-Agentur (DPA)]; e pelas grandes agências de comunicação estratégica [e.g., Bellingcat, Coda Media, Hill & Knowlton Strategies, National Endowment for Democracy].

Na sua tradução, Fernando Oliveira seguiu a ortografia anterior ao [Des]Acordo Ortográfico de 1990 — uma opção que é também a deste blogue. Editei muito ligeiramente o texto para o adequar às normas tipográficas e estilísticas da Tertúlia Orwelliana. [Nota do Editor, J.C.S.]

[1]  A verdade obriga a que a tradução corresponda ao original, tanto quanto é possível, e foi isso que aqui se fez, mas não se pode deixar passar em claro que a frase «(…) depois de surpreender o mundo ao repelir a Rússia que se encontrava às portas de Quieve logo nos primeiros dias (…)» não corresponde ao que aconteceu. As tropas russas retiraram das proximidades de Quieve em 30 de Março de 2022, como um gesto de boa-vontade da parte da Rússia na sequência do resultado positivo das conversações que decorriam entre as partes em Istambul e que deveriam ter culminado num acordo de paz, cuja assinatura final nunca se concretizou devido à visita de Boris Johnson a Zelensky e às «garantias» de apoio ilimitado e «pelo tempo que for necessário» que Johnson deu a Zelensky em nome do Reino Unido, dos EUA, da França e da Alemanha. (Nota do Tradutor).

[2] Esta expressão «Coalition of the willing» (ou «Coligação de boas-vontades») foi cunhada no percurso para a invasão do Iraque de 2003, na procura das famosas-muito-anunciadas-e-nunca-encontradas Armas de Destruição Maciça. Em Novembro de 2002, o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, de visita à Europa para uma cimeira da OTAN, declarou que «se o presidente iraquiano Saddam Hussein optar pelo não-desarmamento, os Estados Unidos irão dirigir uma coligação de boas-vontades para o desarmar». (Nota do Tradutor).

 

 

   

 

 

3 comentários:

  1. Começo por saudar os articulistas e tradutores pelo seu esforço em construir um retrato o mais possível exacto e objectivo do conflito, desmontando as constantes atoardas que os media mainstream lançam sobre a opinião pública. No entanto, dos textos depreende-se que a guerra da Ucrânia terá começado com a invasão russa, o que é manifestamente falso. A guerra começou de facto em 2014 com o golpe nazi da parça Maidan. O novo governo empreendeu logo uma cruzada anti-russa, atacando fortemente as províncias do leste. Nessa guerra de 7 anos esquecida pelo ocidente foram dizimadas dezenas de milhares de civis inocentes. Fazer crer que a guerra começou com a invasão russa é um absurdo só conveniente para a propaganda NATO e seus acólitos.

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  2. jose tem razão. Já modifiquei o primeiro parágrafo do meu texto, acrescentando-lhe o membro de frase que está entre travessões, para evitar qualquer ambiguidade ou mal-entendido. Quem conheça os meus textos sabe que me refiro invariavelmente às duas guerras na Ucrânia: a que começou em 15 d Maio de 2014, com três beligerantes (RPD + RPL de um lado, Ucrânia do outro) e a que começou em 24 de Fevereiro de 2022 (com a Rússia a ir em socorro da RPD e da RPL).

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  3. O livro que escrevi sobre este assunto desenvolve em pormenor esta análise. No seu título («Dissipando a névoa artificial da guerra ---- Um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal » (Editora Primeiro Capítulo, Agosto de 2023) --- lá está também a menção a "guerras", no plural, para que não haja nenhuma ambiguidade.

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Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana