Neste blogue discutiremos 4 temas: 1. A linguagem enganosa. 2 As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 3. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 4. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

06 setembro, 2025

 

Nota editorial introdutória ao arquivo

“Alargamento da OTAN:

O que foi dito a Gorbachev”

[“NATO Expansion: What Gorbachev Heard”]

 (Tradução de Fernando Oliveira)

Mikhail Gorbachev discute a “reunificação” alemã com Hans-Dietrich Genscher e Helmut Kohl na Rússia, 15 de Julho de 1990. Fotografia: Bundesbildstelle / Presseund Informationsamt der Bundesregierung.
 

Nem um centímetro em direcção ao leste da Europa 

Uma das causas contribuintes da 2.ª guerra na Ucrânia (a que começou na semana de 15 a 22 de Fevereiro de 2022) foi a expansão da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) – também conhecida por NATO, o seu acrónimo inglês – em 5 ondas sucessivas (1999, 2004, 2009, 2017, 2020) em direcção às fronteiras da Rússia – espezinhando assim as garantias de segurança dadas a Mikhail Gorbachev (presidente da União Soviética) e Eduard Shevardnadze (ministro dos Negócios Estrangeiros da União Soviética)  em representação da União Soviética, pelos EUA, Reino Unido e França (as três outras potências ocupantes da Alemanha no fim da 2.ª Guerra Mundial), de que a OTAN não avançaria «nem um centímetro em direcção ao Leste da Europa» (James Baker III, ministro dos Negócios Estrangeiros dos EUA no governo de George H.W. Bush, 1990), em troca da sua anuência à chamada “reunificação” da Alemanha.

Mentiras reiteradas 

Ora, como escrevi no livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal (Editora Primeiro Capítulo, Julho de 2023): 

«De 1992 em diante tornou-se corriqueiro os governantes americanos, incluindo o próprio James Baker III, mentirem descaradamente, afirmando que essas garantias nunca existiram, ou então (versão hipócrita) que nunca foram dadas por escrito e que, por conseguinte, não têm qualquer valor. Estes dois argumentos são repetidos à exaustão pelos comentadores do sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado”. Alguns vão mesmo ao ponto de afirmar que são uma invenção dos Russos, em particular de Putin! Mas os factos são teimosos.

Actualmente, qualquer pessoa que tenha acesso à Internet e saiba Inglês pode ler essas garantias tal como foram registadas por escrito nos documentos oficiais da época (actas, relatórios e memorandos) que foram, entretanto, desclassificados. Encontram-se no National Security Archive da University of Washington (Washington, D.C.). Cf. “NATO Expansion: What Gorbachev Heard” [https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/russia-programs/2017-12-12/nato-expansion-what-gorbachev-heard-western-leaders-early]). E existem também disponíveis outros documentos e testemunhos preciosos sobre o mesmo assunto» (op.cit., p.15, nota 10).

O valor jurídico das promessas internacionais

Ninguém pode, pois, impedir que qualquer pessoa verifique, se o desejar e tiver os meios para isso, a existência dessa documentação compilada e depositada, em 2017, no National Security Archive da Universidade de Washington.

Obrigados a abandonar essa primeira trincheira (“os documentos não existem, as promessas foram meramente orais e circunstanciais”), muitos comentadores (incluindo quase todos os que operam nos canais de maior audiência da televisão portuguesa) passaram a ocupar uma segunda trincheira, de onde julgam que não poderão ser desalojados.

Alegam, para tanto, como já foi dito, que, por não terem sido formalizadas em tratados, as garantias dadas a Gorbachev carecem de valor jurídico e força vinculativa segundo o direito internacional público. No entanto, tal posição é juridicamente enganosa e falsa do ponto de vista histórico.

O precedente do Tribunal Internacional de Justiça

Em 1974, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) estabeleceu um precedente ao afirmar que declarações orais feitas por representantes estatais podem ser juridicamente obrigatórias, desde que satisfaçam critérios específicos. Este entendimento decorre do caso Nuclear Tests (Austrália v. França), onde a França fez promessas (que não cumpriu) em relação a testes nucleares no Oceano Pacífico, em que o TIJ [1] concluiu que:

          # Declarações unilaterais sobre situações jurídicas ou factuais podem criar obrigações legais se houver intenção clara do Estado de se vincular.

      # Não importa se a declaração é oral ou escrita; o direito internacional não exige formalismo documental para reconhecer tal valor jurídico

As garantias dadas à União Soviética são vinculativas

Este precedente é fundamental para analisar as promessas feitas a Gorbatchev no final da Guerra Fria por James Baker e outros dirigentes ocidentais (François Mitterrand, Margaret Tatcher, John Major) de não expandir a OTAN para Leste caso Moscovo aceitasse a “reunificação” da Alemanha — um eufemismo para a dissolução da RDA (Alemanha oriental) e a anexação do seu território e património pela RFA (Alemanha ocidental).

Embora não tivessem sido formalizadas em tratado, estas promessas foram feitas em contexto diplomático oficial e por representantes autorizados dos seus respectivos Estados — exactamente as condições identificadas pelo TIJ como geradoras de obrigações legais.

O acórdão do TIJ de 1974 também esclareceu que declarações deste tipo não precisam de aceitação formal ou resposta da outra parte para produzirem efeitos. O princípio da boa-fé, pacta sunt servanda [“os pactos devem ser cumpridos”], serve de base à obrigatoriedade dessas promessas.

O papel da confiança internacional

O TIJ realçou ainda que a confiança é um elemento central na cooperação internacional. Ignorar compromissos orais assumidos em negociações relevantes enfraquece esta confiança e põe em causa a ordem normativa que pode manter a paz e as relações pacíficas entre Estados.

Portanto, segundo o acórdão de 1974 do TIJ, promessas unilaterais, mesmo que orais e informais, podem criar obrigações jurídicas. Assim, as garantias ocidentais dadas à URSS ‒ e, por conseguinte, à sua sucessora legal, a Federação Russa ou Rússia ‒ possuem uma forte base jurídica para serem consideradas vinculativas, ainda por cima tendo em conta as graves consequências geopolíticas envolvidas.

Como observou Pascal Lottaz:

«A recusa em reconhecer o significado legal e moral destas promessas teve consequências de longo alcance, incluindo, naturalmente, a quebra completa da confiança entre a Rússia e o Ocidente e, em última análise, a guerra na Ucrânia. Descartar essas garantias como sem sentido ignora tanto o quadro jurídico estabelecido pela jurisprudência internacional quanto as responsabilidades éticas que vêm com o Estado. Como o TIJ reconheceu há mais de 50 anos, a palavra de um Estado – mesmo quando oral – pode vinculá-lo. E quando isso acontece, deve ser honrada» [2].

Entra Fernando Oliveira

Esclarecido tudo isto, que tanta boa gente desconhece, compreender-se-á a importância do que Fernando Oliveira decidiu fazer, em boa hora e por sua alta recreação: traduzir pro bono todos os documentos depositados no National Security Archive da Universidade de Washington sobre as promessas feitas a Gorbachev a respeito da OTAN.

São 65 páginas de informação muita densa que são assim, e pela primeira vez (que eu saiba), postos gratuitamente à disposição do público de língua portuguesa através da Tertúlia Orwelliana — o veículo escolhido por Fernando Oliveira para divulgar o produto do seu precioso trabalho.

Só me resta agradecer-lhe mais esta prova de confiança na Tertúlia Orwelliana e esperar que os leitores apreciem tanto quanto eu a sua competência como tradutor e a sua generosidade, cultura e argúcia como cidadão empenhado.

José Catarino Soares, 5 de Setembro de 2025

N.B. Dada a grande extensão do arquivo, este será publicado em três partes consecutivas ao longo de três semanas.

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Notas e referências

[1] O Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) é o principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas (ONU), estabelecido para resolver disputas legais entre Estados e emitir pareceres consultivos sobre questões jurídicas para a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança da ONU. Sediado no Palácio da Paz em Haia, na Holanda, o tribunal é composto por 15 juízes eleitos por nove anos e não deve ser confundido com o Tribunal Penal Internacional (TPI), que também tem a sua sede em Haia, mas que não pertence à ONU e que julga indivíduos por crime de guerra ou crimes contra a humanidade.

[2] Pascal Lottaz, «Yes, “Not an Inch to the East” Was Binding Under International Law». Substack, July 11, 2025 [https://substack.com/@ pascallottaz]

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Alargamento da OTAN:

O que foi dito a Gorbachev

(Parte I)

(Tradução de Fernando Oliveira [*])

Documentos desclassificados revelam garantias de segurança contra o alargamento da OTAN dadas aos governantes soviéticos por Baker, Bush, Genscher, Kohl, Gates, Mitterrand, Thatcher, Hurd, Major e Woerner

Painel de Estudos Eslavos aborda “Quem Prometeu o Quê a Quem sobre o Alargamento da OTAN?”

Publicação: 12 Dez. 2017

Briefing Book # 613

Svetlana Savranskaya e Tom Blanton

 

Temas                    OTAN

                    Relações URSS-EUA

                     Pacto de Varsóvia

Regiões                  Europa Central/de Leste

                     Rússia e ex-União Soviética

                     Europa Ocidental

Acontecimentos    Fim da Guerra Fria, 1989-1991

Projecto                 OTAN @ 75

                    Programas da Rússia

 

 

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Página das notas de Stepanov-Mamaladze de 12 de Fevereiro de 1990, que reflectem a garantia dada por Baker a Shevardnadze no decurso da Conferência sobre o Regime de Céu Aberto de Otava: “E se a A[lemanha] U[nificada] ficar na OTAN, devemos ter o cuidado de não alargar a sua jurisdição para Leste.”


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 Eduard A. Shevardnadze (à direita) cumprimenta Hans-Dietrich Genscher (à esquerda) e Helmut Kohl (no centro) à chegada a Moscovo a 10 de Fevereiro de 1990, para conversações sobre a reunificação alemã. Fotografia: AP Photo / Victor Yurchenko. 


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O acordo para dar início às conversações “Dois Mais Quatro” é apresentado à imprensa pelos seis Ministros dos Negócios Estrangeiros na Conferência “Céu Aberto” em Otava, a 13 de Fevereiro de 1990. Da esquerda para a direita: Eduard Shevardnadze (URSS), James A. Baker (EUA), Hans-Dietrich Genscher (RFA), Roland Dumas (França), Douglas Hurd (Grã-Bretanha), Oskar Fischer (RDA). Fotografia: Bundesbildstelle / Presseund Informationsamt der Bundesregierung
 
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Primeira ronda oficial das negociações “Dois Mais Quatro”, com os seis Ministros dos Negócios Estrangeiros, em Bona, a 5 de Maio de 1990. Fotografia: Bundesbildstelle / Presseund Informationsamt der Bundesregierung.


Da direita para a esquerda: Ministro dos Negócios Estrangeiros Hans-Dietrich Genscher (RFA), Ministro Presidente Lothar de Maizière (RDA) e Ministros dos Negócios Estrangeiros Roland Dumas (França), Eduard Shevardnadze (URSS), Douglas Hurd (Grã-Bretanha) e James Baker (EUA) assinam o denominado Acordo “Dois Mais Quatro” (Tratado sobre a Regulamentação Definitiva referente à Alemanha) em Moscovo, a 12 de Setembro de 1990. Fotografia: Bundesbildstelle / Presseund Informationsamt der Bundesregierung.

 

As sessões de trabalho em Camp David realizadas na esplanada, ao ar livre, aqui da esquerda para a direita e a partir de cima à esquerda, intérprete Peter Afanasenko, Baker, Bush, Vice-presidente Dan Quayle (o único com gravata), Scowcroft, Shevardnadze, Gorbachev e Akhromeyev (de costas para a câmara), 2 de Junho de 1990. (Fonte: Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, P13412-08).


O Presidente Bush saúda o Presidente Checo Vaclav Havel no exterior da Casa Branca, Washington, D.C., 2 de Fevereiro de 1990. (Fonte: Biblioteca Presidencial e Museu George H. W. Bush.


O Ministro dos Negócios Estrangeiros Genscher oferece ao Presidente Bush um fragmento do Muro de Berlim, Sala Oval da Casa Branca, Washington, D.C., 21 de Novembro de1989. (Fonte: Biblioteca Presidencial e Museu George H. W. Bush.


Os governantes reunidos para uma fotografia de grupo em Camp David. Todos sorriem excepto o marechal soviético, à direita.  A partir da esquerda, Baker, Barbara Bush, Presidente Bush, Raisa Gorbacheva, Presidente Gorbachev, Shevardnadze, Scowcroft, Akhromeyev.  2 de Junho de 1990. (Fonte: Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, P13437-14)


A chegada à cimeira de Washington, em 31 de Maio de 1990, teve uma cerimónia de alto nível no relvado da Casa Branca, aqui com cumprimentos formais do Presidente Bush a Mikhail Gorbachev, agora Presidente da URSS.  (Fonte: Biblioteca Presidencial George H. W. Bush, P13298-18)

Washington D.C., 12 de Dezembro de 2017 – A famosa garantia do Secretário de Estado norte-americano James Baker “nem um centímetro para Leste” sobre o alargamento da OTAN, na sua reunião com o governante soviético Mikhail Gorbachev, a 9 de Fevereiro de 1990, fez parte de uma cascata de garantias sobre a segurança soviética dadas pelos governantes ocidentais a Gorbachev e a outros responsáveis soviéticos durante o processo de reunificação alemã em 1990 e 1991, de acordo com documentos desclassificados dos norte-americanos, soviéticos, alemães, britânicos e franceses publicados hoje pelo Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington (http://nsarchive.gwu.edu).

Os documentos revelam que vários governantes nacionais ponderaram e rejeitaram a adesão da Europa Central e Oriental à OTAN desde o início de 1990 e durante 1991, que os debates sobre a OTAN no contexto das negociações de reunificação da Alemanha em 1990 não se limitavam de todo ao estatuto do território da Alemanha Oriental e que as queixas soviéticas e russas subsequentes sobre terem sido enganados quanto ao alargamento da OTAN se baseavam em memorandos escritos e registos de teleconferências contemporâneas ao mais alto nível.

Os documentos reforçam as críticas do ex-director da CIA, Robert Gates, à “pressão para o alargamento da OTAN para Leste [nos anos 90], quando Gorbachev e outros foram levados a acreditar que isso não aconteceria.” [1] A expressão-chave, escorada pelos documentos, é “levados a acreditar.”

O Presidente George H. W. Bush assegurou a Gorbachev, na cimeira de Malta, em Dezembro de 1989, que os EUA não tirariam partido (“Não andei aos saltos por causa do Muro de Berlim”) das revoluções na Europa de Leste para prejudicar os interesses soviéticos; mas nem Bush nem Gorbachev nessa altura (nem, aliás, o Chanceler da RFA, Helmut Kohl) esperavam que o colapso da Alemanha de Leste ou a rapidez da reunificação alemã ocorressem tão cedo. [2]

As primeiras garantias concretas dos governantes ocidentais sobre a OTAN começaram em 31 de Janeiro de 1990, quando o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha Ocidental, Hans-Dietrich Genscher, abriu a agenda com um importante discurso público em Tutzing, na Baviera, sobre a reunificação alemã. A Embaixada dos Estados Unidos em Bona (ver Documento 1) informou Washington de que Genscher deixou claro “que as mudanças na Europa Oriental e o processo de reunificação alemã não devem conduzir a uma “deterioração dos interesses de segurança soviéticos”. Por conseguinte, a OTAN deveria excluir um “alargamento do seu território para Leste, isto é, aproximando-o das fronteiras soviéticas”. O telegrama de Bona também referia a proposta de Genscher de deixar o território da Alemanha Oriental fora da estrutura militar da OTAN, mesmo numa Alemanha reunificada e na OTAN. [3]

Esta última ideia de um estatuto especial para o território da RDA foi codificada no tratado final de reunificação alemã assinado em 12 de Setembro de 1990 pelos Ministros dos Negócios Estrangeiros dos Dois Mais Quatro (ver Documento 25). A primeira ideia sobre “mais perto das fronteiras soviéticas” não está plasmada em tratados, mas sim em múltiplos memorandos de conversações entre os soviéticos e os interlocutores ocidentais ao mais alto nível (Genscher, Kohl, Baker, Gates, Bush, Mitterrand, Thatcher, Major, Woerner e outros) oferecendo garantias ao longo de 1990 e 1991 sobre a proteção dos interesses de segurança soviéticos e a inclusão da URSS nas novas estruturas de segurança europeias. As duas questões estavam relacionadas, mas não eram a mesma coisa. Análises posteriores, por vezes, confundiram as duas com o argumento de que a discussão não envolvia toda a Europa. Os documentos publicados a seguir mostram claramente que envolvia.

A “fórmula de Tutzing” tornou-se imediatamente o centro de uma série de importantes discussões diplomáticas durante os dez dias seguintes, em 1990, conduzindo ao crucial encontro de 10 de Fevereiro de 1990, em Moscovo, entre Kohl e Gorbachev, em que o dirigente da Alemanha Ocidental obteve o consentimento soviético, em princípio, para a reunificação alemã na OTAN, desde que esta não se expandisse para Leste. Os soviéticos precisariam de muito mais tempo para trabalhar com a sua opinião interna (e com a ajuda financeira dos alemães ocidentais) antes de assinarem formalmente o acordo em Setembro de 1990.

As conversas que antecederam a garantia de Kohl envolveram discussões explícitas sobre o alargamento da OTAN, os países da Europa Central e Oriental e a forma de convencer os soviéticos a aceitarem a reunificação. A título de exemplo, a 6 de Fevereiro de 1990, quando Genscher se reuniu com o Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico Douglas Hurd, o registo britânico mostrava Genscher a dizer: “Os russos têm de ter alguma garantia de que se, por exemplo, o governo polaco deixasse o Pacto de Varsóvia num dia, não aderiria à OTAN no dia seguinte” (ver Documento 2).

Tendo reunido com Genscher a caminho das conversações com os soviéticos, Baker repetiu exactamente a formulação de Genscher no seu encontro com o Ministro dos Negócios Estrangeiros Eduard Shevardnadze, em 9 de Fevereiro de 1990 (ver Documento 4); e, mais importante ainda, no frente-a-frente com Gorbachev.

Na reunião com Gorbachev de 9 de Fevereiro de 1990, Baker utilizou a fórmula “nem um centímetro para Leste” não uma, mas três vezes. Concordou com a declaração de Gorbachev em resposta às garantias de que “o alargamento da OTAN é inaceitável”. Baker assegurou a Gorbachev que “nem o Presidente nem eu tencionamos retirar quaisquer vantagens unilaterais dos processos que estão em curso” e que os americanos compreendiam que “não só para a União Soviética, mas também para outros países europeus, é importante ter garantias de que, se os Estados Unidos mantiverem a sua presença na Alemanha no quadro da OTAN, nem um centímetro da actual jurisdição militar da OTAN se estenderá para Leste” (ver Documento 6).

Posteriormente, Baker escreveu a Helmut Kohl, que se iria encontrar com o governante soviético no dia seguinte, com uma linguagem muito semelhante. Baker relatou: “E depois coloquei-lhe [a Gorbachev] a seguinte questão: Preferia ver uma Alemanha reunificada fora da OTAN, independente e sem forças americanas, ou preferia que uma Alemanha reunificada estivesse ligada à OTAN, com garantias de que a jurisdição da OTAN não se deslocaria um centímetro para leste da sua posição actual? Respondeu que a chefia soviética estava a ponderar bem todas essas opções [...] E acrescentou: «Certamente que qualquer alargamento da zona da OTAN seria inaceitável»”. Baker acrescentou entre parênteses, para benefício de Kohl: “Implicitamente, a OTAN na sua zona actual poderia ser aceitável” (ver Documento 8).

Devidamente informado pelo Secretário de Estado americano, o Chanceler da RFA ficou a conhecer a linha de base fulcral dos soviéticos e assegurou a Gorbachev em 10 de Fevereiro de 1990: “Acreditamos que a OTAN não deve expandir a esfera da sua actividade” (ver Documento 9). Depois desta reunião, Kohl mal podia conter o seu entusiasmo com o acordo de princípio de Gorbachev para a reunificação alemã e, como parte da fórmula de Helsínquia de que os Estados escolhiam as suas próprias alianças, a Alemanha podia escolher a OTAN. Kohl escreveu nas suas memórias que andou toda a noite à volta de Moscovo — mas compreendia que ainda havia um preço a pagar.

Todos os Ministros dos Negócios Estrangeiros ocidentais estavam de acordo com Genscher, Kohl e Baker. Seguiu-se o Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, Douglas Hurd, a 11 de Abril de 1990. Nesta altura, os alemães de leste tinham votado esmagadoramente a favor do marco alemão e da rápida reunificação, nas eleições de 18 de Março, nas quais Kohl surpreendeu quase todos os observadores com uma verdadeira vitória. As análises de Kohl (explicadas pela primeira vez a Bush em 3 de Dezembro de 1989) de que a derrocada da RDA abriria todas as possibilidades, de que tinha de se apressar para chegar à frente do comboio, de que precisava do apoio dos Estados Unidos, de que a reunificação poderia acontecer mais depressa do que se pensava – revelaram-se todas correctas. A união monetária avançaria já em Julho e as garantias de segurança continuavam a chegar. Hurd reforçou a mensagem de Baker-Genscher-Kohl no seu encontro com Gorbachev em Moscovo, a 11 de Abril de 1990, dizendo que a Grã-Bretanha “reconhecia claramente a importância de não fazer nada que prejudicasse os interesses e a dignidade dos soviéticos” (ver Documento 15).

A conversa de Baker com Shevardnadze em 4 de Maio de 1990, tal como Baker a revelou no seu relatório ao Presidente Bush, descreveu de forma muito eloquente o que os dirigentes ocidentais estavam exactamente a dizer a Gorbachev naquele momento: “Utilizei o seu discurso e o nosso reconhecimento da necessidade de adaptar a OTAN, política e militarmente, e de desenvolver a CSCE [Conferência sobre a Segurança e a Cooperação na Europa (Nota do T)] para tranquilizar Shevardnadze de que o processo não produziria vencedores nem vencidos. Em vez disso, produziria uma nova estrutura europeia legítima – uma estrutura que seria inclusiva e não exclusiva” (ver Documento 17).

Baker voltou a dizê-lo directamente a Gorbachev, em 18 de Maio de 1990, em Moscovo, dando a Gorbachev os seus “nove pontos”, que incluíam a transformação da OTAN, o reforço das estruturas europeias, a manutenção da Alemanha sem armas nucleares e a tomada em consideração dos interesses de segurança soviéticos. Baker começou as suas observações: “Antes de proferir algumas palavras sobre a questão alemã, queria sublinhar que as nossas políticas não têm como objectivo separar a Europa Oriental da União Soviética. Já tivemos essa política antes. Mas hoje estamos interessados em construir uma Europa estável e em fazê-lo em conjunto convosco” (ver Documento 18).

O presidente francês François Mitterrand não estava em sintonia com os americanos, muito pelo contrário, como o demonstra o facto de ter dito a Gorbachev, em Moscovo, a 25 de Maio de 1990, que era “pessoalmente a favor do desmantelamento gradual dos blocos militares”; mas Mitterrand prosseguiu a cascata de garantias dizendo que o Ocidente deve “criar condições de segurança para si, bem como para a segurança europeia no seu conjunto” (ver Documento 19). Mitterrand escreveu de imediato uma carta a Bush sobre a sua conversa com o governante soviético, começando com “Cher George” e referindo que “não nos recusaríamos certamente a pormenorizar as garantias que ele teria o direito de esperar para a segurança do seu país” (ver Documento 20).

Na cimeira de Washington de 31 de Maio de 1990, Bush fez tudo o que estava ao seu alcance para assegurar a Gorbachev que a Alemanha na OTAN nunca seria direccionada contra a URSS: “Acreditem em mim, não estamos a empurrar a Alemanha para a reunificação e não somos nós que definimos o ritmo deste processo. E, claro, não temos qualquer intenção, nem mesmo nos nossos pensamentos, de prejudicar a União Soviética de qualquer forma. É por isso que nos pronunciamos a favor da reunificação alemã na OTAN, sem ignorar o contexto mais vasto da CSCE, tendo em consideração os laços económicos tradicionais entre os dois Estados alemães. Este modelo, na nossa opinião, corresponde também aos interesses soviéticos” (ver Documento 21).

A “Dama de Ferro” também deu o seu contributo, após a cimeira de Washington, no encontro que teve com Gorbachev em Londres, a 8 de Junho de 1990. Thatcher deu uma antevisão das medidas que os americanos (com o seu apoio) tomariam na conferência da OTAN do início de Julho para apoiar Gorbachev com descrições da transformação da Organização numa aliança mais política e menos ameaçadora do ponto de vista militar. Thatcher disse a Gorbachev: “Temos de encontrar formas de dar à União Soviética a confiança de que a sua segurança será garantida... A CSCE poderia ser um guarda-chuva para tudo isso, além de ser o fórum que trouxe a União Soviética para a discussão sobre o futuro da Europa” (ver Documento 22).

A Declaração de Londres da OTAN, de 5 de Julho de 1990, teve um efeito bastante positivo nas deliberações em Moscovo, de acordo com a maior parte dos relatos, dando a Gorbachev munições suficientes para contrariar os partidários da linha dura no Congresso do Partido [Comunista da União Soviética] que decorria naquele momento. Algumas versões desta história afirmam que foi dada uma cópia antecipada aos assessores de Shevardnadze, enquanto outras descrevem apenas um alerta que permitiu a esses assessores utilizar uma cópia da agência noticiosa e produzir uma avaliação positiva soviética antes que os militares ou a linha dura a pudessem designá-la de propaganda.

Como Kohl disse a Gorbachev em Moscovo, a 15 de Julho de 1990, quando elaboraram o acordo final sobre a reunificação alemã: “Nós sabemos o que espera a OTAN no futuro e penso que vocês também já sabem”, referindo-se à Declaração de Londres da OTAN (ver Documento 23).

No telefonema a Gorbachev em 17 de Julho, Bush pretendia reforçar o êxito das conversações Kohl-Gorbachev e a mensagem da Declaração de Londres. Bush explicou: “Portanto, o que tentámos fazer foi ter em conta as suas preocupações que manifestou a mim e a outros, e fizemo-lo das seguintes formas: através da nossa declaração conjunta sobre a não agressão; do nosso convite para aderir à OTAN; do nosso acordo para abrir a OTAN a contactos diplomáticos regulares com o seu governo e os dos países da Europa Oriental; e da nossa oferta de garantias sobre a futura dimensão das forças armadas de uma Alemanha reunificada – uma questão que sei que discutiu com Helmut Kohl. Também alterámos, no fundamental, a nossa abordagem militar relativamente às forças convencionais e nucleares. Transmitimos a ideia de uma CSCE alargada e mais forte, com novas instituições que a URSS possa partilhar e integrar numa nova Europa” (ver Documento 24).

Os documentos mostram que Gorbachev concordou com a reunificação alemã na OTAN em resultado desta sucessão de garantias e com base na sua própria análise de que o futuro da União Soviética dependia da sua integração na Europa, para o que a Alemanha seria o actor decisivo. Ele e a maioria dos seus aliados acreditavam que alguma versão da casa comum europeia continuava a ser possível e que se desenvolveria a par da transformação da OTAN que conduzisse a um espaço europeu mais inclusivo e integrado, que o acordo pós-Guerra Fria teria em conta os interesses de segurança soviéticos. A aliança com a Alemanha permitiria não só ultrapassar a Guerra Fria como também inverter o legado da Grande Guerra Patriótica.

Mas, no seio do governo dos Estados Unidos, prosseguia um debate diferente, um debate sobre as relações entre a OTAN e a Europa Oriental. As opiniões divergiam, mas a sugestão do Departamento de Defesa, a partir de 25 de Outubro de 1990, era deixar “a porta entreaberta” para a adesão da Europa de Leste à OTAN (ver Documento 27). A opinião do Departamento de Estado era que o alargamento da OTAN não estava na ordem do dia, porque não era do interesse dos EUA organizar “uma coligação anti-soviética” que se estendesse às fronteiras soviéticas, até porque poderia inverter as tendências positivas na União Soviética (ver Documento 26). O governo Bush adoptou este último ponto de vista. E foi isso que foi dito aos soviéticos.

Ainda em Março de 1991, de acordo com o diário do embaixador britânico em Moscovo, o Primeiro-ministro britânico John Major assegurou pessoalmente a Gorbachev que “não estamos a falar do reforço da OTAN”. Posteriormente, quando o Ministro da Defesa soviético, marechal Dmitri Yazov, interrogou Major sobre o interesse dos governantes da Europa Oriental na adesão à OTAN, o governante britânico respondeu: “Não vai acontecer nada disso” (ver Documento 28).

Quando os deputados russos do Soviete Supremo se deslocaram a Bruxelas para visitar a OTAN e se reuniram com o Secretário-geral da OTAN, Manfred Woerner, em Julho de 1991, Woerner disse-lhes que “Não devemos permitir [...] o isolamento da URSS da comunidade europeia”. De acordo com o memorando russo da conversa, “Woerner sublinhou que o Conselho da OTAN e ele próprio são contra o alargamento da OTAN (13 dos 16 membros da Organização apoiam este ponto de vista)” (ver Documento 30).

Assim, Gorbachev ficou até ao fim da União Soviética com a certeza de que o Ocidente não estava a ameaçar a sua segurança e não estava a alargar a OTAN. Em vez disso, a dissolução da URSS foi provocada por russos (Boris Ieltsin e o seu principal conselheiro, Gennady Burbulis) em concertação com os antigos chefes partidários das repúblicas soviéticas, especialmente da Ucrânia, em Dezembro de 1991. Nessa altura, a Guerra Fria já tinha terminado há muito. Os americanos tinham tentado manter a União Soviética unida (ver o discurso de Bush “Chicken Kiev” [**], de 1 de Agosto de 1991). O alargamento da OTAN estava previsto para os próximos anos, altura em que estas disputas voltariam a eclodir e em que seriam dadas mais garantias ao governante russo Boris Ieltsin.

O Arquivo compilou estes documentos desclassificados para um painel de discussão em 10 de Novembro de 2017, na Conferência Anual da Associação de Estudos Eslavos, da Europa Oriental e da Eurásia (ASEEES), em Chicago, sob o título “Quem prometeu o quê a quem sobre o alargamento da OTAN?”. O painel incluiu: 

* Mark Kramer do Davis Center em Harvard, editor do Journal of Cold War Studies, cujo artigo de 2009 Washington Quarterly defende que a “promessa de não alargamento da OTAN” foi um mito”; [4]

* Joshua R. Itkowitz Shifrinson da Bush School no Texas A&M, cujo artigo de 2016 na International Security defendia que os EUA estiveram empenhados num jogo duplo em 1990, levando Gorbachev a acreditar que a OTAN se transformaria numa nova estrutura de segurança europeia, ao mesmo tempo que trabalhavam para assegurar a hegemonia na Europa e a manutenção da OTAN; [5]

* James Goldgeier da American University, que escreveu uma obra de referência sobre a decisão de Clinton quanto ao alargamento da  OTAN, Not Whether But When, e descreveu as falsas garantias dadas pelos EUA ao dirigente russo Boris Yeltsin num artigo de 2016 WarOnTheRocks; [6]

* Svetlana Savranskaya e Tom Blanton do National Security Archive, cujo livro mais recente, The Last Superpower Summits: Gorbachev, Reagan, and Bush: Conversations That Ended the Cold War (CEU Press, 2016), analisa e publica as transcrições e os documentos afins objecto de desclassificação de todas as cimeiras de Gorbachev com Presidentes dos EUA, incluindo dezenas de garantias referentes aos interesses de segurança da URSS. [7]

[A publicação de hoje é a primeira de três partes sobre o assunto. A segunda parte, a publicar oportunamente, irá abranger as discussões de Yeltsin com os governantes ocidentais sobre a OTAN.]

 

[*] O tradutor emprega a ortografia em vigor antes do (des)Acordo Ortográfico de 1990.

[**] Nota do Tradutor: Literalmente, “Frango à Quieve” (prato típico ucraniano de peito de frango recheado), é o nome dado a um discurso proferido pelo Presidente dos EUA George H. W. Bush (Bush pai) em Quieve, a 1 de Agosto de 1991. O discurso, em que Bush alertava contra o “nacionalismo suicida”, foi escrito por Condoleezza Rice – mais tarde Secretária de Estado do Presidente George W. Bush (Bush filho) – quando estava encarregada dos Assuntos Soviéticos e da Europa Oriental para o Presidente Bush pai.

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                                                                NOTAS

[1] Ver Robert Gates, University of Virginia, Miller Center Oral History, George H. W. Bush Presidency, July 24, 2000, p. 101)

[2] Ver o Capítulo 6, “The Malta Summit 1989,” in Svetlana Savranskaya e Thomas Blanton, The Last Superpower Summits (CEU Press, 2016), pp. 481-569. O comentário sobre o Muro está na página 538.

[3] Para conhecer os antecedentes, o contexto e as consequências do discurso de Tutzing, ver Frank Elbe, “The Diplomatic Path to Germany Unity,” Bulletin of the German Historical Institute 46 (Spring 2010), pp. 33-46. Elbe era chefe de gabinete de Genscher à data.

[4] Ver Mark Kramer, “The Myth of a No-NATO-Enlargement Pledge to Russia,” The Washington Quarterly, April 2009, pp. 39-61.

[5] Ver Joshua R. Itkowitz Shifrinson, “Deal or No Deal? The End of the Cold War and the U.S. Offer to Limit NATO Expansion,” International Security, Spring 2016, Vol. 40, No. 4, pp. 7-44.

[6] Ver James Goldgeier, Not Whether But When: The U.S. Decision to Enlarge NATO (Brookings Institution Press, 1999); e James Goldgeier, “Promises Made, Promises Broken? What Yeltsin was told about NATO in 1993 and why it matters,” War On The Rocks, 12 July 2016.

[7] Ver também em Svetlana Savranskaya, Thomas Blanton e Vladislav Zubok, “Masterpieces of History”: The Peaceful End of the Cold War in Europe, 1989 (CEU Press, 2010), debate alargado e documentos sobre as negociações de unificação da Alemanha no início de 1990.

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