Alargamento da OTAN:
O que foi dito a
Gorbachev
(Parte II)
(Tradução
de Fernando Oliveira [*])
……………………………………………………………………………
A
PARTE
I deste arquivo pode ser lida aqui:
https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2025/09/nota-editorial-introdutoria-ao-arquivo.html
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Washington DC. O ministro dos Negócios Estrangeiros da União Soviética, Eduard Shevardnadze (sentado à esquerda), e o Secretário de Estado dos EUA, James Baker III (sentado à direita) trocam canetas depois de terem assinado vários Tratados numa cerimónia que teve lugar na Casa Branca em 6-01-1990. O presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev (em pé, à esquerda) e o presidente dos EUA, George Bush (em pé, à direita), observam o ritual. Foto da UPI. Fotógrafo Cliff Owen. |
LEITURA
DOS DOCUMENTOS
Documento
01
1 de Fevereiro de 1990
Fonte
U.S. Department of State. FOIA Reading Room. Case F-2015 10829
Um
dos mitos relacionados com as discussões de Janeiro e Fevereiro de 1990 sobre a
reunificação alemã é o de que estas conversações ocorreram muito cedo no
processo, com o Pacto de Varsóvia ainda presente, que ninguém estava a pensar
na possibilidade de os países da Europa Central e Oriental, ainda na altura
membros do Pacto de Varsóvia, poderem no futuro tornar-se membros da OTAN.
Pelo contrário, a fórmula de Tutzing do Ministro dos Negócios Estrangeiros da RFA, no discurso proferido a de 31 de Janeiro de 1990 e amplamente divulgado pelos meios de comunicação social na Europa, em Washington e em Moscovo, abordou explicitamente a possibilidade de alargamento da OTAN, bem como da adesão da Europa Central e Oriental à OTAN — e negou essa possibilidade, como parte do seu ramo de oliveira dirigido a Moscovo. Este telegrama da Embaixada dos EUA em Bona, enviado a Washington, descreve em pormenor as duas propostas de Hans-Dietrich Genscher — que a OTAN não se alargaria para Leste e que o antigo território da RDA numa Alemanha reunificada seria tratado de forma diferente dos restantes territórios da OTAN.
Documento 02
6 de Fevereiro de 1990
Fonte
Documents on British Policy Overseas, series III,
volume VII: German Unification, 1989-1990. (Foreign and Commonwealth Office. Documentos
sobre a política externa britânica, editados por Patrick Salmon, Keith Hamilton
e Stephen Twigge, Oxford and New York, Routledge 2010). pp. 261-264
A
visão posterior do Departamento de Estado dos EUA sobre as negociações de
reunificação alemã, expressa num telegrama de 1996 enviado a todos os postos,
afirma erradamente que todo o processo de negociação sobre o futuro da Alemanha
limitou as discussões relativas ao futuro da OTAN aos acordos específicos sobre
o território da antiga RDA. É provável que os diplomatas americanos tenham
perdido o diálogo inicial entre britânicos e alemães sobre esta questão, apesar
de ambos terem compartilhado os seus pontos de vista com o Secretário de Estado
dos EUA.
Como foi publicado na história documental oficial de 2010 do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth da Grã-Bretanha sobre o contributo do Reino Unido para a reunificação alemã, este memorando da conversa entre o Ministro dos Negócios Estrangeiros britânico Douglas Hurd e o Ministro dos Negócios Estrangeiros da RFA Genscher, em 6 de Fevereiro de 1990, contém uma especificidade notável sobre a questão da futura adesão da Europa Central à OTAN. O memorando britânico cita especificamente Genscher como tendo dito
«que quando ele referiu que não pretendia alargar a OTAN isso
se aplicava a outros Estados para além da RDA. É preciso dar aos russos alguma
garantia de que se, por exemplo, o governo polaco um dia abandonar o Pacto de
Varsóvia, não vai aderir à OTAN no dia seguinte».
Genscher
e Hurd disseram o mesmo ao seu homólogo soviético Eduard Shevardnadze e a James
Baker.[8]
Documento 03
6 de Fevereiro de 1990
Fonte
Biblioteca Presidencial
George H. W. Bush
Esta
breve nota dirigida ao Presidente Bush por um dos arquitectos da Guerra Fria,
Paul Nitze (baseado na sua homónima Escola de Estudos Internacionais da
Universidade John Hopkins), capta o debate sobre o futuro da OTAN no início de
1990. Nitze conta que os governantes da Europa Central e Oriental presentes na
conferência Fórum para a Alemanha, em Berlim, defendiam a dissolução dos dois
blocos de superpotências, a OTAN e o Pacto de Varsóvia, até que ele (e alguns
europeus ocidentais) inverteram essa opinião e, em vez disso, sublinharam a
importância da OTAN como base da estabilidade e da presença dos EUA na Europa.
Documento
04
Memorando
da conversa entre James Baker e Eduard Shevardnadze em Moscovo.
9 de Fevereiro de 1990
Fonte
U.S. Department of State, FOIA 199504567 (National
Security Archive Flashpoints Collection, Box 38)
Apesar
de ter sido alvo de uma profunda reescrita em comparação com os relatos
soviéticos destas conversas, a versão oficial do Departamento de Estado quanto
às garantias dadas pelo Secretário [de Estado dos EUA] Baker ao Ministro dos Negócios Estrangeiros
soviético Shevardnadze, imediatamente antes da
reunião formal com Gorbachev em 9 de Fevereiro de 1990, contém uma série de
frases reveladoras.
Eduard Shevardnadze (à esquerda) e James Baker III (à direita), no primeiro de dois dias de conversações em Houston, EUA, em 10 de Dezembro de1990. Foto: AP Laserphoto. |
Baker
propõe a fórmula “Dois Mais Quatro”, em que os
dois são as Alemanhas e os quatro as potências ocupantes do pós-guerra;
argumenta contra outras formas de negociar a reunificação; e defende a
ancoragem da Alemanha na OTAN. Além disso, Baker diz ao Ministro dos Negócios
Estrangeiros soviético:
«Uma Alemanha neutral adquiriria sem dúvida a sua própria
capacidade nuclear independente. No entanto, uma Alemanha firmemente ancorada
numa OTAN modificada, ou seja, uma OTAN que é muito menos uma organização
militar e muito mais uma organização política, não teria necessidade de uma
capacidade independente».
Teria,
evidentemente, de haver garantias irrefutáveis de que a jurisdição ou as forças
da OTAN não se deslocariam para leste. E isto teria de ser feito de uma forma
que satisfizesse os vizinhos da Alemanha a leste.
Documento 05
Memorando
da conversa entre Mikhail Gorbachev e James Baker em Moscovo.
9 de Fevereiro de 1990
Fonte
U.S. Department of State, FOIA 199504567 (National
Security Archive Flashpoints Collection, Box 38)
Mesmo
com as sucessivas reescritas (injustificadas) por parte dos responsáveis pela
classificação dos EUA, esta transcrição americana da talvez mais famosa
garantia dos EUA aos soviéticos sobre o alargamento da OTAN confirma a
transcrição soviética da mesma conversa. Repetindo o que Bush dissera na
cimeira de Malta em Dezembro de 1989, Baker diz a Gorbachev: «O Presidente e eu deixámos claro que não procuramos qualquer
vantagem unilateral neste processo» da inevitável reunificação alemã.
Baker prossegue dizendo: «Compreendemos a necessidade
de dar garantias aos países de Leste. Se mantivermos uma presença numa Alemanha
que faça parte da OTAN, as forças da OTAN não alargarão a sua jurisdição para
Leste nem um centímetro».
Mais
adiante, na conversa, Baker reitera a mesma posição sob a forma de uma
pergunta:
«preferiria uma Alemanha reunificada fora da OTAN, independente e sem forças americanas, ou uma Alemanha reunificada com ligações à OTAN e garantias de que não haveria alargamento da actual jurisdição da Organização para Leste?»
Moscovo, Kremlin, 1990. James Baker III (à esquerda) com Mikhail Gorbachev. |
Os
responsáveis pela desclassificação deste memorando reescreveram a resposta de
Gorbachev de que, de facto, um tal alargamento seria “inaceitável”
— mas a carta de Baker a Kohl no dia seguinte, publicada em 1998 pelos alemães,
apresenta a citação.
Documento 06
Registo
da conversa entre Mikhail Gorbachev e James Baker em Moscovo. (Excertos)
9 de Fevereiro de 1990
Fonte
Arquivo da Fundação
Gorbachev, Fond 1, Opis 1.
Este
registo da Fundação Gorbachev sobre o encontro do governante soviético com
James Baker, a 9 de Fevereiro de 1990, é público e está disponível para os
investigadores da Fundação desde 1996, embora só tenha sido publicado em inglês
em 2010, quando saiu o volume Masterpieces of History dos presentes
autores, pela Central European University Press. O documento centra-se na
reunificação alemã, mas também inclui uma discussão franca de Gorbachev sobre
os problemas económicos e políticos da União Soviética e os “conselhos gratuitos” de Baker («por vezes, desperta o Ministro das Finanças que há em mim»)
sobre preços, inflação e até sobre a política de venda de apartamentos para
absorver os rublos que os cautelosos cidadãos soviéticos guardam debaixo do
colchão.
Passando
à reunificação alemã, Baker garante a Gorbachev que «nem
o Presidente nem eu tencionamos extrair quaisquer vantagens unilaterais dos
processos que estão em curso» e que os americanos compreendem a
importância para a URSS e para a Europa das garantias de que «nem um centímetro da actual jurisdição militar da OTAN se
alargará para Leste». Baker defende as conversações ‘Dois Mais Quatro’ utilizando a mesma garantia: «
Acreditamos que as consultas e discussões no âmbito do mecanismo ‘dois
+ quatro’ devem garantir que a reunificação da Alemanha não levará a que a
organização militar da OTAN se estenda para Leste.»
Gorbachev
responde citando o Presidente polaco Wojciech Jaruzelski: «que a presença de tropas americanas e soviéticas na Europa
seja um elemento de estabilidade.»
A
troca de impressões decisiva ocorre quando Baker pergunta se Gorbachev
preferiria «uma Alemanha reunificada fora da OTAN,
absolutamente independente e sem tropas americanas; ou uma Alemanha reunificada
mantendo as suas ligações à OTAN, mas com a garantia de que a jurisdição ou as
tropas da OTAN não se alargariam para Leste da actual fronteira.»
Ou seja, nesta conversa, o Secretário de Estado dos EUA oferece por três vezes garantias de que se a Alemanha reunificada aderisse à OTAN, preservando a presença dos EUA na Europa, então a Organização não se alargaria para Leste. Curiosamente, nem uma única vez utiliza o termo RDA ou Alemanha de Leste, nem sequer menciona a presença de tropas soviéticas na Alemanha de Leste. Para um negociador hábil e um advogado cuidadoso, parece muito improvável que Baker não utilizasse uma terminologia específica se, de facto, se estivesse a referir apenas à Alemanha Oriental.
O
governante soviético responde que «vamos reflectir
sobre tudo isso. Tencionamos discutir todas estas questões em profundidade ao
nível da direcção. Escusado será dizer que um alargamento da zona da OTAN não é
aceitável [pelo PCUS] ”. Baker afirma: “Estamos
de acordo.”
Documento 07
Memorando
da conversa entre Robert Gates e Vladimir Kryuchkov em Moscovo.
9 de Fevereiro de 1990
Fonte
Biblioteca
Presidencial George H. W. Bush, NSC Scowcroft Files, Box 91128, Folder
“Gorbachev (Dobrynin) Sensitive.”
Esta
conversa é especialmente importante porque investigadores posteriores
especularam que o Secretário de Estado Baker poderá ter ultrapassado o seu
mandato ao afirmar «nem um centímetro para Leste»
na sua conversa com Gorbachev. Robert Gates, antigo destacado analista de
informações da CIA e especialista na URSS, afirma aqui ao seu homólogo, o chefe
do KGB, no seu gabinete no quartel-general do KGB em Lubyanka, exactamente o
que Baker disse a Gorbachev nesse dia no Kremlin: nem um centímetro para Leste.
Nessa
altura, Gates era o principal adjunto do conselheiro de segurança nacional do
Presidente, o general Brent Scowcroft, pelo que este documento refere uma
abordagem coordenada do governo dos EUA a Gorbachev. Kryuchkov, que Gorbachev
nomeara para substituir Viktor Chebrikov no KGB em Outubro de 1988, surge aqui
como surpreendentemente progressista em muitas questões de reforma interna.
Fala abertamente das deficiências e dos problemas da Perestroika, da
necessidade de abolir o papel de chefia do PCUS, do errado abandono a que as
questões étnicas foram votadas pelo governo central, do “atroz” sistema de preços e de outros temas internos.
Quando
a discussão passa para a política externa, em particular para a questão alemã,
Gates pergunta:
«O que é que Kryuchkov pensa da proposta Kohl/Genscher,
segundo a qual uma Alemanha reunificada seria associada à OTAN, mas em que as
tropas da OTAN não se deslocariam mais para Leste das posições actuais?
Parece-nos ser uma boa proposta.»
Kryuchkov
não dá uma resposta directa, mas refere como a questão da reunificação alemã é
sensível para a opinião pública soviético e sugere que os alemães deveriam
oferecer algumas garantias à União Soviética. Kohl e Genscher têm ideias
interessantes, mas «mesmo os pontos das suas propostas
com os quais concordamos teriam de ter garantias. Aprendemos com os americanos,
nas negociações de controlo de armamento, a importância da verificação e
teríamos de ter certezas.»
Documento 08
Carta
de James Baker para Helmut Kohl
10 de Fevereiro de 1990
Fonte
Deutsche
Enheit Sonderedition und den Akten des Budeskanzleramtes 1989/90,
eds. Hanns Jurgen Kusters e Daniel Hofmann (Munich: R. Odenbourg Verlag, 1998),
pp. 793-794
Este
documento fundamental apareceu pela primeira vez na edição académica dos
documentos da chancelaria de Helmut Kohl sobre a reunificação alemã, publicada
em 1998. Na altura, Kohl estava envolvido numa campanha eleitoral que iria
colocar ponto final ao seu mandato de 16 anos como Chanceler e queria recordar
aos alemães o seu papel fundamental no triunfo da reunificação.[9] O grande volume (mais de 1000
páginas) incluía textos em alemão dos encontros de Kohl com Gorbachev, Bush,
Mitterrand, Thatcher e outros – todos publicados sem qualquer consulta aparente
a esses governos, apenas oito anos após os acontecimentos. Alguns dos
documentos de Kohl, como este, aparecem em inglês, representando os originais
americanos ou britânicos em vez de notas ou traduções alemãs. Aqui, Baker
informa Kohl no dia seguinte ao seu encontro de 9 de Fevereiro com Gorbachev.
(Está previsto que o Chanceler tenha a sua própria sessão com Gorbachev a 10 de
Fevereiro em Moscovo). O americano informa o alemão sobre as “preocupações” soviéticas em relação à reunificação e
sintetiza a razão pela qual uma negociação “Dois Mais
Quatro” seria a sede mais adequada para as conversações sobre os «aspectos externos da reunificação», dado que os «aspectos internos... eram estritamente um assunto alemão.»
Baker
comenta em especial a resposta não comprometedora de Gorbachev à pergunta sobre
uma Alemanha neutra versus uma Alemanha OTAN com compromissos contra o
alargamento para Leste, e adverte Kohl de que Gorbachev «pode estar disposto a aceitar uma abordagem sensata que lhe
dê alguma cobertura...» Mais tarde nesse mesmo dia, Kohl reforça esta
mensagem na sua própria conversa com o dirigente soviético.
Documento 09
Memorando
da conversa entre Mikhail Gorbachev e Helmut Kohl
10 de Fevereiro de 1990
Fonte
Mikhail
Gorbachev i germanskii vopros, editada por Alexander
Galkin e Anatoly Chernyaev, (Moscow: Ves Mir, 2006)
Segundo
Kohl, este encontro em Moscovo foi o momento em que ouviu pela primeira vez de
Gorbachev que o dirigente soviético via a reunificação alemã como inevitável,
que o valor da futura amizade alemã numa “casa comum
europeia” superava a rigidez da Guerra Fria, mas que os soviéticos
precisariam de tempo (e dinheiro) antes de poderem reconhecer as novas
realidades.
Junho de 1989. Helmut Kohl com Mikhail Gorbachev em Bad Godesberg (Foto: Governo da RFA. Fotógrafo: Burkhard Jüttner) |
Preparado pela carta de Baker e pela fórmula de Tutzing do seu próprio Ministro dos Negócios Estrangeiros, Kohl assegura a Gorbachev, logo no início da conversa, que «acreditamos que a OTAN não deve alargar a sua esfera de actividades. Temos de encontrar uma solução razoável. Compreendo perfeitamente os interesses de segurança da União Soviética e sei que o senhor Secretário-geral e os dirigentes soviéticos terão de explicar claramente ao povo soviético o que se está a passar.» Mais tarde, os dois dirigentes discutiram sobre a OTAN e o Pacto de Varsóvia, com Gorbachev a comentar: «Dizem o que é a OTAN sem a RFA. Mas também poderíamos perguntar: o que é a Organização do Pacto de Varsóvia (OPV) sem a RDA?». Quando Kohl discorda, Gorbachev apela simplesmente a «soluções razoáveis que não envenenem a atmosfera das nossas relações» e diz que esta parte da conversa não deve ser tornada pública.
Andrei
Grachev, assessor de Gorbachev, escreveu mais tarde que o dirigente soviético
compreendeu desde cedo que a Alemanha era a porta para a integração europeia e
que «todas as tentativas de negociação [de
Gorbachev] sobre a fórmula final para a associação da
Alemanha à OTAN eram, portanto, muito mais uma questão de forma do que de
conteúdo sério; Gorbachev estava a tentar ganhar o tempo necessário para
permitir que a opinião pública interna se adaptasse à nova realidade, ao novo
tipo de relações que estavam a tomar forma nas relações da União Soviética com
a Alemanha, bem como com o Ocidente em geral. Ao mesmo tempo, esperava obter
dos seus parceiros ocidentais uma compensação política, pelo menos parcial, por
aquilo que considerava ser a sua principal contribuição para o fim da Guerra
Fria.»[10]
Documento 10-1
Notas
de Teimuraz Stepanov-Mamaladze na Conferência sobre o Regime de Céu Aberto,
Otava, Canadá.
12
de Fevereiro de 1990
Fonte
Hoover Institution
Archive, Stepanov-Mamaladze Collection.
O
Ministro dos Negócios Estrangeiros soviético, Shevardnadze, estava
particularmente descontente com o ritmo acelerado dos acontecimentos relativos
à reunificação alemã, sobretudo quando uma reunião dos Ministros dos Negócios
Estrangeiros da OTAN e do Pacto de Varsóvia, previamente agendada para Otava,
no Canadá, de 10 a 12 de Fevereiro de 1990, e destinada a discutir o tratado ‘Céu Aberto’, se transformou numa ampla negociação
para resolver os pormenores sobre a Alemanha e a instalação do processo ‘Dois Mais Quatro’.
O
adjunto de Shevardnadze, Teimuraz Stepanov-Mamaladze, redigiu notas sobre as
reuniões de Otava numa série de cadernos de apontamentos e manteve também um
diário menos telegráfico, que tem de ser lido em conjunto com os cadernos de
apontamentos para um conhecimento mais completo. Arquivados agora na Hoover
Institution, estes excertos das notas e do diário de Stepanov-Mamaladze
registam a desaprovação de Shevardnadze pela rapidez do processo, mas, mais
importante, reforçam a importância das reuniões de 9 e 10 de Fevereiro em
Moscovo, onde foram proferidas as garantias ocidentais sobre a segurança
soviética e onde o consentimento de Gorbachev, em princípio, para uma eventual
reunificação alemã fez parte do acordo.
As
notas dos primeiros dias da conferência são muito breves, mas contêm uma linha
importante que mostra que Baker ofereceu em Otava a mesma fórmula de garantia
que em Moscovo:
«E se a Alemanha [reunificada] ficar na OTAN, devemos ter cuidado para que não haja alargamento da sua
jurisdição para Leste.»
Shevardnadze não está pronto a discutir as condições para a reunificação alemã; diz que tem de consultar Moscovo antes de aprovar qualquer condição. Em 13 de Fevereiro, segundo as notas, Shevardnadze queixa-se: «Estou numa situação idiota – estamos a discutir o ‘Céu Aberto’, mas os meus colegas falam da reunificação da Alemanha como se fosse um facto.» As notas mostram que Baker foi muito persistente na tentativa de fazer com que Shevardnadze definisse as condições soviéticas para a reunificação alemã na OTAN, enquanto Shevardnadze ainda se sentia desconfortável com o termo “reunificação”, insistindo no termo mais geral “unidade.”
Documento
10-2
Diário
de Teimuraz Stepanov-Mamaladze, 12 de Fevereiro de 1990.
12
de Fevereiro de 1990
Fonte
Hoover
Institution Archive, Stepanov-Mamaladze Collection.
Esta
entrada do diário de 12 de Fevereiro contém uma descrição muito sucinta da
visita de Kohl e Genscher a Moscovo, a 10 de Fevereiro, sobre a qual
Stepanov-Mamaladze nada tinha escrito anteriormente (uma vez que não estivera
presente).
Compartilhando
a opinião do seu ministro, Shevardnadze, Stepanov reflecte sobre a natureza
apressada e as insuficientes considerações dadas às discussões em Moscovo:
«Antes da nossa visita aqui, Kohl e Genscher fizeram uma
visita apressada a Moscovo. E com a mesma pressa – na opinião de E. A. [Shevardnadze]
– Gorbachev aceitou o direito dos alemães à unidade e
à autodeterminação.»
Esta entrada no diário é prova, numa
perspectiva crítica, de que os Estados Unidos e a Alemanha Ocidental deram
garantias concretas a Moscovo sobre a manutenção da OTAN na dimensão e no
âmbito que possuíam na altura. De facto, o diário indica ainda que, pelo menos
na opinião de Shevardnadze, essas garantias equivaliam a um acordo — que
Gorbachev aceitou, mesmo quando as coisas já se começavam a arrastar.
Documento 10-3
Diário
de Teimuraz Stepanov-Mamaladze, 13 de Fevereiro de 1990.
13 de Fevereiro de 1990
Fonte
Hoover Institution
Archive, Stepanov-Mamaladze Collection.
No
segundo dia da conferência de Otava, Stepanov-Mamaladze descreve as difíceis
negociações quanto à formulação exacta da declaração conjunta sobre a Alemanha
e o processo ‘Dois Mais Quatro’.
Shevardnadze
e Genscher discutiram durante duas horas sobre os termos “unidade” e “reunificação”,
numa altura em que Shevardnadze tentava abrandar o ritmo das negociações sobre
a Alemanha e fazer com que os outros ministros se concentrassem no ‘Céu Aberto’.
O
dia foi bastante intenso: «Ao longo do dia, houve
jogos activos entre todos eles. E. A. [Shevardnadze] encontrou-se cinco vezes com Baker, duas vezes com Genscher,
falou com Fischer [Ministro dos Negócios Estrangeiros da RDA], Dumas [Ministro dos Negócios Estrangeiros francês] e com os ministros dos países ATS” e, finalmente, o
texto do acordo foi estabelecido, utilizando a palavra “unidade”. A declaração final também considerou o acordo sobre as
tropas americanas e soviéticas na Europa Central como a principal conquista da conferência. Mas para os delegados soviéticos, «o ‘Céu Aberto’
[estava] ainda fechado pela nuvem de tempestade da Alemanha.»
Documento
11
21 de Fevereiro de 1990
Fonte
State Department FOIA release, National Security Archive Flashpoints
Collection, Box 38.
Este
memorando, provavelmente da autoria de Robert Zoellick, um dos principais
assessores de Baker no Departamento de Estado, contém a franca visão americana
do processo ‘Dois Mais Quatro’, com as
vantagens de «manter o envolvimento americano no
debate sobre a reunificação (e mesmo algum controlo sobre ele).»
O
receio americano era que os alemães ocidentais fizessem o seu próprio acordo
com Moscovo para uma rápida reunificação, abdicando de algumas das linhas de
fundo para os EUA, principalmente a adesão à OTAN. A título de exemplo,
Zoellick salienta que Kohl tinha anunciado os seus 10 Pontos sem consultar
Washington e após sinais de Moscovo, e que os EUA tinham sabido da ida de Kohl
a Moscovo pelos soviéticos e não pelo próprio Kohl.
O memorando responde antecipadamente às objecções quanto à inclusão dos soviéticos, salientando que estes já se encontravam na Alemanha e que era preciso lidar com eles. O acordo ‘Dois-Mais-Quarto’ inclui os soviéticos, mas impede-os de ter direito de veto (o que um processo de Quatro Potências ou um processo das Nações Unidas poderia permitir), enquanto uma conversa efectiva ‘Um-Mais-Três’ antes de cada reunião permitiria à Alemanha Ocidental e aos EUA, com os britânicos e os franceses, chegar a uma posição comum. Especialmente reveladores são os sublinhados e a caligrafia de Baker nas margens, nomeadamente a sua frase exuberante: «quem não conhece vai poder assistir a uma aquisição com recurso a capitais alheios!»
Documento
12-1
Memorando
da conversa entre Vaclav Havel e George Bush em Washington.
20
de Fevereiro de 1990
Fonte
Biblioteca
Presidencial George H. W. Bush, Memcons e Telcons (https://bush41library.tamu.edu/)
Estas
conversas podem ser chamadas de “a educação de Vaclav
Havel,”[10]
uma vez que o antigo dissidente que se tornou Presidente da Checoslováquia
visitou Washington apenas dois meses depois de a Revolução de Veludo o ter
levado da prisão para o Castelo de Praga.
Havel
foi aplaudido de pé durante um discurso proferido a 21 de Fevereiro numa sessão
conjunta do Congresso e manteve conversações com Bush antes e depois da sua
presença nesta sessão. Havel fora já citado pelos jornalistas como tendo
apelado à dissolução dos blocos da Guerra Fria, tanto da OTAN como do Pacto de
Varsóvia, e à retirada das tropas, pelo que Bush aproveitou a oportunidade para
dar um sermão ao governante checo sobre o valor da OTAN e o seu papel essencial
como base da presença dos EUA na Europa.
Ainda
assim, Havel mencionou duas vezes no seu discurso ao Congresso a esperança de
que «os soldados americanos não tenham de ser
separados das suas mães» só porque a Europa não conseguiu manter a paz,
e apelou a uma «futura Alemanha democrática em vias de
se reunificar numa nova estrutura pan-europeia que possa decidir sobre o seu
próprio sistema de segurança.» Mas depois, ao falar novamente com Bush,
o antigo dissidente tinha claramente percebido a mensagem. Havel disse que
talvez tivesse sido mal interpretado, que via certamente o valor do
empenhamento dos EUA na Europa. Por seu lado, Bush levantou a possibilidade,
assumindo uma maior cooperação da Checoslováquia nesta questão, de investimento
e ajuda dos EUA.
Documento
12-2
Memorando
da conversa entre Vaclav Havel e George Bush em Washington.
21
de Fevereiro de 1990
Fonte
Biblioteca
Presidencial George H. W. Bush, Memcons and Telcons (https://bush41library.tamu.edu/)
Este
memorando escrito após o discurso triunfante de Havel ao Congresso contém o
pedido de Bush a Havel para que transmita a Gorbachev a mensagem de que os
americanos o apoiam pessoalmente e que “não nos
comportaremos de forma errada dizendo ‘nós ganhamos, vocês perderam’.”
Sublinhando a questão, Bush diz: “diga a Gorbachev
que... peço-lhe que diga a Gorbachev que não nos comportaremos em relação à
Checoslováquia ou a qualquer outro país de forma a complicar os problemas que
ele tão francamente discutiu comigo.”
O
dirigente da Checoslováquia acrescenta a sua própria advertência aos americanos
sobre a forma de proceder à reunificação da Alemanha e de lidar com as
inseguranças soviéticas. Havel diz a Bush: “É uma
questão de prestígio. Esta é a razão pela qual falei do novo sistema de
segurança europeu sem mencionar a OTAN. Porque, se surgisse a partir da OTAN,
teria de ter outro nome, quanto mais não fosse por causa do elemento de
prestígio. Se a OTAN tomar conta da Alemanha, parecerá uma derrota, uma
superpotência a conquistar outra. Mas se a OTAN se conseguir transformar –
talvez em conjunto com o processo de Helsínquia – parecerá um processo pacífico
de mudança, não uma derrota.” Bush respondeu de forma positiva: “Suscitou uma boa questão. A nossa opinião é que a OTAN
continuaria com um novo papel político e que nos basearíamos no processo da
CSCE. Iremos reflectir sobre a forma como podemos proceder.”
Documento
13
Memorando
da conversa entre Helmut Kohl e George Bush em Camp David.
4
de Fevereiro de 1990
Fonte
Biblioteca
Presidencial George H. W. Bush, Memcons and Telcons (https://bush41library.tamu.edu/)
Em
Fevereiro de 1990, a principal preocupação do governo Bush em relação à
reunificação alemã, à medida que o processo ia acelerando, era que os alemães
ocidentais pudessem fazer o seu próprio acordo bilateral com os soviéticos (ver
Documento 11) e pudessem estar dispostos a negociar a adesão à OTAN. O Presidente
Bush comentou mais tarde que o objectivo da reunião de Camp David com Kohl era
“manter a Alemanha na reserva da OTAN”, e foi
isso que determinou a agenda deste conjunto de reuniões.
O
Chanceler alemão chega a Camp David sem Genscher porque este último não compartilha
inteiramente a posição Bush-Kohl sobre a adesão plena da Alemanha à OTAN e,
recentemente, irritara os dois governantes ao falar publicamente sobre a CSCE
como o futuro mecanismo de segurança europeu.[12]
No
início desta conversa, Kohl agradece o apoio de Bush e de Baker durante as suas
conversações com Gorbachev em Moscovo no início de Fevereiro, especialmente a
carta de Bush em que este afirmava o forte empenho de Washington na
reunificação alemã na OTAN. Ambos os dirigentes expressaram a necessidade de
uma cooperação mais estreita entre si para alcançar o resultado desejado.
A
prioridade de Bush é manter a presença dos EUA na Europa, em especial a protecção
nuclear: «se as forças nucleares americanas forem
retiradas da Alemanha, não vejo como poderemos persuadir qualquer outro aliado
no continente a manter essas armas.» O Presidente refere sarcasticamente
as críticas oriundas do Capitólio: «Temos ideias
estranhas no nosso Congresso hoje em dia, ideias como este dividendo de paz.
Não podemos fazer isso nestes tempos de incerteza».
Ambos
os governantes estão preocupados com a posição que Gorbachev poderá adoptar e
concordam com a necessidade de o consultar regularmente. Kohl sugere que os
soviéticos precisam de ajuda e que o acordo final sobre a Alemanha pode ser uma
“questão de dinheiro”. Prenunciando a sua
relutância em contribuir financeiramente, Bush responde: «vocês têm bolsos fundos». A certa altura, Bush
parece ver o seu homólogo soviético não como um parceiro, mas como um inimigo
derrotado. Referindo-se ao facto de nalguns bairros soviéticos se falar contra
a permanência da Alemanha na OTAN, diz: «Que se
lixe isso. Nós vencemos e eles não. Não podemos deixar que os soviéticos
retirem uma vitória das garras da derrota.»
Documento 14
Memorando
da conversa entre George Bush e Eduard Shevardnadze em Washington.
6 de Abril de 1990
Fonte
Biblioteca Presidencial
George H. W. Bush, Memcons and Telcons (https://bush41library.tamu.edu/)
O
Ministro dos Negócios Estrangeiros [da União Soviética] Shevardnadze entrega a
Bush uma carta de Gorbachev, na qual o Presidente soviético passa em revista as
principais questões antes da próxima cimeira. As questões económicas estão no
topo da lista para a União Soviética, especificamente o estatuto de ‘Nação Mais Favorecida’ e um acordo comercial com
os Estados Unidos.
Shevardnadze
manifesta a sua preocupação com a falta de progressos nestas questões e com os
esforços dos EUA para impedir o BERD de conceder empréstimos à URSS.
Shevardnadze sublinha que a URSS não está a pedir ajuda, «apenas queremos ser tratados como parceiros».
Relativamente às tensões na Lituânia, Bush afirma que não quer criar
dificuldades a Gorbachev em questões internas, mas salienta que tem de insistir
nos direitos dos lituanos porque a sua incorporação na URSS nunca foi
reconhecida pelos Estados Unidos. No que se refere ao controlo de armamento,
ambas as partes assinalam alguns recuos da outra e manifestam o desejo de
finalizar rapidamente o Tratado START. Shevardnadze menciona a próxima cimeira
da CSCE e a expectativa soviética de que nela sejam discutidas as novas
estruturas de segurança europeias. Bush não contradiz este facto, mas associa-o
às questões da presença dos EUA na Europa e da reunificação alemã na OTAN.
Declara que quer «contribuir para a estabilidade e
para a criação de uma Europa inteira e livre ou, como lhe chamam, uma ‘casa
comum europeia’. Uma ideia que está muito próxima da nossa”. Os
soviéticos – erradamente – interpretam isto como uma declaração de que o
governo dos EUA compartilha a ideia de Gorbachev.
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[*] O tradutor emprega a ortografia em vigor antes do (des)Acordo Ortográfico de 1990.
[A
Parte
III deste arquivo será publicada oportunamente]
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Notas
[8] Genscher
disse a Baker a 2 de Fevereiro de 1990 que, segundo o seu plano, «a OTAN não alargaria a sua cobertura territorial à área da
RDA nem a qualquer outra da Europa Oriental.» Secretário de Estado para
a Embaixada EUA em Bona, “Baker-Genscher Meeting February 2,” Biblioteca
Presidencial George H. W. Bush, NSC Kanter Files, Box CF00775, Folder
“Germany-March 1990.” Citado
por Joshua R. Itkowitz Shifrinson, “Deal or No Deal? The End of the Cold War
and the U.S. Offer to Limit NATO Expansion,” International Security,
Spring 2016, Vol. 40, No. 4, pp. 7-44.
[9] A
versão anterior deste texto referia que Kohl foi «apanhado
num escândalo de corrupção no financiamento de campanhas que acabaria com a sua
carreira política»; contudo, esse escândalo só foi revelado em 1999,
depois de Kohl ter perdido o lugar na sequência das eleições de Setembro de
1998. Os autores agradecem ao Prof. Dr. H.H. Jansen pela correcção e pela
leitura atenta da publicação.
[10] Ver Andrei Grachev, Gorbachev’s Gamble (Cambridge,
UK: Polity Press, 2008), pp. 157-158.
[11] Para
ficar a conhecer um relato perspicaz da elevada eficácia dos esforços
educativos de Bush junto dos dirigentes da Europa Oriental incluindo Havel –
bem como dos aliados – ver Jeffrey A. Engel, When the World Seemed New:
George H. W. Bush and the End of the Cold War (Houghton Mifflin
Harcourt, 2017), pp. 353-359.
[12] Ver George H. W. Bush e Brent Scowcroft, A
World Transformed (New York: Knopf, 1998), pp. 236, 243, 250.
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