Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

23 janeiro, 2016


TEMA 3


DEMOCRACIA, DITADURA
E OLIGOCRACIA LIBERAL 

(PARTE 1)
José Catarino Soares

INTRODUÇÃO

Nas sociedades capitalistas e, mais geralmente, nas sociedades divididas em classes sócio-económicas, a diferença entre uma "democracia" e uma "ditadura" (não no sentido que o termo "ditadura" tinha na República romana antiga, onde nasceu, mas no sentido moderno (e deturpado ) do termo, o de tirania, seja de um indivíduo, de uma camarilha ou de um partido) é fácil de reconhecer. Reside, em primeira análise, no facto de que, numa "democracia", podemos (nós,  os cidadãos) mudar de governo, caso haja uma maioria que o deseje, sem ser necessária uma insurreição armada bem sucedida − ou seja (porque uma coisa está normalmente ligada à outra), sem fazer uso da força bruta, armada, e sem derramamento de sangue  −  e numa "ditadura" não.

Podemos chamar a este critério, o critério ou teste de Popper, porque foi o filósofo Karl Popper quem o formulou no seu livro A Sociedade Aberta e os seus Inimigos (1945) − traduzido no Brasil em 1974 (Edição da Universidade de São Paulo) e em Portugal em 2012 (Edições 70) − e em escritos ulteriores. 


Karl R. Popper (1902-1994) 

MÉRITOS DO CRITÉRIO DE POPPER

Quem aceita distinguir "democracia" e "ditadura" por meio deste critério não é obrigado a aceitar o resultado de uma votação democrática como a expressão abalizada do que é correcto, bom ou sábio. Não é também obrigado a aceitar que as medidas adoptadas por um governo livremente eleito sejam correctas, boas ou sábias, ou sequer necessariamente melhores e mais sensatas de que as de um ditador benevolente ou de um déspota esclarecido. 

O que está implícito na adopção do critério de Popper é apenas a convicção de que até mesmo a aceitação temporária de um mau governo numa "democracia" − entenda-se, um governo com uma política pública ruim ou nefasta − é preferível (desde que possamos criticá-lo e trabalhar, sem sermos presos ou perseguidos, em prol de um governo e de uma política pública diferentes) à submissão a uma "ditadura", por mais sábia ou benevolente que seja.

LIMITES DO CRITÉRIO DE POPPER

O critério de Popper é muito simples de compreender e muito útil para desenvolver uma educação para a cidadania e uma vigilância constante contra todos os abusos do poder de Estado. Mas é também, apesar desses méritos, um critério bastante rudimentar. 

Em particular, esse critério não nos diz nada acerca da importantíssima questão de saber como devemos agir se a maioria eleger um governo...inimigo da "democracia". O próprio Popper chamou a este caso o « paradoxo da democracia » (mas esta designação não é apropriada, como veremos mais adiante), pois, segundo ele, seria no facto de que a "democracia" está vinculada à regra inescapável de que, numa decisão democrática, prevalece o resultado da votação favorável à maioria, que residiria o calcanhar de Aquiles da "democracia". Isto porque uma maioria apurada por métodos democráticos pode abrir caminho a uma "ditadura".

O EXEMPLO DA ALEMANHA NAZI

Foi o que sucedeu, por exemplo, na Alemanha, nos anos 1930. Em Junho de 1932,  o partido nazi de Adolf  Hitler teve 40% dos votos nas eleições parlamentares, mais do que qualquer outro partido. Em Novembro de 1932, o partido nazi perdeu quase dois milhões de votos em relação às eleições anteriores, mas, mesmo assim, foi o partido mais votado (33% dos votos). Ficou claro para os nazis, nessa altura, que eles não conseguiriam a maioria através de eleições livres. Por isso, Hitler decidiu fazer uma aliança com os demais partidos de direita. Em Janeiro de 1933, Hitler foi nomeado chanceler, ou seja, 1.º ministro do governo alemão, pelo presidente da República de então (a chamada república de Weimar), marechal Paul von Hindenburg. A partir dessa data, os acontecimentos sucederam-se a uma cadência vertiginosa.

Em Fevereiro de 1933, o edifício do parlamento alemão (Reichstag) é incendiado. Hitler acusa o partido comunista alemão de ter instigado esse crime e manda prender, como seus autores materiais, Ernst Torgler, ex-dirigente do grupo parlamentar do partido comunista alemão no Reichstag, três cidadãos búlgaros (Georgi Dimitrov, Blagoj Popov e Vasil Tanev), todos funcionários proeminentes do Comintern (Internacional Comunista) a viver ilegalmente na Alemanha, e um cidadão holandês (Marinus van der Lubbe), cuja identidade política é ainda hoje controvertida. No julgamento, o alemão e os búlgaros acabam por ser ilibados por falta de provas e o holandês, um homem quase cego, que se havia declarado único autor do crime, é condenado à morte e decapitado. Hoje, porém, sabemos bastante bem o que de facto se passou (nota 1).

Apesar deste desfecho decepcionante para os seu planos, Hitler vai usar este incidente dramático para assumir poderes extraordinários. Convence o presidente da República, a declarar o estado de emergência. Os direitos individuais assegurados pela Constituição da república de Weimar são suspensos. Os jornais críticos do governo são proíbidos, milhares de comunistas, sociais-democratas (também conhecidos por socialistas) e cidadãos de outros credos políticos são presos e enviados para campos de concentração. Os sindicatos são proíbidos e os trabalhadores do sector privado e da função pública, assim como o patronato, são arregimentados em organizações nazis. Os cargos de chefia na administração pública, nas polícias, no sistema judiciário, nas forças militares, nas universidades são crescentemente ocupados por militantes e simpatizantes do partido nazi.

Nas eleições parlamentares de 5 Março de 1933, o partido nazi obtem 44% dos votos. Hitler decide então fazer aprovar um projecto de lei que daria ao seu governo o poder de decretar leis sem as submeter à aprovação do parlamento alemão. O projecto é aprovado com o apoio dos demais partidos de direita depois de muitos deputados socialistas e comunistas terem sido presos antes da votação. O presidente Hindenburg promulga a lei de concessão de plenos poderes a Hitler. Logo de seguida, Hitler proíbe todos os partidos políticos, com excepção do partido nazi. Foi assim, muito resumidamente, que foi instaurada uma ditadura que, como sabemos, mudou a face do seu país, da Europa e do mundo, mergulhando-os numa orgia de terror, escravização, genocídio, guerra, carnificina e imensas destruições materiais.

Marechal Paul von Hindenburg (1847-1934), presidente da república alemã de Weimar de 1924 a 1934. Nomeou Hitler como chanceler da Alemanha em Janeiro de 1933 e promulgou a lei que lhe concedia plenos poderes ditatoriais em Março de 1933 

São duas, pelo menos, as lições que podemos tirar destes factos. A primeira lição é que não há nenhuma forma de Estado boa (nota 2). Há apenas formas de Estado irremediavelmente más e formas de Estado menos más, formas cuja ruindade pode ser atenuada ou mitigada pela acção livre e esclarecida dos cidadãos. 

As formas de Estado irremediavelmente más são aquelas em que não há cidadãos, visto que estes não têm a possibilidade de mudar de governo (e mais geralmente, a possibilidade de mudar as suas instituições políticas) por meios pacíficos, constitucionais. Por conseguinte, essas formas de Estado − oligocracias liberticidas e oligocracias totalitárias − só podem ser derrubadas pela força, como aconteceu, por exemplo, em Portugal em 25 de Abril de 1974, ou então, na melhor das hipóteses, implodem sob a pressão dos protestos e das lutas pacíficas da maioria da população, como sucedeu, por exemplo, na Checoslováquia e na Alemanha de leste em 1989, não sem exigirem quase sempre o derramamento de sangue de alguns dos muitos que que se lhes opõem. 

As outras formas de Estado são aquelas em que o governo pode ser demitido através de eleições livres por sufrágio universal, directo e secreto, ou de outros mecanismos liberais (como, por exemplo, uma moção de censura num parlamento livremente eleito).

Normalmente, as formas de Estado do primeiro tipo são apelidadas de “ditaduras” ou “tiranias” e as formas de Estado do segundo tipo são apelidadas de “democracias”. Mas não são os nomes que contam. A Coreia do norte, por exemplo, chama-se oficialmente República Popular Democrática da Coreia, mas não é esse nome que conta. O que conta, em primeiro lugar, é se o governo de tal ou tal país pode ou não ser mudado sem derramamento de sangue por vontade da maioria dos seus habitantes. E fazendo esse teste, ficamos a saber, objectivamente, se não tudo, pelo menos algo de essencial sobre a natureza do regime que vigora nesse país (na Coreia do norte, por exemplo) , independentemente do nome que lhe dermos ou que os seus governantes lhe dão.

A outra lição a tirar da Alemanha hitleriana é que a "democracia", tal como é normalmente caracterizada, não garante que se consiga realizar alguma coisa de válido em prol da dignidade humana e da melhoria das condições de vida do conjunto da população, em particular da sua secção mais numerosa nas sociedades capitalistas desenvolvidas: a classe dos trabalhadores assalariados. Como o próprio Popper insistiu muitas vezes, e bem, a "democracia" (o que denominava "democracia") em si mesma não pode fazer nada. A "democracia" considerada abstractamente, como se fosse apenas um organigrama da organização do poder vigente numa sociedade, não é mais do que uma estrutura institucional dentro da qual os cidadãos podem actuar (falar, escrever, reunir-se, associar-se, viajar, rezar, criticar, protestar, etc.) com o mínimo de restrições da sua liberdade. 

As instituições, porém, não agem. Quem age são os indivíduos nas instituições, através das instituições e muitas vezes contra as instituições que eles próprios ou outros ajudaram a construir ou a consolidar. Só os cidadãos de um regime democrático podem agir individual ou colectivamente. A democracia não pode, por isso, ser melhor do que os democratas. São os democratas que a podem defender e melhorar, mais ninguém. Assim, como afirmou Popper: « É um idiotice queixarmo-nos da democracia. A resposta a essas queixas é a seguinte: o que é que tu fizeste para melhorar a democracia? »

DEMOCRACIA DE TIPO ATENIENSE

Esta questão levanta uma outra, prévia: que devemos entender exactamente por "democracia"? Vimos que o critério de Popper é suficiente para nos permitir distinguir grosso modo uma "ditadura" (= a tirania de um indivíduo ou de um grupo) de uma "democracia". Porém, como vamos ver de seguida, esse critério é insuficiente para nos permitir caracterizar, pela positiva, uma democracia genuína. 

A razão fundamental da insuficiência do teste de Popper é a sua aceitação implícita da distinção entre governantes (um grupo mais ou menos numeroso de indivíduos com funções políticas especializadas: "executivas", legislativas e juridiscionais) e governados (a massa politicamente indiferenciada da população de um país que está excluída dessas funções) e do princípio semiótico da representação política (os governantes devem representar a vontade dos governados). Um regime edificado com base nestes dois pressupostos pode ser chamado, com propriedade, república semioticamente representativa. A grande maioria dos analistas políticos chama democracia à república semioticamente representativa, como se os dois termos fossem sinónimos. Isso, porém, não corresponde à verdade. 

A verdade é que há uma forma de instituição e de exercício do poder político que merece inteiramente o nome de democracia, pese embora o facto de ser diametralmente oposta à república semioticamente representativa. Refiro-me a uma forma que foi instituída com êxito e assim chamada, pela primeira vez, pelos cidadãos de Atenas, nos finais do século VI a.C.; que aí se aprimorou durante o século V a.C., e que, embora já sem o fulgor que alcançara em meados desse século, perdurou até a uma data avançada (ano 322) do século IV a.C. 

A democracia de tipo ateniense, ou (o que vem ser o mesmo) a democracia propriamente dita, não se baseia na distinção entre governantes e governados, nem no princípio semiótico de que os governantes devem "representar" a vontade política da maioria que os elegeu e que lhes conferiu para tanto o poder político nas suas diferentes funções − a função legislativa, a função "executiva" e, indirectamente, a função juridiscional. 

Pelo contrário, baseia-se no postulado de que (i) todos os cidadãos podem, em pé de igualdade, governar e ser governados − ou seja, desempenhar directa e alternadamente todas as funções do poder − e no postulado (ii) de que qualquer governo de uns poucos (p. ex., o governo de um partido ou de uma coligação de partidos), incluindo um governo semioticamente representativo inicialmente apoiado por uma maioria de cidadãos, pode facilmente desenvolver (e desenvolve amiúde) políticas públicas perniciosas e com resultados muitas vezes irreversíveis, e pode até, como no caso de Hitler, instaurar uma ditadura. 

Para alcançar os seus intentos, Hitler utilizou a fanfarronice, a chantagem, a mentira e a intimidação em grande escala, o fogo posto, o assassinato, os ataques dos bandos armados de arruaceiros (SA e SS) do seu partido. Mas não foi isso que lhe assegurou a vitória. A mafia também utiliza essas armas e, no entanto, a mafia nunca conseguiu tomar (nem nunca quis tomar) o poder político num país capitalista industrialmente desenvolvido. O que assegurou a vitória de Hitler foi o modo como conseguiu paralizar os partidos seus adversários e, sobretudo, os milhões de cidadãos que votavam tradicionalmente nesses partidos. Para os paralizar, Hitler só teve de invocar os argumentos básicos dos partidos defensores da república semioticamente representativa: (i) «Temos um mandato para governar durante X anos que nos foi conferido pela maioria que nos elegeu»;  (ii)  «Ninguém melhor do que o partido vencedor das eleições está em medida de decidir o melhor modo de realizar o mandato que o povo lhe confiou»; (iii) «Precisamos de estabilidade governativa: deixem-nos governar !». 

Não é possível imaginar a tomada de poder de alguém como Hitler numa democracia genuína, num regime onde todos os cidadãos sejam simultaneamente governantes e governados. 

A democracia neste sentido, no sentido ateniense (que é também o sentido etimológico da palavra grega demokratia [democracia]dêmos [povo, o colectivo dos cidadãos] e kratos [poder], o poder do povo) é o regime do autogoverno − ou seja, o regime da autocriação, da autolimitação e da auto-alteração das instituições sociais que dependem de uma actividade colectiva explícita − pelos cidadãos que constituiem o dêmos, os quais, desse modo, se auto-instituiem em comunidade política autónoma (pólis, em grego).

Destarte, vale pena lembrar aqui sucintamente os vários métodos igualitários de governo democrático desenvolvidos pela democracia ateniense antiga. 
É ocaso, por exemplo, (i) do direito inalienável de todos os cidadão pertencerem à assembleia geral soberana (legislativa e deliberativa) do dêmos (3); (ii) de nela poderem tomar a palavra e votar livremente segundo a sua consciência; (iii) da designação, por tiragem à sortede entre os cidadãos do dêmos, de quase todos os magistrados (não dos "governantes"!), incluindo executivos,  jurados e legisladores (Gr. nomótetas), ou seja, a ocupação por sorteio e rotação, regra geral por um período anual e nunca por dois mandatos consecutivos, de todos os cargos de todos os orgãos colegiais dotados do poder de executar as decisões, administrar a justiça (jurados) e interpretar e codificar os decretos e as leis (nomótetas) aprovados pela assembleia geral do dêmos e pelo Conselho dos 500(iv) a eleição periódica pela  Ekklesia, a assembleia geral do dêmos, após exame técnico, dos magistrados-peritos necessários à pólis (p. ex., na pólis ateniense, a eleição dos embaixadores e dos estrategos [aqueles a quem hoje daríamos o nome de generais e almirantes] e de outros comandantes de menor patente da marinha de guerra, da infantaria e da cavalaria); (v) a obrigação a que estavam sujeitos tanto os magistrados-peritos (escolhidos por eleição) como os demais magistrados (escolhidos por sorteio) de prestarem contas publicamente da sua missão no fim do seu mandato, para efeitos de avaliação; obrigação cumprida, consoante os casos, perante o Conselho dos 500 ou perante o Tribunal do Povo, detentores também do poder de os demitir das suas funções a todo o momento. 
São estes métodos que devem ser considerados como salvaguardas institucionais bem testadas da democracia contra a húbris política (a soberba e a desmedida alimentadas pela concentração e pelo abuso do poder), contra o peculato, a corrupção, a incúria e o conformismo; salvaguardas capazes, inclusive, de fornecer métodos para o próprio aprimoramento da democracia. O mesmo vale dizer daqueles direitos e daquelas liberdades e garantias que se desenvolveram na Europa ao longo da luta multissecular contra o feudalismo, contra o absolutismo monárquico, contra o esclavagismo, contra a república censitária e contra o capitalismo – como o habeas corpus, a separação da esfera política da esfera religiosa, a liberdade de reunião, a liberdade de expressão, a liberdade de associação, a liberdade de manifestação, a liberdade de imprensa, a extensão da cidadania às mulheres, o direito à greve, etc. 

Por outras palavras, os métodos igualitários de iniciativa, decisão e controlo políticos inventados pelos gregos do século V a.C., assim como os direitos, as liberdades e as garantias institucionais criados pelo movimento emancipatório que recomeçou, na Europa ocidental, a partir dos séculos XI-XII, devem ser considerados como salvaguardas institucionais da democracia contra a sua própria degenerescência e contra a instauração de uma ditadura (desde que essas salvaguardas se apoiem na existência, no seio do demos, de um genuíno apreço generalizado pela democracia e de uma  genuína aversão generalizada pela ditadura).


Péricles (c. 495-429 a.C.), o mais ilustre cidadão da polis de Atenas durante a "idade de ouro" (século V a.C, antes da guerra do Peloponeso) da democracia ateniense. elmo coríntio simboliza a sua função de estratego (general eleito)

OS DOIS SENTIDOS DA PALAVRA "REPRESENTAÇÃO" 

Chegou a altura de elucidar o significado da expressão "princípio semiótico da representação", o que implica distinguir muito bem os dois sentidos das palavras "representação", "representatividade"   e "representativo".
O princípio semiótico da representação pode ser resumido na frase latina Aliquid stat pro aliquo − algo faz as vezes de [= representa] outra coisa. Esta era a definição de signo dos escolásticos; ou seja, o signo é algo [aliquid] que deve substituir, representando-a [stat pro],  uma outra coisa [aliquo].
Por exemplo, uma nota de 100 euros representa (semioticamente) X litros de gasolina, Y litros de leite, Z quilos de batatas, etc.; a bandeira verde e vermelha das quinas representa (semioticamente) Portugal; a palavra portuguesa ferro representa (semioticamente) o 26.º elemento químico da tabela de Mendeleev; um advogado representa os seus clientes em tribunal. Na representação semiótica (ou, equivalentemente, na representação signíca) não é necessário que o representante (o signo) e a coisa representada (o referente) sejam da mesma espécie, nem que, se forem da mesma espécie, sejam semelhantes no que é pertinente para efeitos de representação.
Há, porém, um outro princípio de "representação", inteiramente distinto do princípio semiótico de representação. É o princípio estatístico (ou probabilístico ou aleatório) da representação/ representatividade.
É o princípio utilizado, por exemplo, em muitos inquéritos sociológicos e epidemiológicos. Estes tipos de estudos baseiam-se na ideia de que a melhor forma de evitar o enviesamento é selecionar uma amostra aleatória, também conhecida como amostra probabilística, da população que se pretende estudar. Uma amostra aleatória é definida como uma amostra em que cada membro individual da população tem uma oportunidade conhecida e diferente de zero de ser seleccionado como parte da amostra. Os vários tipos de amostras aleatórias incluem amostras aleatórias simples, amostras sistemáticas, amostras aleatórias estratificadas e amostras aleatórias por agrupamentos.
A democracia ateniense era baseada, como vimos, na tiragem à sorte (por outras palavras, na selecção de uma amostra aleatória) dos seus legisladores, jurados e executivos − ou seja, a esmagadora maioria dos seus magistrados. 
Esta distinção entre os dois sentido da palavra representação permite-nos demarcar nitidamente o que separa uma república estatisticamente representativa (como a república ateniense dos  século V e IV a.C.) de um república semioticamente representativa. É esta última que Popper tem em mente quando fala de "democracia". Sucede o mesmo com a grande maioria dos filósofos políticos contemporâneos, dos políticos profissionais, dos economistas e dos jornalistas: quando falam de "democracia" querem, de facto, referir-se a uma república semioticamente representativa (ou à sua variante híbrida: a monarquia parlamentar).
A distinção é importante a vários títulos. Por exemplo, ela permite-nos compreender que o "paradoxo da democracia" enunciado por Popper – o do risco de um partido (ou de uma coligação de partidos) que forme, num dado país, um governo semioticamente representativo, um governo livremente eleito pela maioria dos cidadãos, vir a instaurar uma ditadura para se perpetuar no poder – é, de facto, o paradoxo de uma república semioticamente representativa. 

A república estatisticamente representativa – ou seja, a democracia propriamente dita,  a democracia de tipo ateniense (nota 4– está ao abrigo de uma tal eventualidade. Bem entendido, a democracia não está isenta de riscos, incluindo o risco da degenerescência. Mas é possível afirmar que está estruturalmente protegida contra a situação paradoxal enunciada por Popper porque nela não existe a distinção entre governantes e governados,

Por outro lado, esta distinção permite-nos discernir o verdadeiro alcance da pergunta de Popper: «que fizeste tu para melhorar a democracia?». Na verdade, temos de começar por substituir, nesta pergunta, "democracia" por "república semioticamente representativa" para entendermos o que realmente nos é perguntado: «se viveres numa república semioticamente representativa, que podes tu fazer para a melhorar?»

A resposta não é de molde a suscitar o entusiasmo dos democratas. O ponto em questão é este: as repúblicas semioticamente representativas (comummente designadas por "democracias liberais" ou apenas por "democracias") não são regimes democráticos, no sentido ateniense. São estruturalmente incapazes de aperfeiçoamento contínuo, pois esbarram continuamente com os seus pressupostos anti-democráticos: (i) a distinção pretensamente inultrapassável entre governantes e governados, e (ii) a falaciosa noção de representação política de carácter semiótico que fundamenta essa distinção. 
Por isso, mesmo quando as repúblicas semioticamente representativas são fundadas na sequência de uma revolução popular anti-ditatorial bem sucedida − e bem sucedida não só por ter alcançado a vitória, mas também por tê-lo conseguido fazer sem acarretar um banho de sangue (como foi a revolução do 25 de Abril de 1974)  − não correspondem a democracias, mas antes ao que o filósofo Cornelius Castoriadis denominou oligarquias liberais (C. Castoriadis, « Quelle démocratie ?». Figures du Pensable. 1999. Éditions du Seuil), ou, melhor dizendo, oligocracias liberais.


Cornelius Castoriadis (1922-1997)       

Oligarquia ou oligocracia (Gr. oligoi, "os poucos" + arkho, ["comandar", "reger"], ou + kratos [poder]) porque uma classe social muito minoritária – ou uma aliança de classes sociais muito minoritárias  mas economicamente privilegiada(s), que se auto-intitula(m) muitas vezes de elite(s), domina(m) e dirige(m) a sociedade. Liberal porque essa(s) camada(s) encara(m) a república semioticamente representativa como sendo um dos regimes compatíveis com a sua dominação e direcção, ainda que isso a(s) obrigue(m) a conviver, com maior ou menor relutância, com um certo número de instituições, tradições, direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que são o resultado e a herança do movimento emancipador que percorre a Europa e o Ocidente desde há séculos e que não se esgotou. É a existência desse legado, mas também o seu carácter marcadamente defensivo, que permite qualificar as repúblicas (e monarquias) semioticante representativas mais marcadas por esse legado – em particular na Europa ocidental, na América do Norte e na Oceânia – de "democracias liberais" (quando são, de facto, oligocracias liberais) e as sociedades em que elas vigoram de sociedades relativamente abertas.

E aqui surge-nos um outro problema. Já vimos que a distinção entre uma república semioticamente representativa e uma ditadura é fácil de reconhecer por meio do teste de Popper. Todavia, o teste de Popper não é suficientemente fino para nos permitir reconhecer a diferença entre uma democracia e uma república semioticamente representativa (mutato nomine, uma oligocracia liberal). Em ambos os regimes podemos desembaraçar-nos, em princípio, daqueles que elegemos sem o uso da violència armada e sem derramamento de sangue. No entanto, há todo um mundo de diferenças entre eles. (Voltaremos a este assunto com mais pormenor na segunda parte deste artigo, a publicar oportunamente). 

Mais: essas diferenças, as diferenças que separam a oligocracia liberal da democracia, são, como vimos, muito marcadas e fáceis de entender. Porém, nas oligocracias liberais – quer nas suas formas republicanas, quer nas suas formas híbridas, as chamadas monarquias constitucionais, que admitem abertamente entorses ao princípio da representatividade eleitoral, visto que o rei não é eleito – essas diferenças são alvo, por parte das auto-denominadas elites que dominam nessas repúblicas e nessas monarquias, de um intenso, permanente e hábil trabalho de camuflagem capaz de as fazer aparecer como características normais, desejáveis e até inevitáveis da democracia. 

É este desiderato que é sublinhado por meias palavras (ele está a dirigir-se, em primeiro lugar, aos seus pares, mas sabe que pode ser lido por qualquer pessoa) por um dos mais astutos defensores da oligarquia liberal, o economista Ludwig von Mises :

Não há outro meio de salvaguardar um desenvolvimento auspicioso das actividades humanas que não seja fazer com que as massas do povo inferior adoptem as ideias da elite. Isso tem de ser feito convencendo-as. Não pode ser conseguido por um regime despótico que, em vez de esclarecer as massas, as faz vergar pela força. A longo prazo, as ideias da maioria, por mais prejudiciais que sejam [para a elite], acabarão por prevalecer. O futuro da humanidade depende da capacidade da elite de influenciar a opinião pública na direcção certa. [entenda-se, na direcção que convém aos interesses da elite] [os parênteses rectos foram acrescentados por mim, J.C.S. ]
[Minha tradução de: « There is no other means to safeguard a propitious development of human affairs than to make the masses of inferior people adopt the ideas of the elite. This has to be achieved by convincing them. It cannot be accomplished by a despotic regime that instead of enlightening the masses beats them into submission. In the long run the ideas of the majority, however detrimental they may be, will carry on. The future of mankind depends on the ability of the elite to influence public opinion in the right direction »]. 

Ludwig von Mises. The Ultimate Foundation of Economic Science. D. Van Nostrand Company, Inc. New York. 1962, p, 93.

Ludwig von Mises (1881-1973)

Assim, a distinção de Castoriadis é uma distinção difícil de entender pelo senso comum, porque entre a oligocracia liberal e a democracia se interpõem os sortilégios da elite. 

É possível, contudo, fazer compreender o seu conteúdo e o seu alcance através de exemplos concretos. É um desses exemplos, que se apresenta à primeira vista como um caso banal de ganância e esperteza saloia como tantos outros e sem importância política por aí além, que vamos examinar no que se segue. Como veremos, podemos utilizá-lo como uma lupa para detectarmos alguns dos sortilégios que a elite utiliza para metamorfosear a democracia em oligocracia liberal, fazendo crer que os métodos desta são a forma desejável e superior de realizar aquela. 

O EXEMPLO DAS SUBVENÇÕES VITALÍCIAS DOS TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS

Há 341 indivíduos (segundo o último relatório da Caixa Geral de Aposentações, 2014) detentores ou ex-detentores de cargos políticos − como deputados, membros do governo, autarcas a tempo inteiro e juízes do TC (desde que não sejam magistrados de carreira) − a receber subvenções vitalícias que custam à Caixa Geral de Aposentações cerca de 10 milhões de euros por ano.

Esta mordomia foi criada em 1985. Para beneficiar dela bastava ter desempenhado cargos políticos durante 8 anos e, mais tarde (com a lei 26/95), 12 anos. Em 2005, o governo de José Sócrates acabou com estas subvenções (lei 52-A/2005), tendo salvaguardado porém os direitos acumulados até ao final do mandato em curso, isto é, até 2009. Na mesma altura ficou também estabelecido que a subvenção vitalícia só seria processada quando o seu beneficiário perfizesse 55 anos.

A mesma lei previa excepções para os ex-presidentes da República, o que se compreende, até certo ponto, porque continuam vitaliciamente a exercer funções políticas (são membros por inerência do Conselho de Estado) depois de abandonarem o cargo. Foi-lhes assim concedido um conjunto de regalias específicas (nota 5), para além de uma subvenção vitalícia de elevado montante. Deixemos de lado as regalias específicas dos ex-presidentes da república, ainda que nem todas sejam fáceis de justificar por quem com elas concorda, e concentremo-nos na subvenção vitalícia, a mais problemática. Ela decorre, dirão porventura os seus defensores, da vontade de não os vermos, por motivo de uma idade avançada, por doença ou por outra qualquer  razão, serem capazes de assegurar autonomamente uma vida pós-presidencial condigna e terem de mendigar a ajuda de familiares e amigos para subsistirem. 

Nenhum desses argumentos se aplica aos três (em breve quatro) ex-presidentes da república, que têm, todos eles, pensões de aposentação para as quais contribuiram com os seus descontos e que lhes permitem ter uma vida condigna. E é implausível que os futuros presidentes venham a ter um perfil que se desvie deste padrão. Por que razão deveriam então beneficiar de uma subvenção vitalícia equivalente a 80% do vencimento do presidente em exercício ? 

Se quisermos saber o que diferencia um oligocrata liberal e um democrata depois de abandonarem o cargo de presidente da república, basta-nos comparar dois exemplos concretos bem contrastados. O ex-presidente Clinton dos EUA, cuja subvenção vitalícia é muito maior do que a que vigora em Portugal para os seus homólogos, transformou-se em caixeiro-viajante de si próprio e corre o mundo a vender as suas charlas por bom preço, sempre fiel ao seu lema: « It's the economy, stupid! ». 

ex-presidente do Uruguai, José Mujica, só mudou numa coisa: já não lhe é possível continuar a doar 90% do seu vencimento (equivalente a 12.500 dólares americanos) a várias ONG e a um fundo de construção de moradias para os mais desfavorecidos, como o fez durante todo o seu mandato. Vive agora na mesma modesta “chacra” − quinta ou pequena casa de campo − nos arredores de Montevideu, em que vivia antes e depois de ter sido eleito, em 2009, por 53 por cento dos eleitores uruguaios;  conduz, como conduzia antes e depois de ter sido eleito, o mesmo Volkswagen carocha de 1987 com décadas de estrada e continua a vestir-se com aquele estilo descontraído, quase ostensivamente humilde, que o afastou da gravata ao longo de todo o mandato e o levou muitas vezes a calçar sandálias (v. « O adeus de um lutador social». Expresso, 28-10-2014 ; « José Mujica, entrevista com o presidente que trocou o palácio pela chácara ». Expresso. Revista E. 7-3-2015). 

 José Mujica, 40º presidente do Uruguai (2010-2015)         

Em nome da “crise financeira” e do memorando de “ajustamento” celebrado com a troika, o governo PSD-CDS introduziu uma norma no orçamento de Estado (OE) de 2014 que fazia depender as subvenções vitalícias dos rendimentos dos seus beneficiários (a chamada condição de recursos). A norma não se aplicava de todo aos ex-presidentes da república. E a condição de recursos foi também modulada com muita liberalidade. Assim, ficou estatuído que a suspensão da subvenção vitalícia só se aplicaria aos beneficiários que tivessem mais de 2000 euros mensais de rendimentos ou ficaria limitada à diferença entre dois mil euros e o rendimento total (excluindo a subvenção). O orçamento de Estado (OE) de 2015 manteve a mesma norma.

Em 23 de Janeiro de 2015, um grupo de deputados do PS (21) e do PSD (9) − entre os quais Maria de Belém Roseira, candidata a Presidente da República, João Soares e Ana Paula Vitorino, ministros do actual governo − interpôs recurso para o TC, acompanhado de um requerimento para que lhe desse prioridade. O tribunal recusou o requerimento “por não ter sido devidamente fundamentado nos termos legais”. O recurso, esse, foi julgado em 13 de Janeiro de 2016 e a decisão conhecida em 18 de Janeiro de 2016.

O tribunal constitucional (TC) deu razão aos queixosos. Entendeu que a dita subvenção vitalícia tem “a natureza de um benefício” para compensar “os serviços prestados ao país” e que retirá-la viola “o princípio da protecção da confiança” consagrado na Constituição da República Portuguesa.


Juízes do Tribunal Constitucional

Não cabia ao TC julgar se o “benefício” em causa é ou não é justo, já que este adquiriu força de lei (voltaremos a este assunto mais abaixo). Por isso, não é possível criticar a decisão do TC neste particular. Todavia, há dois pontos em que a sua decisão é criticável. O primeiro é o de não ter distinguido a quebra da confiança entre o Estado e os cidadãos relativamente a um direito fundamental e constitucionalmente protegido (como é, por exemplo, o direito à pensão dos trabalhadores aposentados do regime contributivo) e a quebra da confiança relativamente a um privilégio exorbitante concedido apenas a um pequeno grupo (como é a subvenção vitalícia em causa). O TC tratou as duas situações como se fossem ambas da mesma natureza. Ora, cabe lembrar a este propósito um episódio recente em que o TC agiu de modo bem diferente. 
Por decisão do governo PSD-CDS de 1 de Janeiro de 2014, os trabalhadores do Metro e da Carris a quem estas empresas tinham proposto a aposentação antecipada deixaram de receber o complemento de pensão que lhes tinha sido atribuído pela empresa para minimizar as penalizações que a Segurança Social aplica à aposentação antecipada. Esta medida permitiu ao governo « poupar » cerca de 25 milhões de euros, mas traduziu-se para os aposentados por ela afectados numa perda de rendimentos que, nalguns casos, representa cerca de 50% das suas pensões. 

Chamado a pronunciar-se sobre esta flagrante violação do princípio da protecção da confiança, o TC decidiu que não era inconstitucional. O argumento foi, se bem me lembro, o seguinte: o que estava em causa era uma regalia concedida pelas referidas empresas públicas em circunstâncias particulares (e que outras circunstâncias poderão determinar não haver viabilidade de continuar a ser concedida), e não o direito fundamental à pensão de aposentação. Daí se conclui que nos dois pratos da balança da "protecção da confiança" nos contratos firmados, uma subvenção vitalícia que uma maioria de deputados decidiu, numa dada altura, atribuir a si própria e a outros titulares de cargos políticos, pesa mais (muito mais) do que uma pensão de aposentação livremente negociada  entre um trabalhador e a sua entidade patronal.  

O segundo ponto criticável na decisão de inconstitucionalidade da suspensão das subvenções vitalícias, diz respeito, uma vez mais, a uma dualidade de critérios nas decisões do TC. Em 2012 quando declarou inconstitucional a suspensão dos subsídios de férias e de Natal dos trabalhadores da função pública e dos pensionistas do regime contributivo decretada pelo governo PSD-CDS, o TC decidiu que o seu veredicto só teria efeito no ano seguinte, em nome da poupança nos gastos do Estado que o governo alegou ter de fazer para cumprir as medidas constantes do memorando de entendimento com a « troika ». Na prática, o TC avalizou a aplicação nesse ano de uma medida que considerou inconstitucional. Com uma agravante: as pensões do regime contributivo não são « despesa do Estado », como repete, semana sim semana não, o « especialista em impostos » (a classificação é dele) Medina Carreira. São um pecúlio acumulado pelos descontos dos trabalhadores durante a sua vida activa e das suas entidades patronais; um pecúlio de que o Estado (no qual obviamente se inclui o governo) é o fiel depositário, mas não o proprietário.

Porém, o TC não agiu da mesma maneira ao declarar inconstitucional a suspensão das subvenções vitalícias, visto que não limitou os efeitos temporais da aplicação do seu acórdão. Pelo contrário, decidiu declará-lo com “força obrigatória geral” por considerar que a verba para pagar as subvenções “não é de grande monta” e que, no ano de 2015, tendo terminado o programa de ajustamento, “já não são tão evidentes os constrangimentos orçamentais”. 

Assim, fica claro que “o princípio da protecção da confiança” se aplica igualmente,  no entender do tribunal, não só aos direitos fundamentais consagrados na Constituição, mas também a "benefícios" que nada têm a ver com esses direitos. E fica igualmente claro que, no entender do TC, a aplicação do princípio da protecção da confiança aos direitos constitucionalmente protegidos está dependente não só da natureza desses direitos mas também (e em certos casos decisivamente) dos montantes em causa que o seu respeito possa acarretar. 

De tudo isto resulta que o Estado (isto é, neste caso, a Caixa Geral de Aposentações dos trabalhadores da função pública e, se for caso disso, o conjunto dos contribuintes) terá de devolver aos referidos deputados (nota 6) e aos 341 indivíduos de que eles se arvoraram porta-vozes as ditas subvenções vitalícias que não lhes pagou em 2015, apesar dos seus beneficiários não terem contribuído com um cêntimo que fosse para tais subvenções. Acresce que o TC apenas se pronunciou sobre a norma do OE de 2015 que suspendeu as subvenções vitalícias. Por conseguinte, nada impede agora, pelas razões apontadas, que os mesmos ou outros deputados peçam a fiscalização da norma do OE de 2014 de idêntico teor e que tenham a expectativa fundada de que a sua reclamação será igualmente atendida. 

341 OLIGARCAS LIBERAIS

Voltando agora ao problema da natureza da dita subvenção vitalícia. Qualquer deputado recebe, além do seu vencimento e de um abono para despesas de representação (nota 7), ajudas de custo por cada dia de presença nos trabalhos parlamentares e demais abonos complementares ou extraordinários previstos na lei (por deslocações em trabalho político, viagens de ida e volta para a sua residência se morarem fora do seu círculo eleitoral, etc.). O montante global destes rendimentos parece-me constituir uma remuneração razoável para as funções que exercem, tendo em conta o salário mínimo nacional, o salário médio nacional e as remunerações de profissões altamente qualificadas da função pública como, por exemplo, as de professor do ensino superior e de médico (nota 8). A subvenção vitalícia, por outro lado, é claramente um privilégio oligárquico que a maioria dos deputados da Assembleia da República inventaram, nos idos de 1985, para seu próprio benefício e dos demais titulares de cargos políticos. 

Esse privilégio foi abolido, como já foi dito, em 2005. Também é relevante ter em conta que há titulares ou ex-titulares de cargos políticos (o jornal Expresso falou em mais de cem) que têm direito a essa subvenção vitalícia, mas que renunciaram a recebê-la. Estes são factos muito positivos, que testemunham a vitalidade da mentalidade democrática mesmo na esfera restrita dos detentores ou ex-detentores de cargos políticos. Contudo, não podem nem devem fazer-nos esquecer que este privilégio durou 20 anos e que perdura para 341 titulares ou ex-titulares de cargos políticos que dele não abdicaram. Mas não tem necessariamente que perdurar. Como lembrou o presidente do TC, Joaquim de Sousa Ribeiro, este regime “não é intocável” e “não está blindado”, não sendo imune a alterações legislativas, pelo que a Assembleia da República pode alterar esta lei.

Este regime que estava em vigor anteriormente e que foi agora modificado não é intocável, isto é, não há uma base de confiança na perpetuação inalterada do regime anteriormente em vigor, estou a utilizar palavras exactas que constam do acórdão. Quer isto dizer que o regime anterior não está blindado, não está imune a alterações legislativas (TVI, 20-01-2016).

Ora, isto é exactamente o contrário do que pretendem os 30 deputados referidos. Assim, alegam no seu recurso ao TC:

A supressão radical desta subvenção não põe em causa apenas a medida: destrói retroativamente a causa da lei que a atribuiu, a superior ideia de que o serviço público é uma via paralela e meritória, que afasta os que o prestam do exercício e natural progressão nas suas carreiras profissionais, consequência essa que o Estado decidiu, em conformidade com a Constituição, atenuar.

Traduzindo por miúdos: os cidadãos deveriam pagar a estes deputados, além do vencimento e dos abonos que auferem, uma remuneração extraordinária e vitalícia pelo grande « favor » que eles fizeram em desempenhar as suas funções durante alguns anos.

Este episódio mostra que a mentalidade oligárquica está profundamente enraizada nos maiores partidos portugueses (sem prejuízo das conclusões a que se possa chegar neste particular através de um exame dos demais, o qual seria descabido empreender aqui). Estes deputados não têm pejo em reivindicar a perpetuação de um privilégio exorbitante, servindo-se para tanto de um dos instrumentos institucionais criados para proteger os governados dos abusos do poder dos governantes: o TC. É obra.

Mas é mais do que isso. O que estes deputados fizeram foi usar uma faculdade que têm de zelarem pelos direitos dos cidadãos (a de requerer a fiscalização sucessiva de leis suspeitas de inconstitucionalidade) para um assunto do seu exclusivo interesse, em benefício próprio.

DEMOCRACIA vs OLIGOCRACIA LIBERAL 

Creio que este exemplo permitirá compreender a alteridade profunda que existe entre oligocracia liberal e democracia e a antinomia que as opõe mutuamente, malgrado as semelhanças superficiais que possam aparentar uma com a outra. 

Estamos aqui perante uma situação que tem vários pontos de contacto com a que é descrita no romance de Georges Orwell, Animal Farm ("O Triunfo dos Porcos"), depois do porco Napoleão e da sua oligarquia suína terem tomado o poder na quinta do sr. Jones e instaurado uma ditadura sobre os demais animais. É então que Napoleão modifica a lei existente (Todos os animais são iguais), que passa a rezar: Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais do que os outros


Ilustração de uma edição de Animal Farm, representando a parede do celeiro da ex-quinta do sr. Jones onde foram inscritos os mandamentos dos animais

Nas quintas onde vigoram regimes de oligocracia liberticida (um outro nome, mais adequado, para uma ditadura de uma camarilha civil ou militar) e nas quintas onde vigoram regimes de oligocracia totalitária (um outro nome, mais adequado, para uma ditadura que procura submeter todos os aspectos da vida quotidiana da população a um comando único e a um molde único), o princípio que vigora para os animais da espécie humana é o seguinte: « Todos os cidadãos são iguais perante a lei, mas alguns cidadãos são mais iguais do que os outros, porque só eles sabem e só eles decidem o que convém ter força de lei para os outros (mas que não deve tê-la, de modo nenhum, para si próprios).» 

Nas quintas onde vigoram regimes da oligocracia liberal é, afinal, o mesmo princípio que vigora, mas, desta feita, sob formas insidiosas, em vez de boçais e brutais como é timbre das oligocracias liberticidas e das oligocracias totalitárias): « Todos os cidadãos são iguais perante a lei, mas alguns cidadãos são mais iguais do que os outros, porque só eles decidem o que convém ter força de lei. » 

Na democracia, o princípio que deveria/deverá vigorar é : 

(P) Todos somos iguais perante a lei e somos nós, cidadãos, que fazemos, aprovamos e modificamos livremente a lei pelos meios, com os limites e nos prazos que se nos afigurem serem os mais adequados para garantir a igualdade de todos na sua feitura, aprovação e modificação. 

O ex-presidente uruguaio José Mujica aproximou-se muito do princípio P acima enunciado, quando disse:

As repúblicas não vieram ao mundo para estabelecer novas côrtes, as repúblicas nasceram para dizer que todos somos iguais. E entre os iguais estão os governantes. Têm uma responsabilidade implícita e penso que devem viver de forma bastante similar à maneira de viver da maioria do seu povo. Ninguém é mais que ninguém, começando pelo governante (Portal Forum, 14-3-2014).

Na verdade, mesmo José Mujica parece confundir república semioticamnte representativa (com a oposição que lhe é inerente entre governantes e governados) e democracia (onde essa oposição não existe, porquanto, como afirmou Aristóteles, numa democracia todo o cidadão é simultaneamente governante e governado). Parece uma diferença menor, mas é uma diferença abissal que resume o que aprendemos sobre o modo como as oligocracias liberais operam para confiscar a democracia aos cidadãos.

Dar corpo ao princípio P é uma tarefa dos democratas. É uma tarefa hercúlea, escusado será dizer, visto que não é conciliável nem com as desigualdades sócio-económicas impostas pelo modo de produção capitalista (mesmo na mais liberal das oligocracias  liberais), nem com as desigualdades políticas e culturais impostas pelos regimes de colectivismo oligocrático (em sociedades pós-capitalistas, cono a ex-URSS ou como a China contemporânea). Mas essas são questões que terão de ficar para outra oportunidade.

NOTAS


   1)  Em Janeiro de 2008, Marinus van der Lubbe foi perdoado postumamente pelo seu alegado crime pelos tribunais alemães com base numa lei de 1998 que estipula que todas as pessoas condenadas durante a era nazi são oficialmente não culpadas. A referida lei baseia-se na ideia de que as leis da Alemanha nazi « são contra as mais elementares ideias de justiça». Contudo, ainda hoje, na Alemanha, prevalece em muitos meios a tese da culpabilidade desse homem e do envolvimento dos comunistas no incêndio do Reichstag. As razões e a complexa teia de interesses obscuros que sustentam essa tese são minuciosamente analisadas no livro de Benjamin Carter Hett (Burning the Reichstag: An Investigation into the Third Reich’s Enduring Mystery. Oxford University Press. 2014). Quanto à identidade dos verdadeiros incendiários, o estudo mais bem documentado é o de Alexander Bahar e Wilfried Kugel (Der Reichstagbrand - Wie Geschichte gemacht wird [O Incêndio do Reichstag- Como a História é Criada], edition q, Berlin. 2001). Com base numa investigação pormenorizada das 50.000 páginas do julgamento original dos cinco arguidos, dos ficheiros do ministério público alemão e da polícia secreta nazi (Gestapo) guardados em Moscovo e na Alemanha de leste até 1990, mas agora acessíveis aos historiadores, os autores chegam à seguinte conclusão. O incêndio do Reichstag terá sido um crime urdido nas mais altas esferas do regime nazi  (a ideia foi de Goering, o braço direito  de Hitler à época) e foi cometido por um grupo de nazis das SA [abreviatura de Sturmabteilung (tropas de assalto), a milícia  paramilitar do partido nazi] sob o comando de Hans Georg Gewehr como parte de um plano para a instauração de uma ditadura nazi. A maior parte dos SA envolvidos nesta acção, com excepção de Gewehr, foram mais tarde assassinados pelos nazis durante a chamada « Noite das Facas Longas » (em que Hitler mandou assassinar Ernst Rohem, o chefe das SA nazis entretanto caído em desgraça, assim como todos os seus aliados nesta organização), por se terem transformado em testemunhas incómodas, caso algum deles tivesse um dia rebates de consciência, desertasse ou mudasse de campo.  


    2)    Só se pode falar de formas de Estado em sociedades onde existe Estado e só existe Estado onde existe um sistema de poder político 
− legislativo, executivo e juridiscional − separado do conjunto da população e apoiado num aparelho especial de coerção detentor do monopólio do uso legal (e apresentado como sendo legítimo) da força armada. O Estado é uma criação histórica que está ligada à divisão da sociedade em classes sócio-económicas com interesses opostos, grandes grupos de indivíduos desigualmente posicionados tanto em relação à propriedade dos meios colectivos de produção e distribuição dos bens e serviços, como em relação à parte do produto social global destinado ao consumo. Teoricamente, o problema das formas de Estado não se põe numa sociedade socialista desenvolvida − entenda-se, numa sociedade pós-capitalista sem classes sócio-económicas e sem Estado. Voltarei a este assunto numa próxima oportunidade. De momento, contentar-me-ei em alertar para duas afirmações verdadeiras, mas que não são óbvias: nenhuma sociedade pode existir sem relações e instituições políticas (instituições que dependem de uma actividade colectiva explícita), mas uma sociedade pode perfeitamente existir, prosperar e progredir (em liberdade e justiça) sem Estado.

  3)   A Assembleia geral deliberativa e soberana do dêmos, a que os atenienses davam o nome de ekklesia (aportuguesando, eclésia), não deve ser confundida de modo nenhum com o que se convencionou chamar Parlamento, Câmara dos Representantes e outros nomes com o mesmo significado. Este ponto será esclarecido na segunda parte deste texto, a publicar oportunamente. A pólis ateniense designava, por tiragem à sorte, 500 dos seus membros que constituíam, durante um ano, o seu conselho, o Conselho dos 500 (a que os atenienses davam o nome de hé boulé hei pentakosioi). O Conselho dos 500 (Boulé para abreviar) tinha por missão (a) propor a ordem de trabalhos das sessões da Eclésia, (b) preparar, juntamente com a comissão legislativa dos nomótetas  (nomothetai), a discussão das leis e decretos que nela seriam discutidos e votados, e (c) zelar pela execução dos diplomas que fossem aprovados pela Eclésia. Os membros da colégio dos nomótetas também eram cidadãos (1000, por exemplo) designados por sorteio entre um painel de 6000 cidadãos com 30 anos, pelo menos, eles próprios tirados à sorte de uma lista de candidatos declarados. Os nomótetas eram designados por apenas um dia. Os tribunais (diskateria), o principal dos quais era o Tribunal do Povo (héliée ou ta diskateria), eram constituídos por jurados (201, 401, 501, 1001, 1501, 2001 e 2501, consoante os casos) escolhidos por sorteio entre o painel dos 6000 voluntários permanentes. Tal como os nomótetas, os jurados dos tribunais tinham um mandato de apenas um dia. Só os presidentes dos tribunais, escolhidos também por tiragem à sorte, tinham um mandato de um ano. 


   4) Falo de democracia de tipo ateniense  para salientar que a democracia propriamente dita, na medida em que a sua instituição dependa de nós (indivíduos do século XXI) − digo, da nossa actividade política lúcida e esclarecida − não pode deixar de ter em conta o legado que nos deixou a sua primeira forma histórica de realização (o regime político que vigorou em Atenas entre o fim do século VI a.C. e o começo do último quartel do século IV a.C), mas não é de modo nenhum um seu avatar. Isto. significa, mais concretamente, que os democratas se inspiram criticamente na democracia ateniense e em todas as grandes experiências históricas ulteriores de auto-instituição da democracia, retendo o que elas produziram de melhor e rejeitando as suas limitações e aporias. Por exemplo, como é sabido, a democracia ateniense só reconhecia como membros do corpo de cidadãos os atenienses adultos do sexo masculino. As mulheres atenienses estavam excluídas da cidadania, tal como a grande maioria dos estrangeiros. Acresce referir que tanto a exclusão das mulheres da cidadania como a profusa presença de escravos na sociedade ateniense, foram raramente questionadas pelos cidadãos (homens) atenienses, mesmo na "era de ouro" da democracia ateniense. Voltarei a este assunto na segunda parte deste artigo. 
             
      5)  Os ex-presidentes da República (até agora 3, em breve 4) têm, para além de uma subvenção mensal correspondente a 80% do vencimento do Presidente em exercício, as seguintes regalias : a) automóvel do Estado para uso pessoal com condutor e combustível; b) gabinete de trabalho com telefone, secretário e assessor escolhidos por si. O único requisito destes dois quadros é serem da sua confiança; c) ajudas de custo iguais às do Primeiro-Ministro, sempre que se desloquem em missões oficiais fora da sua área de residência; d) livre-trânsito e passaporte diplomático; e) uso e porte de arma.

       6)  A deputada Maria de Belém Roseira, uma das subscritoras do recurso, declarou que nunca recebeu a subvenção vitalícia e que está a ponderar se o deve fazer (Jornal de Notícias, 19-1-2016).

       7) O vencimento base dos deputados é de 50% do vencimento base do Presidente da República (6.668 euros em 2015, mais 25% em despesas de representação = 7.630 euros), ou seja, 3341 euros, aos quais se somam 341 euros em despesas de representação. O vencimento base dos subsecretários de Estado é de 55%, o dos secretários de Estado é  de 60%, o dos ministros é de 65%, o dos vice-primeiro-ministros é de 70%, o do 1º ministro é de 75% do vencimento base do P.R.  

     8)    O salário médio nacional era, em 2013, de 911,5 euros por mês e o salário mínimo acaba de ser aumentado para 530 euros. As remunerações mínimas (início de carreira) e máximas (fim de carreira) das carreiras especiais da função pública são as seguintes.

  


26 outubro, 2015

A Eurozona atravessa o Rubicão

TEMA 3



Em 23 de Outubro foi publicado um artigo importante num importante órgão de imprensa britânico sobre a alocução de Cavaco Silva em que este anunciou a indigitação de Passos Coelho como 1º ministro. Tem um título muito significativo. Adiante comentarei o seu título e o próprio artigo. Mas, para já, convido o leitor/a leitora  a ler os excertos que traduzi desse artigo.

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A Eurozona atravessa o Rubicão 
ao banir do poder a esquerda anti-euro de Portugal


Portugal entrou em águas politicamente perigosas. Pela primeira vez desde a criação da união monetária europeia, um Estado membro tomou a medida explícita de proibir o exercício da governação a partidos eurocépticos, em nome do interesse nacional.

Aníbal Cavaco Silva, o presidente constitucional de Portugal, recusou avalizar um governo de coligação de esquerda, apesar desta ter conseguido uma maioria absoluta no parlamento e ter ganho o mandato de estilhaçar a política de austeridade imposta pela troika da UE e do FMI.

Ele considerou demasiado arriscado deixar o Bloco de Esquerda ou os comunistas  chegarem ao poder, insistindo que os conservadores em minoria devem cerrar fileiras para satisfazer Bruxelas e acalmar os mercados financeiros. A democracia deve passar para segundo plano perante as superiores regras imperativas do euro e da pertença à zona euro.

O sr. Cavaco Silva argumentou que o povo português não votou pelos partidos que querem um regresso ao escudo ou que advogam um confronto traumático com Bruxelas. Isso é verdade, mas ele passou por cima da outra mensagem nuclear das eleições realizadas há três semanas: que o povo votou também para acabar com os cortes de salários e a austeridade da troika. Os partidos de esquerda somados obtiveram 50,7% dos votos. Encabeçados pelos socialistas eles controlam a Assembleia da República.

O estúpido Tratado Orçamental obriga Portugal a cortar a sua dívida até 60% do PIB ao longo dos próximos 20 anos, metendo-o numa permanente armadilha de austeridade, e a fazê-lo precisamente quando o resto da Europa do Sul está a tentar fazer a mesma coisa, e tudo isto com o pano de fundo de poderosas forças deflacionárias que prevalecem no mundo inteiro.

A estratégia que consiste em reduzir gradualmente a dívida avassaladora do país através de um permanente apertar do cinto é autodestrutiva, uma vez que o efeito de um PIB estagnado agrava a dinâmica da crise. E é também inútil. Portugal vai ter de pedir uma anulação da dívida quando a próxima viragem global para a recessão o atingir em cheio. Não há nenhuma probabilidade por mínima que seja que a Alemanha concorde com a união orçamental europeia a tempo de impedir que isso aconteça. A principal consequência de prolongar a agonia é o profundo imobilismo dos mercados de trabalho e os níveis crónicos de baixo investimento que arruinam o futuro.

O sr. Cavaco Silva está de facto a usar o seu cargo para impor uma agenda ideológica reaccionária, no interesse dos credores e da elite da União Económica e Monetária, e justifica a sua posição, com notável desplante, com a defesa da democracia.

Os socialistas e comunistas portugeses enterraram o machado de guerra das suas divisões amargas, pela primeira vez desde a revolução dos cravos e o derrube da ditadura de Salazar nos anos 1970, e está a ser-lhes negada a prerrogativa de formaram um governo de maioria.

Esta é uma conduta perigosa. Os conservadores portugueses e os orgãos de  comunicação social seus aliados comportam-se como se a esquerda não tivesse o direito legítimo de ocupar o poder e tivesse de ser impedida de o fazer  por todos os meios.

Estes comportamentos são sobejamente conhecidos — e assustadores  — para qualquer pessoa que conheça a história da península ibérica no século 20, ou a da América latina. Que isto esteja a ser feito em nome do euro não é novidade nenhuma. O movimento Syriza na Grécia, o primeiro governo da esquerda radical desde a 2ª guerra mundial, foi esmagado até à submissão por ter ousado afrontar a ideologia da Eurozona. Agora a esquerda portuguesa está perante uma variante da mesma máquina trituradora.

Os socialistas europeus enfrentam um dilema. Estão a acordar para a desagradável verdade que a união monetária é um empreendimento autoritário de direita que cortou  as amarras com a democracia. Todavia, se eles actuarem tendo em conta este facto, correm o risco de serem impedidos de chegar ao poder.

Bruxelas criou realmente um monstro.

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1.  Quem escreveu este artigo? Se fizéssemos esta pergunta, por exemplo, à dra. Fátima Bonifácio ou ao dr. Rui Ramos (imaginando que não tivessem conhecimento prévio da sua proveniência e apenas lhes fosse dito que o seu autor é um cidadão inglês), uma resposta provável seria, presumo, a seguinte: “pelo palavreado (« agenda ideológica reaccionária », « empreendimento autoritário de direita », « defesa do Syriza », etc.)  deverá ser Jeremy Corbyn, o novo dirigente do Labour Party”.

Mas não. O seu autor é o sr. Ambrose Evans-Pritchard, o conhecidíssimo e respeitabilíssimo editor para os assuntos económicos  internacionais do Daily Telegraph, o jornal que exprime as posições do Partido Conservador (os Tories), o partido tradicional da direita do Reino Unido. Os Tories são, como é bem sabido, um partido defensor da libra esterlina e anti-euro (que encaram como um marco disfarçado) e muitos deles advogam também a saída da União Europeia. Tanto assim que vão fazer um referendo sobre  essa questão. Se existissem em Portugal, Cavaco Silva, pelos vistos, recusar-se-ia a indigitar o seu dirigente (Cameron) para 1º ministro, ainda que tivessem a maioria na AR, acusando-os de anti-europeístas.

2. Sobre a expressão « atravessar o Rubicão» que consta do seu título (caso o leitor desconheça o significado ou/e a origem desta expressão):

Na época do império romano, o rio Rubicão tinha uma importância política e simbólica assinalável: a lei romana proibia que este rio fosse atravessado por qualquer legião do exército romano. Dessa forma, a lei protegia a República de ameaça militar interna. No dia 11 de Janeiro de 49 a.C., o general e político romano Caio Júlio César tomou uma decisão radical: atravessar o rio Rubicão, seguido pelo seu exército, transgredindo claramente a lei do Senado que determinava a desmobilização das tropas todas as vezes que um general de Roma entrasse em Itália pelo norte. Foi o início de uma sangrenta guerra civil, que terminou com uma vitória de César e a sua subida ao poder como ditador absoluto da República romana. (César acabaria por ser assassinado por um grupo de senadores descontentes com a sua usurpação dos poderes do Senado).  Desde então, a expressão «atravessar o Rubicão» passou a significar a tomada de uma decisão que põe em marcha um empreendimento perigoso, ou ainda, ultrapassar fronteiras proíbidas, defrontando-se com um caminho duvidoso e potencialmente perigoso.

3. Considero o título deste artigo muito interessante porque ele diz, por outras palavras (e aliás mais incisivamente), o que escrevi, no mesmo dia, no meu texto «E se…?» (v. mais abaixo): a decisão de Cavaco de impedir por todos os meios um governo suportado por uma coligação parlamentar PS-BE-CDU, é uma decisão bonapartista que o coloca em rota de colisão com a democracia e com a Constituição que jurou cumprir e fazer cumprir. Na realidade, bonapartismo, é um outro nome, mais moderno, para cesarismo (de Júlio César). Oliver Cromwell (na Inglaterra); Napoleão Bonaparte, Napoleão III, Pétain (na França); Bismarck (na Alemanha); Sidónio Pais (em Portugal); Dollfuss e Schuschnigg (na Áustria), Getúlio Vargas (no Brasil) são alguns dos expoentes do bonapartismo.

4. Moral da história. É possível a uma pessoa de esquerda e a uma pessoa de direita concordarem, entre muitas outras coisas expostas neste artigo, que Cavaco Silva ameaçou atravessar o Rubicão e que constitui por conseguinte uma ameaça muito concreta e imediata à democracia em Portugal (veremos nas próximas semanas se ele concretiza essa ameaça ou se a engole fingindo que nunca a fez). Todavia, para encontrar, neste momento, uma pessoa de direita dessa espécie, temos de ir até à Grã-Bretanha. Por cá, ainda não vi uma única pessoa de direita que dissesse o mesmo que A. Evans-Pritchard. Aqui e ali, ouviram-se alguns queixumes sobre « o tom crispado » do presidente e sobre a sua «linguagem um pouco excessiva». O melhor que se conseguiu foi o candidato a presidente Marcelo Rebelo de Sousa a dizer: «Uma coisa é a política dos adversários, outra é a política dos inimigos» e «somos todos portugueses, cabemos todos na democracia». De resto, foi a unanimidade: «disse o que se esperava que dissesse» ou « foi um discurso  corajoso».  E isto deveria fazer-nos reflectir sobre a natureza da direita portuguesa e dos seus comentadores encartados na comunicação social.

P.S. (Janeiro de 2016), O presidente Cavaco Silva não chegou a concretizar a sua ameaça de atravessar o Rubicão e acabou, ainda que muito relutantemente, por dar posse à solução de governo que quatro partidos parlamentares (PS, Bloco de Esquerda, PCP e Verdes) encontraram (governo do primeiro com o apoio parlamentar dos outros três) como alternativa, aprovada na Assembleia da República, ao governo minoritário PSD-CDS a que tinha inicialmente dado posse e que foi derrubado nessa assembleia. Pelo facto, só nos podemos congratular, porque, se o presidente  tivesse concretizado a sua ameaça,  estaríamos perante uma tentativa clara de instaurar uma ditadura, com todas as consequências imprevisíveis daí resultantes. 

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O artigo original completo de Ambrose Evans-Pritchard pode ser lido aqui: