TEMA 3
Em 23 de Outubro foi publicado um artigo importante num
importante órgão de imprensa britânico sobre a alocução de Cavaco Silva em que este
anunciou a indigitação de Passos Coelho como 1º ministro. Tem um título muito
significativo. Adiante comentarei o seu título e o próprio artigo. Mas, para
já, convido o leitor/a leitora a ler os
excertos que traduzi desse artigo.
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A Eurozona atravessa o Rubicão
ao banir do poder a esquerda anti-euro de
Portugal
Portugal
entrou em águas politicamente perigosas. Pela primeira vez desde a criação da
união monetária europeia, um Estado membro tomou a medida explícita de proibir
o exercício da governação a partidos eurocépticos, em nome do interesse
nacional.
Aníbal
Cavaco Silva, o presidente constitucional de Portugal, recusou avalizar um
governo de coligação de esquerda, apesar desta ter conseguido uma maioria
absoluta no parlamento e ter ganho o mandato de estilhaçar a política de
austeridade imposta pela troika da UE e do FMI.
Ele considerou demasiado arriscado deixar o Bloco de Esquerda ou os comunistas
chegarem ao poder, insistindo que os
conservadores em minoria devem cerrar fileiras para satisfazer Bruxelas e acalmar
os mercados financeiros. A democracia deve
passar para segundo plano perante as superiores regras imperativas do euro e da
pertença à zona euro.
O sr. Cavaco Silva
argumentou que o povo português não votou pelos partidos que querem um regresso
ao escudo ou que advogam um confronto traumático com Bruxelas. Isso é verdade,
mas ele passou por cima da outra mensagem nuclear das eleições realizadas há
três semanas: que o povo votou também para acabar com os cortes de salários e a
austeridade da troika. Os partidos de
esquerda somados obtiveram 50,7% dos votos. Encabeçados pelos socialistas eles controlam a Assembleia
da República.
O estúpido Tratado
Orçamental obriga Portugal a cortar a sua dívida até 60% do PIB ao longo dos próximos 20 anos,
metendo-o numa permanente armadilha de austeridade, e a fazê-lo precisamente quando
o resto da Europa do Sul está a tentar fazer a mesma coisa, e tudo isto com o
pano de fundo de poderosas forças deflacionárias que prevalecem no mundo
inteiro.
A estratégia que
consiste em reduzir gradualmente a dívida avassaladora do país através de um
permanente apertar do cinto é autodestrutiva, uma vez que o efeito de um PIB
estagnado agrava a dinâmica da crise. E é também inútil. Portugal vai ter de
pedir uma anulação da dívida quando a próxima viragem global para a recessão o
atingir em cheio. Não há nenhuma probabilidade por mínima que seja que a
Alemanha concorde com a união orçamental europeia a tempo de impedir que isso
aconteça. A principal consequência de prolongar a agonia é o profundo
imobilismo dos mercados de trabalho e os níveis crónicos de baixo investimento
que arruinam o futuro.
O sr. Cavaco Silva está de facto a usar o seu cargo para impor uma agenda
ideológica reaccionária, no interesse dos credores e da elite da União Económica
e Monetária, e justifica a sua posição, com notável desplante, com a defesa da
democracia.
Os
socialistas e comunistas portugeses enterraram o machado de guerra das suas divisões
amargas, pela primeira vez desde a revolução dos cravos e o derrube da ditadura de Salazar nos anos 1970, e está a ser-lhes negada a
prerrogativa de formaram um governo de maioria.
Esta é uma conduta perigosa. Os conservadores portugueses e os orgãos
de comunicação social seus aliados
comportam-se como se a esquerda não tivesse o direito legítimo de ocupar o
poder e tivesse de ser impedida de o fazer
por todos os meios.
Estes comportamentos
são sobejamente conhecidos — e assustadores — para qualquer pessoa que conheça a história
da península ibérica no século 20, ou a da América latina. Que isto esteja a
ser feito em nome do euro não é novidade nenhuma. O movimento Syriza na Grécia,
o primeiro governo da esquerda radical desde a 2ª guerra mundial, foi esmagado
até à submissão por ter ousado afrontar a ideologia da Eurozona. Agora a
esquerda portuguesa está perante uma variante da mesma máquina trituradora.
Os socialistas europeus enfrentam um dilema. Estão a acordar para a desagradável verdade que a
união monetária é um empreendimento autoritário de direita que cortou as amarras com a democracia. Todavia, se eles
actuarem tendo em conta este facto, correm o risco de serem impedidos de chegar
ao poder.
Bruxelas
criou realmente um monstro.
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1. Quem escreveu este artigo? Se fizéssemos esta
pergunta, por exemplo, à dra. Fátima Bonifácio ou ao dr. Rui Ramos (imaginando
que não tivessem conhecimento prévio da sua proveniência e apenas lhes fosse
dito que o seu autor é um cidadão inglês), uma resposta provável seria, presumo,
a seguinte: “pelo palavreado (« agenda ideológica reaccionária », «
empreendimento autoritário de direita », « defesa do Syriza », etc.) deverá ser Jeremy Corbyn, o novo dirigente do
Labour Party”.
Mas não. O seu
autor é o sr. Ambrose Evans-Pritchard, o conhecidíssimo e respeitabilíssimo editor
para os assuntos económicos internacionais do Daily Telegraph, o jornal que exprime as posições do Partido
Conservador (os Tories), o partido tradicional da direita do Reino Unido. Os
Tories são, como é bem sabido, um partido defensor da libra esterlina e anti-euro
(que encaram como um marco disfarçado) e muitos deles advogam também a saída da
União Europeia. Tanto assim que vão fazer um referendo sobre essa questão. Se existissem em Portugal,
Cavaco Silva, pelos vistos, recusar-se-ia a indigitar o seu dirigente (Cameron) para 1º ministro, ainda que tivessem
a maioria na AR, acusando-os de anti-europeístas.
2. Sobre a expressão «
atravessar o Rubicão» que consta do seu título (caso o leitor desconheça o
significado ou/e a origem desta expressão):
Na época do império
romano, o rio Rubicão tinha uma importância política e simbólica assinalável: a
lei romana proibia que este rio fosse atravessado por qualquer legião do
exército romano. Dessa forma, a lei protegia a República de ameaça militar
interna. No dia 11 de Janeiro de 49 a.C., o general e político romano Caio
Júlio César tomou uma decisão radical: atravessar o rio Rubicão, seguido pelo
seu exército, transgredindo claramente a lei do Senado que determinava a
desmobilização das tropas todas as vezes que um general de Roma
entrasse em Itália pelo norte. Foi o início de uma sangrenta guerra civil,
que terminou com uma vitória de César e a sua subida ao poder como ditador
absoluto da República romana. (César acabaria por ser assassinado por um grupo de senadores descontentes com a sua usurpação dos poderes do Senado). Desde então, a expressão «atravessar o Rubicão»
passou a significar a tomada de uma decisão que põe em marcha um empreendimento
perigoso, ou ainda, ultrapassar fronteiras proíbidas, defrontando-se com um
caminho duvidoso e potencialmente perigoso.
3. Considero o título deste artigo muito interessante porque ele diz, por
outras palavras (e aliás mais incisivamente), o que escrevi, no mesmo dia, no meu texto «E se…?» (v. mais abaixo): a decisão de Cavaco de impedir
por todos os meios um governo suportado por uma coligação parlamentar PS-BE-CDU,
é uma decisão bonapartista que o coloca em rota de colisão com a democracia e
com a Constituição que jurou cumprir e fazer cumprir. Na realidade, bonapartismo, é um outro nome, mais
moderno, para cesarismo (de Júlio
César). Oliver Cromwell (na Inglaterra); Napoleão Bonaparte, Napoleão III,
Pétain (na França); Bismarck (na Alemanha); Sidónio Pais (em Portugal); Dollfuss e Schuschnigg (na Áustria), Getúlio
Vargas (no Brasil) são alguns dos expoentes do bonapartismo.
4. Moral da história. É
possível a uma pessoa de esquerda e a uma pessoa de direita concordarem, entre muitas outras coisas expostas neste artigo, que Cavaco Silva ameaçou
atravessar o Rubicão e que constitui por conseguinte uma ameaça muito concreta
e imediata à democracia em Portugal (veremos nas próximas semanas se ele
concretiza essa ameaça ou se a engole fingindo que nunca a fez). Todavia, para
encontrar, neste momento, uma pessoa de direita dessa espécie, temos de ir até
à Grã-Bretanha. Por cá, ainda não vi uma única pessoa de direita que dissesse o
mesmo que A. Evans-Pritchard. Aqui e ali, ouviram-se alguns queixumes sobre « o
tom crispado » do presidente e sobre a sua «linguagem um pouco excessiva». O melhor
que se conseguiu foi o candidato a presidente Marcelo Rebelo de Sousa a dizer: «Uma coisa é a política dos adversários, outra é a
política dos inimigos» e «somos todos portugueses, cabemos todos na democracia». De resto, foi a
unanimidade: «disse o que se esperava que dissesse» ou « foi um discurso corajoso». E isto deveria
fazer-nos reflectir sobre a natureza da direita portuguesa e dos seus
comentadores encartados na comunicação social.
P.S. (Janeiro de 2016), O presidente Cavaco Silva não chegou a concretizar a sua ameaça de atravessar o Rubicão e acabou, ainda que muito relutantemente, por dar posse à solução de governo que quatro partidos parlamentares (PS, Bloco de Esquerda, PCP e Verdes) encontraram (governo do primeiro com o apoio parlamentar dos outros três) como alternativa, aprovada na Assembleia da República, ao governo minoritário PSD-CDS a que tinha inicialmente dado posse e que foi derrubado nessa assembleia. Pelo facto, só nos podemos congratular, porque, se o presidente tivesse concretizado a sua ameaça, estaríamos perante uma tentativa clara de instaurar uma ditadura, com todas as consequências imprevisíveis daí resultantes.
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P.S. (Janeiro de 2016), O presidente Cavaco Silva não chegou a concretizar a sua ameaça de atravessar o Rubicão e acabou, ainda que muito relutantemente, por dar posse à solução de governo que quatro partidos parlamentares (PS, Bloco de Esquerda, PCP e Verdes) encontraram (governo do primeiro com o apoio parlamentar dos outros três) como alternativa, aprovada na Assembleia da República, ao governo minoritário PSD-CDS a que tinha inicialmente dado posse e que foi derrubado nessa assembleia. Pelo facto, só nos podemos congratular, porque, se o presidente tivesse concretizado a sua ameaça, estaríamos perante uma tentativa clara de instaurar uma ditadura, com todas as consequências imprevisíveis daí resultantes.
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O artigo
original completo de Ambrose Evans-Pritchard pode ser lido aqui:
Caro José,
ResponderEliminartomei hoje conhecimento, através de uma amiga, da tradução e da crítica que elaborou acerca do texto de Evans-Pritchard. Tendo gostado muito do que li, vim conhecer o seu blog.
Depois de "passear" pela sua prosa e pelas suas ideias, aqui fica o agradecimento pelas análises lúcidas e pela defesa de valores cruciais que têm vindo a ser submetidos a uma política de pacotilha e a interesses que não são os dos cidadãos.
Isabel Cristina