Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

26 outubro, 2015

A Eurozona atravessa o Rubicão

TEMA 3



Em 23 de Outubro foi publicado um artigo importante num importante órgão de imprensa britânico sobre a alocução de Cavaco Silva em que este anunciou a indigitação de Passos Coelho como 1º ministro. Tem um título muito significativo. Adiante comentarei o seu título e o próprio artigo. Mas, para já, convido o leitor/a leitora  a ler os excertos que traduzi desse artigo.

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A Eurozona atravessa o Rubicão 
ao banir do poder a esquerda anti-euro de Portugal


Portugal entrou em águas politicamente perigosas. Pela primeira vez desde a criação da união monetária europeia, um Estado membro tomou a medida explícita de proibir o exercício da governação a partidos eurocépticos, em nome do interesse nacional.

Aníbal Cavaco Silva, o presidente constitucional de Portugal, recusou avalizar um governo de coligação de esquerda, apesar desta ter conseguido uma maioria absoluta no parlamento e ter ganho o mandato de estilhaçar a política de austeridade imposta pela troika da UE e do FMI.

Ele considerou demasiado arriscado deixar o Bloco de Esquerda ou os comunistas  chegarem ao poder, insistindo que os conservadores em minoria devem cerrar fileiras para satisfazer Bruxelas e acalmar os mercados financeiros. A democracia deve passar para segundo plano perante as superiores regras imperativas do euro e da pertença à zona euro.

O sr. Cavaco Silva argumentou que o povo português não votou pelos partidos que querem um regresso ao escudo ou que advogam um confronto traumático com Bruxelas. Isso é verdade, mas ele passou por cima da outra mensagem nuclear das eleições realizadas há três semanas: que o povo votou também para acabar com os cortes de salários e a austeridade da troika. Os partidos de esquerda somados obtiveram 50,7% dos votos. Encabeçados pelos socialistas eles controlam a Assembleia da República.

O estúpido Tratado Orçamental obriga Portugal a cortar a sua dívida até 60% do PIB ao longo dos próximos 20 anos, metendo-o numa permanente armadilha de austeridade, e a fazê-lo precisamente quando o resto da Europa do Sul está a tentar fazer a mesma coisa, e tudo isto com o pano de fundo de poderosas forças deflacionárias que prevalecem no mundo inteiro.

A estratégia que consiste em reduzir gradualmente a dívida avassaladora do país através de um permanente apertar do cinto é autodestrutiva, uma vez que o efeito de um PIB estagnado agrava a dinâmica da crise. E é também inútil. Portugal vai ter de pedir uma anulação da dívida quando a próxima viragem global para a recessão o atingir em cheio. Não há nenhuma probabilidade por mínima que seja que a Alemanha concorde com a união orçamental europeia a tempo de impedir que isso aconteça. A principal consequência de prolongar a agonia é o profundo imobilismo dos mercados de trabalho e os níveis crónicos de baixo investimento que arruinam o futuro.

O sr. Cavaco Silva está de facto a usar o seu cargo para impor uma agenda ideológica reaccionária, no interesse dos credores e da elite da União Económica e Monetária, e justifica a sua posição, com notável desplante, com a defesa da democracia.

Os socialistas e comunistas portugeses enterraram o machado de guerra das suas divisões amargas, pela primeira vez desde a revolução dos cravos e o derrube da ditadura de Salazar nos anos 1970, e está a ser-lhes negada a prerrogativa de formaram um governo de maioria.

Esta é uma conduta perigosa. Os conservadores portugueses e os orgãos de  comunicação social seus aliados comportam-se como se a esquerda não tivesse o direito legítimo de ocupar o poder e tivesse de ser impedida de o fazer  por todos os meios.

Estes comportamentos são sobejamente conhecidos — e assustadores  — para qualquer pessoa que conheça a história da península ibérica no século 20, ou a da América latina. Que isto esteja a ser feito em nome do euro não é novidade nenhuma. O movimento Syriza na Grécia, o primeiro governo da esquerda radical desde a 2ª guerra mundial, foi esmagado até à submissão por ter ousado afrontar a ideologia da Eurozona. Agora a esquerda portuguesa está perante uma variante da mesma máquina trituradora.

Os socialistas europeus enfrentam um dilema. Estão a acordar para a desagradável verdade que a união monetária é um empreendimento autoritário de direita que cortou  as amarras com a democracia. Todavia, se eles actuarem tendo em conta este facto, correm o risco de serem impedidos de chegar ao poder.

Bruxelas criou realmente um monstro.

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1.  Quem escreveu este artigo? Se fizéssemos esta pergunta, por exemplo, à dra. Fátima Bonifácio ou ao dr. Rui Ramos (imaginando que não tivessem conhecimento prévio da sua proveniência e apenas lhes fosse dito que o seu autor é um cidadão inglês), uma resposta provável seria, presumo, a seguinte: “pelo palavreado (« agenda ideológica reaccionária », « empreendimento autoritário de direita », « defesa do Syriza », etc.)  deverá ser Jeremy Corbyn, o novo dirigente do Labour Party”.

Mas não. O seu autor é o sr. Ambrose Evans-Pritchard, o conhecidíssimo e respeitabilíssimo editor para os assuntos económicos  internacionais do Daily Telegraph, o jornal que exprime as posições do Partido Conservador (os Tories), o partido tradicional da direita do Reino Unido. Os Tories são, como é bem sabido, um partido defensor da libra esterlina e anti-euro (que encaram como um marco disfarçado) e muitos deles advogam também a saída da União Europeia. Tanto assim que vão fazer um referendo sobre  essa questão. Se existissem em Portugal, Cavaco Silva, pelos vistos, recusar-se-ia a indigitar o seu dirigente (Cameron) para 1º ministro, ainda que tivessem a maioria na AR, acusando-os de anti-europeístas.

2. Sobre a expressão « atravessar o Rubicão» que consta do seu título (caso o leitor desconheça o significado ou/e a origem desta expressão):

Na época do império romano, o rio Rubicão tinha uma importância política e simbólica assinalável: a lei romana proibia que este rio fosse atravessado por qualquer legião do exército romano. Dessa forma, a lei protegia a República de ameaça militar interna. No dia 11 de Janeiro de 49 a.C., o general e político romano Caio Júlio César tomou uma decisão radical: atravessar o rio Rubicão, seguido pelo seu exército, transgredindo claramente a lei do Senado que determinava a desmobilização das tropas todas as vezes que um general de Roma entrasse em Itália pelo norte. Foi o início de uma sangrenta guerra civil, que terminou com uma vitória de César e a sua subida ao poder como ditador absoluto da República romana. (César acabaria por ser assassinado por um grupo de senadores descontentes com a sua usurpação dos poderes do Senado).  Desde então, a expressão «atravessar o Rubicão» passou a significar a tomada de uma decisão que põe em marcha um empreendimento perigoso, ou ainda, ultrapassar fronteiras proíbidas, defrontando-se com um caminho duvidoso e potencialmente perigoso.

3. Considero o título deste artigo muito interessante porque ele diz, por outras palavras (e aliás mais incisivamente), o que escrevi, no mesmo dia, no meu texto «E se…?» (v. mais abaixo): a decisão de Cavaco de impedir por todos os meios um governo suportado por uma coligação parlamentar PS-BE-CDU, é uma decisão bonapartista que o coloca em rota de colisão com a democracia e com a Constituição que jurou cumprir e fazer cumprir. Na realidade, bonapartismo, é um outro nome, mais moderno, para cesarismo (de Júlio César). Oliver Cromwell (na Inglaterra); Napoleão Bonaparte, Napoleão III, Pétain (na França); Bismarck (na Alemanha); Sidónio Pais (em Portugal); Dollfuss e Schuschnigg (na Áustria), Getúlio Vargas (no Brasil) são alguns dos expoentes do bonapartismo.

4. Moral da história. É possível a uma pessoa de esquerda e a uma pessoa de direita concordarem, entre muitas outras coisas expostas neste artigo, que Cavaco Silva ameaçou atravessar o Rubicão e que constitui por conseguinte uma ameaça muito concreta e imediata à democracia em Portugal (veremos nas próximas semanas se ele concretiza essa ameaça ou se a engole fingindo que nunca a fez). Todavia, para encontrar, neste momento, uma pessoa de direita dessa espécie, temos de ir até à Grã-Bretanha. Por cá, ainda não vi uma única pessoa de direita que dissesse o mesmo que A. Evans-Pritchard. Aqui e ali, ouviram-se alguns queixumes sobre « o tom crispado » do presidente e sobre a sua «linguagem um pouco excessiva». O melhor que se conseguiu foi o candidato a presidente Marcelo Rebelo de Sousa a dizer: «Uma coisa é a política dos adversários, outra é a política dos inimigos» e «somos todos portugueses, cabemos todos na democracia». De resto, foi a unanimidade: «disse o que se esperava que dissesse» ou « foi um discurso  corajoso».  E isto deveria fazer-nos reflectir sobre a natureza da direita portuguesa e dos seus comentadores encartados na comunicação social.

P.S. (Janeiro de 2016), O presidente Cavaco Silva não chegou a concretizar a sua ameaça de atravessar o Rubicão e acabou, ainda que muito relutantemente, por dar posse à solução de governo que quatro partidos parlamentares (PS, Bloco de Esquerda, PCP e Verdes) encontraram (governo do primeiro com o apoio parlamentar dos outros três) como alternativa, aprovada na Assembleia da República, ao governo minoritário PSD-CDS a que tinha inicialmente dado posse e que foi derrubado nessa assembleia. Pelo facto, só nos podemos congratular, porque, se o presidente  tivesse concretizado a sua ameaça,  estaríamos perante uma tentativa clara de instaurar uma ditadura, com todas as consequências imprevisíveis daí resultantes. 

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O artigo original completo de Ambrose Evans-Pritchard pode ser lido aqui:

1 comentário:

  1. Caro José,
    tomei hoje conhecimento, através de uma amiga, da tradução e da crítica que elaborou acerca do texto de Evans-Pritchard. Tendo gostado muito do que li, vim conhecer o seu blog.
    Depois de "passear" pela sua prosa e pelas suas ideias, aqui fica o agradecimento pelas análises lúcidas e pela defesa de valores cruciais que têm vindo a ser submetidos a uma política de pacotilha e a interesses que não são os dos cidadãos.
    Isabel Cristina

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Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana