Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

13 julho, 2020


Esta é 6ª entrada do Diário Intermitente da pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 (ver a sua apresentação no Arquivo deste blogue, clicando em Março de 2020, no fundo da coluna à direita deste texto). 

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As reuniões no INFARMED acabaram, mas a pandemia de Covid-19 prossegue e prosseguirá até haver uma vacina segura e eficaz

José Catarino Soares

Por proposta do primeiro-ministro de Portugal, António Costa, teve início, em 23 de Março de 2020, uma série de reuniões, realizadas na sede do INFARMED-Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde I.P, sobre a situação epidemiológica da Covid-19 em Portugal.

1. Os participantes nas reuniões realizadas no INFARMED

Nessas reuniões participaram, por um lado, o presidente da República, o presidente da Assembleia da República, o primeiro-ministro, a ministra da Saúde (e, ocasionalmente, outros membros do governo), membros do Conselho de Estado (por videoconferência), dirigentes dos partidos políticos com assento parlamentar (PS, PSD, BE, PCP, PAN, CDS, PEV, Chega, IL), dirigentes das duas centrais sindicais (CGTP, UGT), dirigentes das confederações patronais (CIP, CAP, CCP, CTP) e, por outro lado, cientistas (epidemiologistas, infecciologistas, virologistas) e médicos de Saúde Pública da DGS (Direção-Geral da Saúde), do INSA (Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge), do ISPUP (Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto), da ENSP (Escola Nacional de Saúde Pública), do INEM (Instituto Nacional de Emergência Médica), da FCUL (Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa), da CARNMIC (Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional em Medicina Intensiva) e do Gabinete Regional de Intervenção para a Supressão da Covid-19 na ARSLVT (Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo).

2. O fim das reuniões com os cientistas no INFARMED

O presidente do PSD, Rui Rio, defendeu, na semana passada, que estas reuniões, a última das quais teve lugar em 8 de Julho de 2020, tinham «perdido utilidade» e deveriam, por isso, acabar. 

Sabemos, por inferência baseada na análise retrospectiva dos acontecimentos, que Marcelo Rebelo de Sousa concordou com Rui Rio e que consultou o primeiro-ministro, António Costa, o qual concordou com ambos.

O presidente da república de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa (à esquerda), e o primeiro-ministro de Portugal, António Costa (à direita), durante uma das reuniões sobre a situação epidemiológica da Covid-19 em Portugal que foram realizadas no INFARMED. Foto de Manuel de Almeida. Lusa.

Seja como for, o certo é que o presidente da República, depois de ter exercido também, durante 13 semanas, o cargo imaginário de “epidemiologista-mor das autoridades de saúde pública portuguesas” no final dessas reuniões no INFARMED, anunciou, em 8 de Julho de 2020, que a reunião realizada nesse dia tinha sido a última — até ordem em contrário, acrescentou António Costa, mais cauteloso.

3. Significado

Que significado atribuir a estes acontecimentos? O director de Informação da SIC Notícias, Ricardo Costa, que é um homem perspicaz, escreveu em síntese no Expresso Curto (8-07-2020):

Os encontros quinzenais no INFARMED, começaram como um encontro raro da política e da ciência e acabaram como normalmente acontece à política e à ciência, coisas com tempos e critérios diferentes: foi cada uma à sua vida. Os cientistas foram os últimos a saber. Também, nada de novo. A terra prometida da união e da concórdia é agora uma miragem. Resta a pandemia, o seu lento dia a dia e a sucessão de notícias, dúvidas e incertezas.

4.Realidade e Ficção

Concordo. Está muito bem visto.

Faço apenas uma ressalva que parece um pormenor, mas que é, de facto, um “pormaior”. Os encontros no INFARMED — 10 ao todo — não foram “entre a política e a ciência”, mas entre a pequena oligarquia que tem o monopólio oficial ou oficioso da decisão macropolítica e macroeconómica em Portugal e uma pequeníssima parte dos cientistas e médicos portugueses que têm competência para se pronunciarem sobre a matéria em apreço nesses encontros: a situação epidemiológica da Covid-19 em Portugal. Assinale-se, por outro lado, que nem sequer os órgãos da comunicação social apologista da máxima “no-meio-é-que-está-a-virtude” tiveram acesso a esses encontros.  

Apesar da sua composição estritamente oligárquica e apesar de serem à porta fechada — sem que este último facto, contrário à natureza da ciência, tivesse alguma vez suscitado crítica e protesto por parte de qualquer dos participantes — essas reuniões não deixavam de ser, mesmo assim, uma fonte de confronto entre a realidade e a ficção.

— A realidade: uma pandemia provocada por um vírus novo (o coronavírus SARS-CoV-2), de origem ainda desconhecida, que já infectou, oficialmente, pelo menos 12 milhões de pessoas em todo o mundo (mais exactamente, 12.377.546 pessoas, à data de hoje, 9 de Julho de 2020), das quais mais de 2,5 milhões na Europa e 45.277 em Portugal, provocando-lhes uma doença nova (a Covid-19), para a qual ainda não há tratamento específico nem vacina segura e eficaz, e que já fez, oficialmente, mais de meio milhão de mortes (mais exactamente, 556.559 mortes, à data de hoje), das quais 1.644 em Portugal. 

O advérbio de modo em -mente tem, aqui, a sua importância. Dada a debilidade ou inexistência de agências estatísticas confiáveis em muitos países e a deliberada política governamental de ocultação que vigora em muitos outros, os números de casos confirmados de infecção e de óbito por Covid-19 supramencionados (cuja fonte é a Worldometer) estão certamente aquém da realidade. Quão aquém não sabemos.

Acresce que sabemos hoje que o número de pessoas infectadas com o vírus, mas assintomáticas, é elevado e que, não obstante isso, as pessoas nesse estado são vectores de novas infecções na comunidade cujas cadeias de transmissão são muito difíceis de reconstituir e quebrar. Sabemos também que a política de testagem para despiste desta infecção viral é muito variável de país para país. Nuns testa-se pouco, noutros muito; nuns dá-se prioridade a certos grupos, noutros não. Por isso, muitas pessoas assintomáticas (mas infectadas), e mesmo muitas pessoas sintomáticas, podem ficar fora do radar estatístico por falta de despiste adequado. Assim sendo, estas duas fontes suplementares de enviesamento estatístico introduzem uma distância ainda maior dos números disponíveis sobre a crise pandémica em relação à realidade da mesma.

Esta imagem digitalizada de microscópio electrónico mostra o novo coronavírus SARS-CoV-2 (em amarelo), extraído de um doente nos E.U.A,  a emergir da superfície de células (em azul e cor-de-rosa) cultivadas em laboratório.  Imagem de NIAID/RMLA.

— A ficção. Por exemplo, a realização, em Lisboa, dos jogos de futebol da fase final da Liga dos Campeões da UEFA apresentada como prova máxima de que a pandemia está controlada; a reabertura, em 1 de Julho, da fronteira de Portugal com a Espanha e das fronteiras externas da União Europeia com 15 países apresentada como prova de que Portugal «foi, é e continuará a ser um país aberto ao mundo» (“Aeroportos prontos para retomar o tráfego a partir de dia 15 [de Junho], garante Costa”,  Público, 5 de Junho de 2020), que toda a União Europeia «vai fazer um esforço para que o turismo retome a sua atividade em pleno» (ibidem) e que «o que se seguirá à crise conjuntural que afecta as companhias de aviação, os aeroportos e o turismo» será «o retomar das pessoas poderem livremente circular à escala global» (ibidem). 

5. A realidade actual da crise pandémica em Portugal

Tudo isto é refutado pelos factos. A situação pandémica na área metropolitana de Lisboa (AML) piorou, e muito, desde o anúncio (em 17 de Junho) da realização da fase final da Liga dos Campeões da UEFA.

Desde 1 de Julho que Portugal continental está dividido em três níveis de alerta para fazer face à pandemia de Covid-19: alerta (o menos grave), calamidade (o mais grave) e contingência (o nível intermediário). Ora, a maior parte do país passou, em 1 de Julho, para a situação de alerta, enquanto a Área Metropolitana de Lisboa (AML) passou para a situação de contingência, e 19 freguesias de cinco municípios (incluindo Lisboa) da AML mantêm a situação de calamidade.

Já há mais de 2 meses que a região de Lisboa e Vale do Tejo e, em particular a Área Metropolitana de Lisboa, é a região do país mais afetada pela pandemia. Nas últimas cinco semanas (5 de Junho a 11 de Julho) houve uma média diária de 338 novos casos confirmados de Covid-19 em Portugal. As médias semanais de casos confirmados durante este período foram: 7-13 de Junho: 302, 14-20 Junho:340, 21-27 Junho: 335, 28 de Junho-4 de Julho:369, 5-11 de Julho: 350 (fonte: DGS). (Nestes números não estão incluídos os 200 casos que, no final na semana passada, foram reportados à Direcção Geral da Saúde por um laboratório privado que esteve três dias sem enviar dados para a plataforma de notificações). A maioria destes casos (75 a 85% dos casos) registam-se na região de Lisboa e Vale do Tejo, em especial na AML. Outro dado a ter em conta são os surtos. Portugal parece ter actualmente 65 surtos de Covid-19, 53 dos quais na AML [Corrijo e actualizo esta informação: à data de 17 de Julho de 2020 havia 206 surtos em Portugal continental, dos quais 134 se localizavam na região de Lisboa e Vale do Tejo. Fonte: DGS]

Numa entrevista ao semanário SOL, publicada este fim de semana (11 de Julho), o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, professor e investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e um dos participantes mais assíduos nos encontros no INFARMED supramencionados, explica que, tal como tem acontecido desde o início de Junho, as projeções apontam para um aumento lento mas progressivo das hospitalizações, que deverão passar ao patamar dos 600 internamentos (hoje, 11 de Julho, estão 459 pessoas internadas com Covid-19, 68 das quais em unidades de cuidados intensivos). Para este epidemiologista, o Algarve suscita neste momento a maior preocupação, dado o afluxo esperado durante as férias não só de mais ou menos turistas estrangeiros, mas também de nacionais de todo o país.

A ocorrência de surtos em estruturas residenciais para idosos (ERPI), vulgo “lares para idosos”, é outra das preocupações, assim como o risco de focos nos hospitais. Exemplos recentes destas duas situações não faltam. 

O surto de Covid-19 que surgiu há três semanas num lar para idosos de Reguengos de Monsaraz, e alastrou à comunidade, já infectou 131 habitantes e fez 16 mortos. Os alcaides de dois municípios espanhóis que fazem fronteira com Reguengos de Monsaraz (Villanueva del Fresno e Valencia del Mombuey) solicitaram aos governos espanhol e português o fecho dos postos fronteiriços para impedir que o surto alastre aos seus municípios. Não nos esqueçamos que existem 1.276 pessoas infectadas em 153 ERPI (5,5% das 2.526 ERPI existentes) e que 628 óbitos dos 1.646 óbitos por Covid-19 registados até dia 10 de Julho ocorreram em ERPI. 

Em 7 de Julho foi detectado um foco de Covid-19 no hospital de São José em Lisboa: 13 pessoas infectadas — sete doentes, quatro enfermeiros, um assistente operacional e um funcionário de limpeza.

6. A realidade da União Europeia perante a pandemia

Os países da União Europeia (UE), da qual Portugal é membro, decidiram escolher um único indicador — o número de novos casos diários de Covid-19 por 100.000 habitantes — para distinguir os países desta União para onde é seguro viajar. Um país que tenha menos de 20 novos casos confirmados por dia de Covid-19 por 100 mil habitantes é seguro. Um país que tenha mais de 20 novos casos diários confirmados por 100 mil habitantes não é seguro.

Este critério nada tem de científico. É um critério arbitrário, tão arbitrário como, por exemplo, os critérios de convergência (ou critérios de Maastricht) para aderir à União Económica e Monetária (vulgo, zona euro), tais como:  a relação entre o défice orçamental e o PIB não deve exceder 3%; a relação entre a dívida pública e o PIB não deve exceder 60%.

Seria um critério sanitário científico, ou técnico-científico, se os seus proponentes conseguissem explicar-nos que abaixo de 20 novos casos diários confirmados de Covid-19 por 100 mil habitantes o risco de transmissão do vírus é, dentro de um país, praticamente residual e, portanto, que as pessoas podem estar perfeitamente seguras porque é um país seguro. Mas essa explicação não existe. Não há quaisquer provas científicas que suportem empiricamente a afirmação que a ocorrência de menos de 20 (ou 10, ou 15, ou 50) novos casos diários por cem mil habitantes é um critério decisivo de segurança sanitária em relação à transmissão do vírus.

Em resumo, o critério dos 20 novos casos diários confirmados por 100 mil habitantes para decidir se um país da UE é seguro não faz sentido nenhum, se for considerado como um indicador de segurança sanitária, ainda por cima isoladamente, como único indicador. De que se trata então? De «uma manobra de estética para dizer que se está a fazer alguma coisa [para controlar a pandemia]», como observou Paulo Santos, professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e investigador do Cintesis [Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde] (“Devíamos partir do princípio de que todos podemos estar infectados”, Público. 11 de Julho de 2020). “Estética” é, aliás, uma palavra grande demais para qualificar esta manobra. Seria mais apropriado dizer que é uma reles manobra cosmética para disfarçar a ausência de qualquer política antipandémica coerentemente articulada a nível europeu.

Não é, porém, uma manobra inocente. À luz desse critério, Portugal faz muito má figura. Com uma média diária de 47 novos casos confirmados de Covid-19 por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias (um número que sobe para 121 por 100 mil habitantes na AML), Portugal é, actualmente, o 3º pior classificado entre os países da União Europeia, a seguir ao Luxemburgo (1º) e à Suécia (2º). Nove países da União Europeia invocaram esse facto como justificação para colocarem Portugal numa lista negra de países inseguros. Consequência: os portugueses estão proibidos de entrar na Dinamarca, Chéquia, Finlândia, Áustria, Lituânia, Eslováquia, Letónia, Chipre e Roménia. Por sua vez, a Bulgária, Eslovénia, Estónia, Malta e Holanda impõem uma quarentena obrigatória de 14 dias aos portugueses que viajem para esses países.

Os portugueses estão também excluídos dos “corredores de viagem internacionais” que a Inglaterra (uma das nações do Reino Unido) decidiu abrir. Quem for de Portugal para Inglaterra terá de cumprir 14 dias de isolamento profiláctico. Por outro lado, o governo do Reino Unido continua a desaconselhar as viagens para Portugal, embora abra excepções à Madeira e aos Açores. Ora, como é bem sabido, os Britânicos são os principais turistas estrangeiros, sobretudo no Algarve. As restrições anunciadas podem significar a perda de uma fatia importante dos 3,3 mil milhões de euros que geraram em 2019.

A Bélgica também colocou Lisboa numa “zona vermelha”. Isso significa que os viajantes que regressarem à Bélgica vindos da capital portuguesa, terão obrigatoriamente de se sujeitar a um teste de despiste da Covid-19 e de fazer quarentena. Para a Bélgica, Portugal continua na “zona amarela”, ou seja, as viagens para o país são desaconselhadas.

Os países que impõem estas proibições ou restrições aos viajantes vindos de Portugal estão longe, todos eles (uns mais, outros menos), de constituírem modelos a seguir na luta contra a pandemia de Covid-19. O quadro mais abaixo compara Portugal com alguns desses países que se arvoram em seus juízes sanitários, segundo quatro indicadores. Escolhi a Roménia, que faz parte do grupo de países que proibiu a entrada a portugueses; a Holanda, que faz do grupo de países que impõe aos portugueses uma quarentena de 14 dias; o Reino Unido e a Bélgica que desaconselham ambos as viagens para Portugal e impõem restrições aos viajantes portugueses.

Poder-se-ia pensar que estes países estão numa situação epidemiológica muito melhor do que a de Portugal, sendo essa razão que os teria levado a tomarem essas medidas de protecção contra Portugal. Mas o quadro seguinte permite refutar esse argumento.

    Países
       [a]
       [b]
     [c]
     [d]
Fonte: Worldometer
10-07-2020
Casos de Covid-19 por 1 milhão de habitantes
Mortos de Covid-19 por 1 milhão de habitantes
Casos de Covid-19 em unidades de cuidados intensivos
Testes de Covid-19 por 1 milhão de habitantes
Bélgica
     5.530
     844
       36
 116.443
Reino Unido
     4.244
     658
     185
 169.942
Holanda
     2.967
     358
       20
   39.795
Roménia
     1.632
       96
     236
   42.861
Portugal
     4.480
      161
       66
 129.116

— A Roménia está melhor do que Portugal em 2 indicadores, [a] e [b],  mas Portugal está muito melhor em 2 indicadores, [c] e [d].

— A Holanda está melhor do que Portugal em dois indicadores, [a] e [c], mas Portugal está muito melhor em dois indicadores, [b] e [d].

— O Reino Unido está melhor do que Portugal em 2 indicadores, [a] e [d], mas Portugal está muito melhor do que o Reino Unido em 2 indicadores, [b] e [c].  

— Portugal está melhor do que a Bélgica em 3 dos 4 indicadores: [a], [b], e [d]. A Bélgica está melhor do que Portugal apenas no indicador [c], visto que tem menos doentes de Covid-19 em unidades de cuidados intensivos, apesar de ter mais 1 milhão de habitantes do que Portugal. Mas esta vantagem pode ser fictícia porque se morre muito mais na Bélgica de Covid-19 do que em Portugal e muitos desses óbitos ter-se-ão registado em unidades de cuidados intensivos. Acresce que a  Bélgica faz menos testes do que Portugal. Nada nos impede de supor que teria ainda mais casos confirmados de Covid-19 por 1 milhão de habitantes (ou por cem mil habitantes) se fizesse um esforço para testar tanto como Portugal. 

Em suma, presunção e água benta não faltam a estes pretensos “parceiros” de Portugal na (des)União Europeia. Com algumas possíveis e raras excepções (como a da Chéquia, que, todavia, faz muito menos testes de despiste do vírus do que Portugal), os países da União Europeia (Portugal incluído) não têm razões para se orgulharem da sua situação sanitária no que respeita à crise pandémica da Covid-19.

Quanto à abertura das fronteiras externas da União Europeia, convém saber que essa abertura diz respeito a uma lista de apenas 15 países extra-União Europeia considerados seguros. Entre muitos outros países, essa lista exclui os EUA, o Brasil e a Rússia, dada a situação calamitosa em que se encontram do ponto de vista da crise pandémica. Mesmo assim, Itália, Hungria, Chéquia, Espanha e Suíça (que não faz parte da União Europeia) fizeram saber que não vão seguir, para já, a recomendação do Conselho Europeu, que elaborou essa lista de 15 países.

Perante estes factos, como se pode pretender que estamos (ainda que lentamente) a regressar à normalidade? Que normalidade?

7. Confinamento

O novo coronavírus é, como todos os vírus, totalmente insensível à propaganda e à agitação política, à publicidade comercial, às necessidades de desconfinamento e de crescimento da economia capitalista à escala nacional, à escala internacional e à escala mundial. As reuniões no INFARMED, apesar de todas as suas limitações científicas e do seu semi-secretismo, punham essa realidade viral a nu.

24 de Março de 2020. Sentados a dois metros uns dos outros, para respeitarem a distância  proxémica de segurança contra a disseminação do coronavírus SARS-CoV-2, trabalhadores da fábrica de montagem de automóveis de passageiros Dofeng, em Wuhan, província de Hubei, tomam uma refeição. Foto: Xinhua.

Na fase dita de confinamento, quando o temor de uma calamidade sanitária e de uma disrupção hospitalar semelhantes às de Itália se sobrepunha à rabulice e picardia habituais nos palcos e nos bastidores da luta partidária e da concorrência económica, essas reuniões foram unanimemente saudadas e elogiadas por todos os membros do pequeno e selecto círculo dos seus frequentadores. Porém, quando esse perigo foi afastado e o “business as usual” voltou a reclamar a supremacia sobre a saúde (individual e pública), brandindo a bandeira “é preciso desconfinar para a economia poder respirar”, o caso mudou diametralmente de figura.

8. Desconfinamento

Na fase dita de desconfinamento, o que os cientistas tinham a dizer à sua selecta audiência não diferia muito, afinal, daquilo que lhe tinham dito na fase de confinamento. Como quase toda gente, eu também não tive acesso, presencial ou por videoconferência, às reuniões no INFARMED.  Apesar disso, não é preciso um grande esforço para imaginar o que os cientistas presentes lá terão dito à sua ilustre audiência. Suponho que não teria andado muito longe disto:

Declarar que temos a situação pandémica criada pelo vírus SARS-CoV-2 estabilizada ou controlada é prematuro e errado. Por duas razões principais:

a. Não existem fármacos específicos e eficazes contra a Covid-19, a doença que ele provoca.

b. Enquanto não tivermos uma vacina segura e eficaz e enquanto não for feita uma campanha de vacinação em massa com essa vacina (abrangendo, pelo menos, 60% da população e começando pelos grupos de risco), não se pode alcançar a tão desejada imunidade de grupo.

Ora — acrescento eu — enquanto isso não acontecer, não há, não pode haver, regresso à normalidade da vida de todos os dias, nem ao ramerrame dos pequenos e grandes negócios (o “business as usual”, como gostam de dizer os economistas apologéticos).

Compreende-se perfeitamente que não fosse esta a mensagem que o presidente da República, o governo, o partido que formou o governo, o maior partido da oposição, os pequenos partidos à sua direita e as confederações patronais desejassem ouvir da boca dos cientistas e médicos de saúde pública, reunião após reunião, desde 4 de Maio, quando começou o desconfinamento.

Por isso, o presidente da República, por sugestão do dirigente do maior partido de oposição e com a anuência do primeiro-ministro, pôs termo aos encontros quinzenais com os epidemiologistas no INFARMED sobre a situação epidemiológica da Covid-19 em Portugal.

9. Como enfrentar, então, o vírus SARS-CoV-2?

As reuniões no INFARMED sobre a situação epidemiológica da Covid-19 terminaram. A Covid-19, essa, continua, porque o indómito vírus que a provoca não quer saber de mais nada a não ser replicar-se pandemicamente, o que só consegue fazer com a nossa prestimosa ajuda. 

Coronavírus SARS-CoV-2. Visão artística.  © Shutterstockp.

Temos, pois, de procurar saber como poderemos resistir com êxito a um inimigo com estas características desconcertantes, até reunirmos as condições para o vencer. Esse será o tema da próxima ou próximas entrada(s) deste Diário Intermitente da Pandemia.

Lisboa, 9-11 de Julho de 2020

…………………………………………………….

P.S. O grupo parlamentar do PSD na Assembleia da República (A.R) enviou dia 10 de Julho — dois dias depois, portanto, do anúncio do presidente da República que pôs termo às reuniões no INFARMED — um requerimento à Comissão de Saúde da A.R para que as reuniões até então feitas no INFARMED passem a ser realizadas, a partir de Setembro, na Assembleia da República, com periodicidade quinzenal e duração indeterminada. Além disso, tais reuniões deveriam ser transmitidas publicamente através do canal Parlamento (ARTV) para pôr cobro, dizem os deputados do PSD, à «indesejável falta de transparência» que tinham as reuniões no INFARMED. Além de epidemiologistas, o PSD propõe que participem nessas reuniões um representante do ministério da Saúde, membros do Governo e “outros especialistas que a comissão de Saúde venha a deliberar ouvir” (“PSD quer transmitir reuniões com epidemiologistas na ARTV”, Jornal de Notícias, 10-07-2020).

Assim, as reuniões com cientistas sobre a situação epidemiológica da Covid-19 em Portugal que deveriam morrer por alegada “falta de utilidade” (Rui Rio dixit), e que morreram de facto (com o aplauso do PSD), podem ressuscitar ao terceiro dia e ter toda a utilidade, desde que (i) não sejam realizadas no INFARMED, (ii) não sejam convocadas pelo governo, nem organizadas pelo ministério da Saúde (iii) e só tenham um representante do ministério da Saúde. Para justificar esta espectacular cambalhota, o PSD resolveu agora arvorar-se em paladino da transmissão pública futura desse tipo de reuniões.

Obviamente, as reuniões no INFARMED deveriam ter sido transmitidas pela RDP e pela RTP e é imperioso que isso aconteça no futuro, se os cientistas voltarem a ser chamados a pronunciar-se livremente (como é necessário que suceda) sobre a situação epidemiológica da Covid-19 em Portugal. Todos os cidadãos têm direito de aceder à melhor informação científica disponível sobre uma pandemia que os ameaça 24 horas sobre 24, e que só pode ser vencida com a sua iniciativa esclarecida. Por isso, as reuniões desse tipo devem realizar-se só e sempre no âmbito do Ministério da Saúde e não serem convertidas num sucedâneo de audiência parlamentar ou de comissão de inquérito parlamentar. Mas seria preciso uma grande dose de ingenuidade para acreditar que um partido que nunca contestou o secretismo dessas reuniões durante três meses a fio está de boa fé quando defende agora que se faça no futuro próximo o contrário daquilo que praticou no passado recente.

 O novo coronavírus é, bem entendido, totalmente indiferente a estas irrisórias intrigas palacianas urdidas com o pretexto de o combater. Se o vírus tivesse sentimentos, intelecto e fala, tenho a certeza de que tais intrigas só lhe provocariam uma imensa gargalhada zombeteira e um comentário acintoso: «Pobres criaturas! Cresçam e apareçam se quiserem medir forças comigo…».

07 junho, 2020


Esta é 5ª entrada do Diário Intermitente da pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 (ver a sua apresentação no Arquivo deste blogue, clicando em Março de 2020, no fundo da coluna à direita deste texto). As notas finais são grafadas entre parênteses rectos e em cor-de-laranja. Por exemplo, [1].

Gostaria de conseguir escrever este diário fazendo jus ao lema que encerra a resposta à seguinte adivinha (que me foi contada pelo meu amigo João Viegas Fernandes): «Qual é a semelhança entre um pára-quedas e a mente humana? É o facto de tanto um como a outra só nos serem úteis, salvando-nos a vida, se estiverem bem abertos».

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Haverá uma maneira de escapar ao dilema moral posto aos pais pela reabertura das creches frequentadas pelos seus filhos antes da pandemia?

José Manuel Catarino Soares

Este texto é um complemento e um seguimento do artigo publicado em 31 de Maio neste blogue [1]. Foi motivado por uma longa conversa com um amigo.

1. Uma crítica em três vertentes

Esse amigo criticou o mencionado artigo por incorrer numa «excessiva simplificação». A questão da reabertura das creches em 18 de Maio (ou em 1 de Junho) seria «muito mais complexa» do que a descrita nesse artigo. Em particular, eu não teria dado a devida importância aos problemas de «saúde mental» e de «violência doméstica» que o confinamento domiciliário veio agravar em muitas famílias. Tais factos justificariam que, para muitas crianças da faixa etária dos 3 meses aos 3 anos (inclusive), o regresso à creche — pese embora todos os riscos inerentes de contágio pelo novo coronavírus — pudesse ser uma opção melhor ou menos má do que a de continuarem em casa, onde estariam sujeitas a perigos ainda maiores ou mais imediatos.

Crianças numa creche à hora da sesta (antes da pandemia) 

Além disso — acrescentou o meu amigo — há muitas famílias trabalhadoras onde não há violência doméstica, nem perturbações mentais, mas que estão com os seus salários amputados em 1/3 na sequência da suspensão ou da redução dos seus contratos de trabalho, resultante do estatuto de «lay-off simplificado» requerido pela entidade patronal. Algumas (ou muitas) destas famílias sentiriam uma necessidade imperiosa de regressarem aos seus postos de trabalho e tornarem a auferir a totalidade dos seus salários para poderem fazer face a despesas fixas inerentes a responsabilidades contratuais que contraíram antes da pandemia, como, por exemplo, «o pagamento das prestações do crédito à habitação própria permanente».

Assim sendo — concluiu o meu amigo — os pais cujos filhos frequentavam creches antes da pandemia da Covid-19 ficaram a braços com um dilema muito complexo, suscitado pela reabertura das creches em 18 de Maio. Tiveram de ponderar muitos factores díspares e emaranhados para decidir o que fazer nessa data, ou, no melhor dos casos, em 1 de Junho. Com uma agravante: as alternativas (levar os filhos de novo para a creche ou mantê-los em casa até Setembro) a que estiveram confrontados, em 18 de Maio e/ou em 1 de Junho, eram ambas más e ambas igualmente más. A opção dos pais por uma delas só poderia ter sido pela que se lhes afigurasse, subjectivamente, menos má. Para uns pais a alternativa menos má seria uma. Para outros pais, a alternativa menos má seria a outra. Deste modo, não haveria nenhum critério susceptível de nos permitir determinar objectivamente qual delas seria a menos má.

2.  Concordância

Agradeço ao meu amigo F.V.J. (designei-o por meio destas iniciais fictícias para que ele possa utilizá-las se quiser escrever um comentário neste blogue sem ter de utilizar o seu nome próprio) as suas vigorosas, inteligentes e estimulantes críticas. Se outro mérito não tivessem (e têm muitos mais), elas teriam (como tiveram) um que se tornará muito óbvio no seguimento deste texto: o de me levar a aprofundar alguns aspectos desta questão que são da maior importância, mas que não foram abordados no artigo de 31 de Maio.

Começo por dizer que estou inteiramente de acordo com os seus argumentos sobre as situações de degradação da saúde mental dos pais e de violência doméstica como factores que a pandemia veio agravar e que podem afectar muito negativamente o bem-estar e o desenvolvimento das crianças, muito especialmente as crianças que frequentam as creches, as mais jovens de todas. Concebo perfeitamente que uma mãe ou um pai vítima de violência doméstica possa pensar que o seu filho está mais seguro (e até mais feliz) na creche do que em casa, apesar do risco de contágio pelo coronavírus SARS-CoV-2 ser mais elevado na creche do que em casa. Do mesmo modo, concebo perfeitamente que uma mãe ou um pai que coabite com um cônjuge que sofra de uma doença mental grave possa pensar que o seu filho está mais seguro (e até mais feliz) na creche do que em casa, apesar do risco de contágio pelo SARS-CoV-2 ser mais elevado na creche do que em casa.

Concordo também que a necessidade de trabalhar para superar a perda de rendimentos causada pelo «lay-off simplificado», pelo despedimento ou por qualquer outra circunstância gravosa causada pela pandemia da Covid-19, é um factor muito ponderoso na decisão dos pais relativamente ao regresso dos seus filhos à creche. Em 31 de Maio terminou o apoio de 66% da remuneração de referência que foi atribuído aos pais ou encarregados de educação que prestavam assistência aos filhos em casa por terem sido afectados pelo encerramento dos infantários. Para poderem regressar aos seus postos de trabalho, esses pais são praticamente forçados a fazer regressar os seus filhos ao infantário ou a encontrar uma solução equivalente.

Crianças lavam as mãos numa creche, sob o controlo de uma educadora (antes da pandemia)

Por fim, concordo que as duas alternativas do dilema moral que a reabertura das creches colocou aos pais são ambas más. Uma das alternativas (manter as crianças em casa) — designemo-la por alternativa A — é má porque impede os pais que trabalham fora de casa de retomarem as suas ocupações laborais, afectando gravemente desse modo os seus rendimentos. A outra alternativa (levar outra vez as crianças para as creches) — designemo-la por alternativa B — é má porque comporta um risco elevado de as tornar vítimas e vectores de transmissão do novo coronavírus nas creches que frequentam, nas famílias a que pertencem e nas comunidades em que as famílias estão inseridas.

3. Discordância
 
Onde não estou de acordo é na ideia de que as razões que se podem invocar para optar por uma das alternativas do dilema têm um valor (um peso valorativo) idêntico ao das razões que se podem invocar por optar pela outra alternativa do dilema. Procurei mostrar no meu artigo anterior que a permanência em casa das crianças dos 3 meses aos 3 anos é, na presente conjuntura pandémica da Covid-19, uma opção menos má do que a opção do seu regresso à creche. Voltarei mais tarde a este assunto, aduzindo mais argumentos em prol desta tese.  

De momento, pretendo salientar o seguinte: parece-me que a ideia contrária — a de que ambas as alternativas (A e B) são igualmente más, pelo que seria moralmente equivalente optar por uma ou por outra na presente conjuntura pandémica — é a ideia que constitui o fio condutor da argumentação do meu amigo F.V.J. Vejamos porquê.

3.1. O argumento do crédito à habitação própria permanente

Não é aceitável que se possa invocar a necessidade de trabalhar para pagar a prestação ao banco pelo empréstimo da casa como um argumento válido para justificar a decisão de fazer regressar um filho à creche que frequentava.


Creche «O Portugal dos Pequeninos II» (Associação de Socorros Mútuos de S. Francisco de Assis, Anta, Espinho) em 24 de Janeiro 2020 (antes da pandemia)

Este argumento não colhe na actual situação pandémica pela seguinte razão. Está em vigor, até ao dia 31 de Março de 2021, um regime de moratória (Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de Março e Plano de Estabilização Económica e Social (PEES), de 4 de Junho), aplicável, entre outros contratos, a contratos de crédito para habitação própria permanente celebrados com pessoas singulares:

(i) que estejam em situação de isolamento profiláctico ou de doença,

(ii) ou que prestem assistência a filhos ou netos, conforme estabelecido no Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, na sua redacção actual,

(iii) ou que tenham sido colocadas em redução do período normal de trabalho ou em suspensão do contrato de trabalho, em virtude do chamado «lay-off simplificado»,

(iv) ou que estejam em situação de desemprego registado no Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P.,

(v) ou que sejam trabalhadores elegíveis para o apoio extraordinário à redução da atividade económica de trabalhador independente, nos termos do artigo 26.º do referido decreto-lei,

(vi) ou que sejam trabalhadores de entidades cujo estabelecimento ou actividade tenha sido objecto de encerramento determinado durante o período de estado de emergência.

Este regime prevê que a pessoa possa suspender o pagamento das prestações do crédito à habitação, entre o momento em que a moratória é solicitada ao banco e o dia 31 de Março de 2021. Os juros que se vençam durante o período da moratória serão capitalizados no valor em dívida do empréstimo. Ao abrigo deste regime, a pessoa pode solicitar apenas a suspensão do reembolso de capital (continuando a pagar juros do empréstimo). Neste caso, o valor em dívida no empréstimo mantém-se durante o período da moratória.

O prazo do empréstimo estende-se por um período igual ao da duração da moratória. Esta extensão do prazo de pagamento de capital, juros, comissões e demais encargos relativos aos contratos de crédito abrangidos pela medida não dá origem a incumprimento contratual ou activação de cláusulas de vencimento antecipado. Durante o período da moratória, mantêm-se válidas e eficazes as garantias concedidas pela pessoa (ou por terceiros) ao banco que lhe fez o empréstimo, as quais se prorrogam por igual período.

Centenas de milhares de pessoas pediram moratórias ao abrigo desta legislação, segundo informou o Banco de Portugal em 21 de Maio.  Só até 31 de Abril, já tinham sido aprovadas moratórias relativas a 355.541 contratos. Quase metade dos contratos objecto de moratória (162.492) dizem respeito a crédito concedido para aquisição de habitação própria permanente a pessoas que foram afectadas directa ou indirectamente pela Covid-19 — doença, isolamento profiláctico, assistência a filhos e netos, quebra de rendimentos por motivo de «lay-off simplificado» ou de despedimento.

3.2. O argumento da saúde mental e da violência doméstica

O confinamento domiciliário a que todos fomos forçados durante um mês e meio para quebrar as principais cadeias de transmissão comunitária do SARS-CoV-2 agravou muito todos os problemas sociais.

A pandemia e as medidas de confinamento domiciliário destinadas a combatê-la agravaram, nomeadamente, os problemas existentes de violência doméstica em muitas famílias, assim como os problemas de saúde mental e os problemas de solidão, em particular de pessoas de idade avançada que vivem sozinhas ou que residem em lares onde, para evitar o contágio por esse vírus, se viram impedidas de receber visitas de amigos e familiares durante mais de um mês e meio e que, mesmo agora, na fase de desconfinamento domiciliário, continuam a não poder sair como o faziam antes, pelas mesmas razões. Não minimizo de modo nenhum a importância destes problemas, que são parte integral dos efeitos sociais multifacetados da pandemia da Covid-19.

Não obstante, não é aceitável que se possa invocar a doença mental de um cônjuge, ou a violência doméstica exercida por um cônjuge, como um argumento válido para justificar, neste contexto pandémico, a decisão de fazer regressar um filho do casal à creche que frequentava antes da pandemia.

Este argumento não colhe pelas seguintes razões. Se essa criança estiver em risco de ser maltratada, agredida ou abusada em sua casa por um dos seus progenitores ou encarregados de educação, não é pelo facto de passar uma parte do dia na creche que estará a salvo. Só estará a salvo se o adulto agressor for corrido da casa onde coabita com a criança, ou se a criança for separada dos pais biológicos (no caso de ambos constituírem uma ameaça para a criança) e entregue a uma família de acolhimento. É para se conseguir proteger a integridade da criança em casa (nos casos em que ela esteja em risco) que o argumento da doença mental e o argumento da violência doméstica são válidos, e não para justificar o seu regresso à creche que frequentava antes da pandemia.

Creche «O Portugal dos Pequeninos II» (Associação de Socorros Mútuos de S. Francisco de Assis, Anta, Espinho) em 25 de Maio de 2020

3.3. O argumento da necessidade de trabalhar a tempo inteiro e fora de casa para poder sustentar a família

Não é aceitável que se possa invocar a necessidade de trabalhar a tempo inteiro e fora de casa para poder sustentar a família como um argumento válido para justificar o regresso de um filho à creche que frequentava antes da pandemia. Invocar o fim, em 31 de Maio último, do apoio de 66% da remuneração de referência que foi atribuído aos pais ou encarregados de educação afectados pelo encerramento dos infantários não confere validade acrescida ao argumento em causa, apenas o torna mais especioso.

Nenhum desses argumentos colhe, pelas seguintes razões. O direito à saúde e o direito à segurança (física e afectiva) das crianças de tenra idade — condições essenciais do seu bem-estar e do seu desenvolvimento — não podem ser postergados ou violados em nome do direito à saúde (física e mental) e do direito ao trabalho dos pais. A inversa é igualmente verdadeira: o direito à saúde e o direito ao trabalho dos pais não podem ser postergados ou violados em nome do direito à saúde e do direito à segurança das crianças. Estes direitos não se excluem mutuamente, antes se reforçam mutuamente.

O facto de os pais das crianças dos 3 meses aos 3 anos terem sido colocados, pela reabertura das creches em 18 de Maio, numa situação em que foram forçados a escolher entre abdicarem dos seus direitos mais básicos ou abdicarem dos direitos mais básicos dos seus filhos é um indício claro de que foram apanhados numa armadilha conceptual e socioeconómica.

Como sair dessa armadilha é o assunto que desenvolverei mais adiante. Antes, porém, gostaria de aduzir mais alguns factos e argumentos (para além daqueles que compilei na entrada anterior deste Diário) que corroboram a asserção feita no fim da secção 3: a continuação das crianças dos 3 meses aos 3 anos em suas casas, é, na actual conjuntura pandémica, uma opção menos má do que a opção do seu regresso à creche.

4. O testemunho de uma pediatra

Graça Gonçalves é uma conhecida médica pediatra. Trabalha há 36 anos. Todavia, em 36 anos de profissão, não se lembra de um período com tão poucos ranhos perenes, tosses, otites e viroses.

Com o encerramento das creches, os miúdos adoeceram menos?

Nunca passei por um período tão perfeito em termos de doenças. As crianças praticamente não adoeceram. Tive, em média, uma criança doente por semana, antes da Covid eram várias por dia. Não quer dizer que não haja uma que não apanhe uma otite, ou outra coisa, mas não transmitem como transmitiam antes. Normalmente percebemos logo quais são os vírus que andam por aí, porque ouvimos sempre as mesmas histórias. Desde que as creches fecharam, os miúdos quase não tiveram nada, foi uma bênção. As bronquiolites, as otites, os ranhos perenes, tudo isso praticamente desapareceu. Quando os miúdos entram na escola o aviso que eu faço aos pais é: atenção que ele vai começar a ficar ranhoso e, mais tosse menos tosse, mais febre menos febre, o ranho vai estar lá sempre. Vão pensar que é uma doença crónica, mas não é, porque na maioria das vezes estamos a falar de crianças saudáveis.

E isto acontece em todas as idades?

Quando vão para a escola é em todas as idades, mas se só entrarem aos três anos as coisas passam por eles de forma mais suave. Quando se entra com cinco, seis meses, os problemas ganham outra proporção. Depois, se são amamentados, no geral aguentam-se melhor, se têm problemas de base alérgica, corre pior. O primeiro ano é sempre o mais complicado, porque dois dias depois de terem febre ficam doentes outra vez. Isto perturba muito as noites, o bem-estar da criança e obriga a fazer muito mais medicações do que seriam necessárias. Só costumo ter acalmia em Julho, Agosto, mas nos últimos anos já nem Julho e Agosto eram fantásticos.

As crianças também passaram a estar menos medicadas com esta pandemia?

Muitos miúdos têm de fazer medicação crónica para bronquiolites, por exemplo, usam inaladores brônquicos diariamente e em alguns casos os pais perceberam que podiam parar. Há uns anos havia uma teoria que defendia que estas infecções eram importantes para diminuir as incidências de alergias, que os miúdos deviam ir para os infantários e ter estes problemas todos para ficarem imunes, mas isso não tem sido validado. Não faz nenhum sentido pedir-se a uma criança que fique doente. É tão desconfortável... Sempre com aqueles narizes obstruídos, sem conseguir respirar bem de noite, de vez em quando lá vem uma dor grande de uma otite. Como é que isso é bom?


Graça Gonçalves, médica pediatra


As doenças virais são as mais comuns nas crianças?

Mais de 90% dos problemas até aos 3 anos de vida são virais. Os miúdos acabam por ultrapassar isto com a idade, mas dos três anos para a frente o rácio de crianças por educador nas creches é ainda maior. A culpa não é das educadoras, que não podem fazer melhor. Talvez pudessem ir mais para a rua, mas também há pais que proíbem.

Proíbem como?

Há duas correntes: os pais que acham que estar na rua, andar ao sol, à chuva e saltar nas poças, é bom. E os pais que têm medo que os miúdos vão para a rua e se constipem, que acham que vão apanhar constipações por andarem descalços, por exemplo. Com a vontade que temos de os proteger, não os deixamos usufruir do corpo. E nos infantários, à conta disso, fecham-se janelas, põem-se ares condicionados e transformam-se estes espaços num viveiro maravilhoso para a bicharada.

Portanto, na sua opinião, quem conseguir deve manter os filhos em casa, em vez de os pôr já na creche ou no jardim de infância?

Para os miúdos que sigo estes meses foram o paraíso na terra. Num mundo ideal, se houver hipótese, e muita gente não tem mesmo hipótese, deixava-os em casa. Sobretudo até aos três anos, em que, com raras exceções, os miúdos não precisam de ir desenvolver-se para um infantário. O que eles precisam é de uma relação de um para um. Só recomendo creche antes dos três anos quando existem falhas ao nível da socialização ou da fala, por exemplo. (“Desde que as creches fecharam, as crianças quase não tiveram doenças”, entrevista com Graça Gonçalves. Sábado, 19-05-2020). [os destaques a cor-de- laranja foram acrescentados por mim, J.M.C.S]

Estes são apenas alguns excertos de uma entrevista toda ela muito interessante. Creio ser esta a sua mensagem principal:

Desde que as creches fecharam, os miúdos quase não tiveram nada, foi uma bênção. No início isto foi muito bem gerido, porque as medidas aplicadas foram medidas de saúde e não políticas. Agora acho que estamos a entrar em medidas um bocadinho economicistas. Por isso é que os pais têm de ir trabalhar e os miúdos vão para o infantário (ibidem).


5. Escapar à armadilha conceptual e socioeconómica

Recapitulando: a reabertura das creches em 18 de Maio colocou os pais das crianças que frequentavam esses estabelecimentos perante um dilema que não tem uma boa solução. As alternativas do dilema (A: retorno das crianças às creches, permitindo que os pais — quer os que estão na situação resultante do «lay-off simplificado», quer os que perderam o emprego, quer os que prestaram assistência aos filhos até 1 de Junho — possam regressar ao trabalho remunerado fora de casa,  versus B: permanência das crianças em casa, mas impedindo os pais de poderem regressar ao trabalho remunerado fora de casa a fim de sustentarem a família) são ambas más. A alternativa A enaltece o direito ao trabalho dos pais à custa do direito à saúde dos filhos. A alternativa B enaltece o direito à saúde dos filhos à custa do direito ao trabalho dos pais.

O facto de ambas as alternativas serem falaciosas e daninhas é uma prova concludente de que a reabertura das creches em 18 de Maio é uma armadilha conceptual e socioeconómica. Só é possível escapar a essa armadilha — evitando-a ou evadindo-se dela, conforme for o caso — recusando os termos do dilema.

Sugiro que isso pode ser feito em dois tempos. Num primeiro tempo, é necessário reconhecer que os pais que decidiram manter os seus filhos em casa em 18 de Maio e em 1 de Junho, em vez de os fazer regressar às creches que frequentavam antes do seu encerramento em 15 de Março, tomaram a decisão mais acertada, ou menos má, na presente conjuntura pandémica [2].

A decisão desses pais foi a menos má porque consistiu em tomar o partido da parte mais fraca e desprotegida — as crianças — colocando a salvaguarda dos interesses (a saúde e o bem-estar) dos seus filhos de tenra idade acima da salvaguarda dos interesses das “empresas” e da “actividade económica” (dois pseudónimos correntes de “patronato”). Por isso, a decisão desses pais equivale, na prática, a repudiar a reabertura das creches em 18 de Maio (e o dilema especioso que ela encerra) por ser uma medida descabida e imprevidente do ponto de vista da saúde e do bem-estar das crianças que mais carecem de protecção.

O texto que constitui a entrada anterior deste Diário ocupou-se longamente em fundamentar este veredicto com grande cópia de factos e argumentos, aos quais acrescentei, hoje, o testemunho da pediatra Graça Gonçalves, do qual só tomei conhecimento depois da publicação desse texto, em 31 de Maio. Julgo, por isso, não ser necessário voltar ao assunto.

Num segundo tempo, é necessário reconhecer que as crianças dos 3 meses aos 3 anos que frequentavam um creche antes da pandemia só poderão ficar em casa se, pelo menos, um dos seus progenitores (se formarem um casal), ou o único progenitor encarregado de educação (nas famílias monoparentais), ficar também em casa a cuidar delas, em vez de ter de sair de casa para ganhar a sua vida.

Por conseguinte, os 800.000 trabalhadores colocados actualmente em redução do período normal de trabalho ou em suspensão do contrato de trabalho, em virtude do regime de «lay-off simplificado» das empresas onde trabalham, não poderão regressar todos ao seu posto de trabalho ou ao seu horário de trabalho normal quando terminar esse «lay-off simplificado». O mesmo vale dizer dos que perderam o emprego depois do começo da pandemia e que poderão, entretanto, tornar a encontrar um emprego remunerado. Em Abril, estavam 392.323 pessoas inscritas num centro de emprego, segundo anunciou o IEFP (Instituto do Emprego e Formação Profissional) no dia 19 de maio. Em termos líquidos, no período em análise, registaram-se mais 71.083 pessoas desempregadas em Portugal, comparando com o mesmo mês de 2019.

Há uma solução para este problema. Uns e outros — trabalhadores colocados em redução do período normal de trabalho ou em suspensão do contrato de trabalho em virtude do regime de «lay-off simplificado» e trabalhadores desempregados — se tiverem filhos que deixaram de ir à creche, deveriam ter um abono de família mensal extraordinário correspondente a 100% do salário médio líquido mensal. No caso dos trabalhadores que retomarem em pleno as suas funções e o seu horário de trabalho em virtude do fim do «lay-off simplificado», esse abono de família extraordinário deveria ser atribuído ao membro do casal [3], ou ao progenitor único (nas famílias monoparentais), que ficar em casa a cuidar das crianças até Setembro, pressupondo que já estarão asseguradas, nessa altura, as condições de segurança necessárias ao seu retorno às creches.

Só uma medida deste género permitirá que os trabalhadores cujos filhos frequentavam as creches até ao seu encerramento em 15 de Março possam escapar à armadilha conceptual e socioeconómica que a reabertura das creches em 18 de Maio representa.


Educadoras e crianças numa creche, depois de 18 de Maio de 2020

6. Uma objecção

A única objecção a esta medida que consigo antever é de carácter económico-financeiro. Consiste em dizer que é uma medida que custaria muito dinheiro ao erário público e que esse dinheiro (feliz ou infelizmente) não existe.

Essa objecção não colhe. Não é verdade que seja muito dinheiro nem que esse dinheiro não exista. Vejamos porquê.

6.1. Creches e frequência das creches

Em 31 de Dezembro de 2018, existiam, em Portugal continental, 2.570 creches, 76 % das quais propriedade de entidades não lucrativas. Destas 2.570 creches, 408 pertenciam à rede pública (Ministério da Educação e Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social) e 2090 pertenciam à chamada rede privada de solidariedade social (instituições particulares de solidariedade social [IPSS]). Estas creches ofereciam 117.300 lugares e eram frequentadas por um pouco mais de 100.000 crianças (Fonte: Carta Social-Rede de Serviços e Equipamentos. Relatório de 2018).

Não existem estatísticas actualizadas. Por isso, vamos supor que, em 12 de Março de 2020 (quando o governo decidiu o encerramento dos infantários, escolas e CATLs), existiam 100.000 crianças nas creches, e vamos supor também, para simplificar, que todas elas, meninos ou meninas, são filhos únicos.

Quanto custaria o abono de família extraordinário que propus mais acima?

Aqui, torna-se necessário fazer um aparte.

6.2. Salário médio líquido mensal

O salário médio líquido nacional era de 909 euros em 2019 (Fonte: INE, 5 de Fevereiro de 2020). Todavia, dos 4 milhões e 100 mil de trabalhadores por conta de outrem que existem em Portugal, mais de metade (2 milhões e 300 mil) recebe abaixo dessa média. Por escalão de rendimento, os dados mostram que 1 milhão e 900 mil trabalhadores por conta de outrem têm um rendimento médio mensal líquido entre 600 e 900 euros. Há ainda 100.500 trabalhadores a receber menos de 310 euros líquidos por mês e 307.800 trabalhadores cujo salário líquido médio mensal se situa entre 310 euros e os 600 euros. Por outro lado, menos de 70.000 trabalhadores recebem por mês mais de 2.500 euros líquidos em média, dos quais 37.900 mil recebem três mil euros ou mais.

Seja como for, vamos supor, para simplificar, que um abono de família extraordinário equivalente ao salário médio líquido mensal seria uma quantia considerada equitativa mesmo pelos pais que auferem um salário líquido mensal superior a essa quantia. Façamos então contas.

909 euros 100.000 = 90.900.000 (90 milhões e 900 mil euros). Este seria o custo mensal do abono de família extraordinário.

Como o abono de família extraordinário seria pago durante quatro meses (Junho, Julho, Agosto, Setembro), temos

90.900.000 x 4 = 363.600.000 euros

6.3. Custo do abono de família extraordinário

O custo total do abono de família extraordinário para as crianças das creches seria, portanto, de 363 milhões e 600 mil euros. Não é muito. Só o dinheiro transferido (1.037 milhões de euros, sendo 850 milhões de empréstimos públicos ao Fundo de Resolução), em Maio deste ano, do Orçamento de Estado de 2020 para o Novo Banco (propriedade em 75% do fundo de investimento Lone Star Funds, do multimilionário de origem norte-americana John Grayken) dava para prolongar o pagamento deste abono por mais 2 meses e meio, até ao começo das férias de Natal, e ainda sobrava muito.


John Grayken, proprietário da Lone Star Funds, à saída de um julgamento na Coreia do Sul, em 2011, no qual a Lone Star Funds foi condenada por manipulação bolsista. Foto de Chung Sung-Jun, Getty Images

No total, desde a resolução do BES em Agosto de 2014 até à transferência de Maio de 2020 (exclusive), o Orçamento de Estado injectou 5.180 milhões de euros no Novo Banco, através do Fundo de Resolução. Em 2014, com a resolução do BES, foram injectados 3.900 milhões de euros. Em 2017, com a venda do Novo Banco ao Lone Star Funds, foi acordada a disponibilização de mais 3.890 milhões de euros no âmbito do Mecanismo de Capital Contingente. Deste último montante, já foram utilizados, antes de Maio deste ano, 1.941 milhões de euros, dos quais 792 milhões de euros em 2018 e 1.149 milhões de euros em 2019 (Dinheiro Vivo, 17 de Dezembro 2019; Jornal de Negócios, 9 de Maio 2010).

7. Conclusão

Não há nenhuma dificuldade financeira, técnica ou social na adopção e aplicação de uma medida como esta, de elementar justiça e grande urgência. O único obstáculo à sua adopção (e é um obstáculo de monta) é o facto de não encontrar acolhimento nem no governo, nem nas centrais sindicais (CGTP, UGT), nem nos sindicatos, nem nos partidos com assento parlamentar, pelo menos naqueles (PS, Bloco de Esquerda, PCP, PAN, PEV) que as pessoas com a ingenuidade do jovem Cândido, no romance homónimo de Voltaire, poderiam esperar que fôssem os seus paladinos.

Salvo melhor informação, tanto estes partidos como os sindicatos não se pronunciaram liminarmente contra a reabertura das creches em 18 de Maio ou, nos raros casos em que o fizeram, não propuseram qualquer solução alternativa viável [4].


Notas


[1] A reabertura das creches em 18 de Maio (ou em 1 de Junho) é uma medida que comporta riscos cujas consequências ninguém sabe avaliar nem evitar [v. Arquivo do Blogue, Maio 2020]

[2] A reabertura das creches em 18 de Maio parece ter sido um  fiasco parcial. «Cerca de 70% das creches reabriram no dia 18 de Maio, de acordo com a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Ana Mendes Godinho» (Diário de Notícias, 1 de Junho 2020). «No primeiro dia, 88% das creches [entenda-se: as que estão ligadas à ACPEEP, que são uma pequena minoria] reabriram, mas tiveram em média entre quatro a seis crianças», disse à Lusa Susana Batista, presidente da Associação de Creches e de Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular (ACPEEP), com base no inquérito realizado na segunda-feira junto dos associados. Houve 12% que não receberam qualquer criança porque os pais «não quiseram arriscar já esta semana com receio [da pandemia de covid-19], mas mesmo assim houve uma abertura administrativa», explicou à Lusa (Lusa, 19 de Maio de 2020). O inquérito da ACPEEP revelou ainda que, entre os pais que enviaram as crianças para a creche, a maioria (60%) tem filhos no 1.º ciclo, ou seja, em escolas que este ano lectivo vão continuar sem aulas presenciais e, por isso, terão de permanecer em casa.

Nos planos do governo, 1 de Junho era o dia de reabertura dos jardins-de-infância e também do regresso de mais crianças às creches, uma vez que terminava nesse dia o período de transição em que as creches estiveram abertas, mas as famílias puderam optar por ficar com os filhos em casa, mantendo o apoio financeiro do Orçamento de Estado. «No entanto, a perceção dos educadores dita que a afluência de crianças nestes estabelecimentos foi muito pouco significativa» (Diário de Notícias, 1 de Junho 2020). A reabertura dos jardins-de-infância em 1 de Junho — apesar de não suscitar, em minha opinião, objecções de princípio da mesma natureza do que as suscitadas pela reabertura das creches — parece ter sido também um fiasco. «Em grande parte dos estabelecimentos de pré-escolar, abertos a partir desta segunda-feira, o número de crianças presentes não chega a 20%, dizem diretores. Estatísticas que contrariam as expectativas». (Diário de Notícias, 1 de Junho 2020).

[3] Bem entendido, nada impede que a mãe e o pai compartilhem alternadamente essa tarefa, mês sim, mês não.

[4] No comunicado de 11 de Maio do secretariado nacional da Federação Nacional dos Professores (FENPROF), pode ler-se: «a FENPROF já solicitou uma reunião à Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social para discutir as condições em que se prevê a reabertura das creches e que, a serem as que têm sido divulgadas, não poderão merecer o acordo da FENPROF». Porém, salvo melhor informação, o secretariado da FENPROF não tornou a pronunciar-se sobre este assunto.

A Federação Nacional da Educação (FNE) «defende que as normas para a reabertura das creches devem ser elaboradas em conjunto com os educadores de infância». «Assim como estão não são adequadas, nem exequíveis», disse ao PÚBLICO o secretário-geral da FNE, João Dias da Silva (Público, 11 de Maio 2020). Porém, salvo melhor informação, o secretário-geral da FNE não tornou a pronunciar-se sobre o assunto.

A direcção do Sindicato de Todos os Professores (STOP), em parceria com o blogue ComRegras, realizou um inquérito intitulado “Regresso às Escolas”. Este inquérito foi respondido entre domingo,10 de Maio, e terça-feira, 12 de Maio, por 6.170 pessoas, a maioria profissionais de ensino (58%) e cerca de 2070 encarregados de educação (33,6%). Os resultados, publicados em 13 de Maio, revelam que 85,5% dos pais e 86,6% dos profissionais de ensino. inquiridos estão contra a reabertura das creches (e também do pré-escolar). Porém, salvo melhor informação, a direcção do STOP não propôs qualquer iniciativa que desse corpo a esta oposição.