Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

07 maio, 2022


Temas 2, 3 e 4


A Guerra na Ucrânia

(1.ª parte)

Crónica de uma guerra pré-anunciada

 

José Catarino Soares

                           

1. Introdução

Toda a gente sabe que as Forças Armadas da Rússia, às ordens de Vladimir Putin, invadiram a Ucrânia em 24 de Fevereiro de 2022 e desencadearam uma guerra nesse país que já vai, no momento em que escrevo (18 de Março de 2022), no 23.º dia.

Julgo não ser necessário demonstrar que se trata de (i) uma guerra internacional onde há um invasor/agressor e um invadido/agredido; (ii) uma guerra de invasão mortífera e devastadora para a população e a vida social do país invadido; (iii) uma guerra que já fez, pelo menos, 726 mortes entre os civis ucranianos, incluindo 52 crianças, e 1.174 pessoas feridas, sendo 63 delas crianças, [1]; que provocou um incessante fluxo de fugitivos que se refugiaram noutros países (mais de 3 milhões de pessoas, dos quais 1,4 milhões são crianças e 157 mil são cidadãos de outros países que residiam ou se encontravam na Ucrânia) e de deslocados dentro da Ucrânia (2 milhões) [2], sobretudo mulheres, crianças e seniores; além de grandes destruições materiais — habitações, serviços públicos (incluindo escolas e hospitais [3]), património edificado, infra-estruturas, unidades de produção.

Trata-se também, como demonstrarei (na 3.ª parte deste ensaio), de (iv) uma guerra em que o invasor/agressor carece de qualquer justificação aceitável, quer do ponto de vista do direito internacional público, quer do ponto de vista de uma ética agatonista; (v) uma guerra que é, por isso, duplamente hedionda [4]. É uma guerra que merece a reprovação e o repúdio de todos os que prezam um princípio básico que presumo que seja compartilhado pela maioria da humanidade, ainda que muitos não estejam cientes disso: «Desfrute a vida, sem explorar nem oprimir ninguém, e ajude a viver uma vida desfrutável, sem exploração nem opressão do homem pelo homem» [5]

Mas não basta a reprovação e o repúdio. Precisamos também de pôr termo a esta guerra quanto antes, sabendo que a guerra não é um processo independente, mas a continuação da política (da política de uma sociedade dividida em classes antagónicas) por outros meios — os meios da violência   das armas [6]. Isso levanta várias questões que não são triviais:  

Que significam a invasão da Ucrânia e a guerra em curso na Ucrânia do ponto de vista estratégico e no âmbito da doutrina do seu mentor e mandante, Putin ? (Dito de outro modo: qual é o objectivo político de Putin?). Quais são as causas contribuintes e motivações desta invasão e desta guerra? Por que razão a invasão da Ucrânia ocorreu agora, em Fevereiro de 2022 (e não muito mais cedo ou muito mais tarde)? Como pode a classe trabalhadora assalariada da Europa e dos outros continentes (especialmente a do subcontinente América do Norte) agir de modo a pôr fim a esta guerra, derrotar os seus fautores e estabelecer uma paz duradoura na Ucrânia, na Rússia e em toda a Europa?


Refugiados ucranianos em Przemys, cidade polaca. Foto de Louisa Gouliamaki. AFP via Getty Images.

São estas quatro questões que este ensaio visa responder. As três primeiras são relativamente simples, a quarta muito difícil. O leitor deve, pois, esperar uma assimetria semelhante na satisfação que lhe derem as respostas: muito satisfatória no primeiro caso, pouco satisfatória no segundo caso. Se assim for, fica desde já convidado a contribuir para que a quarta e última questão ‒que é a mais importante ‒ tenha a resposta que merece.


2. Método de investigação e plano da exposição


Para responder a estas questões, em particular às três primeiras, temos de examinar meticulosamente as ideias (incluindo intenções, objectivos, crenças, planos, etc.) e os comportamentos pertinentes (incluindo declarações, ordens, leis, alianças, medidas, políticas públicas, etc.) dos indivíduos e grupos que constituem a elite dirigente (governantes, gestores, diplomatas, chefes militares, chefes policiais, doutrinadores ideológicos e propagandistas) dos diversos países envolvidos nesta guerra, a começar pela elite que dirige os países directamente em guerra ‒ neste caso, a Rússia e a Ucrânia ‒ continuando até à elite que dirige os países que participam indirectamente nesta guerra ‒ os Estados Unidos da América (EUA), os demais países da Organização do Tratado do Atlântico Norte  (OTAN) e os países da União Europeia  (UE) ‒ através do fornecimento de armas à Ucrânia e à Rússia [7] e de represálias económicas contra a Rússia.  

Não há outra maneira de proceder, porque os fautores da guerra de invasão em curso na Ucrânia (e das guerras de devastação em geral) são esse tipo de indivíduos e grupos, assim como as organizações que dirigem. É impossível não ter em conta o que fazem e o que dizem, se se quiser delinear e ajustar, continuadamente, as acções que a classe trabalhadora assalariada poderá desenvolver para lutar com eficácia contra a guerra.

Isso é importante, por exemplo, para poder explorar da maneira mais vantajosa as eventuais tensões, conflitos e divisões que ocorram no seio da classe dominante, em particular no seio da sua elite dirigente. Numa guerra, elas podem escalar de um momento para o outro,

Digo isto porque sei que há leitores que, sendo contra as guerras de invasão ou de devastação ‒ e, por conseguinte, contra a guerra na Ucrânia ‒ consideram, no entanto, que a análise das motivações e causas contribuintes que levam, em cada caso, à sua eclosão é uma pura perda de tempo, um ocioso e inconsequente exercício de geopolítica [8]. A única coisa que interessaria discutir seriam as acções de luta da classe trabalhadora contra a guerra. É uma posição que reputo errada, pelas razões que indiquei, e que espero que este ensaio ajude a refutar.

Para maior comodidade de publicação e facilidade de leitura dividi o ensaio em 4 partes. Nas primeira e segunda partes, abordarei a segunda questão (quais são as causas contribuintes e motivações da invasão e guerra em curso na Ucrânia?). Na terceira parte, abordarei a primeira questão (Que significam a invasão da Ucrânia e a guerra em curso na Ucrânia do ponto de vista estratégico e no âmbito da doutrina do seu mentor e mandante, Putin ? [Dito de outro modo: qual é o objectivo político de Putin?]) e a terceira questão (Por que razão ocorreu agora, em Fevereiro de 2022 [e não muito mais cedo ou muito mais tarde]?).

Na quarta parte, abordarei a quarta questão (Como pode a classe trabalhadora da Europa e dos outros continentes [especialmente a do subcontinente América do Norte] agir de modo a parar esta guerra, derrotar os seus fautores e estabelecer uma paz duradoura na Ucrânia, na Rússia e em toda a Europa?).

Penso que esta ordem de exposição é a mais adequada para se entender a interligação das quatro questões.

3. Como a garantia de que a OTAN não avançaria nem um centímetro para o Leste da Europa foi convenientemente esquecida 

Para compreendermos as causas contribuintes e motivações da guerra na Ucrânia temos de nos situar nos Estados Unidos da América (doravante EUA) e recuar 32 anos, até 1990.

Depois de Gorbachev ter concordado com a reunificação da Alemanha e com a pertença da Alemanha reunificada à OTAN, os EUA, sob a presidência de George Bush (pai), conheceram o que o conservador Charles Krauthammer descreveu, em Junho de 1990, como o “Momento Unipolar”.

O mundo bipolar em que o verdadeiro poder emanou apenas de Moscovo e Washington está morto. O mundo multipolar para onde nos dirigimos, no qual o poder emanará de Berlim e Tóquio, Pequim e Bruxelas, assim como de Washington e Moscovo, está a lutar para nascer. A transição entre estes dois mundos é agora, e não vai durar muito. Mas o momento em que estamos a viver é um momento de unipolaridade, onde o poder mundial reside numa entidade razoavelmente coerente, serenamente dominante: a aliança ocidental [entender: os EUA e os seus aliados da OTAN, N.E.], sem contestação e ainda não (embora em breve) fracturada pela vitória [9].

Uma parte da elite dirigente americana viu no momento unipolar uma oportunidade única para os EUA se alcandorarem à posição de única potência global, reconstruindo as relações internacionais à sua maneira e mantendo-as desse modo num “mundo unipolar”. Consoante a sua origem política (conservadores, liberais, neoconservadores, neoliberais) os seus próceres vão qualificar diversamente esse desígnio de “domínio global”, “chefia (Ingl. “leadership”) mundial”, “hegemonia”, “preeminência”, “predominância” ou mesmo “Espectro de Domínio Total”. Foi o sonho de um império mundial americano em que os EUA se encarregariam de manter a paz, proteger as rotas marítimas e fazer cumprir a ordem internacional americanófila baseada em regras globais.

O primeiro documento onde esta orientação foi enunciada preto no branco tinha por título Defense Planning Orientation [Orientação do Planeamento da Defesa] e surgiu em 1992, a seguir à primeira guerra do Iraque (1991), pela mão de Dick Cheney, o ministro da guerra de George Bush (pai) [10]. Nele se definia a doutrina global dos EUA para a nova década e para o novo milénio. Segundo esse documento, os EUA deveriam continuar a ser a única potência dominante no planeta, e deveriam manter poder militar suficiente para impedir quaisquer possíveis rivais estratégicos ‒ tais como a Alemanha, o Japão, a Rússia ou a China ‒ de terem a veleidade sequer de tentarem desafiar o poder global dos EUA.

Como os neoconservadores do “think tankProject for the New American Century (PNAC) [“Projecto para o Novo Século Americano”] (incluindo Dick Cheney, Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz, futuros membros do governo de George Bush-filho) viriam a consignar no estudo intitulado Rebuilding America’s Defenses (1998) [“Reconstruindo as Defesas Americanas]”, a expansão da presença dos EUA no Médio Oriente e da aliança da OTAN na Europa eram os dois eixos que estavam no cerne dessa doutrina.

 

2 de Junho de 1990. Camp David, EUA. Conversações sobre a reunificação da Alemanha e os destinos da OTAN e do Pacto de Varsóvia, Da esquerda para a direita: o tradutor-intérprete Peter Afanasenko, James Baker (camisa azul turquesa), George Bush-pai, o vice-presidente dos EUA Dan Quayle (o único de gravata), o general Brent Scowcroft (conselheiro militar de George Bush-pai), Eduard Chevardnadze (ministro dos Negócios Estrangeiros da União Soviética), Mikhail Gorbatchev e o marechal Sergey Akhromeyev, chefe do Estado Maior das Forças Armadas da União Soviética e conselheiro militar de Gorbachev (de costas para a câmara). Fonte: George H.W. Bush Presidential Library, P13412-08.


O chanceler Helmut Kohl e o ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha Ocidental, Hans-Dietrich Genscher; o presidente François Mitterrand e o ministro dos Negócios Estrangeiros da França, Roland Dumas; a primeira-ministra Margaret Thatcher (e, mais tarde, o seu sucessor John Major) e o ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, Douglas Hurd, fizeram todos a mesma solene promessa a Gorbachev, tida como chave do êxito do Tratado Dois-Mais-Quatro que definiu a reunificação da Alemanha [11] e que teria, alegadamente, garantido a sua plena soberania [12].Mas havia um pequeno/grande problema. Em 9 de Fevereiro de 1990 e em todos os encontros nos meses seguintes, o Presidente George Bush (pai) e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, James Baker III, tinham garantido ao presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev, que se a União Soviética retirasse as suas tropas da Alemanha de leste e permitisse a reunificação alemã, continuando a Alemanha a estar inserida na aliança militar da OTAN, os EUA não expandiriam a OTAN, como disse Baker, “nem um centímetro para Leste” [“not one inch eastward”] da Europa.

No entanto, de 1992 em diante tornou-se corriqueiro os governantes americanos, incluindo o próprio James Baker III, mentirem descaradamente afirmando que essas garantias nunca existiram, ou então (versão hipócrita) que nunca foram dadas por escrito e que, por conseguinte, não têm qualquer valor [13]. Estes dois argumentos são repetidos à exaustão pelos comentadores do sistema mediático dominante de comunicação social (estações privadas e públicas de televisão e de rádio de grande audiência, jornais e revistas comerciais de grande circulação, redes virtuais mundiais de mensagens instantâneas). Alguns vão mesmo ao ponto de afirmar que são uma invenção dos russos, em particular de Putin!

Mas os factos são teimosos. Hoje em dia, qualquer pessoa que tenha acesso à Internet e saiba Inglês pode ler essas garantias tal como foram registadas por escrito nos documentos oficiais da época (actas, relatórios e memorandos) que foram, entretanto, desclassificados [14].

A chegada à presidência dos EUA de Bill Clinton (1993) e a sua permanência nessa posição durante 8 anos (2001) não alterará em nada o desígnio formulado por Dick Cheney e os neoconservadores, bem pelo contrário. Desde 1994 que Clinton está firmemente decidido a “esquecer-se” das garantias dadas a Gorbachev pelo seu antecessor, George Bush (pai). Os seus planos são os de alargar a OTAN para Leste da Alemanha, começando por três países da Europa de leste que tinham sido membros do Pacto de Varsóvia (entretanto dissolvido): Polónia, República Checa e Hungria.

Mas estes planos vão fazer soar as sirenes de alarme não só na elite dirigente russa, agora chefiada por Boris Ieltsin (um ex-membro da Nomenklatura da União Soviética que bem depressa construirá uma sólida e merecida reputação de alcoólatra e protector-mor dos cleptocratas que se apoderarão dos despojos [as riquezas naturais e o aparelho de produção] da ex-União Soviética na Rússia), mas também numa parte da própria elite dirigente americana.


4. O grande cisma estratégico na elite dirigente americana


De facto, é nesta altura que começa a formar-se nos EUA uma coligação hostil ao alargamento da OTAN aos países que foram membros do ex-Pacto de Varsóvia.

As primeiras manifestações públicas dessa coligação foram a carta endereçada por 18 ex-embaixadores e altos funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros e do Ministério da Defesa a Strobbe Talbot, secretário de Estado da Defesa, em 3 de Maio de 1995; o testemunho de Jack F. Matlock (ex-embaixador dos EUA na União Soviética) perante a Comissão de Relações Exteriores do Senado, também em 3 de Maio de 1995; um artigo do professor Michael Mandelbaum publicado na edição de Maio/Junho de 1995 da revista Foreign Affairs; um artigo do embaixador Jonathan Dean, publicado na edição de Junho de 1995 da Arms Control Today, a revista mensal da Arms Control Association, e o  discurso do Senador Sam Nunn de 22 de Junho de 1995 perante o Senado.

A coligação contra o alargamento da OTAN ao leste da Europa foi-se avolumando e em 1997 incluía homens como George Kennan (o mentor da política de “contenção” da União Soviética, ex-embaixador dos EUA na União Soviética, ex-director do Planeamento de Política Pública do Ministério dos Negócios Estrangeiros), Paul Nitze (ex-vice-ministro da Defesa, ex-secretário de Estado da Marinha, ex-director do Planeamento de Política Pública do Ministério dos Negócios Estrangeiros), Robert McNamara (ex-Presidente do Banco Mundial, ex-ministro da Defesa durante a guerra do Vietnam), Fred Iklé (ex-vice-ministro da Defesa, ex-director da Agência para o Desarmamento e Controlo de Armas), o general Brent Scowcroft (ex-membro do Conselho Nacional de Segurança e amigo íntimo do presidente Bush [pai]), o almirante Stansfield Turner e Robert Gates (ex-directores da CIA), Stanley Resor (presidente do Conselho Directivo da Associação para Controlo de Armas), Jack Matlock, Jr. (ex-embaixador dos EUA na Checoslováquia e na União Soviética), Daniel Patrick Moyniham (ex-embaixador dos EUA na Índia e na ONU, senador de Nova Iorque), John Warner (ex-secretário de Estado da Marinha, senador da Virgínia), Sam Nunn (senador da Geórgia), Bill Bradley (senador da Nova Jersey), Richard Pipes (historiador especializado em história da Rússia, professor universitário, coordenador do “Team B” de analistas da CIA), David Calleo (politólogo, professor universitário, especialista em política europeia), Fareed Zakaria (politólogo, sucessivamente editor das revistas Foreign Affairs, Newsweek International e Time, actualmente editor e apresentador do programa Fareed Zakaria GPS da CNN), Owen Harries (politólogo, professor universitário, co-fundador e co-editor da revista The National Interest), Raymond Garthoff (politólogo, ex-embaixador dos EUA na Bulgária, membro permanente da Brookings Institution, um instituto de investigação governamental), Edward Luttwak (politólogo, professor universitário, historiador, membro do Center For Strategic & International Studies [CSIS]), Jim Hoagland (jornalista, vencedor duas vezes do Prémio Pulitzer de jornalismo, editorialista do jornal The Washington Post), Thomas Friedman (jornalista, vencedor duas vezes do prémio Pulitzer de jornalismo, editorialista do jornal The New York Times), e até o próprio William Perry (ministro da defesa de Bill Clinton) e o próprio Michael Mandelbaum (que já referi, mas que cumpre agora relevar como conselheiro da campanha presidencial de Clinton em 1992). Todos eles, além de dezenas de outros diplomatas, altos responsáveis civis do aparelho de Estado americano, generais e almirantes na reserva ou reformados, advertiram Clinton para não levar por diante o seu plano de alargamento da OTAN aos países do leste da Europa.

Estas breves indicações biográficas, embora fastidiosas, serão suficientes, espero, para mostrar que este grupo nada tem que ver com uma qualquer corrente isolacionista, anticosmopolita ou, muito menos, anti-imperialista.

Bem pelo contrário, estes homens eram, à data (alguns ainda estão vivos e activos), figuras proeminentes da elite dirigente americana, cosmopolitas, com uma extensa folha de serviços em prol do Estado e do poderio americano, muitos deles imbuídos até ao tutano da crença imperialista na “chefia americana do mundo” [“American leadership in the world”], o chavão favorito do futuro presidente Barak Obama.

No entanto, opuseram-se vigorosamente aos planos de Clinton para estender a OTAN aos países do Leste da Europa, em direcção à Rússia. O seu denominador comum era a tese de que a expansão da OTAN para o Leste da Europa era possível, mas não desejável à luz do “realismo político[15] que deveria imperar sempre na defesa dos interesses americanos sobre as veleidades do “idealismo wilsoniano[16].

Numa carta aberta datada de 26 de Junho de 1997, subscrita por 50 destas personalidades e dirigida ao presidente Bill Clinton pode ler-se:

O esforço actual dirigido pelos EUA para expandir a OTAN /.../ é um erro político de proporções históricas. Acreditamos que a expansão da OTAN irá diminuir a segurança dos aliados e perturbar a estabilidade europeia pelas seguintes razões:

— Na Rússia, a expansão da OTAN, que continua a ter a oposição de todo o espectro político, reforçará a oposição não-democrática, prejudicará aqueles que favorecem a reforma e a cooperação com o Ocidente, levará os russos a questionarem todo o acordo global do pós-Guerra Fria, e galvanizará a resistência na Duma aos Tratados START II e III;

— Na Europa, a expansão da OTAN traçará uma nova linha de divisão entre os “que ficam dentro” e os “que ficam de fora”, fomentará a instabilidade e, por fim diminuirá a sentimento de segurança dos países que não estão incluídos;

— Na OTAN, a expansão, que esta Aliança indicou ter um limite extensível, degradará inevitavelmente a capacidade da OTAN para levar a cabo a sua missão principal e implicará que os EUA dêem garantias de segurança a países com graves problemas de fronteiras, a minorias nacionais e a sistemas de governo democrático desenvolvidos de forma desigual;

— Nos EUA, a expansão da OTAN desencadeará um debate alargado sobre a sua indeterminação, mas que terá certamente um custo elevado, e que porá em causa o compromisso dos EUA com essa Aliança, considerada, tradicional e correctamente, como uma peça central da política externa dos EUA. /…/

A Rússia não representa agora uma ameaça para os seus vizinhos ocidentais e as nações do Centro e Leste da Europa não estão em perigo. Por esta razão, e pelas outras supramencionadas, acreditamos que a expansão da OTAN não é necessária nem desejável e que esta política mal concebida pode e deve ser suspensa. [destaques a traço grosso acrescentados ao original]

O presidente Clinton tinha dito que os EUA iriam «construir e assegurar uma Nova Europa, pacífica, democrática e finalmente indivisível». Mas, segundo estes seus compatriotas ‒ membros proeminentes, como ele, da elite dirigente americana ‒ Clinton não estava a unir a Europa. Bem pelo contrário, estava a redividi-la. O embaixador Jack Matlock Jr. advertiu inclusivamente que se a Rússia fosse excluída da OTAN alargada, isso seria necessariamente visto por ela como sendo uma medida contra a Rússia.

Em suma, os autores da carta aberta a Clinton constatavam com profundo desapontamento e inquietação que, apesar da “Guerra Fria” ter terminado dois anos antes da dissolução da União Soviética, apenas dois anos volvidos sobre essa data, já os EUA estavam a caminho de a recomeçar…

Convém não esquecer que o documento mais expressivo desta espécie de fronda tinha sido publicado quatro meses antes por George Kennan, o principal mentor da política americana durante a “Guerra Fria” (a que chamou “política de contenção da União Soviética”) e reputado historiador da Rússia e da União Soviética.

Num artigo intitulado Um Erro Fatídico, publicado no New York Times em 5 de Fevereiro de 1997 e no Herald International Tribune no dia seguinte, Kennan enunciou da maneira mais clara, concisa e acutilante a acusação de insensatez ignorante e perigosa que uma parte da elite dirigente dos EUA (de que ele era parte integrante) lançou contra a outra parte (encabeçada à época pelo presidente Bill Clinton e pela sua ministra dos Negócios Estrangeiros, Madeleine Albright) por motivo desta última querer alargar a OTAN para o Leste da Europa.

 

George Kennan (1914-2005). Diplomata e historiador americano. Embaixador na URSS, na Jugoslávia e em Portugal. Principal arquitecto da política americana dita de “contenção” [Ingl. “containment”] da União Soviética e uma das figuras mais influentes durante a chamada “Guerra Fria”. O homem que arrancou a Salazar a autorização da concessão de uma base militar americana na ilha das Lajes, nos Açores, quando era embaixador interino em Lisboa (1942-1944). Um dos mentores do Plano Marshall no pós-segunda guerra mundialFoto de 1947.  


Mas está aqui em jogo algo da máxima importância. E talvez não seja demasiado tarde para formular uma opinião que não é só minha, mas que é compartilhada por muitos outros com uma vasta experiência dos assuntos russos, mais recente do que a minha na maioria dos casos. Essa opinião, enunciada sem rodeios, é que a expansão da OTAN seria o erro mais fatídico da política americana de toda a era pós-Guerra Fria. É de esperar que essa decisão inflame as tendências nacionalistas antiocidentais e militaristas da opinião russa; que tenha um efeito adverso no desenvolvimento da democracia na Rússia; que restaure a atmosfera de Guerra Fria nas relações Leste-Oeste, e que impila a política externa Russa em direcções que não sejam decididamente do nosso agrado.
[destaques a traço grosso acrescentados ao original, N.E]Nos finais de 1996, deixou-se que se tornasse prevalente ‒ ou fez-se com que assim se tornasse ‒ a impressão de que, algures e seja lá como for, alguém tinha decidido expandir a OTAN até às fronteiras da Rússia. Isto, apesar do facto de que nenhuma decisão formal pode ser tomada antes da próxima cimeira dessa aliança, que ocorrerá em Junho.

Um ano depois, em 1998, Kennan voltaria à carga numa entrevista concedida à CNN.

Penso que [o alargamento da OTAN à Polónia, Hungria e República Checa, N.E.] é o início de uma nova Guerra Fria. Penso que os russos irão reagir gradualmente de forma adversa, e isso terá um efeito nas suas políticas. Penso que é um erro trágico. Não há absolutamente nenhuma razão para fazer isto. Ninguém foi ameaçado. Esta extensão faria com que os pais fundadores deste país se voltassem nas suas sepulturas. Comprometemo-nos a proteger um grande número de países, apesar de não termos nem os recursos nem a intenção de o fazer de forma séria.

Claro que isto levará a uma reacção negativa da Rússia, e então eles [aqueles que optaram por expandir a OTAN, N.E.] dirão que nos disseram que os russos eram assim. Mas isso é simplesmente desonesto [destaques a traço grosso acrescentados ao original]  [N.E.= nota editorial]

5. Uma síntese parcial com o benefício da retrospectiva

Este é um bom momento para fazermos uma síntese parcial (com o benefício da retrospectiva) dos acontecimentos que evocámos e dos que se lhes seguiram até aos nossos dias, antes de entrarmos na 2.ª parte deste ensaio.

A advertências de Kennan e dos demais opositores americanos à expansão da OTAN até às fronteiras da Rússia não tiveram êxito. A facção da elite dirigente americana que eles representavam foi derrotada. A política de alargamento da OTAN até às fronteiras da Rússia foi prosseguida ou mantida por todos os presidentes americanos (tanto republicanos como democratas) que sucederam a George Bush (pai) Bill Clinton, George Bush (filho), Barak Obama, Donald Trump, Joe Biden como veremos na segunda parte deste ensaio.

Mas os vaticínios de Kennan e dos demais opositores à expansão da OTAN para o Leste europeu também se cumpriram. Eis alguns exemplos.

Tal como Gorbachev, Boris Ieltsin acreditou piamente [17] num arranjo com os EUA que levasse à dissolução da OTAN e ao estabelecimento de um acordo global de segurança militar (que Gorbachev baptizara de “Casa Comum Europeia”) ou, em alternativa, a uma reconfiguração completa da OTAN que permitisse à Rússia passar a ser um dos seus membros sem temer pela sua autonomia. Mas em 1994 essa crença já estava muito abalada. Ieltsin expressou sem rodeios a sua frustação e ira em 5 de Dezembro de 1994, em Budapeste, durante a cimeira da CSCE [= Conference on Security and Cooperation in Europe, hoje Organization for Security and Co-operation in Europe (OSCE) = Organização para a Segurança e Cooperação na Europa].                                           

Ieltsin e Clinton em 20 de Julho de 1994, em Nápoles (com o Vesúvio em pano de fundo). O discurso de frustração e ira que Ieltsin fez contra Clinton (e que será citado mais abaixo) foi feito em Budapeste, 5 meses depois desta foto de famíliaFonte: Inosmi.ru.
                                                             

Eis alguns trechos desse discurso que fez manchete no dia seguinte na primeira página do New York Times, mas que, infelizmente, poucos conhecem, porque só existe na íntegra em versão áudio e em russo [18].

A nossa atitude em relação aos planos de alargamento da OTAN, e especialmente à possibilidade das suas infra-estruturas progredirem para Leste, é e continuará a ser negativa. Argumentos como: “o alargamento não é dirigido contra nenhum Estado e constitui um passo para a criação de uma Europa unificada” não resistem à crítica. Esta é uma decisão cujas consequências determinarão a configuração europeia nos próximos anos. Pode levar a uma quebra no sentido da deterioração da confiança entre a Rússia e os países ocidentais. /…/

A Rússia também espera que a sua segurança seja considerada. /…/ Pela primeira vez, estamos a lançar as bases para uma área comum de confiança no campo militar, abrangendo grande parte de três continentes e oceanos do mundo /…/ Estamos preocupados com as mudanças que estão a ocorrer na OTAN.

O que significará isso para a Rússia? A OTAN foi criada durante a Guerra Fria. Hoje, não sem dificuldade, procura o seu lugar na nova Europa. É importante que esta abordagem não crie duas zonas de demarcação, mas que, pelo contrário, consolide a unidade europeia. Esse objectivo, para nós, é contraditório com os planos de expansão da OTAN. Qual é a razão para plantar as sementes da desconfiança? Afinal, já não somos inimigos; somos todos  parceiros agora. /…/

Manchete da 1.ª página do New York Times de 6 de Dezembro de 1994. “Ieltsin diz que a OTAN
está a tentar dividir o continente 
[europeu] outra vez. Apelida os EUA de dominadores.

A Europa, que ainda não se livrou do legado da Guerra Fria, corre o risco de mergulhar numa paz fria. Como evitar que isso aconteça é a pergunta que devemos fazer a nós próprios /…/ A história demonstra que é uma perigosa ilusão supor que os destinos dos continentes e da comunidade global em geral possam ser administrados de alguma forma a partir de uma única capital. Nem os blocos de coligação militar fornecerão garantias reais de segurança. A criação de uma organização pan-europeia de pleno direito com uma base jurídica fiável tornou-se uma necessidade vital na Europa. /…/ [destaques a traço grosso acrescentados ao original, N.E.]

Em 10 de Maio de 1995, durante as comemorações do 50.º aniversário da vitória sobre a Alemanha nazi, Ieltsin resumiu perfeitamente o seu problema:

Não vejo nada mais além de uma humilhação para a Rússia se vocês [EUA] continuarem nessa senda /.../ Porque é que querem fazer isso? Precisamos de uma nova estrutura de segurança pan-europeia, não das velhas estruturas/…/ Mas se eu aceitasse que as fronteiras da OTAN se estendessem até às da Rússia, seria uma traição da minha parte ao povo russo[destaque a traço grosso acrescentado ao original, N.E.]

Em 9 de Setembro de 1995, o tom muda. Ieltsin (entenda-se: a elite dirigente da Rússia de que ele era na altura o rosto mais conhecido) convenceu-se que nada demoveria os EUA de estenderem as fronteiras da OTAN até as fronteiras da Rússia, a não ser a ameaça da força das armas. Por isso, declara:

A expansão da OTAN significará uma conflagração de guerra em toda a Europa, de certeza. /…/ Porque é que os Europeus consentem ser dirigidos a partir de um lugar do outro lado do oceano? É por isso que sou contra o alargamento da OTAN. Quando a OTAN se aproxima das fronteiras da Federação da Rússia, pode dizer-se que haverá dois blocos militares e isso será a restauração do que já tínhamos antes, em detrimento da segurança europeia [destaque a traço grosso acrescentado ao original, N.E.]

Em 9 de Abril de 1999, Ieltsin advertiu a OTAN para não prosseguir a sua intervenção no Kosovo (Sérvia), porque isso poderia desencadear a 3.ª guerra mundial. 



Eu disse à OTAN, aos Americanos e aos Alemães: não nos empurrem para uma intervenção militar.  Caso contrário, haverá uma guerra europeia e possivelmente uma guerra mundial [destaque a traço grosso acrescentado ao original, N.E.]

Ieltsin renunciou ao poder em 31 de Dezembro de 1999, tendo sido substituído interinamente por Vladimir Putin, 1.º ministro e seu sucessor designado. Putin acabaria por ser eleito presidente da Rússia três meses depois.

Nos primeiros cinco anos do consulado de Putin, este alimentará a expectativa de conseguir chegar a uma solução de compromisso com George Bush (filho) sobre a entrada da Rússia para a OTAN, tal como o seu antecessor Ieltsin tinha alimentado uma expectativa semelhante relativamente ao seu (ex-) “amigo Bill Clinton[19]. Eram os tempos que se seguiram aos atentados contra as torres gémeas de Nova Iorque; os tempos da cruzada dos EUA contra o terrorismo islâmico de Bin Laden e da Al-Qaeda e contra os talibãs do Afeganistão acusados de os albergar. A conjuntura parecia propícia a uma aliança EUA-Rússia contra o “terrorismo global”. Estas expectativas de Putin acabaram por se gorar.

Em 2007, Putin já não tinha grandes ilusões a respeito da adesão da Rússia à OTAN , como ficou patente no seu discurso de 10 de Março de 2007, na conferência anual de segurança de Munique. Embora tivesse deixado uma porta entreaberta para um possível compromisso como os EUA e a OTAN, as suas objecções e advertências ao alargamento da OTAN em direcção às fronteiras russas tornaram-se categóricas. Começou por se referir à noção de “mundo unipolar” com que sonhavam os seus interlocutores dos EUA,

Seja qual for a maneira de embelezar este termo, ele refere-se, em última análise, a um tipo de situação, nomeadamente a um centro de autoridade, um centro de força, um centro de tomada de decisões. É um mundo em que há um único senhor, um único soberano.

Assistimos hoje a um uso quase incontido da força ‒ força militar ‒ nas relações internacionais, força que está a mergulhar o mundo num abismo de conflitos permanentes. E claro, isto é extremamente perigoso. Resulta no facto de que ninguém se sente seguro. Quero enfatizar isto ninguém se sente seguro!

Vemos o aparecimento, na Bulgária e na Roménia, de “bases americanas ligeiras avançadas”, cada uma com 5.000 soldados. Acontece que a OTAN aproxima as suas forças avançadas das nossas fronteiras, enquanto nós que respeitamos estritamente o Tratado não reagimos a estes movimentos.

É óbvio, penso eu, que o alargamento da OTAN não tem nada que ver com a modernização dessa aliança, nem com a segurança na Europa. Pelo contrário, é um factor que representa uma séria provocação e rebaixa o nível de confiança mútua. Temos o direito legítimo de perguntar abertamente contra quem está a ser realizado este alargamento. O que aconteceu às garantias dadas pelos nossos parceiros ocidentais após a dissolução do Pacto de Varsóvia? Onde estão essas garantias? Já foram esquecidas. No entanto, tomarei a liberdade de lembrar aos presentes nesta sala o que foi dito. Gostaria de citar palavras retiradas do discurso do Sr. Werner, então Secretário-Geral da OTAN, proferido em Bruxelas em 17 de maio de 1990: «O facto de estarmos preparados para não enviar tropas da OTAN para fora do território da RFA dá à União Soviética certas garantias de segurança». Onde estão essas garantias hoje?

Os blocos de cimento e as pedras do Muro de Berlim são já recordações antigas. Mas não podemos esquecer que a sua queda se tornou possível graças, em particular, à escolha histórica do nosso povo – o povo da Rússia – a favor da democracia e da liberdade, da abertura e da parceria sincera com todos os membros da grande família europeia.

No entanto, agora, está a tentar impor-se novas linhas de demarcação e novos muros. Mesmo que sejam virtuais, não deixam de dividir, de compartimentar o nosso continente. Serão precisos novamente anos e décadas, uma sucessão de várias gerações de dirigentes políticos para desmantelar esses muros? /…/

Estou certo de que neste momento crucial devemos repensar seriamente a arquitetura global de segurança.[destaques a traço grosso acrescentados ao original, N.E.]

Como o historiador Ted Galen Charpentier observou, em 24 de Janeiro de 2022:

O discurso na Conferência de Segurança de Munique de 2007 deveria ter dissipado quaisquer dúvidas sobre se a Rússia via a política da OTAN em geral e a inexorável marcha da aliança para o leste em particular como provocatória e ameaçadora. Putin estava a alertar os seus colegas ocidentais para mudarem de rumo. /…/

E acrescentou premonitoriamente:

O discurso de Putin em Munique foi o primeiro aviso explícito de sérios problemas em perspectiva se o Ocidente não abandonar a sua postura cada vez mais agressiva em relação à Rússia. As últimas exigências do Kremlin de garantias de segurança e de uma retirada militar da OTAN das fronteiras da Rússia podem ser o último aviso. Os Estados Unidos e os seus aliados estão a encurralar a Rússia num canto, o que é profundamente insensato se o objectivo for evitar a guerra com uma grande potência fortemente armada [20] [destaque a traço grosso acrescentado ao original, N.E.]

Com efeito, com o benefício da retrospectiva, verifica-se que o discurso de Putin de 2007 foi talvez a última oportunidade para evitar uma nova “Guerra Fria” entre os EUA/OTAN e a Rússia, susceptível de escalar repentinamente para uma “guerra quente”, uma guerra propriamente dita, como viria de facto a acontecer em 24 de Fevereiro de 2022 na Ucrânia. Isto, se olharmos para os figurões principais destes acontecimentos como se eles tivessem mais apreço pela lógica ou pelo simples bom-senso do que pelos interesses económicos que defendem e pelas doutrinas políticas que perfilham.

Mas não é esse o caso, manifestamente. Se nos ativermos aos factos e empregarmos as categorias de análise adequadas, o conflito entre a Rússia e os EUA deixa-se descrever em poucas palavras.

Uma potência capitalista de primeira grandeza (os EUA) ‒ que é também a primeira potência militar e nuclear do planeta fez tudo, durante os últimos 30 anos, através da OTAN (como veremos, com mais pormenor, na segunda parte deste ensaio), para entronizar como seu inimigo oficial na Europa uma potência capitalista de segunda ou terceira grandeza (a Rússia) ‒ mas que é a segunda potência militar e nuclear do planeta. Essa entronização da Rússia como inimigo oficial da OTAN na Europa tomou duas formas mais visíveis: (i) o repúdio continuado da Rússia como potencial Estado-membro da OTAN, (ii) acompanhado pela expansão continuada da OTAN no Leste da Europa, em direcção às fronteiras europeias da Rússia. Os próceres dessa política temerária de repúdio e confinamento da Rússia relativamente à OTAN (que será examinada em pormenor na segunda parte deste ensaio) parecem ter contado com a esmagadora superioridade económica e militar dos países da OTAN como dissuasor de qualquer reacção violenta por parte da elite dirigente da Rússia. Esse cálculo saiu furado, como todos podemos constatar.

Poder-se-ia esperar outra coisa? Não, dada a natureza dos antagonistas em presença e das circunstâncias.

As elites dirigentes da Rússia e dos países da OTAN (com particular destaque para os EUA) agem exclusivamente em função de critérios e objectivos geopolíticos. Isto significa que só conhecem uma linguagem: a do poder explícito das respectivas classes dominantes, das quais as elites dirigentes são uma emanação. Um dos seus lemas tácitos é: “Se for necessário fazer uma guerra para manter ou ampliar o nosso poder, pois façamo-la” (Veremos numerosos exemplos desse lema na segunda parte deste ensaio). Isto, quanto à natureza dos antagonistas em presença.  

Quanto às circunstâncias, a situação é ainda mais clara. Como vimos, os alertas não faltaram, vindos de dentro da própria elite dirigente dos EUA, sobre o que de muito mau poderia acontecer se a OTAN recusasse a adesão da Rússia às suas fileiras e as fosse engrossando com um número crescente de países que estiveram outrora associados à Rússia no ex-Pacto de Varsóvia, ou que eram até, como a própria Rússia, parte integrante da ex-União Soviética. E o próprio Putin (e antes dele Ieltsin, como vimos) foi emitindo ao longo do tempo muitos sinais no mesmo sentido, como veremos também, com mais pormenor, na terceira parte deste ensaio.

Em suma, a guerra na Ucrânia é uma guerra que foi anunciada com grande antecedência. A surpresa que tantos manifestaram perante a sua eclosão não tem fundamento objectivo e é, em muito casos, fingida.

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N.B. Este artigo é a primeira parte de um ensaio intitulado A Guerra na Ucrânia, com quatro partes. Esta primeira parte foi publicada originalmente na revista/magazine Passa Palavra [https://passapalavra.info/2022/04/143558/] em 30-04-2022.

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Notas e Referências 

[1] Estes números foram fornecidos por Rosemary DiCarlo, subsecretária-geral da ONU para os Assuntos Políticos, em 18 de Março de 2022, e reportam-se a informações relativas ao período que vai de 24 de Fevereiro a 15 Março de 2022. A Organização Mundial da Saúde (OMS) contabilizou 43 ataques ao sistema de saúde na Ucrânia, que mataram 12 pessoas e feriram algumas dezenas, incluindo profissionais de saúde, disse o director-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, ao Conselho de Segurança da ONU, também em18 de Março.

[2] O número de refugiados da Ucrânia noutros países no 23.º dia de guerra, foi fornecido por Paul Dillon, porta-voz da Organização Internacional para as Migrações (OIM), uma agência da ONU, no dia 15 de Março de 2022.  O número de deslocados internos foi fornecido pelo Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR) no dia 15 de Março de 2022.

[3] Como as crianças em idade escolar e os doentes não constituem (nem sequer potencialmente) tropas de combate, vou considerar como hipótese de trabalho que a destruição de escolas e hospitais ucranianos por granadas de artilharia pesada e superpesada, foguetões, mísseis, e bombas aerotransportadas não é intencional, mas antes o que na gíria militar se apelida de “danos colaterais” — os efeitos destrutivos não deliberados (e porventura indesejados) de acções guerreiras deliberadas. As declarações de Rosemary DiCarlo, subsecretária-geral da ONU para os Assuntos Políticos, vão nesse sentido. «A maioria dessas vítimas deveu-se ao uso em áreas povoadas de armas explosivas com ampla área de impacto. Centenas de prédios residenciais foram danificados ou destruídos, assim como hospitais e escolas», afirmou DiCarlo ao Conselho de Segurança da ONU (Agência Brasil, 17-03-2022). Aliás, a existência ineliminável de danos colaterais em todas as guerras é uma das razões da afirmação de que todas as guerras são hediondas de um ponto de vista agatonista (cf. Nota [4], infra).

[P.S. à nota 3]. O gabinete de Michelle Bachelet, Alta-Comissária para os Direitos Humanos da ONU, divulgou hoje, 22 de Abril, um comunicado onde se pode ler o seguinte: «As forças armadas russas têm bombardeado indiscriminadamente áreas povoadas, matando civis e destruindo hospitais, escolas e outras infra-estruturas civis — acções que podem equivaler a crimes de guerra.» «O que vimos em Kramatorsk, região controlada pelo Governo, em 8 de Abril, quando bombas de fragmentação atingiram a estação ferroviária, matando 60 civis e ferindo 111 outros, é emblemático da não adesão ao princípio de distinção, a proibição de ataques indiscriminados e o princípio de precaução consagrada no direito humanitário internacional», disse Bachelet. Bachelet disse também que «a dimensão das execuções sumárias de civis em áreas anteriormente ocupada pelas forças russas está a emergir». (“Bachelet urges respect for international humanitarian law amid growing evidence of war crimes in Ukraine”. Office of the High Comissioner for Human Rights, 22 April 2022) Estas declarações parecem indicar que a destruição de escolas, hospitais e zonas residenciais é (pelo menos muitas vezes) o resultado de bombardeamentos indiscriminados e que a morte de civis é (pelo menos muitas vezes) deliberada, ao contrário do que supus em 18 de Março de 2022 quando escrevi a nota 3. Teremos que aguardar pelos resultados dos inquéritos em curso por esta agência especializada da ONU e pelo Tribunal Internacional de Justiça  para conhecermos melhor os factos em causa.

[4] Todas as guerras são hediondas do ponto de vista agatonista, porque violam o seu princípio básico. Isso vale mesmo para as guerras que se travam em legítima defesa e que têm, por isso, uma justificação ética: preservar a vida de quem quer viver segundo esse princípio. Sobre o agatonismo e o seu princípio básico ver nota [5], infra.

[5] «Desfrute a vida, sem explorar nem oprimir ninguém, e ajude a viver uma vida desfrutável, sem exploração nem opressão do homem pelo homem». Este princípio é uma expansão de um apotegma da autoria do filósofo e físico Mario Bunge (1919-2020): «Desfrute a vida e ajude a viver uma vida desfrutável». A sua expansão da maneira indicada constitui, creio, um melhor resumo, e quase tão conciso como o original, do agatonismo — um neologismo cunhado por Bunge a partir do Grego antigo αγαθος: [agathós] “de boa constituição”, “de boa natureza”, “bom”, “honesto,” “virtuoso” “meritório”, “nobre”. Agatonismo é o nome de uma ética humanista, realista e materialista que postula que os direitos e os deveres andam emparelhados, que as acções devem justificar-se moralmente e que os princípios morais devem avaliar-se pelas suas consequências. O apotegma de Bunge não exclui alguém como, por exemplo, Bill Gates, que poderia mesmo gabar-se, à sua luz, de ser um exemplo canónico de conduta agatonista. A expansão que proponho exclui liminarmente essa possibilidade. 

[6] Esta é uma síntese abreviada das definições de guerra de Clausewitz: (a) «A guerra é /…/ um acto de violência [violência armada e, por conseguinte, violência física no seu mais alto grau, N.E] destinado a compelir o nosso inimigo a fazer a nossa vontade» (p.75); (b) «A guerra não é um mero acto de política, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas por outros meios» (p.87) (Carl von Clausewitz [1833], On War, tradução de Michael Howard e Peter Paret, Princeton: Princeton University Press, 1984). Minha tradução.

[7] Desde Julho de 2014, um embargo da União Europeia (UE) proíbe estritamente a venda de armas à Rússia: «É proibida a venda, fornecimento, transferência ou exportação directa ou indirecta de armas e material conexo de todos os tipos, incluindo armas e munições, veículos e equipamento militar, equipamento paramilitar e respectivas peças sobresselentes, para a Rússia por nacionais dos Estados-membros ou a partir dos territórios dos Estados-membros ou utilizando navios ou aviões que usem a sua bandeira, quer sejam ou não originários dos seus territórios». Esta decisão seguiu-se à anexação da Crimeia pela Rússia e à proclamação das repúblicas separatistas do Donbass, seis meses antes. No entanto, entre 2015 e 2021, pelo menos dez Estados-membros da UE exportaram armas para a Rússia de Putin no valor total de 346 milhões de euros. França, Alemanha, Itália, Áustria, Bulgária, República Checa, Croácia, Finlândia, Eslováquia e Espanha venderam, em quantidades muito diferentes, “equipamento militar” à Federação Russa. (Portugal não faz parte deste grupo de países). A investigação do Investigate Europe mostra que “equipamento militar” é um rótulo onde cabem mísseis, bombas, torpedos, navios e carros de assalto. (“Dez países da UE exportaram armas para a Rússia depois do embargo de 2014”. Público, 17-03-2022).

[8] Esse juízo é amiúde reforçado pela convicção de que «a natureza pragmática, utilitarista (e para o Estado, único agente visto como legítimo) ou de “saber aplicável” sempre foi uma tônica marcante na geopolítica. Ela nunca se preocupou em firmar-se como um (mero?) “conhecimento” da realidade e sim como um “instrumento de ação”, um guia para a atuação de tal ou qual Estado» (José William Vesentini [2009], “O que é geopolítica? E geografia política?”, 2009, artigo disponível em: https://goo.gl/C3g8nj). A figura mais conhecida desta visão é a do geógrafo francês Pierre George (1909-2006), autor de um livro intitulado A Geografia serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra (1976), que serviu de ideário para a revista Hérodote ― revue de géographie et de géopolitique [Heródoto — revista de geografia e geografia política]. A geopolítica mudou muito a partir dessa data. É hoje um campo de estudos muito heterogéneo, uma área interdisciplinar que se ocupa do estudo das disputas pelo poder explícito (tanto na sua vertente económica como na sua vertente política) entre Estados no espaço geográfico mundial. O seu traço distintivo é o de substituir, como primeiro princípio heurístico na análise dos conflitos sociais (conflitos políticos e económicos inclusos em “sociais”), a luta de classes sociais antagónicas em torno da apropriação e repartição do sobreproduto pela luta de Estados e nações. Como tal, a geopolítica exerce um forte apelo junto da elite dirigente que, em todos os países onde predomina o modo capitalista de produção, zela pelos interesses da classe dominante; a classe dos detentores dos meios industriais de produção. Porém, mesmo no seu melhor, a geopolítica não é mais do que um sucedâneo fruste da politologia.

[9] Charles Krauthammer, “The Unipolar Moment”, The Washington Post, July 20, 1990; Foreign Affairs Vol. 70, No. 1, 1990/1991.

[10] O nome oficial do ministério chefiado, à época, por Dick Cheney e hoje por Lloyd James Austin III, é Department of Defense (DoD) [Departamento de Defesa], embora o único nome que lhe assenta bem seja o de Departamento (ou Ministério) da Guerra. Isto porque os EUA adoptaram há muito como premissas da sua política externa as máximas “Guerra é Paz”, “Ataque é Defesa”, “Invadir é Libertar”, três exemplos de Duplipensar (“Doublethink”, no original) e de Novilíngua (“Newspeak”) as formas como o Estado de Oceânia tolda o discernimento e destrói a capacidade referencial da linguagem dos seus habitantes no romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell. Não faltam exemplos do duplipensamento e da novilíngua que caracterizam a política externa do Estado americano. Eis dois recentes. O ultradestrutivo míssil MX com as suas dez ogivas de 300 quilotoneladas independentemente programáveis para atingirem alvos distintos chama-se Peacekeeper [“Guardião da Paz”]. A base militar ucraniana/americana, situada no sudoeste da Ucrânia, perto da fronteira com a Polónia, onde especialistas militares e tropas da OTAN e dos EUA ministram instrução no manejo do material de guerra ultramoderno que os EUA e outros países da OTAN (França, Bélgica, Turquia) têm fornecido continuadamente à Ucrânia, chama-se International Peacekeeping and Security Center [“Centro Internacional de Segurança e de Manutenção da Paz”]. Porém, ao ler os relatos publicados na imprensa americana sobre o mortífero ataque de mísseis que as Força Armadas russas desferiram recentemente contra esta base militar, muitos leitores que desconhecem a natureza militar dessas instalações terão, porventura, ficado com a impressão de que terá sido atacado um centro de estudos da ONU ou algo de semelhante. 

[11] As negociações Dois-Mais-Quatro e o Tratado com o mesmo nome foram a fórmula encontrada pelas quatro potências ocupantes da Alemanha desde o fim da 2.ª guerra mundial (EUA, União Soviética, Reino Unido e França) de controlarem e supervisionarem o processo de reunificação das duas Alemanhas: a ocidental (membro da OTAN) e a oriental (membro do Pacto de Varsóvia). A Alemanha Ocidental e a Alemanha Oriental foram representadas na reunião final para assinatura do Tratado ‒ que aconteceu em Moscovo, em 12 de Setembro de 1990 ‒ pelos seus então ministros dos Negócios Estrangeiros, Hans-Dietrich Genscher e Markus Meckel, respectivamente. Em quatro rondas de negociações, eles conseguiram harmonizar os interesses alemães das duas partes com os interesses dos Aliados, vencedores da Segunda Guerra Mundial. Nos termos do Tratado, a Alemanha renunciou a todas as reivindicações referentes a territórios a Leste da linha Oder-Neisse, o que implicou a aceitação, pelo país, das perdas territoriais sofridas no fim da Segunda Guerra. A Alemanha concordou, ainda, em celebrar um tratado separado com a Polónia para confirmar a fronteira comum, o que ocorreu no ano seguinte. Embora o tratado Dois-Mais-Quatro tenha sido assinado pelas duas Alemanhas independentemente, foi mais tarde ratificado pela Alemanha reunificada. Nos termos do Tratado, as Quatro Potências Ocupantes renunciaram a todos os direitos que detinham na Alemanha, inclusive a Berlim. A Alemanha concordou em limitar as suas forças armadas a 370 mil homens, no máximo. A Alemanha também confirmou a sua renúncia ao fabrico e à posse de armas nucleares, biológicas e químicas, reiterando que o Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares continuaria a vincular a Alemanha reunificada. Determinou-se, também, a proibição da presença de forças armadas estrangeiras e armas nucleares no território da antiga Alemanha Oriental. Nessas condições, as tropas da União Soviética abandonaram a Alemanha até ao final de 1994.

[12] As disposições do Tratado Dois-Mais-Quatro constituem motivo suficiente para a grande maioria dos comentadores afirmarem que a Alemanha reunificada se tornou “plenamente soberana” em 15 de Março de 1991. Mas essa afirmação não corresponde inteiramente aos factos. Os soldados da União Soviética abandonaram definitivamente a Alemanha antes de 1994, mas permaneceram na Alemanha cerca de 200.000 militares americanos, a outra grande potência ocupante. É verdade que esta força se tem vindo a reduzir ao longo das três décadas que, entretanto, decorreram. Mas o contingente americano em solo alemão é, ainda hoje, constituído por 34 mil-35 mil soldados. Esse número inclui as Forças de Fuzileiros Navais da Europa e da África, com sede em Böblingen, no sudoeste da Alemanha, como parte da Guarnição do Exército dos EUA em Stuttgart. Além disso, há cerca de 9.600 funcionários da Força Aérea dos EUA espalhados por vários locais na Alemanha, incluindo as duas bases aéreas americanas em Ramstein e Spangdahlem. Se forem incluídas as unidades militares em rotação, o número pode chegar, temporariamente, a 50 mil. Além do contingente militar, cerca de 17.500 civis americanos trabalham para o Departamento de Defesa dos EUA na Alemanha. Como as instalações militares dos EUA também empregam civis e militares que, por vezes, podem levar as suas famílias para o estrangeiro, formam-se consideráveis comunidades de civis em torno dessas instalações. Na verdade, algumas bases americanas na Alemanha, como a de Ramstein, são pequenas cidades autónomas, englobando não só quartéis, aeroportos, áreas para exercícios militares e depósitos de materiais, mas também os seus próprios centros comerciais, escolas, serviços postais e forças policiais americanas. Em certos casos, a única moeda corrente é o dólar americano. As bases militares americanas também costumam empregar um número significativo de residentes locais e fornecem um incentivo económico às comunidades alemãs adjacentes, cujas empresas lhes fornecem bens e serviços. Actualmente, a guarnição do Exército dos EUA na Baviera, que tem o seu quartel-general em Grafenwöhr, perto da fronteira com a República Checa, é a maior base do Exército americano no exterior dos EUA, tanto em número de militares quanto em superfície, espalhando-se por mais de 390 quilómetros quadrados. A importância estratégica da Alemanha para os EUA reflecte-se na localização do quartel-general do Comando Europeu dos EUA (EUCOM) na cidade de Stuttgart, no sudoeste do país, que serve como estrutura de coordenação de todas as forças militares americanas em 51 países, principalmente europeus. A missão oficial do EUCOM é «proteger e defender os EUA», impedindo conflitos, apoiando a OTAN e combatendo ameaças transnacionais. Sob seu comando estão o Exército, a Força Aérea e o Corpo de Fuzileiros Navais (“marines”) dos EUA na Europa, todos com unidades na Alemanha. Porém, a extensão da presença militar dos EUA na Alemanha não se limita ao pessoal e às bases militares. Os EUA também mantêm aviões noutras bases aéreas não americanas em solo alemão. Além disso, calcula-se que 20 ogivas nucleares sejam mantidas na Base Aérea de Büchel, no âmbito do Acordo de Compartilhamento Nuclear da OTAN — um facto que viola o Tratado Dois-Mais-Quatro e que tem suscitado muitas críticas por parte de alguns alemães. Outra circunstância controversa é o uso da Base Aérea americana de Ramstein como central de controlo de ataques com drones no Iémen e noutros lugares (cf. Ben Knight, “Militares americanos na Alemanha, um legado da 2.ª Guerra, Deutsche Welle, 16-06-2020).

[13] Por essa ordem de ideias, o acordo efectivo que Kennedy (EUA) e Khruschev (União Soviética) fizeram, em 1962, durante a chamada “crise dos mísseis de Cuba”, em que o segundo se comprometeu a retirar os seus mísseis nucleares de Cuba e o primeiro a retirar os seus mísseis nucleares da Turquia, nunca existiu… porque nunca tomou forma escrita! No entanto, o acordo foi cumprido à risca por ambas as partes. Acresce que se tratou de um acordo secreto, que Kennedy manteve secreto enquanto viveu no que respeita aos mísseis que os EUA retiraram da Turquia, em conformidade com o que ele se tinha comprometido fazer, como seu presidente. Mas a verdade é que esse acordo secreto e puramente verbal salvou a humanidade de uma terceira guerra mundial desencadeada pelas duas maiores potências nucleares.

[14] O National Security Archive da Universidade de Washington (Washington D.C.) compilou e publicou documentos desclassificados (ou seja, que eram outrora ultrassecretos, secretos ou confidenciais) dos EUA, ex-União Soviética, Reino Unido, Alemanha e França que comprovam a realidade dessas garantias dadas a Gorbachev, entre outros, por James Baker, Georges Bush (pai), Hans-Dietrich Genscher, Helmut Kohl, Margaret Tatcher, John Major e François Miterrand. (Cf. “NATO Expansion: What Gorbachev Heard” (https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/russia-programs/2017-12-12/nato-expansion-what-gorbachev-heard-western-leaders-early). Muito recentemente foi publicado mais um documento desclassificado inédito que comprova essas garantias. Foi descoberto nos British National Archives [Arquivos Nacionais Britânicos] por Joshua Shifrinson, professor da Universidade de Boston (EUA), que publicou algumas das suas passagens no Twitter, dia 10 de Fevereiro de 2022 (https://twitter.com/shifrinson/status/1491853598090801156?s=20&t=tNzVJ9eZF149 eLvFD-z7tg). São actas de uma reunião com os directores políticos dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros dos EUA, Reino Unido, França e Alemanha, em 6 de Março de 1991, na qual o representante alemão Jürgen Chrobog, diz: «Deixámos claro nas negociações Dois-Mais-Quatro que não iríamos expandir a OTAN para além do Elba. Não podemos, portanto, oferecer a adesão à OTAN à Polónia e aos outros países».  Este documento foi publicado pela revista alemã Der Spiegel, em 18 de Fevereiro de 2022 (cf. Klaus Wiegrefe, «“Wir können Polen und den anderen keine Nato-Mitgliedschaft anbieten”. Neuer Aktenfund von 1991 stützt russischen Vorwurf, Der Spiegel, issue 8/2022). Nele se pode ler também o que disse o representante dos Estados Unidos Raymond Seitz: «Deixámos claro à União Soviética ‒ nas conversações Dois-Mais-Quatro e noutros locais ‒ que não iremos tirar partido da retirada das tropas soviéticas do Leste Europa». E temos também os testemunhos de (i) Roland Dumas, ministro dos Negócios Estrangeiros da França em 1990 (entrevista de Roland Dumas a Olivier Berruyer, “Comment l’Occident a promis à l’URSS que l’OTAN ne s’étendrait pas à l’Est, par Roland Dumas, ex-ministre des affaires étrangères”, Les Crises.fr.,13 Février 2022); (ii) Robert Gates, “Deputy National Security Advisor” à época (https://millercenter.org/the-presidency/presidential-oral-histories/robert-m-gates-deputy-director-cen tral#download-popup) e (iii) Jack Matlock Jr. embaixador dos EUA em Moscovo entre 1987 e 1991 (Jack Mattlock Jr., “ I was there: NATO and the origins of the Ukraine crisis”.Responsible StateCraft, February 15, 2022 (https://responsiblestatecraft.org/2022/ 02/15/the-origins-of-the-ukraine-crisis-and-how-conflict-can-be-avoided/).

[15] O “realismo político”  é a doutrina geopolítica que caracteriza todos quantos «tomam como ponto de partida [da sua análise das relações políticas, em particular no plano mundial, N.E.] a busca do poder dos Estados, a centralidade da força militar dentro deste poder e a inevitabilidade duradoura do conflito em um mundo de múltipla soberania» (Fred Halliday, Repensando as relações internacionais. Porto Alegre: Editora UFGRS, 1999, p.24). É uma doutrina com uma longa história que remonta à História da Guerra do Peloponeso de Tucídides e à Arte da Guerra de Sun Tzu, ambas do século IV a.C. No Renascimento foi desenvolvida por Nicolau Maquiavel em O Príncipe (1513/1532). No século XVII foi objecto de dois desenvolvimentos em direções opostas: um por Thomas Hobbes, especialmente no seu livro Leviatã (1651), e o outro por Bento Espinosa, especialmente no seu Tratado Político (1670). No século XVIII temos a crítica feita a Hobbes por Jean-Jacques Rousseau em O estado de guerra nascido do estado social (1755-1756). No século XIX a doutrina do realismo político conheceu várias modificações e ramificações demasiado vastas para poderem sequer ser aqui enumeradas. Na segunda metade do século XX, conheceu um novo e importante desenvolvimento no âmbito das relações internacionais entre os Estados pela mão de Hans J. Morgenthau e Kenneth N. Waltz, autores de Politics among Nations: the struggle for power and peace (1947) e Man, the State, and War: a theoretical analysis, (1954), respectivamente. O realismo político e a Realpolitik (em Alemão, “política realística”) são conceitos afins. A Realpolitik pode ser descrita como o exercício de políticas (em particular, da política externa) que estão alinhadas com as teorias aceites do realismo político. Henry Kissinger (ministro dos Negócios Estrangeiros dos presidentes Richard Nixon e Gerald Ford dos EUA) formulou uma definição sucinta e precisa de Realpolitik como sendo uma «política externa baseada em avaliações de poder e interesse nacional» (H. Kissinger, Diplomacy. New York: Simon & Schuster, 1994), p.137.

[16] A doutrina geopolítica rival do realismo político é conhecida por “wilsonianismo” ou “idealismo wilsoniano” por referência a Woodrow Wilson, presidente dos EUA (1913-1921), considerado o seu cultor mais proeminente na era moderna. O “idealismo” que consta da expressão “idealismo wilsoniano” nada tem que ver com o idealismo enquanto posição ontológica que se opõe ao materialismo. Tem antes que ver com os alegados “ideais” que guiariam os seus adeptos. Na verdade, os idealistas wilsonianos compartilham, no essencial, a mesma mundivisão de Realpolitik dos realistas políticos, mas camuflam-na com grandes tiradas retóricas sobre a “liberdade”, a “democracia”, o “mundo livre”, os “direitos humanos”, a “soberania”, a “autodeterminação”, a “liberdade de comércio”, a “livre iniciativa” (Ingl. “free entreprise”), os “valores do Ocidente” — conceitos sobre os quais desenvolveram um entendimento muito peculiar, razão pela qual os escrevi entre aspas. Por outras palavras, os idealistas wilsonianos são realistas políticos que elevaram a hipocrisia e a perfídia ao estatuto de armas de eleição, tão importantes como as armas propriamente ditas. Alguns exemplos concretos ‒ uns do século passado, outros do século presente ‒ ajudarão a fixar as ideias sobre estas caracterizações abstractas de “realismo  político” e “idealismo wilsoniano”. Limitemos os exemplos do século passado às três potências vencedoras da 2.ª guerra mundial: Reino Unido, União Soviética e EUA. Estaline, Churchill e Roosevelt reuniram-se na conferência de Yalta (4-11 de Fevereiro de 1945), e Estaline, Attlee e Truman na conferência de Potsdam (17 de Julho-2 de Agosto de 1945), e aí dividiram o mundo em esferas e zonas de influência e acção das potências que representavam. Fizeram-no sem fingir que eram outra coisa senão diferentes corporizações do Leviatã de Hobbes e fizeram-no apesar de representarem potências rivais, porque eram “realistas políticos”. Limitemos os exemplos do século presente aos governantes que chefiaram a OTAN e a Rússia nos últimos 21 anos. Bill Clinton, Barak Obama e Joe Biden, são típicos exemplos de idealistas wilsonianos, sempre prontos a espetar uma faca nas costas dos seus inimigos e a trapacear os seus aliados, enquanto lhes recitam os Dez Mandamentos de Deus ou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. George Bush (filho), Donald Trump e Vladimir Putin são realistas políticos, da espécie mais banal. A hipocrisia e perfídia dos idealistas wilsonianos não tem limites e só são comparáveis (em dimensão) com a desfaçatez e rudez dos realistas políticos. Estão bem uns para os outros.

[17] Olivier Berruyer compilou as provas documentais dessa crença nos seus ensaios. Ver, por exemplo, “Expansion de l’OTAN: ce que Eltsine a entendu” 14 Février 2022. Les-Crises.fr.

[18] A tradução para o Francês de largos excertos deste discurso de Ieltsin foi feita por Olivier Berruyer no artigo “Expansion de l’OTAN: les origines de la grave crise actuelle” (1/3). 15 Février 2022. Les-Crises.fr. A tradução portuguesa dos trechos citados é minha.

[19] Ao ocorrer num momento da ampliação da OTAN, a guerra do Kosovo (na ex-Jugoslávia) acabou com a amizade entre Clinton e Ieltsin, e com as boas relações entre os Estados Unidos e a Rússia. Os termos dessa ruptura aparecem claramente no registo da conversa telefónica de 24 de Março de 1999, entre os dois presidentes, especialmente no seu final. «Clinton:  Bem, deixe-me só dizer isto: creio que não deveríamos desistir da diplomacia. Depois do que… [Ieltsin interrompe Clinton neste ponto para dizer] Ieltsin: Bem entendido, vamos conversar um com o outro, tu e eu. Mas já não haverá aquela grande garra e aquela grande amizade que tínhamos antes. Essas já não tornarão a existir». Cf. Olivier Berruyer, “Expansion de l’OTAN: les origines de la grave crise actuelle” (1/3). 15 Février 2022. Les-Crises.fr. A tradução portuguesa do trecho citado é minha.

[20] Ted Galen Charpentier, “Did Putin’s 2007 Munich Speech Predict the Ukraine Crisis?”. Cato Institute, January 24, 2022. 

28 abril, 2022

 

A minha colega e amiga, Ana Bela Baptista da Silva, evoca aqui a sua memória comovida do dia 25 de Abril de 1974 e o importante contributo (largamente desconhecido do grande público) que o seu marido, José Manuel Baptista da Silva, deu para o seu êxito. J.C.S.

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Recordar o 25 de Abril de 1974

Ana Bela Baptista da Silva

 

Recordo, como se fosse hoje, o dia 25 de Abril de 1974.Tinha na altura 32 anos, era casada contigo, querido Zé [1]. Éramos pais de duas meninas, a Ana Beatriz de 9 anos e a Ana Lúcia de 4. A nossa casa, no Laranjeiro, localizava-se perto dos nossos locais de trabalho. Eu, educadora de infância no Centro de Bem Estar Infantil da Romeira, e tu, Oficial da Armada, Comandante de Submarino na Base Naval do Alfeite. Naquela semana, nos dias que antecederam essa quinta-feira de Abril, chegavas apreensivo a casa e eu temia que algo estivesse para acontecer.

Desde o dia 23 até ao dia 26 de Abril não consegui falar contigo, pois estavas   de prevenção na esquadrilha de submarinos.

No dia 25, comecei a ouvir na rádio notícias algo vagas e contraditórias.  A televisão interrompeu a emissão e começou a dar um filme que fiquei a odiar para sempre.  Tentei, em vão contactar-te. Fechada em casa tentava manter a calma e brincava com as minhas filhas. Mas sempre atenta às notícias que, com o correr do dia, me permitiam sentir um mar de emoções que começaram com preocupação, ansiedade, esperança, alegria, felicidade… 

No final do dia 26, tu chegaste cansado, mas muito emocionado e feliz. Abracei-te a chorar de alegria e nesse momento contaste-me aquilo que não tinhas podido contar antes.

25 de Abril de 1974. Fonte: revista Visão

Vários dias antes de 25 de Abril souberas o que se iria passar. Tinhas sido contactado por oficiais do MFA [Movimento das Forças Armadas] para uma missão que aceitaste, mas que, graças a Deus, não tinha sido necessária.

E que missão seria essa? Se a fragata Gago Coutinho que iria sair para o mar, integrada num exercício da NATO [/OTAN], se preparasse para lançar fogo para o Terreiro do Paço [2], então o submarino que comandavas iria entrar em combate, protegendo assim as tropas de terra.

Desde o dia do nosso reencontro prometemos honrar os ideais de Abril. Mais do que por palavras, tentei com as minhas acções na educação, na formação, e na família nunca esquecer esse dia.

Muita coisa aconteceu comigo e com a minha família após o dia de Verdadeira Liberdade.

Quase cinquenta anos depois do 25 de Abril de 1974 continuo a sentir-me grata aos seus obreiros e também a ti, meu querido marido, que durante o teu percurso de vida tanto lutaste pela justiça, pela democracia e pela felicidade de tantos de nós.

Só me resta dizer hoje e sempre VIVA o 25 de ABRIL!

21 de Abril 2022

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Notas

[1] José Manuel Baptista da Silva (1940-2007). Oficial da Armada de 1962 a 1982, quando passou à reserva, tendo-se reformado em 1998. Foi promovido a Capitão de Mar-e-Guerra em 1986. Comandou os quatro submarinos da Armada portuguesa de então (Albacora, Barracuda, Cachalote, Delfim) em diferentes períodos da sua carreira no activo. Concluiu o curso de Direito em 1980. Como advogado, na situação de reserva, prestou serviço na Direcção Geral de Marinha, como Assessor Jurídico e também como Vogal da Comissão de Direito Marítimo Internacional e Comissão Nacional contra a Poluição Marítima Internacional.

[2] Várias razões contraditórias têm sido relatadas sobre a desobediência à ordem, emitida pelo Estado Maior da Armada, para a fragata Gago Coutinho disparar sobre o Terreiro do Paço, onde estavam as tropas comandadas pelo capitão Salgueiro Maia (ver notícias em diversos jornais da época assim como o Livro “Uma Fragata no 25 de Abril” de Noémia Louçã).