Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

24 setembro, 2022

Temas 2 e 3


Quatro proposições falsas:

# Houve uma constante intervenção militar russa na região de Donbass de Fev.2014 a Fev.2022;  # Em 2014, ocorreram referendos de independência em Lugansk e Donetsk;  # Os acordos de Minsk (2014-2015) foram feitos para solucionar um conflito armado entre a Ucrânia e a Rússia;  # Putin deu cabo dos acordos de Minsk

3º. artigo da série

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia! 

José Catarino Soares

1.Lembrete

Este é o terceiro artigo da série «Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!»

No artigo anterior refutei a proposição “# A Crimeia foi anexada pela Rússia,” mostrando que é falsa. Mostrei também que deve ser substituída pelas proposições verdadeiras: (i) “A Crimeia foi anexada pela Ucrânia de 1996 a 2014; (ii) a Crimeia libertou-se do jugo da Ucrânia em 2014, (iii) A Ucrânia quer reanexar a Crimeia custe o que custar.

É impossível que Zelensky e o seu governo, Biden e o seu governo, Ursula von der Leyden e a Comissão Europeia, Charles Michel e o Conselho Europeu, Josep Borrel (Alto representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança), os chefes de governo e os governos do G7 desconheçam que a proposição “A Crimeia foi anexada pela Rússia é falsa. Assim sendo, pode afirmar-se, com toda a segurança, que mentem descaradamente de cada vez que reafirmam essa proposição.

Mentir em matérias deste melindre, que implicam guerras devastadoras com o seu enorme cortejo de vítimas inocentes (mortos, feridos, desalojados, deslocados e refugiados) e destruições maciças de infra-estruturas civis, instalações fabris, parque habitacional e património edificado não é um pecadilho. É uma ferramenta cientemente utilizada por governantes sem integridade para ludibriarem os seus povos e conseguiram alcançar os seus fins. No caso em apreço, o fim visado é o de persuadir a opinião pública dos seus países da necessidade e da legitimidade de ajudar o governo de Zelensky a apoderar-se da Crimeia (uma república da Federação Russa) e a subjugar os seus cidadãos ao Estado ucraniano [1].   

Neste artigo, proponho-me refutar mais quatro mentiras repetidas vezes sem conta no sistema mediático dominante da comunicação social: a) # Houve uma constante  intervenção militar russa na região de Donbass [= a bacia hidrográfica do rio Donets] de Fevereiro de 2014 a Fevereiro de 2022; b) # Em 2014, ocorreram referendos de independência em Lugansk e Donetsk; c) # Os acordos de Minsk (2014-2015) foram feitos para solucionar um conflito armado entre a Ucrânia e a Rússia; d) # Putin deu cabo dos acordos de Minsk. Emprego a cerquilha (símbolo #) para assinalar a falsidade de uma proposição.

O poeta popular António Aleixo (1899-1949) tem uma quadra que diz:

P’ra mentira ser segura

e atingir profundidade,

tem de trazer à mistura

     qualquer coisa de verdade. 

Assim acontece também com as quatro proposições suprarreferidas quando são enunciadas por pessoas cientes da sua falsidade. Salientei com letra grossa (e no título do artigo também com uma cor diferente) as palavras que fazem delas falsidades/ mentiras e deixei ficar com letra fina as que trazem à mistura qualquer coisa de verdade.

Pinóquio, na versão de desenho animado de Walt Disney. O nariz do Pinóquio crescia alguns centímetros de cada vez que ele dizia uma mentira. Se sucedesse o mesmo com os governantes ‒ em particular com os governantes ucranianos do período posterior ao golpe de Estado de 2014, com os governantes dos EUA e dos demais países da OTAN, com os governantes dos países da UE ‒ a grande maioria deles teria de fazer operações plásticas ao nariz todos os meses.

De caminho, aproveitarei para trazer à luz do dia mais algumas verdades factuais cuidadosamente omitidas ou censuradas pelo sistema mediático dominante da comunicação social.

2. O papel dos EUA no golpe de Estado de 2014 na Ucrânia

Em 22 de Fevereiro de 2014 teve lugar, na Ucrânia, um golpe de Estado que derrubou o seu presidente, Viktor Yanukovych [2], que tinha sido legalmente eleito dois anos antes em eleições consideradas livres e justas por milhares de observadores internacionais independentes [3]. Já descrevi o essencial da mecânica institucional desse golpe no artigo anterior a este (cf. Quem anexou a Crimeia: foi a Rússia ou a Ucrânia? Em Tertúlia Orwelliana. Arquivos do Blogue. 22 de Agosto de 2022). A sua mecânica paramilitar será sucintamente relatada nas secções 3 e 4 mais adiante.  

Mas é necessário acrescentar, relativamente ao aspecto institucional ‒ por se tratar de uma verdade factual deliberadamente omitida pelo sistema mediático dominante da comunicação social ‒ que o golpe de Estado que derrubou Yanukovych foi apoiado, financiado e, pelo menos em parte, comandado pelo governo dos EUA; mais concretamente, pelo governo presidido por Barak Obama. O mesmo Obama a quem o comité Nobel norueguês atribuiu o prémio Nobel da Paz, em 2009, «pelos seus extraordinários esforços com vista a reforçar a diplomacia internacional e a cooperação entre os povos» (sic).

O agente principal dos EUA na Ucrânia e um dos organizadores quiçá o principal organizador do golpe de Estado de 22 de Fevereiro de 2014, foi a senhora Victoria Nuland, à época secretária de Estado para os Assuntos Europeus e Euroasiáticos do Ministério dos Negócios Estrangeiros no governo de Barak Obama e actualmente secretária de Estado para os Assuntos Políticos do Ministério dos Negócios Estrangeiros no governo de Joe Biden.

No dia 13 de Dezembro de 2013, numa conferência da US Ukraine Foundation, em Washington D.C., Victoria Nuland (a senhora que aparece na foto publicada mais abaixo a distribuir sandes, bolos e biscoitos aos manifestantes do movimento Euromaidan), informou que o governo dos EUA investira, desde 1991 até essa data, 5 mil milhões de dólares no financiamento de vários indivíduos e organizações na Ucrânia para ajudar este país a conseguir alcançar “o futuro que merece” (sic) [4].

Que futuro tinha Nuland em mente para oferecer à Ucrânia?  

Vou dar a palavra a John Mearsheimer, professor de politologia na Universidade de Chicago, para responder a esta pergunta e descrever concisamente o que se passou na Ucrânia de Novembro de 2013 a Março de 2015. Faço-o por quatro razões. Mearsheimer é um dos mais reputados (1) doutrinadores da doutrina do “realismo geopolítico” e (2) defensores da promoção e gestão “realísticas” dos interesses geopolíticos dos EUA como potência imperialista global; é (3) um dos melhores conhecedores da situação na Ucrânia, e é também (4), pelas duas razões imediatamente anteriores, insuspeito de ter simpatias pró-Rússia ou pró-Putin. As citações seguintes foram extraídas do seu artigo, Why the Ukraine Crisis is the West Fault. The liberal delusions that provoked Putin (2014), referenciado na nota [2]

A centelha [que deu origem aos protestos que antecederam e prepararam um terreno favorável para o golpe de Estado de 22 de Fevereiro de 2022, N.E.] ocorreu em Novembro de 2013, quando Yanukovych rejeitou um grande acordo económico que ele tinha estado a negociar com a União Europeia [representada, à época, por José Manuel Barroso, N.E.] e decidiu aceitar, em vez disso, uma contraproposta da Rússia de 15 mil milhões de dólares. Essa decisão deu origem a manifestações antigovernamentais [que ficaram conhecidas pelo nome de “revolta Euromaidan” ou “revolução Euromaidan”, mas que serão aqui denominadas, porque não foram uma coisa nem outra, “movimento Euromaidan”, N.E.] que se intensificaram ao longo dos três meses seguintes e que, em meados de Fevereiro, tinham levado à morte de cerca de cem manifestantes. Emissários ocidentais foram enviados apressadamente para Kiev para resolver a crise. Em 21 de Fevereiro, o governo e a oposição conseguiram chegar a um acordo que permitia a Yanukovych manter-se no poder até à realização de novas eleições. Mas o acordo desmoronou-se imediatamente, e Yanukovych fugiu para a Rússia no dia seguinte [para não ser linchado ou assassinado pelos golpistas, N.E.]. O novo governo [provisório] em Kiev era pró-ocidental e anti-russo até à ponta dos cabelos, e integrava quatro membros de alto nível que poderiam legitimamente ser rotulados como neofascistas. [N.E.= nota editorial] 

Embora a extensão total do envolvimento dos EUA ainda esteja por esclarecer [Chamo a atenção para o facto de que Mearsheimer está a escrever em Setembro de 2014. Actualmente, já sabemos muito mais coisas sobre o assunto, N.E.] é evidente que Washington apoiou o golpe. [Victoria] Nuland e o senador John McCain participaram em manifestações antigovernamentais, e Geofrey Pyatt, o embaixador dos Estados Unidos na Ucrânia [que aparece também na foto mais abaixo ao lado de Victoria Nuland, N.E.], proclamou, após o derrube de Yanukovych, que era «um dia que ficará nos livros de história». Como revelou a gravação de uma escuta telefónica [que foi divulgada anonimamente na Internet, N.E.] Nuland tinha defendido a mudança de regime na Ucrânia [“mudança de regime” é o eufemismo que o governo dos EUA usa para “golpe de Estado”, N.E.] e queria que político ucraniano Arseniy Yatsenyuk se tornasse primeiro-ministro no novo governo [provisório], o que veio a acontecer [5]. Não admira que os russos, de todas as correntes políticas, achem que o Ocidente desempenhou um papel na expulsão de Yanukovych.

11 de Dezembro de 2013Praça Maidan, em Kiev, capital da Ucrânia. Victoria Nuland, secretária de Estado do ministério dos Negócios Estrangeiros dos EUA para os Assuntos Europeus e Euroasiáticos, oferece sandes, bolos e biscoitos aos manifestantes do movimento EuroMaidan. A seu lado, o embaixador dos EUA na Ucrânia, Geoffrey Pyatt. Foto: Andrew Kravchenko/AP.

3. A matança da praça Maidan

Há um ponto em que é necessário corrigir o relato de Mearsheimer. É quando ele diz que as manifestações sucessivas na praça Maidan do movimento Euromaidan culminaram, em meados de Fevereiro de 2014 ‒ mais exactamente, nos dias 18-20 de Fevereiro de 2014 ‒ na morte de cerca de 100 manifestantes. Este número está errado. Houve exactamente 47 mortos (incluindo 4 agentes da polícia) e 157 feridos (incluindo várias dezenas de agentes da polícia) durante esses dias trágicos que ficaram conhecidos como o massacre ou a matança da praça Maidan [6].

Vários estudos minuciosos da matança da praça Maidan, da autoria de Ivan Katchanovski, da Universidade de Otawa (Canadá), permitem concluir que essa matança não foi uma tentativa frustada do governo de Yanukovych para reprimir os protestos do movimento Euromaidan, mas uma operação bem-sucedida de falsa bandeira. Esta operação foi organizada e realizada de forma encoberta por elementos dirigentes do movimento Euromaidan e grupos armados clandestinos de atiradores furtivos emboscados em edifícios com vista para a praça Maidan e ruas adjacentes, como, por exemplo, o Hotel Ucrânia, o Hotel Kozatsky e o Conservatório de Música [também referido como Edifício da Orquestra Filarmónica]. Estes grupos armados actuaram durante o movimento Euromaidan com vista a semear a morte indiscriminadamente entre os manifestantes, atiçá-los contra a polícia (a quem foram imputadas essas mortes) e incitá-los a tomar o poder na Ucrânia pela força das armas.

Vale a pena insistir neste ponto, dada a sua importância para se entender que país é a Ucrânia no pós-2014 e porque, a despeito dessa importância, é um ponto deliberadamente omitido pelo sistema mediático dominante da comunicação social:

— Ao contrário da narrativa oficial dos governos que vieram a seguir ao golpe de Estado de 22 de Fevereiro de 2014 ‒ os governos de Yatsenyuk (1º. Ministro no período imediatamente a seguir ao golpe e durante uma parte do mandato presidencial de Poroshenko), Poroshenko e Zelensky (presidentes da República eleitos depois do golpe de Estado) ‒ o presidente Yanukovych e o seu governo não tiveram qualquer responsabilidade na matança da Praça Maidan. Os atiradores furtivos que mataram e feriram manifestantes e agentes da polícia durante os protestos do movimento Euromaidan não pertenciam às forças policiais especiais às ordens do governo ‒ a unidade Alfa da SBU, a unidade Omega das Tropas Internas e a unidade Berkut de polícia antimotim ‒ nem aos partidos que apoiavam então esse governo e o seu presidente.

A análise feita por Ivan Katchanovski no estudo referido em [6], sugeriu que organizações ultranacionalistas e de cariz neonazi (tais como, por exemplo, o Sector Direito e a Svoboda) e organizações nacionalistas ligadas à oligarquia económica ucraniana (tal como a facção do Partido da Pátria de Yatsenyuk, que formou a Frente Popular após o golpe de Estado de 22 de Fevereiro de 2012), estiveram directa ou indirectamente envolvidos nessa matança de manifestantes e agentes da polícia.

No entanto, Katchanovski não pôde determinar a natureza específica e o grau de envolvimento de indivíduos específicos e as identidades específicas de organizadores e atiradores furtivos, porque o seu estudo se baseava apenas em informação publicamente disponível e tinha como propósito examinar os aspectos político-institucionais da matança e não o papel de indivíduos e grupos específicos nela envolvidos.

Contudo, num outro estudo, especificamente direccionado para essas questões, o mesmo autor concluiu que o Sector Direito e a Svoboda ‒ duas faces da mesma formação politica, muito minoritária, eleitoralmente, mas muito activa politicamente e muito influente ideologicamente ‒ desempenharam um papel crucial no derrube violento do governo Yanukovych, e, em particular, na matança de manifestantes e de agentes da polícia na praça Maidan [7]. Essa foi também a conclusão a que chegaram outros investigadores, como, por exemplo, Tord Bjork, que compilou muitos vídeos e testemunhos sobre os acontecimentos [8].  

Na verdade, como salienta Bjork, até mesmo os dois principais jornais do sistema mediático dominante da comunicação social, o New York Times e o Washington Post, relataram os acontecimentos desse dia fatídico de um modo que já deixava entrever essa conclusão. Segundo o Washington Post de 23 de Fevereiro de 2014, a imagem geral do dia 22 de Fevereiro de 2014 foi o resultado,

de uma sequência de acontecimentos que começou na quarta-feira ao fim da tarde com a captura [pelos grupos neonazis do Sector Direito e do Svoboda, N.E.] de um arsenal do Ministério do Interior na cidade ocidental de Lviv e o transporte dessas armas para a periferia de Kiev, a capital. Andrei Levus, chefe adjunto das forças de “autodefesa” de Maidan, a organização guarda-chuva dos activistas militantes que lutam contra o governo, sabia que tinha reforços a caminho. ... a praça estava prestes a ter um aspecto diferente. Haveria mais pessoas, e elas não ficariam com as mãos vazias. Apesar da diminuição do número de fogueiras de aquecimento, os manifestantes decidiram agarrar-se à praça por tempo suficiente para que ambos os lados considerassem o significado da chegada das armas à capital. Utilizando um membro do Parlamento como intermediário, o Sr. Levus abriu uma linha de comunicação com um membro do ministro do Interior, cujo nome se recusou a revelar.

A história continua com as palavras de Levus:

Compreendemos que eles [entender, o governo, N.E.] tinham algumas centenas de polícias fanáticos, mas o resto da polícia não iria lutar,” ... “Vários lutadores de rua que estavam nas barricadas no início da manhã de quinta-feira disseram que viram polícias a abandonarem as suas posições, e que isto os encorajou. Alguns manifestantes dispararam espingardas de caça e caçadeiras de canos serrados. As linhas da polícia foram amassadas”. “A nossa gente tem uma motivação ideológica, eles, pelo contrário, estão desmoralizados”, disse Levus. “Eles não queriam esta luta. E ele [entender, Yanukovytch, N.E.] compreendeu que a nossa gente estava pronta a dar o peito às balas”.

Com as armas roubadas do arsenal na Ucrânia Ocidental (cerca de 1500), já tinha havido uma mudança no equilíbrio de poder entre as forças em presença. Levus já se sente com força suficiente para exercer pressão sobre o ministro do Interior. “Eu disse-lhe: garantiremos a segurança da polícia se os polícias abandonarem a cidade”. Estas negociações resultaram num cessar-fogo e com o apoio de alguns membros do Partido das Regiões de Yanukovych, colocados sob pressão, o Parlamento votou uma moção a apoiar os manifestantes e a exigir que a polícia desmobilizasse.

Entretanto, o presidente Yanukovych tinha começado negociações com a oposição e com os mediadores europeus. O New York Times continua a descrição feita pelo Washington Post do curso dos acontecimentos do seguinte modo:

Ao mesmo tempo, a polícia e o Parlamento prosseguiram o curso das suas próprias deliberações/…/ Os grupos de combate dos manifestantes dialogaram com vários comandantes de polícia sobre a forma como os seus agentes se retirariam, em conformidade com uma resolução anterior do Parlamento que apelava à polícia de choque para que se retirasse. «Negociámos com os comandantes de diferentes unidades.». disse Levus. «Eles telefonaram e pediram simplesmente que lhes fosse permitido abandonar a cidade em segurança. Fizemos um corredor, e alguns autocarros foram escoltados pelos nossos automóveis.»

No final da tarde de sexta-feira, quando os diplomatas europeus saíam dos gabinetes presidenciais após a assinatura do acordo de paz, os agentes da polícia nas posições mais sensíveis em torno do complexo do gabinete do Sr. Yanukovych e do edifício do Gabinete de Ministros começaram a retirar-se.

Quando os manifestantes na Praça da Independência [= Praça Maidan] souberam dos pormenores do acordo, deixaram claro que se tratava de um acordo nado-morto. Furiosos com o facto de o Sr. Yanukovych ter sido autorizado a permanecer no cargo até Dezembro, a multidão entoou “Fora, bandidos” e “Morte ao criminoso”. Volodymyr Parasiuk, um dirigente de uma das unidades de combate [neonazis, N.E.], subiu ao palco e anunciou que os seus homens começariam ataques armados se o Sr. Yanukovych não se demitisse até de manhã. Ao amanhecer, grupos bem organizados de manifestantes armados com porretes e escudos, mas não com armas de fogo, já estavam a invadir os gabinetes do Sr. Yanukovych, o edifício do Gabinete de Ministros (a sede do governo) e o Parlamento. Com as forças policiais fora de combate, eles não encontraram resistência.

Esta foi a descrição dos acontecimentos feita pelos dois jornais americanos mais conceituados. Nenhum deles menciona a presença e a actividade dos atiradores furtivos emboscados em edifícios no perímetro da Praça Maidan e que fizeram, como vimos, 47 mortos e 157 feridos. Mas, mesmo assim,

Este relato pormenorizado mostra claramente como os grupos armados de “autodefesa” conseguiram desmoralizar o governo e a polícia, ao empenharem-se na sua causa com o emprego da violência, incluindo o uso de espingardas e a ameaça de um número substancial de novas armas a chegar [ao local das manifestações, N.E.] Actualmente, isto já foi esquecido. Isto mostra claramente que o acordo feito entre a oposição e o governo e também assinado pelos ministros dos Negócios Estrangeiros da UE e negociado com a ajuda do presidente russo [Vladimir Putin] foi anulado antes de ter sido assassinado por um golpe de Estado efectivo [9].

4. Ainda sobre os autores dos crimes da praça Maidan

No dia 8 de Março de 2014, Mick Eckel, correspondente da Associated Press (AP) em Kiev, escrevia:

Um dos maiores mistérios que pairam sobre o caos de protestos que levou o presidente da Ucrânia a abandonar o poder [Isto é falso. Yanukovych não abandonou o poder. Teve, isso sim, de fugir para não ser  linchado ou assassinado pelos golpistas, como vimos, N.E.]: Quem estava por trás dos atiradores furtivos que semearam a morte e o terror em Kiev?

Esse enigma tornou-se o último ponto de inflamação em torno da Ucrânia — com o governo recém-empossado da nação [o governo não eleito de Yatsenyuk, N.E.] e o Kremlin a darem interpretações muito diferentes dos acontecimentos que poderiam ou minar ou reforçar a legitimidade dos novos governantes [10].

Depois deste intróito, Eckel informa-nos que as autoridades judiciárias ucranianas estavam a investigar esses crimes partindo do pressuposto hipotético de que os atiradores furtivos responsáveis pelos assassinatos de manifestantes e agentes da polícia seriam agentes clandestinos ao serviço do governo de Putin que actuariam no sentido de atiçar a cólera dos manifestantes da praça Maidan contra o governo de Yanukovych e incitá-los a fazê-lo cair pela força das armas. Em seguida, Eckel prossegue o seu relato reportando factos que retiram qualquer verosimilhança a esse pressuposto — o qual, aliás, qualquer observador íntegro e conhecedor da política ucraniana qualificaria, no mínimo, como estrambólico [11].

O Vice-Ministro do Interior Mykola Velichkovych disse à AP que os comandantes das unidades de atiradores supervisionados pela força policial de Berkut e outras subdivisões do Ministério do Interior negaram aos investigadores que tenham dado ordens para disparar sobre qualquer pessoa.

Musiy, que passou mais de dois meses a organizar unidades médicas em Maidan, disse que, em 20 de Fevereiro, cerca de 40 civis e manifestantes foram trazidos com ferimentos de bala fatais para o hospital improvisado montado perto da praça. Mas ele disse que os médicos também trataram três agentes da polícia cujas feridas eram idênticas.

As provas forenses, em particular a semelhança dos ferimentos de bala, levaram-no e a outros a concluir que os atiradores furtivos tinham como alvos ambos os lados do confronto em Maidan — e que os disparos tinham como objectivo gerar uma onda de repulsa tão forte que iria derrubar Yanukovych e também justificar uma invasão russa [12].

A Rússia utilizou a incerteza em torno do derramamento de sangue para desacreditar o actual governo da Ucrânia [o governo chefiado por Yatsenyuk, o homem escolhido por Victoria Nuland, N.E.]. Durante uma conferência de imprensa na terça-feira, Putin abordou a questão em resposta à pergunta de um repórter, sugerindo que os atiradores furtivos “podem ter sido provocadores dos partidos da oposição”.

20 de Fevereiro de 2014. Praça Maidan [Praça da Independência], Kiev, Ucrânia. Um paramédico (?) e activistas evacuam um manifestante ferido por um atirador furtivo durante as manifestações do movimento EuromaidanFoto de Efrem Lukatsky, Associated Press.

Essa teoria ganhou consistência um dia mais tarde, quando uma gravação de uma chamada telefónica privada de 26 de Fevereiro entre o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Estónia, Urmas Paet, e a responsável pela política externa da União Europeia, Catherine Ashton, foi divulgada e transmitida pela rede de televisão russa controlada pelo governo, Russia Today. No seu telefonema, Paet disse ter ouvido de manifestantes durante uma visita a Kiev que os opositores de Yanukovych estavam por detrás dos ataques de atiradores furtivos.

Paet disse que outro médico que tratou as vítimas, a Dra. Olha Bogomolets, disse-lhe que tanto a polícia como os manifestantes foram mortos pelas mesmas balas e «há agora um entendimento cada vez mais forte de que por detrás dos atiradores não estava Yanukovych, mas alguém da nova coligação governamental».

Na quarta-feira, Paet confirmou que a gravação era autêntica, e disse aos repórteres em Tallinn que estava apenas a repetir o que Bogomolets lhe tinha dito. Disse que não tinha forma de verificar as alegações, embora tenha qualificado Bogomolets como «claramente, uma pessoa com autoridade [para dizer o que disse, N.E.]».[13]

20 de Fevereiro de 2014. Praça Maidan [Praça da Independência], Kiev, Ucrânia. Um paramédico (?) aponta para o buraco de uma bala que vitimou mortalmente um manifestante atingido por um atirador furtivo durante as manifestações do movimento Euromaidan. Foto de Efrem Lukatsky, Associated Press.

A gravação do telefonema de Urmas Paet a Catherine Ashton está disponível no YouTube. Vale a pena escutá-la [14].

Vale a pena também recordar aqui o depoimento do coronel Jacques Baud:

Em 2014, estou na OTAN e estou a observar a crise ucraniana a partir de “dentro”, por assim dizer. Ficou claro desde o início que a situação estava a ser atiçada pelo Ocidente. Há vídeos que mostram que os golpistas estariam a ser apoiados por homens armados que se exprimiam em Inglês com um forte sotaque americano…A revista alemã Der Spiegel menciona a presença de mercenários da firma Academi (ex-Blackwater, de sinistra memória no Iraque e no Afeganistão). O Bundesnachrichtendienst (BND) aparentemente informa o governo alemão e eu informo as autoridades da OSCE..., mas isso depressa será esquecido. A “mão” do Ocidente nesta revolução, que foi apresentada como popular, foi habilmente mascarada como sendo a mão imaginária da Rússia. Ao afirmar que as rebeliões em Donbass e na Crimeia foram o resultado da intervenção russa, ocultou-se que o golpe [de Estado] de Kiev não foi aprovado por uma grande parte da população [ucraniana] e que foi também ilegítimo. Pela mesma razão, o carácter extremista dos chefes golpistas e a legitimidade da população de língua russa foram sistematicamente desvalorizados. Foi a repressão violenta destas populações após a abolição da lei sobre as línguas nacionais que conduziu ao verdadeiro conflito [15].

5. O encobrimento dos crimes da praça Maitan pelos governos de Yatsenyuk, Poroshenko e Zelensky

Os numerosos e minuciosos estudos de Ivan Katchanovski, incluindo os dois que citei, permitiram resolver o enigma mencionado por Mick Eckel, jornalista da AP: “Quem estava por trás dos atiradores furtivos que semearam a morte e o terror em Kiev [em Fevereiro de 2014]?

Resposta: foram os principais partidos da coligação governamental chefiada por Yatsenyuk que tomou o poder na Ucrânia depois do golpe de Estado que derrubou o presidente eleito Yanukovych Batkivschyna [=Partido da Pátria], UDAR [= Aliança Democrática Ucraniana para a Reforma] e Svoboda [= União Pan-Ucraniana ou Liberdade] e os seus aliados do Pravyy Sektor [= Sector Direito], uma organização paramilitar de que o partido Svoboda é uma fachada legal.

Este é um facto extraordinário e que só por si dá uma ideia da gigantesca operação de encobrimento dos autores dos crimes da praça Maitan — os mesmos crimes que serviram de pretexto para justificar a posteriori o golpe de Estado de 22 de Fevereiro de 2014. Nas palavras de Katchanovski, o melhor estudioso deste intricado assunto:

Os julgamentos e as investigações não revelaram qualquer prova de que Yanukovych ou os seus ministros e comandantes da polícia tivessem ordenado a matança dos manifestantes de Maidan. 

Existem vários indícios de obstrução das investigações do morticínio de Maidan e dos julgamentos pelos governos pró-Maidan e pelas organizações de extrema-direita, bem como o encobrimento de muitas das principais provas do morticínio. A investigação negou a presença de quaisquer atiradores furtivos nos edifícios controlados pelas forças pró-Maidan, apesar das provas esmagadoras em contrário. A investigação e o julgamento do massacre de Maidan foram obstruídos, as acusações contra os polícias de Berkut e, posteriormente, contra dois membros da unidade Omega [das tropas especiais internas] foram forjadas, e muitas das provas destruídas para encobrir o envolvimento dos mandantes e atiradores furtivos neste mortcínio.

Nem uma única pessoa foi condenada ou presa pelo morticínio de Maidan de manifestantes e de agentes da polícia em 18-20 de Fevereiro de 2014, após quase oito anos de investigações e seis anos de julgamentos, apesar deste caso de violência política ser um dos casos mais bem documentados de homicídio em massa da história e uma das violações mais significativas dos direitos humanos na Ucrânia independente. Ninguém foi acusado de tentativa de assassinato de quase metade dos manifestantes feridos em 20 de Fevereiro [16].

Isso continua a ser verdade até hoje, dia 20 de Setembro de 2022, data em que estou a escrever estas linhas.

O sistema mediático dominante da comunicação social nunca menciona este facto. Compreende-se porquê. Ele levantaria, só por si, muitas dúvidas sobre a proposição «A Ucrânia é uma democracia» (mesmo que o conceito de “democracia” seja entendido segundo os padrões dominantes [antiaristotélicos ou não-aristotélicos])  — peça chave no argumentário de todos quantos incitam Zelensky e o seu governo a recusar qualquer negociação com Putin e o seu governo para pôr um fim imediato à invasão da Ucrânia pelas tropas russas e à guerra que dela resultou (que já dura há mais de 6 meses), assim como uma negociação com as Repúblicas populares de Lugansk e Donetsk para pôr um fim imediato à guerra que as tropas ucranianas aí iniciaram há 8 anos.

Mas procedamos por ordem cronológica com vista a uma melhor compreensão do que está em causa em Donbass.  

6. A sublevação da população russófona de Luhansk e Donetsk

Imediatamente a seguir ao seu golpe de Estado, em 23 de Fevereiro, os nacionalistas e ultranacionalistas ucranianos em maioria no parlamento ucraniano revogam a lei Kivalov-Kolesnichenko sobre as línguas oficiais da Ucrânia, entre as quais o Russo. O então presidente do Parlamento e, nessa qualidade, presidente interino da Ucrânia, Oleksandr Turchynov, não promulgou o diploma de revogação da lei Kivalov-Kolesnichenko, invocando a necessidade de elaborar uma nova lei primeiro. Seja como for, a lei Kivalov-Kolesnichenko foi declarada inconstitucional e, para substituí-la, foi elaborado o projeto de lei 5670-d, que seria aprovado, na generalidade, no Outono de 2018.

É este acontecimento ‒ que já relatei no primeiro artigo desta série (cf. Quem anexou a Crimeia: foi a Rússia ou a Ucrânia? Tertúlia Orwelliana.  Arquivos do Blogue. 4 de Agosto de 2022) que desencadeará manifestações de protesto na população russófona dos oblasti de Luhansk (ou Lugansk) e Donetsk. E é a repressão dessas manifestações que conduzirá à sublevação dessa população, a qual está na origem da proclamação das duas repúblicas de Lugansk e Donetsk. Passou-se aqui algo de muito semelhante ao que se passou na Crimeia, com esta importante diferença: Lugansk e Donetsk eram, à época, oblasti da Ucrânia, ao passo que a Crimeia era uma república independente da Ucrânia.

Para encobrirem a repressão que desencadeiam sob um manto diáfano de legitimidade, o novo poder central da Ucrânia vai engendrar uma invencionice: a «invasão» da Rússia, que seria explicada pelas «ambições imperiais» de Vladimir Putin. A OTAN e os governos da UE e do G7 vão imediatamente servir de retransmissores desta acusação de que o presidente Poroshenko se fará mais tarde o principal arauto, apesar de ter sido desmentida por membros do seu próprio regime.

Mais uma vez, o testemunho do coronel Jacques Baud é precioso e imprescindível, porque, sem ele, estaríamos quase completamente à mercê das mentiras orquestradas pelo regime golpista da Ucrânia e propaladas urbi et orbi pelo sistema mediático dominante da comunicação social.

Em 2014, eu estava na OTAN nessa altura e reparei que os relatórios que estávamos a receber da Polónia não correspondiam às informações da OSCE [Organização de Segurança e Cooperação Europeia, que tem uma missão de observadores permanentes na Ucrânia, N.E.] Era óbvio que estavam a tentar exagerar os acontecimentos e dar-lhes uma dimensão internacional. Mas mesmo no seio da OTAN, eu sou “apenas” um suíço e, portanto, tecnicamente, um “parceiro” e não um “aliado”: os meus avisos são educadamente descartados a favor de um discurso mais musculado.

A sede principal do Quartel-General da OTAN publica uma fotografia de satélite de quatro peças de artilharia na Ucrânia, alegando que se trata de uma unidade russa.  Para além do facto de a doutrina militar russa não permitir a utilização de baterias isoladas em território inimigo, a verificação cruzada mostra que se trata, de facto, do batalhão rebelde “KALMIUS”, formado a partir de uma unidade ucraniana de língua russa que se tinha passado para o lado autonomista. Obviamente, a mudança de unidades inteiras do exército ucraniano para o lado rebelde contradiz a ideia de que a revolução de Maidan é popular.... Além disso, desde Agosto de 2014, parece que a OTAN não encontrou outras fotos para publicar!...

Em Maio de 2014, a repressão armada dos protestos levou a população de algumas áreas das regiões ucranianas de Donetsk e Lugansk a realizar referendos para adoptar a Lei de Autodeterminação da República Popular de Donetsk (aprovada por 89% [dos cidadãos residentes nesse oblast, N.E.]) e a Lei de Autodeterminação da República Popular de Lugansk (aprovada por 96% [dos cidadãos residentes nesse oblast, N.E.]). Os órgãos mediáticos públicos da comunicação social, France 24 e RadioTélévision Suisse, falam de referendos de “independência”, mas isso não é verdade: são referendos de “autodeterminação” ou “autonomia” (самостоятельность). Depois disso, aqueles que procuram deitar gasolina para cima de um incêndio continuarão a falar de “separatistas” e “repúblicas separatistas”. Isto é desinformação destinada a enganar a opinião pública [17].

22 de Janeiro de 2015. Donetsk, Ucrânia. Membros das milícias armadas da República Popular de Donetsk são conduzidos num carro de combate (vulgo, tanque de guerra) nos arrabaldes da cidade de Donetsk. Foto de Alexander Ermochenko, Reuters.

7. As mentiras do Parlamento Europeu, de Poroshenko e da OTAN

No seguimento dos referendos e depois da grande ofensiva das tropas ucranianas de que darei conta mais adiante, as duas Repúblicas, de Luhansk e Donetsk, pediram ao presidente russo, Vladimir Putin, para serem integradas na Federação Russa. Mas ele não acedeu a esse pedido, nem nessa altura nem nos 7 anos seguintes, até Fevereiro de 2022.

Isso não impediu, porém, o Parlamento Europeu de aprovar, em Setembro de 2014, uma resolução onde se afirma que houve «uma intervenção militar directa» da Rússia, «violações do cessar-fogo, principalmente pelas tropas russas regulares» e que a Rússia «reforçou a sua presença militar em território ucraniano».

Recorramos de novo a testemunho do coronel Baud.

É evidentemente falso: as alegações vêm dos serviços de informação polacos, mas nunca foram confirmados pelos observadores da OSCE. Como é frequentemente o caso, o Parlamento Europeu acusa, e chega mesmo a decretar sanções, sem quaisquer factos para sustentar as suas acusações. Lá se vai o Estado de direito! A 29 de Janeiro de 2015, o General Viktor Mouzhenko, chefe do Estado-Maior General ucraniano, reconheceu que não havia tropas russas em solo ucraniano e que só tinham sido observados combatentes russos individuais.  A sua afirmação foi confirmada em Outubro de 2015 pelo General Vasyl Hrytsak, chefe do Serviço de Segurança (SBU), que declarou que desde o início dos combates na Ucrânia oriental, apenas 56 militares russos tinham sido observados [18].

Outra acusação frequente é a de que o governo russo teria abastecido os rebeldes autonomistas russófonos de Lugansk e Donetsk com armamento de vários tipos. Mas também aqui a falsidade desta acusação foi revelada pelo coronel Jacques Baud.

Eu era, na altura, chefe da unidade de proliferação de armas ligeiras da OTAN, e estava a vigiar o surgimento de novas armas nas fileiras dos rebeldes para determinar se a Rússia as estaria a fornecer. De facto, os rebeldes tinham na sua posse algumas armas que nunca fizeram parte do arsenal do exército ucraniano. Isso foi o suficiente para alimentar a acusação de intervenção russa.... Salvo que as armas em questão tinham, de facto, feito parte do arsenal do Serviço de Segurança Ucraniano [conhecido pela sigla SBU, N.E.] cujos agentes tinham passado para o lado dos rebeldes!

Quanto ao armamento pesado, constatei que as peças de armamento observadas podiam ser sistematicamente associadas ao desaparecimento de uma unidade do exército ucraniano. Portanto, não havia nada que confirmasse o apoio logístico da Rússia nessa fase [19].

Em Junho de 2015, numa entrevista ao Corriero della Sera, Petro Poroshenko, o primeiro presidente da Ucrânia eleito depois do golpe de Estado de 2014, afirmou que a Rússia tinha enviado 200 mil soldados para a Ucrânia. Mais tarde, em Setembro, perante a Assembleia Geral da ONU em Nova Iorque, afirmou:

Somos forçados a combater as tropas treinadas e armadas da Federação Russa. Armas pesadas e equipamento militar estão concentrados nos territórios ocupados em tais quantidades tais que os exércitos da maioria dos Estados membros da ONU só em sonhos os poderiam possuir.

São ambas mentiras descaradas, como sabem bem aqueles que, no terreno, estavam a par da situação pelas funções que desempenhavam, como era o caso do coronel Jacques Baud.

Na realidade, não foi observado absolutamente nada. Além disso, se existissem 75 formações militares russas na Ucrânia, como foi declarado na Assembleia Parlamentar da OTAN em Istambul, em 19 de Novembro de 2016, teriam de ter sido observadas 464 colunas logísticas para apoiar operacionalmente essas unidades e bases para as tropas. Ora, os satélites de observação americanos não detectaram nada…. Em 2018, Alexander Hug, chefe adjunto da missão de monitorização da OSCE, admitiu à revista Foreign Policy que a OSCE não tinha feito quaisquer observações confirmando a presença de tropas russas na Ucrânia [20].

Ainda hoje, a retórica oficial da União Europeia, dos EUA e do OTAN considera que a Rússia foi um interveniente principal no conflito de Donbass de Fevereiro de 2014 a Fevereiro de 2022. Como se trata de uma falsidade de todo o tamanho, isso só pode ser explicado racionalmente, sugere Jacques Baud, pela obsessão de ver nesse conflito uma intervenção directa de Vladimir Putin. Este, qual Joker maléfico (diria Michel Eltchaninoff, um filósofo mais entusiasta do Batman do que da verdade [21]), teria tido a habilidade de convencer a França e a Alemanha a negociar com ele os Acordos de Minsk. Numa reportagem de Caroline Roux de 17 de Outubro de 2021, ficámos até a saber que o presidente François Hollande negociou esses acordos convencido de que as tropas russas estavam em Donbass, o que já se sabia ser falso à época [22].

8. Os acordos de Minsk foram feitos para vincular a Ucrânia a respeitar a autonomia local dos oblasts de Donetsk e Luhansk

Nem o Acordo de Minsk I (5 e 19 de Setembro de 2014), nem o Acordo de Minsk II (12 de Fevereiro de 2015) têm a Rússia como parte territorialmente envolvida. As partes territorialmente envolvidas no Acordo são a Ucrânia e as repúblicas populares de Donetsk e Luhansk, eufemisticamente identificadas nos acordos de Minsk como «certas áreas das regiões de Donetsk e Luhansk.»

Minsk I é um acordo de princípio entre a Ucrânia e «representantes de certas áreas das regiões de Donetsk e Luhansk» que foi patrocinado pela OSCE e a Federação Russa. Por seu turno, Minsk II diz respeito às modalidades de aplicação do Acordo de Minsk I. O acordo de Minsk II foi objecto, em 12 de Fevereiro de 2015, de uma declaração conjunta de apoio por parte da chanceler da Alemanha (Angela Merkel), do presidente de França (François Hollande) e do presidente da Federação Russa (Vladimir Putin). Através dessa Declaração, estes países ofereceram-se como garantes (fiadores) dos Acordos de Minsk a Alemanha e a França por terem a confiança da Ucrânia; a Rússia por ter a confiança das Repúblicas de Donetsk e Luhansk através de um esquema quadripartido (França, Alemanha, Rússia, Ucrânia) de contacto e discussão denominado “formato de Normandia” (por ter sido acordado durante as cerimónias de comemoração do desembarque das tropas americanas, canadianas e britânicas na Normandia, durante a 2ª. Guerra Mundial). Por último, mas não menos importante, o Acordo de Minsk II foi adoptado por uma resolução do Conselho de Segurança da ONU (a resolução 2022) em 17 de Fevereiro de 2015 [23].

Minsk, 12 de Fevereiro de 2015, depois da assinatura do Acordo de Minsk II. Da   esquerda para a direita: Lukashenko (presidente da Biolorússia), Putin (presidente da Rússia), Merkel (chanceler da Alemanha), Hollande (presidente da França). Poroshenko (presidente da Ucrânia). Foto de Maxim Malinovsky. AFP/Getty Images.

Ao contrário do que nos querem fazer crer os dirigentes da UE, dos EUA e da OTAN, em colusão com o sistema mediático dominante da comunicação social, os acordos de Minsk não foram celebrados para vincular o governo da Rússia a respeitar a integridade territorial da Ucrânia, mas para vincular o governo da Ucrânia a respeitar os direitos dos seus cidadãos russófonos da região de Donbass. Na verdade, os acordos de Minsk foram feitos essencialmente para garantir:

— A elaboração uma reforma constitucional na Ucrânia e a entrada em vigor, até ao final de 2015, de uma nova constituição, cujo elemento essencial será a descentralização, tendo em conta as especificidades de certas zonas das regiões de Donetsk e Luhansk, a definir de acordo com os seus representantes, e a adopção, antes do final de 2015, de legislação permanente relativa ao estatuto especial de certas áreas das regiões de Donetsk e Luhansk, em conformidade com as medidas enunciadas na nota abaixo [artigo 11 do Acordo de Minsk II].

— Com base na lei relativa às modalidades temporárias do exercício da autonomia local em certas zonas das regiões de Donetsk e Lugansk, as questões relacionadas com as eleições locais serão objecto de uma discussão e de um acordo com os representantes de certas zonas das regiões de Donetsk e Lugansk no quadro do Grupo de Contacto Trilateral. As eleições serão realizadas no respeito das normas pertinentes da OSCE e monitorizadas pelo Gabinete das instituições democráticas e dos direitos humanos da OSCE [artigo 12 do Acordo de Minsk II]

A Rússia desempenhou apenas um papel de garante e facilitador neste Acordo junto das repúblicas populares de Donetsk e Luhanks, porque a Ucrânia recusava-se a falar com os representantes destas repúblicas.

A mentira e a desinformação também se escondem por detrás do vocabulário utilizado. Os rebeldes autonomistas russófonos de Donbass são amiúde descritos como “independentistas” ou como “separatistas” pelos “especialistas” chamados a comentar a actualidade política nas estações de rádio e televisão — o que é falso, relativamente a uma grande parte do período considerado (Março de 2014-Janeiro de 2022). Na estação de televisão France 5, o próprio François Hollande utilizou o termo “separatistas”, o que demonstra a sua falta de integridade, uma vez que foi um dos garantes dos Acordos de Minsk II.

É falso porque, sobretudo numa primeira fase (Março de 2014-Fevereiro de 2015), os falantes nativos de russo de Donbass apenas procuravam uma forma de autonomia que lhes permitisse utilizarem a sua língua nativa e desfrutarem das suas tradições etnoculturais sem entraves. Tal como se afirma nos Acordos de Minsk, não se trata de “separar” as Repúblicas de Donetsk e Luhansk da Ucrânia, que são aí definidas como “partes do território da Ucrânia.” Por conseguinte, a aplicação destes acordos baseava-se exclusivamente em negociações entre o governo de Kiev e “representantes de certas áreas das regiões de Donetsk e Luhansk” (artigos 9.º, 11.º e 12.º).

Pormenor importante que merece ser salientado: no texto dos Acordos de Minsk o topónimo Luhansk está ortografado em Ucraniano e não em Russo (Lugansk), o que significa que os signatários dos Acordos situavam esses territórios na Ucrânia, e não na Federação Russa, e que estava fora de questão separá-los da Ucrânia [24].

9. Os acordos de Minsk foram espezinhados pelos governos ucranianos

As negociações que conduziram aos Acordos de Minsk tiveram lugar em Genebra, Suíça, em Abril de 2014. Mas, logo a seguir, a Ucrânia rejeitou estes acordos e entrou directamente numa ofensiva em grande escala — a chamada Operação Antiterrorista (OA) contra as forças autonomistas rebeldes de Donetsk e Luhansk. A OA fez descarrilar completamente os acordos de Minsk I assinados em Setembro de 2014. Apoiado e aconselhado por oficiais da OTAN, o exército ucraniano sofreu uma derrota esmagadora em Debaltsevo, em Fevereiro de 2015. É isto que levará a Ucrânia a comprometer-se com os Acordos de Minsk II, que ratificam a natureza interna do conflito em Donbass.

Do Acordo de Minsk I ao Acordo de Minsk II só a posição russa e a dos autonomistas russófonos de Donbass é que se mantêm inalteradas: os Acordos são para se cumprir. Mas também o Acordo de Minsk II vai ficar letra morta, tal como o Acordo de Minsk I.

A partir de 2014, o governo ucraniano suspende toda a ajuda económica, todo o financiamento (para a reconstrução de cidades e infraestruturas, a restauração de serviços públicos essenciais, etc.), todos os pagamentos de salários, pensões e prestações sociais (subsídios, etc.) e proíbe todas as actividades bancárias nas áreas autónomas de Donetsk e Luhansk. É por isso que o Acordo de Minsk II prevê que o governo ucraniano restabeleça esses serviços (artigo 8.º) com a ajuda de Paris e Berlim. Dado, porém, que o governo ucraniano se recusa a falar com os representantes dos autonomistas russófonos de Donbass e que nem a França nem a Alemanha desempenham o papel que lhes cabe de incentivar a Ucrânia a cumprir as suas obrigações, nada foi feito nesse sentido.

O Acordo de Minsk II previa, como vimos, uma nova Constituição ucraniana, que consagrasse a descentralização do país, a autonomia de Donetsk e Luhansk e o direito à “autodeterminação linguística” dessas regiões (incluindo-se, nestes dois conceitos, a nomeação de procuradores e juízes russófonos nessas regiões), sem prejuízo da cooperação entre regiões. Estava ainda prevista a realização, a breve trecho, de eleições locais para o poder autonómico. Em contrapartida, a Ucrânia retomaria o controlo da fronteira com a Rússia.  Mas o governo ucraniano não cumpriu esse acordo.

A assinatura dos Acordos de Minsk por P. Poroshenko em 2015, é considerada pelos nacionalistas como uma “manobra táctica” bem-sucedida e nada mais. O famoso oligarca ucraniano e antigo parceiro de negócios de Zelensky, I. Kolomoisky, disse: «A assinatura destes acordos foi um truque táctico o exército ucraniano sofreu severas derrotas perante as milícias [de Lugansk e Donetsk], e Poroshenko teve de evitar uma derrota final» [25].

De facto, como já tive ocasião de o dizer num artigo anterior desta série (As guerras na Ucrânia eram evitáveis: os  acordos de Minsk (2015) e as propostas de tratados da Rússia (2021). Em Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue. 4 de Agosto de 2022), para o presidente Poroshenko esses acordos eram apenas um meio de ganhar tempo, até as Forças Armadas da Ucrânia se poderem rearmar e treinar com a ajuda da OTAN e estarem em condições de reconquistar o território ocupado pelas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk. Para que não ficassem dúvidas sobre o destino que esperava a população russófona de Donbass caso as tropas ucranianas levassem a melhor, Poroshenko declarou em 2014:

Teremos trabalho, eles não terão! Teremos pensões, eles não terão! Teremos subsídios para os reformados e para as crianças, eles não terão! As nossas crianças irão para a escola e para o infantário, as deles permanecerão nas caves das casas! [onde terão de se refugiar dos nossos constantes bombardeamentos, N.E.] Porque eles não podem fazer nada! E é assim, precisamente  assim, que vamos ganhar esta guerra! [26]

Como a política tem horror do vazio, o governo russo tomará medidas económicas e financeiras de socorro das populações das Repúblicas de Donetsk e Luhansk. No dia 15 de Dezembro de 2015, criou a “Comissão interministerial para o fornecimento de ajuda humanitária às zonas afectadas no Sudeste [da Ucrânia]: as regiões de Donetsk e Luhansk.” Deste modo, serão as empresas e os bancos russos que passarão, progressivamente, a assegurar os serviços que o governo ucraniano se recusa a assegurar. Acresce que os trabalhadores da administração pública, os pensionistas e as pessoas necessitadas ficaram sem os salários, as pensões e os subsídios que recebiam do erário público  e da Segurança Social ucranianos. É por isso que, em Abril de 2019, o presidente russo Vladimir Putin assina um decreto que autoriza a aquisição de passaportes russos aos residentes de Donbass, o que lhe dá direito a receberem salários, pensões e prestações sociais da Rússia.

10. Poroshenko e Zelensky, agora desavindos, são farinha do mesmo saco

O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky foi eleito, em Abril de 2019, com um programa político que incluía, como um dos seus pontos principais, acabar com a guerra em Donbass por meios diplomáticos. Foi, aliás, essa uma das razões principais do seu êxito eleitoral. Zelensky, no seu discurso inaugural de Maio de 2019, afirmou ter como sua prioridade a instauração da paz em Donbass. Reafirmou essa prioridade em Setembro desse ano, quando convidou, via YouTube, Putin e governantes de outros países para um diálogo. Disse ele:

Agora quero dirigir-me ao Presidente russo Vladimir Putin. Precisamos de falar? Precisamos. Façamo-lo. /…/ Vamos discutir a quem pertence a Crimeia e quem não está na região de Donbass. /…/ Sugiro o seguinte alinhamento para conversações: eu, o senhor, o Presidente dos EUA, Donald Trump, a Primeira-Ministra britânica Theresa May, a Chanceler alemã Angela Merkel, e o Presidente francês Emmanuel Macron [27] [ênfase acrescentado por mim, JCS]

A proposta não poderia ser mais ardilosa. A Crimeia pertence à Federação Russa desde 2014, por vontade própria dos Crimeus democraticamente expressa através de um referendo (ver o meu artigo anterior, Quem anexou a Crimeia: foi a Rússia ou a Ucrânia? Em Tertúlia Orwelliana. Arquivos do Blogue. 22 de Agosto de 2022). A única coisa sensata que se poderia esperar da Ucrânia em 2019, como agora, em 2022 é que reconheça esse facto de uma vez por todas. E como interpretar a enigmática frase: “vamos discutir quem não está na região de Donbass”? Suponho que Zelenky pretendia insinuar que o seu antecessor, Poroshenko, estaria a falar verdade quando afirmou que Rússia tinha enviado 200 mil soldados para Donbass em 2015. Mas já vimos que essa foi uma mentira que faria o nariz de Poroshenko (ou o nariz de Zelensky) crescer 2 quilómetros (1 centímetro por soldado), se fôssem o Pinóquio do romance de Carlo Collodi.

   
E se o nariz dos governantes crescesse uns centímetros de cada vez que mentissem, como acontecia com o Pinóquio, no romance As Aventuras de Pinóquio (1883) de Carlo Collodi? Foto de Siphotography. Depositphotos.

Quanto à ideia de Zelensky de associar Trump e Theresa May a Merkel e Macron numa discussão para resolver o conflito em Donbass, tratava-se, manifestamente, de um expediente para não cumprir, uma vez mais, os Acordos de Minsk e para absolver Merkel e Macron das responsabilidades que lhes cabem (em nome da Alemanha e da França) no seu incumprimento — como garantes oficiais do acordo de Minsk II desde a sua assinatura.

Uma prova disso (entre muitas outras) foi a atitude de Zelensky relativamente ao seu predecessor, Poroshenko, e depois seu principal opositor político. Em 2015-2016, a Ucrânia ainda comprava carvão às repúblicas autónomas de Luhansk e Donetsk. Porém, em 2017, o governo ucraniano fechou as fronteiras e proibiu o comércio com essas repúblicas, empurrando a população de Donbass para o comércio de bens com a Rússia. Isto levou Vladimir Putin, em 15 de Novembro de 2021, a emitir um decreto que aboliu temporariamente (até à resolução do conflito entre o governo ucraniano e as «regiões de Donetsk e Luhansk da Ucrânia com base nos acordos de Minsk») os direitos aduaneiros sobre certos produtos transacionados com essas regiões.

Regressemos agora à relação entre Zelensky, Poroshenko e estes desenvolvimentos. Convém saber que Poroshenko, apesar do seu ódio manifesto às populações russófonas de Donbass, tinha acabado por autorizar o comércio de carvão com as repúblicas autonomistas de Donbass para permitir à população ucraniana manter-se quente e à economia fabril manter-se em funcionamento, depois de ter reconhecido quão estúpida e contraproducente era essa proibição. Mas esse foi um dos motivos, imagine-se, pelos quais foi acusado de “traição” e de “apoio ao terrorismo” no início de 2022 em consequência de uma investigação criminal iniciada a pedido…do seu sucessor: o Presidente Zelensky! 

Os procuradores do Ministério Público da Ucrânia acusaram o ex-presidente Poroshenko de 120 infracções civis e criminais incluindo as já referidas acusações de traição e apoio ao terrorismo por ter autorizado a compra de carvão das minas de Donbass situadas no território das repúblicas populares de Luhansk e Donetsk para uso doméstico e para uso das fábricas situadas no território ucraniano controlado pelo governo.

Se Poroshenko for considerado culpado dessas acusações, elas podem valer-lhe 15 anos de prisão. Os procuradores do Ministério Publico pediram também que Poroshenko fosse imediatamente detido e preso com base nessas acusações, enquanto aguardasse julgamento, a menos que pagasse uma caução de mil milhões de grívnias — o equivalente a cerca de 35 milhões de euros, à cotação vigente na altura. Seria a desforra de Zelensky pela acusação de corrupção que Poroshenko lhe fez durante as últimas eleições presidenciais e que os Pandora Papers confirmaram [28].

Em 19 de Janeiro de 2022, um tribunal de Kiev, após dois dias de sessões de trabalho, decidiu que Poroshenko poderia aguardar julgamento em liberdade e sem pagar qualquer caução [29]. Em 22 de Fevereiro de 2022, as tropas russas invadiam a Ucrânia. Por essa razão, o conflito entre Zelensky e Poroshenko foi posto em banho-maria invertido, em nome da luta comum contra o invasor russo.  

Seja como for, a verdade é que, em 2021, Zelensky já tinha abandonado completamente o seu programa no que respeita às promessas de acabar com a guerra em Donbass por meios diplomáticos e encontrar um modus vivendi pacífico com a Rússia . o que implicaria, necessariamente, abdicar da intenção de aderir à OTAN (que está inscrita na Constituição da Ucrânia) e recusar o fabrico (ou a instalação no seu território pelos EUA ou por outras potências nucleares da OTAN) de qualquer arsenal nuclear, optando por um estatuto de neutralidade semelhante, por exemplo, ao da Áustria. Em 2021 o seu programa político já era outro, diametralmente oposto: acelerar a entrada da Ucrânia na OTAN; expandir, rearmar e continuar a treinar as Forças Armadas da Ucrânia sob a égide e o comando da OTAN; reconstituir o arsenal nuclear da Ucrânia de que esta tinha voluntariamente abdicado em 1994 (Acordos de Budapeste), preparar-se para uma guerra prolongada com a Rússia.

Como descrevi pormenorizadamente estas várias facetas da política de Zelensky noutro lugar [30], para ele remeto os leitores interessados. O que cumpre aqui realçar é que a guerra em Donbass entre as tropas ucranianas e as milícias armadas das repúblicas populares de Luhansk e Donetsk prosseguiu ininterruptamente com Zelensky, tal como tinha prosseguido ininterruptamente com Yatsenyuk (o 1º. Ministro saído do golpe de Estado de 2014) e Poroshenko (o presidente eleito após o golpe de Estado de 2014). Essa guerra já ia no seu 8.º ano quando a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de Fevereiro último.

É por isso que as vítimas dessa guerra são tão numerosas, sobretudo do lado das repúblicas russófonas de Donetsk e Luhansk/Lugansk. Entre 14 de Abril de 2014 e 31 de Dezembro de 2021,

O OHCHR [Office of the High Commissioner for Human Rights da ONU] estima o número total de baixas relacionadas com o conflito na Ucrânia /…/ em 51.000-54.000: 14.200-14.400 mortos (pelo menos 3.404 civis, 4.400 elementos das tropas ucranianas e 6.500 membros de grupos armados [entenda-se, membros das milícias populares de autodefesa da república popular de Donetsk (RPD) e da república popular de Luhansk (RPL), N.E.], e 37.000-39.000 feridos (7.000-9.000 civis, 13.800-14.200 elementos das tropas ucranianas, e 15.800-16.200 membros de grupos armados [entenda-se, membros das milícias populares de autodefesa da república popular de Donetsk (RPD) e da república popular de Luhansk (RPL), N.E.][31]

Mais de 80% das vítimas civis até 31 de Dezembro de 2021 resultaram dos bombardeamentos das tropas ucranianas aos territórios das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk [32]. Mas esse facto raramente ou nunca é mencionado pelo sistema mediático dominante da comunicação social ou pelos numerosos comentadores ao seu serviço.

11. Conclusão

Tendo em conta tudo o que ficou dito nas secções anteriores, eis então, em resumo, o que qualquer observador íntegro e bem informado está habilitado a afirmar sem receio de ser contraditado:

― É verdade que a Rússia teve uma intervenção marcante durante uma grande parte dos primeiros 8 anos (Setembro de 2014Fevereiro de 2022) do conflito armado entre o governo ucraniano e as populações russófonas da região de Donbass. Mas é mentira que essa intervenção tenha sido com tropas no terreno. Ela foi, durante esse período, primordialmente política e, atendendo às circunstâncias, consistentemente construtiva e morigeradora. 

― É verdade que, em Maio de 2014, houve referendos nos oblasti de Luhansk/ Lugansk e Donetsk em Donbass. Mas é mentira que esses referendos fôssem referendos destinados a proclamar a secessão (a separação) e a independência da sua população russófona relativamente à Ucrânia. Esses referendos visavam conquistar um estatuto de autonomia regional desses territórios semelhante, por exemplo, ao dos arquipélagos da Madeira e dos Açores relativamente a Portugal continental. A vontade de secessão e o desejo de independência só se desenvolveram ulteriormente, como reacção antagonista às medidas culturais repressivas, ao boicote económico e à guerra que os governos ucranianos desencadearam para esmagar as aspirações autonómicas da população russófona de Donbass.

 É verdade que os acordos de Minsk (2014-2015) foram feitos para solucionar um conflito armado na Ucrânia, localizado na região de Donbass. Mas é mentira que esse conflito opusesse a Ucrânia e a Rússia. O conflito armado em Donbass opunha exclusivamente os governos ucranianos (e as suas tropas) às populações russófonas dessa região que se sublevaram contra a opressão a que estavam sujeitas pelos órgãos do poder político ucraniano oriundos do golpe de Estado de 2014.

― É verdade que os acordos de Minsk (Minsk I e Minsk II) de 2014 e 2015 nunca foram respeitados e acabaram por ir por água abaixo. Mas é mentira que a responsabilidade desse malogro seja imputável a Putin e ao governo russo. Ela cabe por inteiro aos governos ucranianos do primeiro-ministro Yatsenyuk e dos presidentes Poroshenko e Zelensky. É plausível admitir que esse malogro não teria possível sem a complacência dos principais garantes desses acordos, os governos francês e alemão, que fizeram vista grossa sobre as prevaricações dos governos ucranianos relativamente aos Acordos de Minsk.

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NB Este é o 3º. artigo da série Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia! [a série  continua].

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Notas e referências bibliográficas 

[1] Este não é o único objectivo militar de Zelensky e do seu governo. Há mais dois, todos eles interligados. Regressarei a este assunto em melhor oportunidade. Tenciono também abordar, numa próxima oportunidade, os objectivos militares de Putin e do seu governo, que, tal como os do Zelensky, se foram modificando ao longo dos 7 meses que já leva a segunda guerra na Ucrânia (a que começou com a invasão da Ucrânia pelas tropas russas, em 24 de Fevereiro de 2022).

[2] Os autores a seguir indicados, com pontos de vista muito diferentes, coincidem todos num aspecto: a destituição inconstitucional, pelo parlamento ucraniano, do presidente eleito Viktor Yanukovych, em 22 de Fevereiro de 2014, seguida pela formação de um governo provisório que integrava forças neonazis eleitoralmente minoritárias na Ucrânia a nível nacional, mas bem implantadas nos conselhos municipais das regiões ocidental e central da Ucrânia (como a Svoboda [Свобода], “União Pan-Ucraniana ou Liberdade”) de Oleg Tyahnyb, herdeiro ideológico de Stepan Bandera, o ultranacionalista pró-nazi das décadas de 1930-1940) configura um golpe de Estado. Ver Branko Marcetic, “Como uma insurreição na Ucrânia apoiada pelos EUA nos trouxe à beira da guerra”, Jacobin, 14/02/2022; Fred S. L. Campos et al., “O ocidente como responsável pelas crises da Ucrânia e da Geórgia”, Rev. Bras. Est. Def. v. 5, n.º 2, jul./dez. 2018; Ted Galen Carpenter, “America’s Ukraine Hypocrisy”. Cato Institute, August 6, 2017; Volodymyr Ishchenko, “Far right participation in the Ukrainian Maidan protests: an attempt of systematic estimation”. European Politics and Society, March 2016; Alan Mackinnon, “New Menace for Russia? NATO is the real threat”. Campaign for Nuclear Disarmament Briefing, May 2015; Sergei Plekhanov, “Assisted Suicide: Internal and External Causes of the Ukrainian Crisis” (In: Black, Joseph; and Michael Johns. The Return of the Cold War: Ukraine, the West and Russia. Nova York: Routledge. 2015); Olivier Berruyer, “Ukraine et Euromaïdan (4) – Les puissances occidentales soutiennent un coup d’État en Ukraine”. Les-Crises.fr. 9 Mars 2014; Olivier Berruyer, “Ukraine et Euromaïdan (5) — Quand Washington s’emmêle…”. Les-Crises.fr.10 Mars 2014; Olivier Berruyer, “Ukraine et Euromaïdan (6) — Le Coup d’État”. Les-Crises.fr. 11 Mars 2014; Olivier Berruyer, “Ukraine: La face cachée de l’Euromaïdan (Synthèse)”. Les-Crises.fr. 21 Juillet 2014; John Mearsheimer, “Why the Ukraine Crisis is the West’s Fault: The Liberal Delusions that Provoked Putin”. Foreign Affairs. September/October 2014; Ivan Katchanovski, “The Far Right in Ukraine During the “Euromaidan” and the War in Donbas.” Paper prepared for presentation at the Annual Meeting of the American Political Science Association in Philadelphia, September 1-4, 2016; Eric Zuess, “How and Why the US government perpetrated the 2014 coup in Ukraine. Modern Diplomacy. June 4, 2018.

[3] Interfax-Ukaine, “Over 3,000 international observers registered for Ukrainian presidential election”. Kyiv Post, 11 de janeiro de 2010.  «Observadores da Organização para a Segurança de Cooperação na Europa (OSCE) disseram que não há indicações de fraudes graves e descreveram a votação [para a eleição do presidente da república da Ucrânia em 2010, N.E.] comouma impressionante manifestação de democracia”. “Para todos na Ucrânia esta eleição foi uma vitória”, disse João Soares, o presidente da Assembleia Parlamentar da OSCE» (“Yanukovych set to become president as observers say Ukraine election was fair”. The Guardian, 8 de Fevereiro de 2010). A OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa) é a maior organização regional de segurança do mundo, abrangendo todos os Estados europeus, a Federação Russa, os países da Ásia Central, a Mongólia, os Estados Unidos da América e o Canadá, num total de 57 membros, existindo ainda 13 “parceiros para a cooperação” da Ásia e do Mediterrâneo. A OSCE tem a sua sede em Viena.

[4] Victoria Nuland, “Remarks at the U.S.-Ukraine Foundation Conference”, US Department of State, https://2009-2017 (state.gov/p/eur/rls/rm/2013/dec/218804.htm).

[5] A transcrição dessa conversa telefónica foi publicada pela BBC (“Ukraine crisis: Transcript of leaked Nuland-Pyatt call.” BBC News, 7 February 2014). A parte mais picante da conversa ‒ durante a qual Victoria Nuland diz ao embaixador Pyatt que “Yats” (entender, Arseny Yatsenyuk) é a pessoa indicada para ocupar o lugar de primeiro-ministro no governo provisório saído do golpe de Estado ‒ é quando Victoria Nuland diz, no seu estilo desbocado: «Assim, isso seria óptimo [Nuland refere-se à intervenção de Robert Serry, um diplomata holandês então ao serviço da ONU, e ao secretário-geral da ONU, à época Ban Kimoon, N.E.], penso eu, para ajudar a colar esta coisa e para que a ONU a ajude a colar e, bem entendido, que se f… a União Europeia [“Fuck the EU,” no original].

[6] Estes números foram extraídos do artigo “The Maidan Massacre in Ukraine: Revelations from Trials and Investigations,” de Ivan Katchanovski (Paper presented at the virtual 10th World Congress of the International Council for Central and East European Studies, Concordia University, Montreal, August 3-8, 2021. In SSRN Electronic Journal, August 2021). Salvo melhor informação, este é o estudo disponível que apresenta o exame mais exaustivo sobre as causas contribuintes dos assassinados e feridos durante as manifestações do movimento Euromaidan.

[7] Cf. Ivan Katchanovski, “The far right, the Euromaidan, and the Maidan massacre in Ukraine.” Journal of Labor and Society 23(1):5-29, March 2020. Outros estudos abonam no mesmo sentido. Ver, por exemplo, Moniz Bandeira (2019), The World Disorder: US Hegemony, Proxy Wars, Terrorism and Humanitarian Catastrophes. Cham: SpringerStephen F. Cohen (2018). War with Russia: From Putin & Ukraine to Trump & Russiagate. New York: Hot BooksGordon M. Hahn (2018), Ukraine Over the Edge: Russia, the West and the “New Cold War,” Jefferson, NC: McFarland Books ; D.Lane (2016), The International Context: Russia, Ukraine and the Drift to East-West Confrontation.  International Critical Thought, 6 (4), 623-644.Lane; David Mandel (2016). “The conflict in Ukraine,” Journal of Contemporary Central and Eastern Europe, 24 (1), 83-88; Richard Sakwa (2015), Frontline Ukraine: Crisis in the Borderlands. London: I.B. TaurisSakwa.

[8] Tord Bjork, “What happened in Maidan Square” 2014. (https://geopoliticaleconomy.academia.edu/ AlanFreeman)

[9] Tord Bjork, op.cit., p. 3.

[10] Mike Eckel, “Russia, Ukraine feud over sniper carnage. Associated Press. March 8, 2014 (https://news.yahoo. com/russia-ukraine-feud-over-sniper-carnage-203319580.html).

[11] Estrambólico”, porque desafia a lógica mais elementar: por que razão haveria o governo russo de incitar ao derrube pela força do governo legalmente eleito de Yanukovych que o sistema mediático dominante da comunicação social ‒ em completo alinhamento opinativo com a OTAN, a Casa Branca, a UE e o G7 ‒ qualificou unanimemente como pró-russo? É o mesmo estrambolismo que leva o sistema mediático dominante da comunicação social, numa imitação mundana do Chapeleiro Maluco de Lewis Carroll, a atribuir às tropas russas que ocupam a central nuclear de Zaporizhia praticamente desde o início da invasão da Ucrânia a…bombardearem-se a si próprias nesta central!

[12] ] Eckel, op.cit. Esta sugestão estrambólica do derrube de Yanukovych para justificar uma invasão da Rússia, é, como já salientei na nota anterior, um exemplo digno do Chapeleiro Maluco, na interpretação gore de Victoria Nuland e Geofrey Pyatt.

[13] Eckel, op.cit.

[14] Há várias edições disponíveis desse telefonema no YouTube. Esta, por exemplo: “Breaking: Estonian Foreign Minister Urmas Paet and Catherine Ashton” (https://www.youtube.com/watch?v=BTbwdP5_d8M). A parte mais importante desse telefonema, para os propósitos deste artigo, é a fala de Urmas Paet (ministro dos Negócios Estrangeiros da Estónia), que começa no minuto 8 desta gravação.

[15] Jacques Baud, Poutine: Maître du jeu? Paris. Éditions Max Milo. 2022 (p. 168). Edição do Kindle.

[16] Ivan Katchanovski, “The Maidan Massacre in Ukraine: Revelations from Trials and Investigation”. Conference Paper in SSRN Electronic Journal. August 2021 (pp.53-54).

[17] Jacques Baud, op.cit., p.157.

[18] Jacques Baud, op.cit., p.158. As declarações do general Viktor Muzhenko foram feitas, no dia 29 de Janeiro de 2015, à estação de televisão ucraniana Canal 5, entretanto proibida e encerrada por Zelensky em 2022. Durante muitos anos estiveram disponíveis no YouTube (“No Russian Troops in Ukraine says Kiev General”, YouTube, 1 de Fevereiro 2015 (https://www.youtube.com/watch?v=T0x0 mnrq9j4). Ainda podem ser encontradas em https://life.ru/p/149116. Outras fontes que deram essa notícia são as seguintes: (i) “Ukrainian Government: “No Russian Troops Are Fighting Against Us”, January 30, 2015 (http://www.washingtonsblog.com/2015/01/ukrainian-government-russian-troops-fighting-us. html); (ii) “Ukraine chief of staff ‘thwarts Western allegations’ by admitting no combat with Russian troops.” January 30, 2015 (https://www.rt.com/news/228043-ukraine-conflict-army-russia/); (iii) Eric Zuesse, “Ukraine Government: «No Russian troops are fighting against us».” Foreign Policy in Focus (FPIP), February 3, 2015. Sobre as declarações do SBU, ver (i) “Only 56 Russians Fought in Ukraine — says Ukraine’s State Security (SBU)” (YouTube, 7 Fevereiro 2016); (ii) Interfax. Ukraine, “SBU says 56 Russians in military actions against Ukraine since conflict began.” Kyiv Post. October 10, 2015.

[19] Jacques Baud, op.cit., p.158.

[20] Jacques Baud, op.cit., p.159. As declarações de Alexander Hug foram feitas numa entrevista com Amy Mackinnon, “Counting the Dead in Europe’s Forgotten War,” Foreign Policy, October 25, 2018.

[21] Sobre Michel Eltchaninoff, ver José Catarino Soares, Quem anexou a Crimeia: foi a Rússia ou a Ucrânia?  secção 4.4. (Em Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue. 22 de Agosto de 2022).

[22] Programa «C dans l’air» de 17 de Outubro de 2021 («Poutine, maître du jeu #Cdanslair 17.10.2021», France 5/YouTube, 18 de Outubro de 2021) (no momento 1h02’43’’).

[23] Os acordos de Minsk I e Minsk II foram traduzidos e publicados na íntegra nos anexos 3 e 4 do artigo de José Catarino Soares, As guerras na Ucrânia eram evitáveis: os Acordos de Minsk (2015) e as propostas de Tratado da Rússia (2021). (Em Tertúlia Orwelliana, Arquivo do Blogue. 4 de Agosto de 2022).

[24] Jacques Baud, op.cit., p.160.

[25] Rodrigo Craveiro, “Rússia apresenta lista de exigências à OTAN e aos EUA para reduzir tensões com Ucrânia”. Correio Braziliense, 18-12-2021; “Moscou apresenta exigências para limitar influência de EUA e OTAN em suas fronteiras”. Isto é dinheiro. AFP. 17-12-2021.

[26] “Porochenko à propos du Donbass: «Leurs enfants resteront dans les caves!»,” YouTube, 16 novembre 2014.

[27] Roman Olearchyk, “Ukraine’s Zelensky calls for Putin and Trump to join peace talk”. Financial Times, July 8, 2019.

[28] Tenciono voltar a este assunto numa próxime opotunidade.

[29] Andrew E. Kramer, “Court in Ukraine Declines Request to Arrest Former President.” New York Times, January 19, 2022.

[30] Ver José Catarino Soares, A Guerra na Ucrânia (4.ª parte). A luta contra a guerra [Secção 11. Zelensky] (https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2022/07/a-guerra-na-ucrania-4.html).

[31] “Conflict-related civilian casualties in Ukraine,” United Nations Human Rights Monitoring Mission In Ukraine, Alto-Comissariado dos Direitos Humanos, 31 de Dezembro 2021 (actualizado em 27 de Janeiro de 2022). 

[32] É preciso ter em conta que os milicianos da RPD e da RPL não são militares, mas civis armados. Isso faz com que a grande maioria das vítimas (mortos e feridos) da guerra em Donbass tenha ocorrido na população russófona dessa região. 

12 setembro, 2022

 Tema 3

A propósito do assassinato de Darya Dugina [*]

Alan Freeman [1]

 

Uma vez que os factos relativos ao assassinato de Darya Dugina ainda estão sob investigação, ainda não estão assentes, e muito menos ainda foram testados em qualquer tribunal, não me parece adequado começar já a falar sobre “quem cometeu o assassinato”.


Darya Dugina (1992-2022).  Jornalista, politóloga e activista russa.
 Assassinada em 20 de Agosto de 2022,  no distrito de Moscovo, vítima de uma bomba posta
 no seu automóvel, que, muito plausivelmente, visaria assassinar o seu pai, Aleksándr Dugin. 
Foto de 1RNK. Wiki Commons


No entanto, há um ponto que tem de ser salientado: se o leitor pensa que se pode construir uma sociedade viável na qual as pessoas são assassinadas por causa daquilo que pensam, então feche as portas, feche as janelas, olhe para debaixo do automóvel antes de cada viagem e verifique cada porta antes de passar por ela — porque, então, não há limites, nem há lei, nem há forma de responsabilizar os assassinos vulgares.

Este é o perigo da sugestão, que grassa no sistema mediático liberal da comunicação social, de que a tentativa de assassinato [de Aleksándr Dugin] se justifica por causa das ideias de Dugin. Até já vi pessoas afirmarem que a morte da sua filha foi uma coisa boa, porque ela concordava com as ideias dele [2].  Que o Deus dessas pessoas lhes apodreça a alma. Estamos então a dizer que não são só as pessoas, mas também as suas famílias, que constituem alvos legítimos de violência hedionda, porque se dá o caso de não gostarmos do que dizem?

Penso que as pessoas que dizem isto não pensaram bem no assunto. Pelo menos espero que seja essa a explicação.

[Aleksándr] Dugin propaga as suas ideias através dos seus escritos e dos seus livros. Ele não é um funcionário governamental ou um militar e, tal como foi assinalado por Mercouris, ZeroHedge e outros, ele não tem qualquer associação com Putin nem com ninguém no governo ou no Estado russo que possa, de alguma forma, justificar a alegação de que ele é responsável pelas acções do governo russo [3].

Dugin é um escritor. A sua influência resulta do que escreveu. Certo, podemos não concordar com o que ele escreve (eu não concordo), mas não ando por aí a matar pessoas cujas opiniões não me agradam.

Assim, as pessoas que procuram justificar a atrocidade [que foi o assassinato da sua filha Darya Dugina, N.T.] estão, de facto, a dizer que é legítimo assassinar pessoas por causa daquilo que elas pensam [4].

Assassinar pessoas como se fosse um substituto da justiça está errado seja de que maneira for. Os tribunais são a forma de lidar com os perpetradores. A legitimação do assassinato como um procedimento aceitável do Estado é algo que nenhum amante da justiça deveria aceitar.

Mas, para além disso, assassinar pessoas apenas pelo que dizem é simplesmente abrir um caminho para o inferno.

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                                                                   Notas

[*] Este texto foi publicado, em Inglês, no Facebook de Alan Freeman em 23 de Agosto de 2022. O título foi acrescentado por mim, o tradutor, José Catarino Soares. As notas e as fotos também foram acrescentadas por mim.

[1] Alan Freeman foi economista principal da Greater London Authority. Foi professor de economia na Universidade de Greenwich (Inglaterra). Foi também professor visitante na Universidade Metropolitana de Londres, Research Fellow da Queensland University of Technology (Austrália) e investigador associado da Universidade de Kent em Canterbury (Inglaterra). Agora está reformado e vive em Winnipeg (Canadá), onde é co-director do Grupo de Investigação da Economia Geopolítica na Universidade Manitoba. É membro do comité da Associação para a Economia Heterodoxa (www.hetecon.net) e vice-presidente da Associação Mundial de Economia Política. É co-editor da série de livros Future of World Capitalism na Pluto Books, e da série de livros Geopolitical Economyna Manchester University Press. É autor, entre outros livros, de The Benn Heresy (Pluto Press, 2014) e The Politics of Empire (Pluto Press, 2004). Entre os seus artigos mais recentes contam-se “Creative Labor, Mental Objects and the Modern Theory of Production,” in Science & Society (2020), e “A General Theory of Value and Money: Foundations of an Axiomatic Theory,” in World Review of Political Economy (2020). Recebeu o prémio Marxian Economics Award da World Review of Political Economy (WAPE) em 2018.

[2] Aleksándr Dugin é um politólogo contemporâneo russo, autor de uma doutrina geopolítica denominada Neo-Eurasianismo, de uma doutrina política denominada Populismo Integral (que qualificou de quarta teoria política)  e mentor de um movimento denominado Movimento Internacional Euroasiático. É impossível resumir estas duas doutrinas numa nota, em particular o Neo-eurasianismo, dada a diversidade das suas fontes de inspiração. Trata-se de uma complexa amálgama de diversos elementos heterogéneos — uma doutrina geopolítica baseada no Tradicionalismo de René Guénon e Julius Evola; na religião cristã ortodoxa dos chamados Velhos Crentes; no arianismo germânico de Guido von List e Jörg Lanz von Liebenfels; nas elucubrações ocultistas de Herman Wirth; o diferencialismo étnico de Lev Gumilev e Yulian Bromlei; no Eurosianismo dos emigrados russos pós-1919 (Pyotr N. Savitsky, Nikolay S. Trubetskoi, Nikolay N. Alekseev); nas concepções dos organicistas alemães (e.g. Ernst Yünger, Oswald Spencer, Carl Schmitt); na aversão profunda ao globalismo de matriz angloamericana; na admiração pela Ahnenerbe Forschungs und Lehrgemeinschaft [Comunidade para a Investigação e Ensino sobre a Herança Ancestral] e pelos Waffen SS do regime nazi, etc. Salvo melhor informação, a melhor sinopse do Neo-Eurasianismo de Aleksándr Dugin é o estudo de Marlene Laruelle, “Aleksandr Dugin: A Russian Version of the European Radical Right?”. Kennan Institute, Occasional Paper # 294, 2006.

[3] Nos meios liberais e neoliberais e na esquerda socialdemocrata ou cripto-socialdemocrata, está muito enraizada a ideia de que Dugin é o guru de Putin ou, pelo menos, o seu ideólogo favorito. Mas nenhuma dessas ideias tem fundamento factual. Eis uma maneira eufemística de o dizer: «A questão de saber se as ideias de Dugin têm uma influência directa sobre as autoridades russas permanece sem resposta. Estamos inclinados a concordar com a observação de Shlapentokh de que “seria ingénuo assumir que Putin ou qualquer membro do seu círculo próximo começa o seu dia lendo a mais recente publicação de Dugin da mesma a forma como os governantes soviéticos do passado começavam o seu dia lendo o Pravda”» (Anton Shekhovtsov. “Aleksandr Dugin’s Neo-Eurasianism: The New Right à la Russe.” Religion Compass, Vol. 3, Nº. 4 [2009]). Quanto à ideia de que Dugin seria o ideólogo favorito de Putin, já foi competentemente refutada por Marlene Laruelle em vários estudos. Ver, por exemplo, o seu artigo “The intellectual origins of Putin’s invasion.” (Unherd, March 16, 2022) onde se pode ler, a páginas tantas: «Dugin não segreda aos ouvidos do Kremin. Dugin é demasiado radical nas suas formulações [para que isso fosse possível, N.E.], demasiado obscuro e esotérico e cultiva um nível “elevado” de referências intelectuais aos clássicos europeus de extrema-direita que não podem satisfazer as necessidades do governo de Putin. Dugin foi um dos promotores originais de uma noção geopolítica da Eurásia e da Rússia como uma civilização distinta nos anos mil novecentos e noventa, mas esses temas banalizaram-se independentemente  e até mesmo contra a utilização que Dugin deles fez nas décadas seguintes. Ele nunca foi membro de nenhuma das muitas organizações da sociedade civil cooptadas pelo Kremlin, mesmo que tenha sido capaz de angariar alguns patronos nos círculos militar-industrial e dos serviços de segurança».

[4] N.T. = nota do tradutor

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N.B. Propus a publicação deste texto ao magazine luso-brasileiro Passa Palavra (https:// passapalavra.info/) no dia 1 de Setembro de 2022. Em 11 de Setembro de 2022, o colectivo do Passa Palavra informou-me da sua recusa em publicar o texto de Alan Freeman, sem adiantar qualquer razão para essa sua posição. Convém perguntar-nos, então, quais terão sido as razões (não reveladas) para esta censura envergonhada. Não vislumbro nenhuma, se nos ativermos à declaração de princípios que norteia o Passa Palavra [“O que é o Passa Palavra e como se organiza?”, 29/04/2020, https://passapalavra.info/2020/04/131450/]

O Passa Palavra afirma ser «anticapitalista e internacionalista». O Passa Palavra «pretende estimular o confronto de opiniões e o debate» nesse âmbito. O Passa Palavra considera «que as inspirações teóricas únicas, os modelos únicos e os sectarismos de grupo são obstáculos à reflexão sobre as lutas». O Passa Palavra garante: «não somos, nem pretendemos ser, portadores da verdade revolucionária». O Passa Palavra diz que «está aberto à publicação de textos enviados por colaboradores não pertencentes ao coletivo, tanto relatos de lutas como artigos de reflexão, desde que a) obedeçam a um padrão de qualidade que consideramos o mínimo aceitável; b) adotem perspectivas anticapitalistas; c) não defendam os nacionalismos nem os identitarismos.»

Em suma, o Passa Palavra não tem qualquer argumento que lhe permita justificar a sua recusa de publicar do texto de Alan Freeman sem, ao mesmo tempo, renegar todos os seus princípios.