Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

04 junho, 2024

 Temas 2 e 3

A sinistra rábula de Volodymyr Zelensky (ex-presidente da Ucrânia) e dos seus comparsas locais durante a visita que fez a Portugal 


José Catarino Soares


Volodymyr Zelensky fez uma visita-relâmpago a Portugal, dia 28 de Maio de 2024. «Foi um dia de festa para a democracia portuguesa», declarou Sebastião Bugalho, o candidato cabeça de lista da AD [PSD + CDS+ PPM] às eleições para o Parlamento Europeu.

28 de Maio de 2024. Marcelo Rebelo de Sousa, Zelensky e Luís Montenegro, no aeroporto militar de Figo Maduro. Foto: Tiago Petinga. Lusa.

O presidente da república portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, Luís Montenegro, concordam certamente com a opinião de Bugalho porque foram ambos receber Zelensky ao aeroporto militar do Figo Maduro, com honras militares, como se Zelensky fosse o presidente de um país de primeira importância para Portugal e uma grande individualidade política, digna do respeito, da estima e da admiração dos portugueses.

Mas Zelensky não é nada disso.

1. Zelensky nunca foi flor que se cheire

― Zelensky é um comediante corrupto, cuja avultada fortuna pessoal (estimada em 30 milhões de dólares americanos pela revista americana Forbes, em 21 de Abril de 2022) foi transferida para paraísos fiscais (segundo revelaram os Pandora Papers [1]), para o seu dono poder fugir aos impostos pagos pelo comum dos seus concidadãos.

― Zelensky é um político oportunista e manhoso, cuja candidatura à presidência da República da Ucrânia foi concebida, promovida, patrocinada e financiada por um dos oligarcas mais ricos e corruptos da Ucrânia, o senhor Ihor Kolomoysky [2], que, entretanto, caiu em desgraça e está preso, desde Setembro de 2023, acusado de fraude, branqueamento de capitais, peculato e evasão fiscal [3].

― Zelensky é um presidente que foi eleito, em Abril de 2019, com um programa que parecia incluir, como sendo o seu ponto principal, acabar com a guerra na Donbass, contra a República Popular de Donetsk (RPD) e a República Popular de Lugansk (RPL), por meios diplomáticos [4] — ou seja, através do respeito escrupuloso dos Acordos de Minsk (Minsk-1, assinado em 2014, e Minsk-2, assinado em 2015).

Estes acordos, que poucos leram [5] e dos quais raramente se fala para compreender e explicar a tragédia das duas guerras na Ucrânia (a de 2014-2022, circunscrita à Donbass; e a de 2022-202?), foram celebrados entre a Ucrânia e essas duas repúblicas nascidas da rebelião das populações russas, russófonas e russófilas da Donbass contra o golpe de Estado sangrento de Maidan (Quieve), em 21-22 de Fevereiro de 2014, o derrube inconstitucional do presidente da Ucrânia livremente eleito, Viktor Yanukovytch, e o ataque cerrado aos seus direitos linguísticos e culturais.

Convém lembrar que os predecessores de Zelensky, Oleksandr Turchinov (não eleito) e Petro Poroshenko (eleito no rescaldo do golpe de Estado de Maidan e, por isso, praticamente sem oposição), violaram sistematicamente os Acordos de Minsk a ferro e fogo, com a conivência da Alemanha e da França, os garantes do seu cumprimento por parte da Ucrânia [6].

Foi essa aparente intenção de pôr fim à guerra civil na Donbass por meios pacíficos e diplomáticos que constituiu uma das causas contribuintes do êxito eleitoral de Zelensky, se não mesmo a causa contribuinte principal. Zelensky foi eleito presidente da República da Ucrânia à segunda volta, contra o presidente cessante, Poroshenko, com uma maioria (73,2%) dos votos expressos (62,1% dos eleitores inscritos), e tomou posse em 21 de Maio de 2019 para um mandato de cinco anos.

Mas esse ponto fundamental que engalanava o seu programa eleitoral foi abandonado, assim como outros, menos de 2 anos depois, como mostrei noutro lugar [7]. A guerra na região da bacia hidrográfica do rio Donets, conhecida como Donbass, prosseguiu com Zelensky, tal como tinha prosseguido com Turchinov e Poroshenko. É por isso que as suas vítimas civis são tão numerosas. Mais de 80% das vítimas civis até 31 de Dezembro de 2021 resultaram dos bombardeamentos das tropas ucranianas às zonas residenciais, comerciais e de lazer da RPD e da RPL [8]. Mas isso raramente ou nunca é dito pelo sistema mediático dominante de comunicação social do chamado “Ocidente alargado” ou pelos numerosos comentadores ao seu serviço.

A guerra brutal e impiedosa que Zelensky e os seus predecessores travaram durante oito anos contra as populações russas, russófonas e russófilas da RPD e da RPL, em total desrespeito pelos Acordos de Minsk, foi uma das duas causas contribuintes da chamada “Operação Militar Especial” (OME) que a Rússia desencadeou em 24 de Fevereiro de 2022 [9].  

O que as populações russas, russófonas e russófilas da RPD e da RPL tiveram de sofrer durante esses 8 anos de guerra representa um calvário que não terminou em 24 de Fevereiro de 2022. O ódio mortal que o regime de Zelensky vota aos seus ex-concidadãos dessas repúblicas, assim como, mais amplamente, às populações russas, russófonas e russófilas do leste e sul da Ucrânia, parece ter crescido ainda mais após o início da OME.

Um exemplo disso, entre muitos outros, é o ataque aéreo que as tropas ucranianas lançaram sobre uma zona residencial e comercial da cidade de Donetsk em 18 de Setembro de 2022, cujos efeitos devastadores o jornalista português Bruno Amaral de Carvalho presenciou e relatou.

«Se há dias que sei que não vou esquecer na minha vida, um deles é o dia 19 de Setembro de 2022. Estou no meu apartamento quando cai a informação de que um míssil atingiu a Praça Comissários de Baku e de que há mortos. Tento chamar um táxi, mas, uma vez mais, é impossível convencer alguém a levar-me àquele local. Trato de ligar ao Texas [a alcunha de Russell Bentley, um americano natural do Texas que se alistou como voluntário no Batalhão Vostok e no Batalhão XAH Spetsnaz das milícias populares da República Popular de Donetsk por simpatizar com a sua causa. Combateu nessas milícias em 2014, 2015 e 2017, antes de se converter em jornalista independente e correspondente de guerra na Donbass [10], n.e.]. Aparece logo depois com o seu Lada Niva e partimos par Kuibyshevsky.

Russell Bentley (1960-2024), conhecido como Texas, aqui na RPL, numa foto publicada no em 4 de Abril de 2024. 

Quando saio do carro, deparo-me com um cenário de horror. Ainda a cerca de 50 metros da tragédia, tenho de caminhar com cuidado para não pisar orelhas, mãos e outras partes das 13 vítimas mortais deste ataque da artilharia ucraniana contra esta zona residencial e comercial de Donetsk. Junto a uma mercearia completamente destruída há pelo menos cinco corpos visíveis ou o que resta deles. Duas crianças morreram neste ataque. Uma mulher tem apenas metade do corpo e está de olhos abertos. Atónitos, como eu.  A jornalista canadiana da RT,  Eva Bartlett, contou-me depois que quando chegou viu um homem de barriga aberta e ao lado o seu telemóvel que ainda tocava música. /.../ 

No mesmo dia, noutra parte da cidade morreram mais três pessoas. É o pior dia na cidade desde que em 14 de Março [de 2022] um míssil Tosha-U lançado pelas forças ucranianas matou 23 civis, sobretudo idosos que esperavam à porta de um banco para levantar a reforma.

Regresso a casa em silêncio. Não me saem da cabeça os olhos da mulher nem o corpo da criança com o cabelo chamuscado. No dia seguinte, regresso ao mesmo lugar. Há dezenas de ramos de flores, vários peluches e uma bandeira de Marrocos, em homenagem ao dono de uma loja que vendia Kebabs e que foi uma das vítimas mortais do ataque» [11]. [n.e.= nota editorial]

2. O acordo de Istambul que Zelensky negociou e repudiou

― Zelensky é um presidente que celebrou em Istambul, em fins de Março/princípios de Abril de 2022, apenas seis semanas depois do início da OME, um acordo com a Rússia para pôr um fim imediato à guerra.

Sabemos através de múltiplas fontes insuspeitas de qualquer simpatia pela Rússia (The Telegraph, Ukrayinska Pravda, Berliner Zeitung, Wall Street Journal, Die Welt, Figaro, entre outras), dos testemunhos directos de Naftali Bennett (ex-primeiro-ministro de Israel) e de Gerhard Schröder (ex-chanceler da Alemanha), que foram ambos mediadores das negociações conducentes a esses acordos, e dos testemunhos directos de alguns dos membros da delegação ucraniana que participou nessas negociações (Davyd Arakhamia, Oleksandr Chaliy, Oleksiy Arestovych) que o Acordo de Istambul era muito favorável à Ucrânia. Os pontos principais desse acordo eram os seguintes:

As tropas russas retirar-se-iam do território ucraniano e, em troca, a Ucrânia (i) declarava a sua neutralidade militar (com a concomitante renúncia à sua intenção [a] de aderir à OTAN (/NATO); [b] de instalar armas nucleares, de fabrico próprio ou alheio, em território ucraniano; [c] de acolher bases militares, agências de espionagem e/ou tropas estrangeiras no seu território), recebendo, em contrapartida, garantias de segurança dadas pelos Estados-membros do Conselho de Segurança da ONU; (ii) reconhecia, de uma vez por todas, a Crimeia como uma república autónoma da Federação Russa [ver nota #]; (iii) garantia o respeito pela autonomia política, cultural e administrativa da RPL e da RPD no quadro de uma solução negociada semelhante, por exemplo, à do Tirol do Sul; (iv) garantia o respeito pelos direitos linguísticos e culturais das demais populações russófonas e russófilas da Ucrânia.

― Zelensky é o presidente que acabou, 10 dias depois, por repudiar esse acordo que negociara com a Rússia; um acordo que teria poupado a vida a centenas de milhares de soldados ucranianos (e a dezenas de milhares de soldados russos); que teria evitado que 300 mil militares ucranianos ficassem estropiados [12]; que mais de 32.100 civis morressem (10.946) ou ficassem feridos (21.946) na Ucrânia, na RPD, na RPL e na Rússia [13]; que a RPD, a RPL e os oblasti de Kherson e Zaporíjia tivessem sido integrados na Rússia; que 6,4 milhões de ucranianos procurassem refúgio noutros países, dos quais 5,9 milhões na Europa (incluindo a Rússia e a Bielorrússia), sendo a grande maioria mulheres e crianças, e que milhões de outros se vissem forçados a deslocar-se internamente no seu país, além de enormes destruições materiais em todos esses territórios.

E porquê e para quê? Para fazer a vontade aos EUA, ao Reino Unido, à Alemanha e à França, cujos governantes se puseram de acordo para enviar a Quieve, em 9 de Abril de 2022, como seu mensageiro, o senhor Boris Johnson, à época primeiro-ministro do Reino Unido. Segundo o jornal ucraniano Ukrayinska Pravda, a mensagem que Boris Johnson, no duplo papel de deus Mercúrio e de demónio Mefistófeles, levou a Zelensky foi muito simples e clara:

«Se o senhor fizer um acordo com Putin, nós nunca mais ajudaremos a Ucrânia em nada. Fica por sua conta. Se, pelo contrário, o senhor se dispuser a combater a Rússia para a enfraquecer e derrotar, custe o que custar, pode contar com o apoio total dos nossos Estados e de todo o “Ocidente alargado”».

Zelensky escolheu sacrificar o seu povo e o seu país para servir os desígnios do “Ocidente alargado[14].

3. Zelensky soma e segue

Numa entrevista que deu ao The Guardian em 31 de Maio de 2024, apenas três dias depois da sua visita a Portugal, Zelensky afirmou:

«“Se a Rússia ganhasse na Ucrânia, Putin procuraria reformular ainda mais as fronteiras da Europa, atacando outras nações”. “Esta é a verdadeira terceira guerra mundial”. E enfatizou: “Não acho que Putin seja louco. Ele é perigoso. O que é muito mais assustador. Entendam, ele não vai parar”».

(A) Os oito anos (2014-2022) durante os quais a Ucrânia desrespeitou constantemente e a ferro e fogo os Acordos de Minsk sobre a região da Donbass sem que a Rússia (o garante dos acordos por parte da RPD e da RPL) tivesse reagido militarmente;

(B) A “Proposta de Acordo sobre medidas para garantir a segurança da Federação Russa e dos Estados membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte [OTAN]” e a “Proposta de Tratado entre os Estados Unidos da América [EUA] e a Federação Russa [Rússia] sobre as garantias de segurança” que a Rússia apresentou à OTAN e aos EUA no mesmo dia (17 de Dezembro de 2021) e que foram ambas [15] liminarmente rejeitadas pelos seus destinatários sem qualquer discussão ou contraproposta, e

(C) o teor dos acordos de Istambul que Zelensky celebrou com a Rússia no fim de Março/princípio de Abril de 2022 e que ele repudiou 10 dias depois,

— são a melhor prova de que Zelensky é um mentiroso contumaz.

Além de mentiroso contumaz, Zelensky é ignorante, irresponsável e provocador. Na mesma entrevista ao The Guardian, afirmou que gostaria de poder dar ordem às tropas ucranianas para utilizarem os mísseis de longo alcance Storm Shadow (que lhe foram fornecidos pelo Reino Unido), também conhecidos por Scalp, o seu nome francês (que lhe foram fornecidos pela França); o sistema M142 lançador múltiplo de foguetes HIMARS e o sistema MGM-140 de mísseis balísticos tácticos do exército ATACMS (que lhe foram ambos fornecidos pelos EUA), para atacar em profundidade alvos no interior da Rússia, incluindo bases aéreas e aviões em vôo.

Há nestas declarações de Zelensky um elemento de bravata, porque os Storm Shadow/Scalp têm um alcance de 550 km (tal como os mísseis germano-suecos Taurus [500 km] que a Alemanha parece agora disposta a fornecer à Ucrânia) e os HIMARS, assim como os ATACMS, têm um alcance de 300 km. Assim sendo, estes mísseis serão, sobretudo, eficazes para atacar a Crimeia (um território russo que Zelensky e o seu regime ainda acalentam o sonho fagueiro de conseguirem reanexar), visto que, por exemplo, a distância, em linha recta, de Odessa a Sebastol, na Crimeia, é de 301 km. Os restantes servirão, conjecturo, para atacar populações civis indiscriminadamente, segundo o bem conhecido padrão que as tropas ucranianas desenvolveram contra as populações da RPD e da RPL durante os últimos 9 anos.

Na mesma entrevista, Zelensky confidenciou que aguardava a autorização pública, completa e definitiva dos seus patronos e tutores ocidentais (EUA à cabeça) para levar a cabo esses ataques em profundidade na Rússia. Quer, em suma, poder fazê-lo com as costas quentes. Os seus patronos e tutores mais estarolas (com Macron à cabeça) já lha concederam, entusiasticamente, excitados com o cheiro do sangue que conseguem farejar à distância. Mas os EUA hesitam em dar carta branca ao seu pupilo ucraniano, por temor das consequências.

E têm razão para as temer. É que os ataques que Zelensky pretende fazer com o novo armamento que lhe foi fornecido pelos seus patronos e tutores da OTAN (/NATO) e da UE e com o seu público beneplácito e incentivo, não são apenas uma bravata, nem apenas mais do mesmo. Constituem, para todos os efeitos, uma instigação explícita para que a Rússia, se se sentir em perigo existencial e assoberbada, recorra ao uso de bombas nucleares “tácticas” para eliminar, de uma vez por todas, esse tipo de armamento anglo-franco-germano-sueco-americano no território da Ucrânia, assim como os seus operadores especializados, seja qual for a sua nacionalidade. E esse, sim, poderia ser o início da terceira e derradeira guerra mundial, como veremos mais adiante.

4. Um Fausto de pacotilha

Foi este homem tenebroso que veio agora a Madrid e a Lisboa lembrar, uma vez mais, a ajuda constante em armas, munições e dinheiro de que precisa para continuar a guerra insana que se comprometeu a fazer até ao último soldado ucraniano (e já sobram muito poucos…), para ficar nas boas graças dos seus patronos da OTAN (/NATO) e da UE — em particular, dos mais poderosos (EUA, Reino Unido, Alemanha, França) e dos mais belicosos (Polónia, Estados bálticos, Chéquia).

Fê-lo num momento em que já não é sequer presidente da Ucrânia, visto que o seu mandato presidencial expirou no dia 21 do corrente mês de Maio e não há, na Constituição da Ucrânia, nenhuma maneira de o prolongar [16]. Zelensky usurpa agora o cargo de presidente da Ucrânia. Actualmente, a sua legitimidade constitucional é nula.

O ex-embaixador da Ucrânia no Reino Unido, Davy Pristayko, alertou para as consequências em cascata desse facto.

«No exercício legítimo dos seus poderes, Zelensky nomeou todos os governadores regionais da Ucrânia, um grande número de altos representantes do poder executivo, vice-governadores, chefes de administrações regionais e distritais, bem como de administrações militares e civis. Assim, com a perda de legitimidade do Sr. Zelensky, toda a estrutura, todo o poder executivo perde a sua legitimidade. Nenhum dos seus decretos, ordens, decisões executivas são legítimas» [17].

Mas que importância é que isso tem? Para os seus anfitriões, nenhuma. Por exemplo, o presidente e o primeiro-ministro da república portuguesa fizeram questão de recebê-lo à saída do avião com honras militares, que chegaram ao cúmulo de incluir um desfile de todos os ramos da Forças Armadas Portuguesas: Exército, Marinha e Força Aérea! Em seguida, trataram de lhe meter no bolso um cheque de 126 milhões de euros [18] como recompensa pelos seus inegáveis talentos de comediante político no desempenho do ignominioso (mas auto-inebriante) papel de um Fausto contemporâneo.

Volodymyr Zelensky (ex-presidente da Ucrânia) com Luís Montenegro, primeiro-ministro de Portugal, em 28 de Maio de 2024, no Palacete de São Bento, em Lisboa, residência oficial do primeiro-ministro. Foto: José Sena Goulão. Lusa. 

Zelensky não desempenha, porém, o papel de um émulo real do Fausto de Marlowe ou de Goethe: o papel de um doutor astuto, superambicioso, malévolo e erudito — como o fizeram, por exemplo, Zbigniew Brzezinski (1928-2017) ou Henry Kissinger (1923-2023), doutrinadores da supremacia mundial do seu país de adopção, os EUA. O papel de Zelensky é o de um Fausto de pacotilha, como convém a um palavroso, mentiroso, vaidoso, ignorante e superatrevido caixeiro-viajante da Pax Americana [19] — a máscara benevolente da supremacia mundial dos EUA.

5. A Pax Americana

A Pax Americana pode ser descrita sumariamente através de alguns números. Os EUA fizeram 469 intervenções militares (!) desde 1789. Destas intervenções militares, 219 foram feitas entre 1798 e 1990, e 250 foram feitas desde 1991 até 2022 [20] — ou seja, depois do fim da Guerra Fria e da implosão da União Soviética!

No mesmo período (1991-2022), a OTAN (/NATO), alegadamente construída para conter a “ameaça militar da União Soviética” à Europa ocidental, alargou-se em 5 ondas sucessivas (1999, 2004, 2009, 2017, 2020) em direcção às fronteiras da Rússia. Esse processo representou o espezinhamento das garantias formais dadas a Mikhail Gorbachev e Eduard Shevardnadze, em representação da União Soviética, pelos EUA, Reino Unido e França (as três outras potências ocupantes da Alemanha), de que a OTAN não avançaria «nem um centímetro em direcção ao Leste da Europa» — como o afirmaram solenemente, em 1990, James Baker III [ministro dos Negócios Estrangeiros dos EUA no governo de George H.W. Bush], Margaret Tatcher e John Major [primeiros-ministros do Reino Unido], e François Miterrand [presidente da França].

Isto aconteceu apesar de terem desaparecido – com a reunificação da Alemanha (1990), a dissolução do Pacto de Varsóvia (Março de 1991) e a dissolução da União Soviética (Dezembro de 1991) – todos os pretextos que levaram à criação (1949) e à manutenção da OTAN durante 40 anos. Mais: isto aconteceu apesar da Rússia ter pedido por duas vezes ‒ uma no tempo de Boris Yeltsin, outra durante o primeiro mandato de Vladimir Putin ‒ para entrar na OTAN (/NATO)…

2007. Soldados do Exército dos EUA montam guarda algures no Iraque. Foto: Associated Press.

A OTAN (/NATO) tem hoje o dobro de Estados-membros (32) do que tinha em 1991 (16) e está colada às fronteiras terrestres da Rússia através da Noruega, Finlândia, Polónia, Estónia, Letónia, Lituânia! Com a eventual entrada na OTAN (/NATO) da Ucrânia e da Geórgia ‒ que foram ambas convidadas pela OTAN a integrar-se nela e cujos governos há muito que expressam essa intenção e se esforçam por concretizá-la ‒ a Rússia ficaria cercada por Estados-membros da OTAN (/NATO) ao longo de todas as suas fronteiras terrestres europeias, salvo na fronteira com a Bielorrússia, que não é membro dessa aliança militar com provas dadas do seu carácter belicista.

Imagine-se qual seria a reacção dos EUA se a Rússia pertencesse a uma aliança militar do mesmo carácter com o Canadá e o México…

Cinco bases aéreas da OTAN (/NATO) na Europa albergam ogivas nucleares dos EUA: Incirlik (Turquia); Aviano e Ghedi-Torre (Itália); Kleine Brogel (Bélgica); Büchel (Alemanha), Volkel (Holanda). Além dessas armas, que só os EUA estão em condições de accionar, a França e o Reino Unido ‒ os dois Estados-membros mais poderosos da OTAN, a seguir aos EUA ‒ possuem também o seu próprio arsenal nuclear.

Mas não é só a OTAN (/NATO) que garante a Pax Americana. Os EUA têm, ao todo, cerca de 750 bases militares espalhadas, no mínimo, por 80 países (Portugal inclusive) e mantêm 173 mil soldados em 159 países e territórios.

A Europa alberga pelo menos 60.000 soldados americanos. Com 33.900 efectivos, a Alemanha tem o maior número de tropas americanas na Europa ‒ e o segundo maior número do mundo (o primeiro é o Japão) ‒ seguida da Itália com 12.300 e do Reino Unido com 9.300 [21].

Perguntemos então o que pensam da Pax Americana os cidadãos dos Estados-membros da OTAN (/NATO) e da União Europeia (UE).

Na sua grande maioria não pensam nada, porque delegam nos governantes a tarefa de pensar por eles, ou consideram-na uma grande conquista da civilização. Se assim não fôsse, não votariam há décadas nos partidos que apoiam e sustentam a OTAN (/NATO) e a UE, dois pilares indispensáveis da Pax Americana, ou, o que vem a ser o mesmo, da “ordem internacional baseada em regras” ditadas por Washington D.C.

O seu credo ficou bem expresso nas palavras memoráveis que o tenente-general Marco Serronha, comentador da CNN-Portugal, proferiu, sem se rir, no mesmo dia em que Zelensky visitou Portugal:

«Realmente, o que está em jogo neste momento é um ataque tanto da Rússia, como da China, como de outros países, relativamente ao nosso modo de vida ocidental. É isto que está por trás disto tudo. A Ucrânia é uma peça desse jogo».

Desgraçadamente, há boas razões para pensar que uma visão tão tosca e distorcida da realidade é compartilhada pela grande maioria dos portugueses [22], espanhóis, franceses, holandeses, britânicos, belgas, polacos e assim por diante. As únicas excepções serão, talvez, os suíços (que não fazem parte da OTAN/NATO nem da UE) e, em parte, os austríacos, os irlandeses e os malteses (que não fazem parte da OTAN/NATO).

Perguntemos agora o que pensam da Pax Americana os cidadãos da Rússia. Claro está, haverá milhares deles, talvez milhões, que pensarão o mesmo que o tenente-general Marco Serronha. O seu “modo de vida ocidental” depende da longevidade da Pax Americana.

Eis alguns exemplos.

#1 O senhor Alexei Mordashov tem uma fortuna que está avaliada em 29,1 mil milhões de dólares americanos. Que vai ser do seu iate Lady M, que se encontrava no porto de Imperia, no norte de Itália quando começou a OME? Trata-se de um iate de 65 metros, construído nos Estados Unidos há sete anos e que está avaliado em 27 milhões de dólares. Mordashov possui também propriedades imobiliárias fora da Rússia. Uma delas é uma villa, avaliada entre 88 e 72 milhões de dólares, na costa da Sardenha. Que vai ser dela?

#2 O senhor Vagit Alekperov tem uma fortuna avaliada em 24,9 mil milhões de dólares americanos. É, entre outras coisas, dono dos estaleiros Heesen Yachts, nos Países Baixos, onde foi construído em 2016 o seu iate Galactica Super Nova. Que vai ser deles: o estaleiro e o iate?

#3 O senhor Alisher Usmanov tem uma fortuna avaliada em 18,4 mil milhões de dólares americanos. Que vai ser do clube britânico Arsenal (que comprou em 2007), da sua villa na Sardenha, das suas duas propriedades no Reino Unido e do seu luxuoso iate, Dilbar, estacionado em Hamburgo e avaliado em 600 milhões de dólares?

#4 O senhor Roman Abramovich tem uma fortuna avaliada em 14,5 mil milhões de dólares americanos. Que vai ser do clube britânico Chelsea, de que é proprietário, e do seu iate Eclipse (o segundo maior iate do mundo), que está protegido por um sistema de defesa antimísseis, tem dois heliportos, três barcos e dois minissubmarinos e está avaliado em 302 milhões de euros?

#5 O senhor Dmitry Rybolovlev tem uma fortuna avaliada em 6,7 mil milhões de dólares americanos. Que vai ser da ilha grega de Scorpios (de que é proprietário), da sua penthouse no Mónaco (que adquiriu pela módica quantia de 300 milhões de dólares,) e dos seus clubes de futebol: o Ás do Mónaco e o Cercle Brugge da Bélgica?

Compreende-se que estes cidadãos [23] e muitos outros que são, ou aspiram ser, como eles, sintam o coração apertado e fiquem com os olhos marejados de lágrimas só de pensarem que a União Europeia e os EUA lhes possam apresar e confiscar os seus iates, as suas villas, os seus clubes de futebol e congelar as suas contas bancárias só por eles terem a “infelicidade” de terem um passaporte russo mais antigo do que todos os seus outros passaportes — israelita, cipriota, britânico, português, etc. E logo eles, que tem um amor acrisolado ao “modo de vida ocidental” e à Pax Americana que o protege!

É um motivo bastante, julgo eu, para pedirem ao tenente-general Marco Serronha que interceda por eles de modo a evitar tamanha injustiça. “Sanções económicas, sim, mas contra o povo russo, não contra nós, os maiores activos do “Ocidente alargado” na Rússia!», poderão clamar junto dele, sem que duvidemos um só instante da sua sinceridade.

6. Um contraponto realista à Pax Americana

Perguntemos, por fim, o que pensam da Pax Americana os outros cidadãos da Rússia, a grande maioria, a centena e tal de milhões que vivem do seu trabalho e que não parasitam o trabalho dos outros.

Estou em crer que a resposta seria muito semelhante à que deu Nikita Tretyakov, um ex-paraquedista russo de São Petersburgo que abraçou a profissão de jornalista na agência Regnum, quando abandonou as Forças Armadas. No seguimento da OME, passou a cobrir como repórter de guerra os combates na região da Donbass.

A um dado momento, como nos conta o jornalista Bruno Amaral de Carvalho, a função de jornalista (observador não participante) já não se coadunava com os sentimentos que Nikita Tretyakov nutria sobre o que observava e reportava. Por isso, comprou uma carrinha Boukhanka e passou a organizar missões de ajuda humanitária às populações que vivem isoladas no teatro de guerra da Donbass. Meses depois, sentiu que o seu trabalho de auxílio humanitário também já não era suficiente para satisfazer a sua vontade de ajudar a população martirizada da Donbass. E decidiu abandonar o jornalismo e alistar-se como voluntário nas Forças Armadas da Rússia.

Foi ferido quatro vezes em combate e foi na quarta vez que esteve hospitalizado que Bruno Amaral de Carvalho o entrevistou. São suas as palavras seguintes sobre a segunda guerra na Ucrânia (a que começou a 24 de Fevereiro de 2022):

«Podia ter sido um conflito regional agudo sobre um conjunto de questões muito particulares e específicas. E poderia ter sido resolvido rapidamente e de forma muito, muito menos dolorosa. Mas o Ocidente resolveu utilizar este conflito para desestabilizar a Rússia, talvez para a derrotar de uma vez por todas. E fizeram deste conflito uma questão global. Fizeram deste conflito um conflito sobre o futuro da Rússia. Fizeram deste conflito uma situação de vida ou de morte. E agora é a vez de nos defendermos de todo o armamento ocidental, da animosidade ocidental, da pressão ocidental, das sanções ocidentais, da guerra multilateral ocidental. Não estou a falar apenas de armamento, estou a falar de guerra de informação, guerra social, guerra económica. Por isso, infelizmente, não nos foi dada outra opção senão lutar até ao fim. Não fomos nós que escolhemos lutar contra o Ocidente. É o Ocidente que se recusa a ver a Rússia como algo mais do que o seu inimigo. E nós vamos actuar em conformidade» [24].

7. A ultima ratio regum  

A única coisa que ficou por dizer ‒ talvez porque Tretyakov nos quis poupar arrelias que nunca mais nos deixassem dormir sossegados, ou talvez porque conserve (como eu) uma réstia de esperança de que a Rússia não vai precisar de chegar a essa extremidade para se defender de um eventual ataque de uma coligação de Estados-membros da OTAN (/NATO) ‒ foi que “actuar em conformidade”, na doutrina militar e nuclear russa, implica empregar a ultima ratio regum (o armamento nuclear), se a existência da Rússia como país uno, multiétnico e soberano estiver gravemente ameaçada.  

Ultima ratio regum. Locução latina que Luís XIV de França mandou gravar nos seus canhões, como, por exemplo, o da foto, conservado no Museu de História Militar de Viena. Significa: [o uso da força militar é] “o último argumento do rei” [entenda-se, do poder de Estado]

E se isso acontecer, o mais certo é irmos todos para o maneta num ápice, incluindo o tenente-general Marco Serronha, Sebastião Bugalho, Marcelo Rebelo de Sousa, Luís Montenegro, Nuno de Melo [que é, para quem não saiba, presidente do CDS, ex-deputado europeu e, desde há um mês, ministro da Defesa de Portugal], Emmanuel Macron, Olaf Scholz, Rishi Sunak, Ursula von der Leyen, Jens Stoltenberg, Joseph Borrell e todos os demais grandes figurões deste mundo.

Os poucos que, porventura, escaparem à devastação inicial decorrente do calor abrasador e da tremenda onda de choque resultantes das explosões nucleares, por terem conseguido refugiar-se a tempo num bunker especialmente construído para abrigar a fina-flor do entulho (Biden, Blinken, Austin, Sullivan, Kirby, Nuland, etc.), morrerão, mais tarde ou mais cedo, sem terem conseguido pôr o nariz cá fora por causa do excesso de radiação, fumo e fuligem presentes na atmosfera. E a sua descendência, se a tiverem, acabará por morrer também dentro dessas masmorras de luxo devido aos efeitos devastadores do Inverno nuclear sobre a biosfera terrestre.

E foi este risonho destino que Zelensky nos veio aqui vender, em troca de o ajudarmos a perpetuar-se no poder até ao último sopro de vida dos seus compatriotas dos 25 aos 60 anos capazes de empunhar uma arma!

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P.S. [8-06-2024] Anteontem, dia 6 de Junho de 2024, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, deu uma extensa conferência de imprensa (3h12m) aos responsáveis máximos das agências noticiosas nacionais e estrangeiras acreditadas na Rússia, durante a qual respondeu longamente a todas as perguntas que lhe foram feitas.

Claro está, Putin é “infrequentável” (como disse há tempos uma conhecida comentadora portuguesa) para os governantes e opinadores do chamado “Ocidente alargado”. Por isso, a conferência de imprensa de Putin nunca será transmitida nos canais de televisão portugueses (RTP, SIC, TVI, CNN-Portugal, etc.), nem será transcrita nos jornais portugueses de grande circulação (Expresso, Público, Correio da Manhã, DN, JN, etc.). As próprias agências noticiosas estrangeiras presentes na conferência farão uma selecção de passagens que acharem mais polémicas e/ou resumos enviezados de tudo o que nela se passou para divulgação aos seus clientes. O essencial ficará por dizer ou será dito de uma maneira distorcida.

Mas quem tiver tempo e curiosidade e souber inglês, poderá ver essa conferência de imprensa na íntegra, aqui [https://odysee.com/@Overthrown:6/putin-newsagencies-meeting-full:c], com legendas em inglês. Vale bem a pena. Entre muitos outros motivos, serve para imaginarmos se Biden, ou Macron, ou Sunak, ou Scholz, ou Ursula von der Leyen, ou Borrell, ou Charles Michel, etc., teriam a preparação intelectual, a presença de espírito e a perspicácia necessárias para se atreverem a enfrentar uma prova semelhante. Em minha opinião, nem pensar. Comparados com Putin, os indivíduos supramencionados são todos eles verbos de encher. Independentemente de se gostar ou não do homem e de se concordar ou não com o que ele diz, faz ou fez, a verdade é que ele deixa a concorrência a grande distância, mesmo tendo em conta todas as suas ilusões, limitações e tergiversações no passado, oportunamente lembradas por Whale Project num dos seus comentários [Estátua de Sal, Junho 5, 2024 às 6:21 am]. Mas que cada um(a) veja, se quiser, a dita conferência de imprensa e tire as suas próprias conclusões neste particular.

Os pontos que quero salientar nessa conferência de imprensa são dois. O primeiro diz respeito às condições necessárias e suficientes para o uso de armamento nuclear previsto na doutrina militar e nuclear russa em relação com a autorização solicitada por Zelensky e o seu regime para usarem as armas de longo alcance (foguetes e mísseis) que os EUA, Reino Unido, França e Alemanha lhes forneceram para atingir alvos no interior da Rússia. A pergunta foi feita directamente a Putin e a resposta que ele deu confirma a análise que eu fiz nas secções 3 e 7 do meu artigo publicado mais acima.

Quem não tenha tempo ou paciência para ver a conferência toda, poderá ver o trecho relevante aqui [https://www.youtube.com/watch?v=-fJtzsKraLg], com legendas em inglês, começando no momento 6m 48s até ao minuto 9.

O segundo ponto a salientar tem a ver com o modo como Zelensky e o seu regime vão utilizar as armas de longo alcance que lhes foram fornecidas pelos seus patronos e tutores para atingir a Rússia em profundidade. Limitei-me a afirmar que essas armas (i) têm um alcance mais reduzido do que aquele que Zelensky apregoa, (ii) que elas são manejadas por pessoal especializado de várias nacionalidades, e (iii) que a Rússia procurará destruir umas e outro por todos os meios ao seu dispor, incluindo, como “ultima ratio regum”, armas nucleares ditas “tácticas”, se vir a sua existência gravemente ameaçada. Mas não desenvolvi o tema (ii) por falta de conhecimentos militares.

Afortunadamente, o coronel Carlos Matos Gomes veio, dois dias depois, colmatar essa lacuna e explicar-nos como é que a coisa funciona (ver “O GPS e a mentira política”, https://estatuadesal.com/ 2024/06/06/o-gps-e-a-mentira-politica/).

1.º) «Quer a guerra na Ucrânia quer a chacina de Gaza estão dependentes de um sistema de localização e comunicação de dados que é propriedade do governo dos Estados Unidos: o GPS. /…/ Sem o GPS fornecido pelos Estados Unidos nenhum míssil disparado da Ucrânia voa para qualquer alvo nem qualquer avião israelita descola para bombardear escolas e hospitais. O GPS é propriedade do Departamento de Defesa dos Estados Unido. Também debaixo do completo controlo da administração americana está a rede de satélites de espionagem / observação, e de comunicações, incluindo a rede Starlink de Elon Musk que fornece as comunicações na Ucrânia. Isto é, toda a informação de referenciação de alvos na Ucrânia, na Rússia e em Gaza está sob o controlo direto dos Estados Unidos»

2.º) «[A] rábula da limitação de emprego de armas ocidentais na Ucrânia. As armas fornecidas pelo Ocidente — sejam espanholas, alemãs, inglesas, polacas, lituanas — são armas americanas, que têm os chips americanos e que só podem ser empregues nas condições que os Estados Unidos, enquanto proprietários, autorizam».

Putin, na referida conferência de imprensa, corrobora a análise de Carlos Matos Gomes neste particular. Ver o trecho que vai do momento 0 minutos até ao momento 6 minutos e 48 segundos, do vídeo [https://www.youtube.com/watch?v=-fJtzsKraLg].

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Notas e Referências

[1] Elena Loginova, “Pandora Papers Reveal Offshore Holdings of Ukrainian President and his Inner Circle.” OCCRP/Slidstvo.Info, 3 October 2021; “Zelensky apanhado nos Pandora Papers com contas offshore.” Correio da Manhã, 6 de Agosto de 2022.

[2] Ver as secções “2.2. Kolomoysky, patrocinador de Zelensky; 2.2.1. Kolomoysky, patrocinador de Zelensky (II); 2.2.2. Kolomoysky, patrocinador de Zelensky (III)”, in José Catarino Soares, “Volodymyr Zelensky é «a figura do ano 2022» (para o Financial Times, a Time, etc.). É, de facto, mas pelas piores razões”. In blogue Tertúlia Orwelliana. [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2023/02/volodymyr-zelensky-e-figura-do-ano-2022.html]

[3]Court in Ukraine extends Ihor Kolomoisky’s custody remand until June 2”. Ukrinform, 29 May 2024.

[4] Digo “parecia incluir” porque, de facto, Zelensky nunca escreveu uma linha sobre este candente assunto que o comprometesse a respeitar os Acordos Minsk (a solução para a paz na Donbass). O que aconteceu foi outra coisa, bem diferente. Em Dezembro de 2018, Zelensky deu uma longa entrevista ao jornalista Dmitry Gordon, onde falou, pela primeira vez, da sua visão sobre como resolver o conflito armado em Donbass. Passo a citar o trecho mais relevante, para o meu presente propósito, da transcrição parcial e do resumo que encontrei em duas fontes distintas: respectivamente, Vladyslav Bulatchik, “Presidential election: Volodymyr Zelensky about war and peace” (OstroV, January 25, 2019) e “Zelenskyi on the war in Donbas: Although he is ready to negotiate with the bald devil” (Ukrainska Pravda, 26 December 2018).

«Segundo ele [Zelensky], será necessário conversar directamente com os russos («porque não faz sentido conversar com os dirigentes da República Popular de Donetsk [RPD] e da República Popular de Luhansk [RPL] que são fantoches dos russos»), sentar-se à mesa de negociações, oferecer as suas opções e ouvir os adversários. Depois de compilar a lista das exigências de uns e de outros, será possível encontrar «um meio termo» que satisfaça todos, acredita Zelensky. Segundo o artista [i.e. Zelensky], será então necessário divulgar o acordo à população e, em seguida, submetê-lo a um referendo ou a votação electrónica. Quase imediatamente após a sua declaração sobre a sua intenção de se candidatar à presidência, Volodymyr Zelensky dirigiu-se aos ucranianos com um pedido para o ajudarem na elaboração de um programa eleitoral. Pediu a todos que lhe dissessem por escrito quais eram os cinco principais problemas da Ucrânia a resolver. Uma semana depois, os resultados preliminares do inquérito, com base em mais de 120 mil respostas, foram publicados no canal oficial da “equipa de Zelensky” na rede social Telegram. A “Guerra no Leste da Ucrânia” apareceu como estando em primeiro lugar. Consequentemente, o tema da paz em Donbass pode ser uma das chaves na campanha eleitoral de Zelensky». A ideia de que Zelensky era favorável a uma solução pacífica da guerra na Donbass contra a RPD e a RPL vem do resultado dessa auscultação ao povo que Zelensky nunca se comprometeu a cumprir, salvo sob a forma caricata que expôs na entrevista: iniciar uma ronda negocial com a Rússia sobre a situação na Donbass… excluindo das negociações os seus principais interessados: a RPL e a RPD!

[5] Traduzi os Acordos de Minsk na íntegra e publiquei-os como anexos (3 e 4) do meu artigo “As guerras na Ucrânia eram evitáveis: os acordos de Minsk (2014-2015) e as propostas de tratado da Rússia (2021)”. In blogue Tertúlia Orwelliana [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2022/08/tanta-omissaodeliberada-tanta-mentira.html].

[6] Ver a secção 1 do meu livro, Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal (Editora Primeiro Capítulo, Agosto de 2023).

[7] Ver a secção 3 do meu artigo “Volodymyr Zelensky é «a figura do ano 2022» (para o Financial Times, a Time, etc.). É, de facto, mas pelas piores razões”. Blogue Tertúlia Orwelliana [https://tertulia orwelliana.blogspot.com/2023/02/volodymyr-zelensky-e-figura-do-ano-2022.html] e a secção 1 do meu livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal (Editora Primeiro Capítulo, Agosto de 2023).

[8] Em 31 de Dezembro de 2021, quando a guerra da Ucrânia contra a RPL e a RPD já ia no seu sétimo ano consecutivo, o número das suas vítimas já andava entre as 51.000 e 54.000. O número de mortos andava entre os 14.200 e 14.400, dos quais 3.404 civis, 6.500 membros das milícias populares de autodefesa da RPD e da RPL, 4.400 elementos das tropas ucranianas. O número de feridos andava entre os 37.000 e 39.000, dos quais 7.000 9.000 civis, 15.800 ‒16.200 membros das milícias da RPD e da RPL, 13.800 14.200 soldados das tropas ucranianas. Os números são do Alto-Comissariado dos Direitos Humanos da ONU.

[9] Cf. secção 1 do livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal (Editora Primeiro Capítulo, Agosto de 2023).

[10] Russell Bentley [“Texas”] desapareceu misteriosamente no dia 8 de Abril 2024 nos arrabaldes da cidade de Donetsk (RPD), numa zona onde decorriam combates entre tropas ucranianas e russas. O seu cadáver foi encontrado 11 dias depois. Desconhece-se as causas tanto do seu desaparecimento como da sua morte, que estão a ser investigadas pela polícia da RPD. 

[11] Bruno Amaral de Carvalho, A Guerra a Leste. Oito meses no Donbass (Editorial Caminho. Abril de 2024), pp. 157-58.

[#] José Catarino Soares, Quem anexou a Crimeia: a Rússia ou a Ucrânia?. In blogue Tertúlia Orwelliana [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2022/08/falsidades-e-mentiras-1.html]

[12] O número de estropiados de guerra foi divulgado recentemente pela mulher de Volodymyr Zelensky. Ver “Olena Zelenska at the meeting of the Barrier-Free Council: «Barrier-free means when it's convenient for everyone without exception»”. President of Ukraine, Official website. 29 March 2024. Olena Zelenska não clarifica o estatuto (civil ou militar) dos estropiados. Mas julgo que podemos inferir com segurança que se compõem maioritariamente de militares, visto que, se assim não fôsse, o número de feridos civis contabilizado pelas agências da ONU (21.946) seria muitíssimo superior.

[13] Os números são da UN Human Rights Monitoring Mission in Ukraine (HRMMU) e reportam-se a Abril de 2024.

[14] Analisei exaustivamente esse processo numa série de artigos intitulada Em 9 de Abril de 2022 Zelensky preferiu a guerra à paz pelos motivos mais mesquinhos”, in Estátua de Sal

1. https://estatuadesal.com/2023/12/12/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos/

2.https://estatuadesal.com/2024/02/12/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos-parte-ii/ 

3. https://estatuadesal.com/2024/02/13/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos-parte-iii/

4. https://estatuadesal.com/2024/02/17/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos-parte-iv/

5.https://estatuadesal.com/2024/02/21/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos-parte-v-e-ultima/

[15] Traduzi na íntegra estas duas propostas da Rússia e publiquei-as como anexos (1 e 2) do meu artigo “As guerras na Ucrânia eram evitáveis: os acordos de Minsk (2014-2015) e as propostas de tratado da Rússia (2021)”. In blogue Tertúlia Orwelliana [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2022/ 08/tanta-omissaodeliberada-tanta-mentira.html].

[16] Mas ai de quem se atreva a dizer que o rei vai nu, como fizeram, por exemplo, dois deputados independentes do Verkhovna Rada (parlamento ucraniano): Dmytro Razumkov (ex-presidente desse parlamento) e Alexander Dubinsky, quando afirmaram que o mandato presidencial de Zelensky tinha terminado.  Foram imediatamente acusados de difundir propaganda russa e de nada lhes valeu terem sido ambos membros do partido O Servente do Povo de Volodymyr Zelensky. Dubinsky, por exemplo, escreveu no seu canal do Telegram: «Os poderes do Presidente da Ucrânia expiram na noite de 20 para 21 de Maio de 2024 e não podem ser prolongados. Depois de 20 de Maio, a Rada será legítima, mas o Presidente não será». Isto porque a Constituição ucraniana estipula que a autoridade do parlamento deste país deve ser prorrogada até ao termo da lei marcial. No entanto, a Constituição não contém disposições explícitas semelhantes no que respeita às eleições presidenciais. Dubinsky argumenta que a única situação em que o Presidente pode continuar a desempenhar as suas funções após o termo do seu mandato é o período até à tomada de posse do presidente eleito. Mas isso exige a realização de eleições e a eleição de um novo presidente. Entretanto, sob a lei marcial [o equivalente em Portugal ao “Estado de sítio”], que foi mais uma vez prorrogada na Ucrânia, é impossível realizar eleições. Dubinsky encontra-se actualmente num centro de detenção preventiva. É acusado de traição de Estado por envolvimento numa campanha mediática sobre as polémicas gravações áudio de uma conversa entre Joe Biden, então vice-presidente dos EUA, e Petro Poroshenko, então presidente da Ucrânia, confirmando a interferência de Washington nos assuntos internos da Ucrânia (“Zelensky's presidential powers to expire May 21”. Tass, February 13, 2024; “Ukrainian president mulls seeking legal advice from top court as his 5-year term expires on May 20”. Anadolu Agensi, 27 February 2024; “Zelensky’s term would have expired this month, but he’s staying. Russia wants to use it”. The Kyiv Independent, May 6, 2024).

[17] “Officials appointed by Zelensky no longer legitimate since May 21”. Tass, May 30, 2024.

[18] Li depois, na imprensa, que 100 milhões de euros (dos 126 milhões) de ajuda militar à Ucrânia já tinham sido gastos pelo governo anterior (de António Costa) no programa europeu de compra conjunta de munições promovido pela Chéquia. “Governo anuncia 126M€ para a Ucrânia. Mas 100M€ já foram pagos por António Costa”. Diário de Notícias, 28 de Maio de 2024.

[19] Pax Americana é uma pomposa locução latina que os políticos, geopolitólogos, gestores empresariais, investidores e jornalistas do Blob americano gostam de usar para dizer Paz Americana.

[20] Cf. Barbara Salazar Torreon & Sofia Plagakis, “Instances of Use of United States Armed Forces Abroad, 1798-2022”. Congressional Research Service, March 8, 2022.

[21] Infographic: US military presence around the world”. Al-Jazeera. 10 September 2021.

[22] Uma sondagem de opinião realizada pela Aximage, entre 17 e 22 de Maio de 2024, para DN/JN/TSF, sobre temas da actualidade política, revelou o seguinte: uma grande maioria dos portugueses concorda que (i) se deve entregar mais poderes à União Europeia, (ii) quer uma força militar europeia de reacção rápida, (iii) defende a criação de um fundo comum que financie o investimento nas indústrias de defesa e (iv) aprova o fim da regra da unanimidade no Conselho Europeu — ou seja, o fim da possibilidade de qualquer Estado-membro da UE exercer um “direito  de veto” sobre decisões de que discorde (cf. “Portugueses querem mais poder para a UE mas hesitam sobre um Estado federal”. Diário de Notícias, 3 de Junho 2024.

[23] Colhi as informações que reportei sobre estes indivíduos no artigo de Lumena Raposo, “Quem são os oligarcas russos mais ricos que o Ocidente quer caçar”. CNN Portugal, 6 de Março de 2022.

[24] Bruno Amaral de Carvalho, A Guerra a Leste. Oito meses no Donbass (Editorial Caminho. Abril de 2024), pp.163-64.

 

10 abril, 2024

 Temas 2 e 3

A única questão importante da guerra na Ucrânia que continua em aberto

 

José Catarino Soares

 

1. A névoa não dura sempre

A segunda guerra na Ucrânia (a que começou em 24 de Fevereiro de 2022) trouxe à luz do dia vários factos da maior importância para a compreensão (i) do modo como está estruturado o “Ocidente alargado[1] e (ii) da natureza da sua relação com os demais países do mundo, que são a grande maioria.

Esses factos estavam escondidos do grande público pela espessa névoa artificial de imagens, sons, acções e palavras criada pela “comunicação estratégica[2] para alcançar os seus objectivos, frequentemente inconfessáveis.  

Lisboa. Cristo-rei e ponte 25 de Abril envoltos em névoa. Fonte: Pinterest.

O desenrolar da guerra na Ucrânia a partir do momento (9 de Abril de 2022) em que se converteu numa guerra feroz e sem quartel entre a Rússia e o “Ocidente alargado”, travada por interposta Ucrânia dissipou, aqui e ali, essa névoa que encobria as articulações fundamentais do “Ocidente alargado”. Pelas brechas assim abertas, o grande público pôde, então, aperceber-se de certos factos de primeira grandeza mantidos até então bem longe da sua vista.

2. Obediência, com temor e respeito

A lista completa desses factos é demasiadamente grande para poder ser apresentada aqui. Vou limitar-me a indicar dois deles, sem os aprofundar. Ambos fazem lembrar uma passagem da Carta [de São Paulo] aos Efésios [3]:

«Servos, obedecei aos vossos senhores temporais com temor e respeito, na sinceridade do vosso coração» /…/

Um desses factos é o completo alinhamento que a grande maioria dos governos (tanto de “direita” como de “esquerda”) dos Estados-membros da União Europeia (incluindo os mais poderosos: Alemanha, França e Itália), mas também do Reino Unido, da Noruega e até ‒pasme-se ‒ da neutral Suíça, com os interesses e a política belicista dos EUA contra a Rússia, desenvolvida por interposta Ucrânia [4].

É uma política que prejudica profundamente os interesses e o bem-estar dos povos europeus. Mas é também uma política, note-se, que prejudica muito seriamente e este é o aspecto susceptível de causar perplexidade, como veremos dentro de alguns instantes os lucros das empresas e as contas bancárias dos oligarcas que controlam a parte do leão da indústria transformadora na Europa. Naturalmente, excluo desta observação os fabricantes de armas de guerra: Rheinmetall e quejandos.

Esse completo alinhamento belicista entre os governos dos Estados europeus e o governo dos EUA contra um alegado inimigo comum (ainda por cima longínquo para muitos deles) teve precedentes já no século XXI — por exemplo, aquando da invasão do Afeganistão para derrubar o regime dos talibãs, em 2001. Mas teve também um grande revés.  Aquando da invasão do Iraque pelos EUA, em 2003, para derrubar Sadam Hussein, a França (representada pelo seu presidente de então, Jacques Chirac) e a Alemanha (representada pelo seu chanceler de então, Gerhard Schröeder), opuseram-se, juntamente com a Rússia (representada pelo seu então novo presidente, Vladimir Putin), a essa invasão, sem nunca claudicarem.

O “Blob americano [5] não se esqueceu dessa dissidência, que encarou com uma afronta intolerável à hegemonia dos EUA. Condoleezza Rice, conselheira para a Segurança Nacional e, mais tarde, ministra dos Negócios Estrangeiros do presidente Bush (filho), anunciou logo a seguir:  

«É preciso punir a França, ignorar a Alemanha e perdoar a Rússia» [6].

Desde então, ficámos a saber que a Rússia não foi nem nunca será “perdoada”; que a França não foi (com Sarkozy e Hollande) nem será (com Macron) “punida” [“para quê punir quem nos apoia?” terão raciocinado os sucessores de Condoleezza Rice] e que a Alemanha foi tudo menos “ignorada” — como veremos mais adiante.

O outro facto, ainda mais espantoso, foi aquele a que aludi mais acima indirectamente. Refiro-me ao completo alinhamento dos proprietários e gestores empresariais das indústrias de transformação dos países europeus (incluindo, em primeiro lugar, as da Alemanha, o Estado mais poderoso da União Europeia) pelos interesses e objectivos do complexo militar-industrial e do Blob dos EUA, oficialmente representados pelo governo de Joe Biden.

O exemplo mais acabado da subserviência total dos oligarcas do capitalismo industrial no âmbito europeu relativamente ao governo americano e aos interesses que ele representa é o completo silêncio e a completa submissão dos proprietários e gestores das indústrias da Alemanha mais dependentes das importações de gás natural russo indústria química, siderurgia, metalurgia, automóvel, máquinas-ferramenta, papel, cerâmica perante a destruição do gasoduto Nord Stream 2 (duas condutas, ambas destruídas) e do gasoduto Nord Stream 1 (duas condutas, uma destruída) pelo governo dos EUA [7].

Agosto de 2022. O chanceler Olaf Scholz posa à frente de uma turbina destinada ao funcionamento do gasoduto Nord Stream 1. Dois meses depois, o governo dos EUA destruiria com explosivos uma das duas condutas do Nord Stream 1 e as duas condutas do gasoduto Nord Stream 2Foto AFP – Bernd Thissen /DPA /dpa Picture-Alliance via AFP.


Ora, para se entender o que tem de espantoso esta atitude de submissão do grande capital alemão aos ditames do governo, do Blob e do complexo militar-industrial dos EUA é preciso ter em conta o seguinte.

A indústria alemã, a mais desenvolvida da Europa aquém da Rússia, representava, em 2022, 29,3% do valor acrescentado total, 19% dos postos de trabalho directos e cerca de 50% do consumo total de energia desse país.  A lucratividade do sector industrial da Alemanha assentou, em grande medida, nos últimos 30 anos, sobre o aprovisionamento de petróleo russo, carvão russo e, sobretudo, a partir de 2012, de gás natural russo, abundantes e baratos. Em 2022, a Alemanha importava da Rússia 55% do seu gás natural e o gás natural constituía mais de 60% do consumo de energia na Alemanha.

Na decorrência das sanções económicas aplicadas à Rússia pela União Europeia (UE), o governo alemão teve uma epifania. “Descobriu”, subitamente, que a prosperidade e o conforto material da Alemanha dependiam, em grande medida, do gás natural russo. E “descobriu” também que isso era intolerável aos olhos do seu patrono americano, tal como este, pela boca do próprio Joe Biden, fez questão de deixar ficar bem claro, ao avisar que iria destruir e, depois, ao destruir mesmo, com potentes cargas explosivas, o gasoduto Nord Stream 2 e danificar o gasoduto Nord Stream 1.

Perante este acto de guerra do seu patrono na OTAN(/NATO), tão insólito quanto brutal, o governo alemão fez então o que não lembraria a ninguém. Em vez de denunciar este acto de guerra furtivo e traiçoeiro, pedir a sua condenação na Assembleia Geral da ONU, exigir uma indemnização aos EUA pelos estragos e prejuízos causados e apresentar um caso contencioso contra os EUA no Tribunal Internacional de Justiça, decidiu fingir que nada tinha ocorrido. Em seguida, tomou a decisão “heróica” de substituir a dependência relativamente ao gás natural russo pela dependência relativamente ao gás natural importado da Noruega e ao gás natural liquefeito importado dos EUA — mas a preços muito mais elevados!  

O preço do gás natural na Alemanha é agora cerca de duas vezes mais alto do que em 2021, prejudicando as empresas que necessitam dele para, por exemplo, manter vidro fundido ou metal fundido 24 horas por dia, e para a fabricação de revestimentos de cerâmica, de papel e de metal utilizados em edifícios e automóveis.

Outro exemplo do efeito boomerang das sanções económicas contra a Rússia é o da indústria química. Trata-se de uma indústria que era também uma grande consumidora de gás natural russo, não só como fonte de energia fabril, mas também

― (i) como matéria-prima ‒ por exemplo, na produção de amoníaco, ingrediente de base no fabrico de adubos ‒

e

― (ii) como combustível de veículos automóveis nos carros com motor de combustão a amoníaco, que se presume poderem garantir uma redução de 90% nas emissões de monóxido de carbono e de dióxido de carbono, comparativamente com motores a gasolina ou gasóleo.

Esta indústria, onde avultam empresas gigantes (BASF, Bayer, Covestro, Evonik, etc.), teve ano passado uma queda de 8% da sua produção e de 12% dos seus investimentos produtivos. O fecho de unidades de produção desta indústria e a deslocalização de outras para a China e para os EUA começaram em 2023.  

Fábrica do grupo químico BASF, em Ludwigschafen, Alemanha. Em Julho de 2023, este grupo empresarial estava a construir um complexo industrial petroquímico de 10 mil milhões de euros em Zhanjiang, China. Razão? O encarecimento do preço do gás natural na Alemanha em consequência da paragem da sua importação da Rússia. Foto: Ben Kilb/FP.

Por estas causas (e outras, menos determinantes, que não vêm agora ao caso), a economia alemã fechou o ano de 2023 em recessão, depois do PIB (Produto Interno Bruto) alemão ter encolhido 0,3%. O ano de 2024 apresenta-se também sombrio.  O ifoInstituto Leibniz para a Investigação Económica (sediado em Munique) previu que a actividade económica continuará a diminuir neste primeiro semestre de 2024 e que o PIB cairá para 0,2%.

«A economia alemã está num impasse. O estado de espírito das empresas e das famílias é mau e a incerteza é elevada» — afirmou o Instituto ifo [Al. “Information und Forschung”] nas suas previsões da primavera.

Nada disto, porém, impede o governo alemão de continuar a ajudar o  governo ucraniano com tudo o que pode carros de combate Leopard; veículos blindados Marder; sistemas de defesa aérea Skynex; mísseis para os sistemas antiaéreos Iris-T SLM ou Patriot; radares TRML-4D; sistemas de detecção de “drones” [aeronaves não tripuladas]; sistemas antiaéreos autopropulsados Gepard; carregadores de munições de artilharia de vários calibres, etc. a fim de que ele possa prosseguir a guerra contra a Rússia… até ao último soldado ucraniano.    

«Em 2023, as exportações de armas da Alemanha atingiram um recorde de 13,35 mil milhões de dólares (12,19 mil milhões de euros, à taxa de câmbio atual). A Ucrânia foi o principal destinatário de armas da Alemanha, no total 4,82 mil milhões de dólares (4,4 mil milhões de euros)» (Expresso, 4 de Janeiro de 2024).

3. Uma questão crucial ainda em aberto na guerra na Ucrânia

Por estas razões, o contraste não poderia ser maior entre a obediência reverencial das classes dirigentes europeias às iniciativas e aos planos belicistas do seu patrono do outro lado do Atlântico, e o desassombro de um magnata dessas bandas, Elon Musk, que faz questão de pensar geopoliticamente pela sua própria cabeça e dizer o que pensa sem temer represálias.

São suas estas sábias palavras:

«Foi um trágico desperdício de vidas para a Ucrânia atacar um exército maior que tinha defesa em profundidade, campos minados e artilharia mais forte, quando a Ucrânia não tinha blindagem nem superioridade aérea! Qualquer idiota poderia ter previsto isso.

A minha recomendação, há um ano, era que a Ucrânia se entrincheirasse e aplicasse todos os recursos na defesa. Mesmo assim, é difícil manter um território que não tem fortes barreiras naturais.

Não há qualquer hipótese de a Rússia tomar toda a Ucrânia, uma vez que a resistência local seria extrema na parte ocidental, mas a Rússia ganhará certamente mais terreno do que tem actualmente.

Quanto mais tempo durar a guerra, mais território a Rússia ganhará até atingir o Dniepre, que é difícil de ultrapassar. No entanto, se a guerra durar o tempo suficiente, Odessa também cairá.

Se a Ucrânia perde ou não todo o acesso ao Mar Negro é, a meu ver, a verdadeira questão que resta. Recomendo uma solução negociada antes que isso aconteça» (Elon Musk, X, 30 de Março de 2024). [realce a traço grosso acrescentado ao original]

Creio que qualquer analista sério concordará com este diagnóstico. Acrescentarei apenas o seguinte, para prevenir possíveis mal-entendidos.

A questão (ainda em aberto) de saber se a Rússia ocupará ou não os oblasti de Micolaíve e Odessa, fechando desse modo o acesso da Ucrânia ao Mar Negro, não tem uma motivação (de conquista) territorial, mas de segurança. A ocupação desses dois oblasti ‒ assim como, na direcção oposta, do oblast de Carcóvia ‒ só teria (/terá) racionalidade para a Rússia se fosse (/for) considerada um meio indispensável de aumentar a profundidade estratégica da Crimeia e da Donbass.

Este é, porém, um assunto que só analistas com uma formação militar muito avançada (não é o meu caso) e, também, naturalmente, possuidores de grande competência e argúcia, poderão deslindar e desenvolver cabalmente. Há alguns em Portugal que reunem esses requisitos, além, bem entendido, da indispensável integridade intelectual. Esperemos que nos brindem com uma análise aprofundada desta questão.

4. Forças e fraqueza do plano de paz de Musk

Não é a primeira vez que Musk se pronuncia sobre a guerra na Ucrânia de um modo certeiro e completamente em contracorrente não só daquele que prevalece entre os membros da sua classe social (a dos grandes capitalistas e dos gestores empresariais ao seu serviço) aquém e além Atlântico, mas também daquele que prevalece no governo e no Blob dos EUA, no Conselho Europeu, na Comissão Europeia e na OTAN (/NATO).

No dia 3 de Outubro de 2022, Elon Musk publicou a seguinte plano de paz no Twitter (hoje X):

A Paz entre a Ucrânia e a Rússia [passa por, n.e.]:

1) ― Repetir as eleições nas regiões anexadas [pela Rússia: Lugansk, Donetsk, Quérson, Zaporíjia, n.e.] sob a supervisão da ONU. A Rússia abandona o país se essa for a vontade do povo.  

2) ― A Crimeia faz formalmente parte da Rússia, como tem sido o caso desde 1783 (até ao erro de Khrushchev).

3) ― O abastecimento de água à Crimeia é assegurado.

4) ― A Ucrânia mantém-se neutral.

A numeração das propostas foi acrescentada por mim (para facilitar a remissão ao seu teor), assim como as notas entre colchetes [n.e.= nota editorial], para clarificar o seu teor.

O artigo 1) do plano de paz entre a Ucrânia e a Rússia proposto por Musk contém um erro, que tem todo o ar de ser um lapsus linguae. Não se trataria de “repetir eleições”, mas “referendos”.

A este respeito convém recordar o seguinte. Nos dias 23 a 27 de Setembro de 2022, foram realizados referendos nos quatro oblasti ocupados pelas tropas russas. Como esses oblasti não tinham todos o mesmo estatuto político-jurídico aos olhos da Federação Russa, a pergunta feita em cada um deles não foi exactamente a mesma, nem as línguas utilizadas para as formular foram exactamente as mesmas.

Os referendos realizados na República Popular de Donetsk (RPD) e na República Popular de Lugansk (RPL), que se separaram da Ucrânia em Maio de 2014, formularam a seguinte pergunta, em russo, aos votantes:

 ― «Aprova que a República Popular de [Donetsk ou Lugansk, consoante o caso, n.e.] seja incorporada na Federação Russa com os direitos de sujeito da Federação Russa?»

Os referendos realizados nos oblasti de Quérson e Zaporíjia, que estavam incorporados na Ucrânia à data de 24 de Fevereiro de 2022, formularam a seguinte pergunta, em russo e em ucraniano, aos votantes:

― «Aprova a saída do oblast de [Quérson ou Zaporíjia, consoante o caso, n.e.] da Ucrânia, a reforma do oblast de [Quérson ou Zaporíjia] num Estado autónomo e a sua incorporação na Federação Russa, com os direitos de sujeito da Federação Russa?».

A resposta «Sim» a estas perguntas foi largamente maioritária [8]. Isso só surpreenderá quem desconheça que (i) a população destes territórios é maioritariamente russa, russófona e russófila [9]; que (ii) foi privada dos seus direitos linguísticos pelo regime ucraniano nascido do golpe de Estado de Maidan (Fevereiro de 2014) [10], e que (iii) foi militarmente atacada, bombardeada e martirizada pelo mesmo regime durante 8 anos (2014-2022) antes, e mesmo depois, do começo da denominada “Operação Militar Especial” da Rússia [11].  

Feita a correcção (referendos e não eleições), parece claro que o artigo 1) do plano de paz proposto por Musk já tinha ultrapassado há muito tempo o seu prazo de validade quando foi apresentado. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, chamou a atenção para esse anacronismo:

«É muito positivo que uma pessoa como Elon Musk esteja a tentar encontrar uma solução pacífica. Todavia, «no que respeita aos referendos, as pessoas expressaram a sua opinião e não poderá haver mais nada» [12].

É necessário acrescentar que um referendo que fosse convocado para averiguar se a população da RPD, da RPL, de Quérson e de Zaporíjia preferia um processo de autodeterminação conducente:

A) à sua permanência na Ucrânia com um estatuto autonómico semelhante ao do Tirol do Sul (em relação à Itália)

ou

B) à sua incorporação na Federação Russa com os direitos de sujeito autónomo da Federação Russa

teria sido possível de realizar logo no início da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, e nada obstaria a que fosse supervisionado pela ONU.

A prova disso é que a possibilidade A) foi um dos artigos explicitamente contemplado e acordado nas negociações que culminaram no acordo de paz celebrado entre a Ucrânia e a Rússia no fim de Março de 2022, em Istambul.

Sabemos que Zelensky rompeu esse acordo em 9 de Abril de 2022 e sabemos as razões por que o fez. Examinei pormenorizadamente esta questão noutro lugar, pelo que não é necessário voltar aqui, outra vez, ao assunto [13].  Por conseguinte, em 3 de Outubro de 2022, a proposta contida no artigo 1) do plano de paz apresentado por Musk já tinha sido irreversivelmente ultrapassada pela evolução da guerra e da situação política no terreno nos 6 meses anteriores.

Quanto aos demais artigos (2, 3, 4) do plano de paz proposto por Elon Musk, eles continuam actuais. Não haverá paz na Ucrânia enquanto não forem cumpridos.

5. O “Ocidente alargado” contra-ataca

Elon Musk é um cidadão americano, um gestor industrial bem-sucedido e um prolífico inventor. É também um magnata capitalista, um oligarca com uma fortuna avaliada de 198,2 mil milhões de dólares, o que faz dele, em 2024, o segundo homem mais rico do mundo, segundo a Forbes.

2015. Elon Musk apresenta um dos carros eléctricos Tesla que concebeu. Foto Justin Sullivan
Getty Images News via Getty Image

Musk não faz segredo das suas simpatias políticas. Afirmou que votou em Hillary Clinton nas eleições presidenciais norte-americanas de 2016 e que votou em Joe Biden nas eleições presidenciais norte-americanas de 2020. 

Sobre os EUA, o seu país adoptivo (Musk nasceu e cresceu na África do Sul), Musk declarou:

«Penso que os Estados Unidos são o melhor país que já existiu na Terra [!]. E penso que será difícil argumentar, em bases objectivas, que não o são. Penso que os factos apontam realmente nessa direcção. É a maior força em prol do bem de todos os países que já existiram [!]. Não haveria democracia no mundo se não fossem os Estados Unidos [!]» [14].

Por último, cabe lembrar que a Ucrânia tem estado totalmente dependente do serviço de Internet por satélite Starlink ‒ cujo proprietário é Elon Musk ‒ para as suas comunicações desde a invasão russa em 24 de Fevereiro de 2022.

Em suma, sociologicamente falando, Elon Musk é o exemplo mais perfeito do “sonho americano” na sua versão mais cor-de-rosa e mais exaltante para os doutrinadores e praticantes da comunicação estratégica dos EUA.

Assim sendo, os muitos e extraordinários predicados de Musk deveriam,  em bom rigor, garantir-lhe ficar ao abrigo de qualquer suspeita de querer ajudar a Rússia a conquistar ou destruir a Ucrânia. Desengane-se, porém, quem assim pensar!

O plano que Musk propôs, desinteresseiramente, em 3 de Outubro de 2022, para pôr fim à guerra entre a Rússia e Ucrânia e estabelecer uma paz justa e duradoura entre esses dois países, assim como a advertência assustadora (mas realista) que fez em 30 de Março de 2024 ‒ sobre a ameaça que paira sobre a Ucrânia de perder o acesso ao Mar Negro se persistir no seu iníquo [15], inútil, alucinado e suicidário esforço de guerra ‒ valeram ao seu autor não um agradecimento e louvor da parte dos dirigentes desse Estado e dos Estados seus apoiantes (como seria de esperar se estivessem de boa-fé), mas, pelo contrário, um cerrado e venenoso ataque. Eis alguns exemplos.

A senhora Fiona Hill, ex-directora para a Europa e a Rússia do Conselho de Segurança Nacional do presidente Donald Trump e um proeminente membro do Blob, veio imediatamente declarar que o plano de paz proposto por Musk tinha sido, de facto, redigido por Putin para ser transmitido por Musk, uma mera correia de transmissão ao seu serviço [16]. Musk seria, pois, um agente secreto de Putin! 

Ian Bremmer  professor universitário, fundador e presidente do Eurasia Group e também um proeminente membro do Blob  acusou Musk de ter falado com Putin antes de ter apresentado o seu plano, insinuando que o plano só foi publicado porque teria obtido a benção prévia de Putin! Musk desmentiu imediatamente essa atoarda no Tweeter

«Não, não é verdade [que tenha falado com Putin sobre o plano de paz para a Ucrânia]. Falei com Putin apenas uma vez e isso foi há cerca de 18 meses. O assunto foi o espaço». 

O desmentido foi em vão, porque Bremmer, em vez de se retractar, reiterou a sua acusação.  

Por sua vez, o presidente Zelensky veio a público afirmar que havia dois Musks: um que apoiava a Ucrânia [com o seu sistema Starlink] e outro que apoiava a Rússia [com o seu plano de paz], para, de seguida, perguntar sarcasticamente aos seus leitores do Tweet/X: “qual é o Musk de que gostam mais?”.

Musk respondeu a Zelensky:

«O custo suportado pela SpaceX para activar e apoiar a Starlink na Ucrânia é de cerca de 80 milhões de dólares até agora. O nosso apoio à Rússia é de 0 $. Obviamente, somos a favor da Ucrânia».

«Continuo a apoiar fortemente a Ucrânia, mas estou convencido de que uma escalada maciça da guerra causará grandes danos à Ucrânia e possivelmente ao mundo».

Mykhaylo Podolyak, assessor do presidente Zelensky, sugeriu “um plano melhor”: 1) a Crimeia seria reanexada pela Ucrânia; 2) a Rússia seria desmilitarizada e desnuclearizada [por quem, Podolyak não disse, mas depreende-se que seriam os EUA com a ajuda de todos os outros Estados-membros da OTAN(/NATO), dando assim início à terceira e derradeira guerra mundial] e 3) os “criminosos de guerra” seriam julgados num tribunal internacional [quem seriam os réus, Podolyak não disse, mas depreende-se que seriam seleccionados exclusivamente no lado russo].

Musk respondeu-lhe no Tweeter (/X):

«A Rússia está a fazer uma mobilização parcial. Se a Crimeia estiver em risco, os russos vão mobilizar-se para uma guerra total. A mortandade será devastadora em ambos os lados da contenda. A Rússia tem (mais de) 3 vezes a população da Ucrânia, por isso a vitória da Ucrânia é improvável numa guerra total. Se te preocupas com o povo da Ucrânia, procura a paz».

O desembaraçado e desbocado embaixador da Ucrânia na Alemanha, Andriy Melnyk, escreveu com a sua proverbial elegância:

«Vai à merda, é a minha muito diplomática réplica para ti, Elon Musk»

Musk limitou-se a retorquir que não lhe importava que o seu plano de paz não fosse do agrado de todos, argumentando que só se importava

«com o facto de milhões de pessoas poderem morrer desnecessariamente por um resultado essencialmente idêntico. Vamos então tentar isto: a vontade das pessoas que vivem na Donbass e na Crimeia deve decidir se fazem parte da Rússia ou da Ucrânia»[17].

Tudo em vão, naturalmente. Os argumentos de Musk só serviram para ele próprio, apesar de todo o seu enormíssimo poder económico e mediático (ele é dono não só do Starlink, mas também do X), ser incluído definitivamente na lista dos “putinistas”, “agentes putinescos do Kremlin”, “idiotas úteis a Putin”.

6. Mudam-se os tempos…

Estes e outros mimos lançados pelo Blob, pelas oligarquias dirigentes do “Ocidente alargado” e pelos comentadores do sistema mediático dominante de comunicação social (estações de rádio e televisão de grande audiência e jornais e revistas de grande circulação) têm uma função puramente intimidatória: amedrontar e silenciar toda e qualquer pessoa que se recuse a trocar o apego aos factos (todos os factos pertinentes e não apenas alguns) e o apreço pela verdade pelo inebriante alucinogénio da comunicação estratégica.  

É uma função cada vez mais difícil de realizar. Um minúsculo (mas nem por isso menos informativo) sintoma dessa dificuldade foi a idêntica objecção, pretensamente irónica, que dois apresentadores diferentes da CNN-Portugal formularam, em dois programas diferentes, quando foram confrontados com a advertência de Musk que traduzi e reproduzi mais acima (cf. secção 3):

«Que eu saiba, Elon Musk não é um especialista em relações internacionais…»

Subentendido:

Não vamos, por isso, perder tempo com o que esse indivíduo diz sobre a guerra na Ucrânia. Temos mais que fazer”.

Como se a grande maioria dos alegados “especialistas” que a CNN-Portugal contratou como comentadores da guerra na Ucrânia (e do genocídio em Gaza) não debitassem, todos os dias, um chorrilho de inanidades, meias-verdades, falsidades e disparates sobre o assunto!   

Seja como for, há um pequeno progresso a registar. Há um ano, os mesmos apresentadores teriam, provavelmente, invocado as calúnias da senhora Fiona Hill, os sarcasmos de Zelensky ou as fanfarronadas do senhor Mykhaylo Podolyak na esperança de assestar um murro imaginário em Musk que o pusesse K.O. à frente de milhões de anónimos e mudos telespectadores.

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Notas e referências

[1] Ocidente alargado” é uma expressão cara a Zbigniew Brzezinski (1928-2017) ‒ um dos mais cínicos ideólogos da supremacia dos EUA sobre todos os outros países do mundo ‒ que a empregava para designar o conjunto formado pelos EUA e os seus aliados/clientes na América do Norte [Canadá], Europa [os Estados-membros da OTAN e da UE], Ásia [Japão, Coreia do Sul] e Australásia [Austrália e Nova Zelândia]. Emprego aqui a palavra “clientes” num sentido afim daquele que tinha na Roma antiga. Os “clientes” constituíam uma classe constituída por plebeus, escravos libertos, estrangeiros ou filhos ilegítimos que se associavam, de forma subalterna, aos patrícios, a classe romana superior, prestando-lhes diversos serviços em troca de auxílio económico e protecção social e militar.

[2] Por “comunicação estratégica”, no âmbito geopolítico e geoeconómico, deve entender-se, segundo os seus praticantes, «os esforços concentrados do governo dos Estados Unidos para compreender e envolver audiências-chave para criar, reforçar ou preservar condições favoráveis ao avanço dos interesses, políticas e objectivos do governo dos Estados Unidos através da utilização de programas coordenados, planos, temas, mensagens e produtos sincronizados com as acções de todos os instrumentos do poder nacional» (Joint Publication 1-02, Department of Defense Dictionary of Military and Associated Terms. Washington D.C., 8 November 2010 [as amended through 15 February 2016]).

[3] “Carta aos Efésios”, 6.5. In Bíblia Sagrada. Verbo. 1982, p.1329.

[4] As únicas excepções são as do governo de Viktor Orban (Hungria) e do governo de Robert Fico (Eslováquia) — este último acaba de sair reforçado com a eleição do seu aliado, Peter Pellegrini, para presidente da República. Estes dois países são ambos países encravados, sem saídas para os mares e oceanos que banham a Europa. São também, há muitas décadas, altamente dependentes do petróleo e do gás natural russo que lhes chega através de  um oleoduto (Druzhba, ou oleoduto da Amizade) e de um gasoduto que atravessam a Ucrânia e que continuam a funcionar com o acordo do governo da Ucrânia (!), o qual continua a cobrar e receber da Rússia as portagens que foram contratualizadas antes da guerra para o trânsito desses hidrocarbonetos. Sem o petróleo e o gás russos, abundantes e baratos, a Eslováquia e a Hungria ficariam energeticamente estranguladas. Por isso, Orban (um governante dito de “direita”) e Fico (um governante dito de “esquerda”) fizeram a única escolha racional e correcta, do ponto de vista dos interesses dos seus respectivos países e povos: continuar a importar o petróleo (e o gás natural) russo e manter boas relações com a Rússia e o seu presidente. São decisões “soberanistas” que os demais membros da UE ‒ geopolítica e geoeconomicamente alinhados com o Blob americano ‒ consideram abomináveis e que tudo farão para reverter.

[5] Blob é a denominação coloquial em Inglês do physarum polycephalum, que literalmente quer dizer “bolor de várias cabeças”. Esta biospécie é constituída por organismos unicelulares do grupo dos micomixetos, ou bolor limoso, uma subcategoria da família das amibas. Apesar de não ter um sistema nervoso central, o blob é capaz de se locomover (através de pseudópodes), aprender com as suas experiências e mudar o seu comportamento em conformidade. Por exemplo, quando se sente ameaçado entra em estado de hibernação e “seca”, para ressuscitar em condições ambientais mais favoráveis. O blob reproduz-se através de esporos que se transformam em novos blobs. Quando dois blobs se encontra fundem-se um no outro num blob maior que, deste modo, pode atingir dez metros de comprimento.

O termo blob tem a sua origem no título de um filme de ficção científica (The Blob), estreado em 1958, que tinha como protagonista principal Steve McQueen. O filme narrava a invasão da Terra por um organismo extraterrestre que devora tudo o que encontra pela frente numa pequena cidade dos EUA.

Em 2016, Ben Rhodes ‒ um assessor do presidente Barak Obama (o seu guru para a Segurança Nacional) e o autor de muitos dos seus discursos ‒ empregou o termo Blob (com inicial maiúscula) numa conversa com o jornalista David Samuels, do New York Times Magazine, para denominar depreciativamente um grupo específico da oligarquia dirigente dos EUA. Trata-se de um grupo «composto por democratas e republicanos ‒ um grupo díspar de elementos pertencentes à fina-flor dos centros de estudos [Ingl. “elite think-tankers”], legisladores, jornalistas e outros que tais na Washington oficial ‒ que se aglutinam em torno de uma política externa que defenda o velho evangelho da chefia americana na cena mundial» (Jacob Heilbrunn, “How the War in Ukraine Is Reviving the Blob”. Politico. 5/06/2022). Convém acrescentar que «o Blob não é, estritamente falando, o sistema oficial de instituições que sustentam a política externa americana (os centros de estudos [Ing. “think tanks”], as escolas de política pública, os meios de comunicação social, os organismos governamentais), e não são, estritamente falando, todos os habitantes dessas instituições. O Blob é um subconjunto grande e dominante das pessoas que habitam essas instituições — um subconjunto cujos membros, embora por vezes discordem, partilham certas tendências que moldam a política externa americana» (Robert Wright, “Toward a unified theory of Blob-dom”. Responsible Statecraft, October 13, 2021). «De acordo com Rhodes», o Blob incluía, em 2016, «Hillary Clinton, Robert Gates e outros promotores da guerra do Iraque de ambos os partidos que agora se queixam incessantemente da derrocada da ordem de segurança americana na Europa e no Médio Oriente» (David Samuels, “The Aspiring Novelist Who Became Obama’s Foreign-Policy Guru. How Ben Rhodes rewrote the rules of diplomacy for the digital age”. New York Times Magazine, May 15, 2016).   

[6] «Punish France, ignore Germany, forgive Russia” was the famously pithy advice of Condoleezza Rice, America’s national security adviser, after the rows over Iraq at the United Nations earlier this year». In “Europe and Uncle Sam”. The Economist, September 4, 2003.

[7] Ver as confissões ante acta de Victoria Nuland [https://www.youtube.comwatch?v= RLeAgMF0Q6y] e de Joe Biden [https://www.youtube.com/watch?v=kBQSSjMhDmA], assim como o artigo de Seymour Hersh, “How America Took Out The Nord Stream Pipeline”, Substack, February 2, 2023.

[8] De acordo com os resultados divulgados pela Comissão Eleitoral Central da Rússia, através das suas secções na RPD e na RPL, 99,23% (2.116.800 votantes) apoiaram a incorporação da RPD na Federação Russa e 98,42% (1.636.302 votantes) apoiaram a incorporação da RPL na Federação Russa. A taxa de participação foi de 97,51% (2.131.207 votantes) e 94,15% (1.662.607 votantes), respectivamente.

De acordo com os resultados divulgados pela secção regional de Quérson da Comissão Eleitoral Central da Rússia, 87,05% (497.051 votantes) apoiaram a incorporação deste oblast na Federação Russa, com 12,05% (68.832 votantes) contra e 0,9% de votos nulos, numa taxa de participação de 76,86%. De acordo com os resultados divulgados pela secção regional de Zaporíjia da Comissão Eleitoral Central da Rússia 93,11% (541.093 votantes) a favor da incorporação deste oblast na Federação Russa. A taxa de participação declarada foi de 85,4%.

De acordo com os dados fornecidos pela Comissão Eleitoral Central, o apoio à incorporação foi de 90,01% no Raion [= município] de Melitopol, enquanto no seu centro administrativo, Melitopol, foi de 96,78%. (Cf. “Residents of Donbass, Zaporozhye and Kherson region overwhelmingly supported joining the Russian Federation”. Tass.Ru, 28 September 2022).

[9] Ver a secção 1 [“Causas da primeira guerra na Ucrânia”] do meu livro, Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal (Editora Primeiro Capítulo. Agosto de 2023).

[10] Ver “Causas da primeira guerra na Ucrânia”, op.cit.

[11] Ver Bruno Amaral de Carvalho, A Guerra a Leste: oito meses no Donbass. Editorial Caminho. Abril de 2024.

[12] “Elon Musk’s peace plan for Ukraine draws condemnation from Zelensky”. Associated Press, 4 October 2022.

[13] Ver José Catarino Soares, “Em 9 de Abril de 2022 Zelensky preferiu a guerra à paz pelos motivos mais mesquinhos”, Estátua de Sal

1.    https://estatuadesal.com/2023/12/12/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos/

2.    https://estatuadesal.com/2024/02/12/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos-parte-ii/

3.    https://estatuadesal.com/2024/02/13/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos-parte-iii/

4.    https://estatuadesal.com/2024/02/17/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos-parte-iv/

5.    https://estatuadesal.com/2024/02/21/em-9-de-abril-de-2022-zelensky-preferiu-a-guerra-a-paz-pelos-motivos-mais-mesquinhos-parte-v-e-ultima/

[14] Ben Watterberger, “Elon Musk and the frontier of Technology”.Think Tank, 12/13/ 2007.

[15] A partir do momento (9 de Abril de 2022) que Zelensky rompeu o acordo de paz, muito favorável, que tinha celebrado com a Rússia em fim de Março de 2022, em Istambul, o esforço de guerra do governo ucraniano contra as tropas russas perdeu toda e qualquer legitimidade. Converteu-se numa iníqua forma de destruir centenas de milhares de vidas ucranianas (e muitas dezenas de milhares de vidas russas) em nome de um nacionalismo opressor, etnofóbico, obscurantista e niilista.  

[16] Maura Reynolds, «Fiona Hill: ‘Elon Musk Is Transmitting a Message for Putin’». Politico, 17 October 2022.

[17] As citações foram colhidas nestas fontes: “Zelenskiy hits back as Elon Musk sets up Twitter poll on areas of Ukraine”. The Guardian, 4 October 2022; “Elon Musk’s peace plan for Ukraine draws condemnation from Zelensky”. Associated Press, 4 October 2022; “Elon Musk Sets Off Uproar in Ukraine by Tweeting His ‘Peace’ Plan”. Time, 4 October 2022; “Elon Musk Spoke to Putin Before Tweeting Ukraine Peace Plan: Report”. Vice, October 11, 2022.