TEMA 1
A
denominada «convergência» das pensões do sistema previdencial da função pública
(CGA) com as do sector privado (CNP)
Resumo
Neste
documento procede-se a uma análise crítica do decreto 187/XII da Assembleia da
República, aprovado em 1 de Novembro de 2013, e do preâmbulo («Exposição de
Motivos») da proposta de lei nº171/XII/2ª, aprovada em Conselho de
Ministros em 12 de Setembro de 2013, que lhe deu origem. Nele se mostrará que
as medidas preconizadas nesse decreto, são, no que têm de essencial (artigo
7º), o contrário do que afirmam ser e que os motivos apresentados na referida
proposta de lei como sua justificação são falaciosos, assentes que estão em
premissas falsas, omissões clamorosas de informação pertinente para o assunto
em apreço, alegações enviesadas, comparações tecnicamente defeituosas e factos
deturpados por ignorância, incompetência ou má-fé. Aduziremos factos e argumentos que mostram claramente:
1) que as pensões actuais da CGA são já
iguais ou inferiores às do CNP quando calculadas com base nas regras que
vigoram neste último; 2) que, se o
decreto nº187/XII fosse promulgado, os actuais aposentados da CGA ficariam com
pensões de aposentação de valor ilíquido inferior, em números redondos, entre 8% e 11% às do CNP, por
modificação «retroactiva» (e por conseguinte em violação do artigo 12º do
Código Civil) do valor ilíquido que lhes foi legalmente fixado na data em se
aposentaram/reformaram. Este decreto atingiria igualmente, caso fosse
promulgado, os contribuintes da CGA que pediram a sua aposentação até
31-12-2012 (e que aguardam despacho) e, obviamente, todos os futuros
pensionistas que foram admitidos na função pública antes de 1993.
Nota: Por economia de palavras e
comodidade de exposição, usaremos, sempre que possível, o termo pensões de aposentação como abreviatura
de «pensões de aposentação, de reforma, de invalidez, de sobrevivência e de
preço de sangue». Assim, o termo aposentado
designará qualquer pessoa que receba uma dessas pensões. Da mesma forma, trabalhador da função pública será
utilizado para designar qualquer profissional (civil, militar ou agente
policial) que exerça as suas funções na admnistrações central, local e regional
do Estado. O termo não abrange portanto os cidadãos eleitos por sufrágio
universal para cargos políticos. As siglas CGA e CNP correspondem a Caixa Geral
de Aposentações e Centro Nacional de Pensões (Instituto da Segurança Social,
ISS), respectivamente. Esta terminologia (CGA vs CNP) é preferível à do governo
(CGA vs RGSS [= regime geral da Segurança Social]) visto que a segunda parece
sugerir que a CGA não faz parte do sistema previdencial da Segurança Social, ou
que é uma sua excrescência, o que não é o caso. A CGA foi criada em 1929 e é
por isso anterior em muitas décadas ao precursor do CNP, a Caixa Nacional de
Pensões (que data de 1963). Acresce que foi a CGA que serviu de modelo ao CNP e
não o inverso.
Preâmbulo
No dia 23 de Novembro de 2013, o
Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional a fiscalização
preventiva da constitucionalidade do Decreto n.º187/XII da Assembleia da
República. Mais especificamente, o Presidente da República solicitou ao
Tribunal Constitucional que verificasse a conformidade das normas constantes
das alíneas a), b), c), e d) do artigo
7º desse decreto com a Lei Fundamental, no que respeita «aos princípios da
unidade do imposto sobre o rendimento, da capacidade contributiva, da
progressividade e da universalidade»
e «ao princípio de proteção da
confiança, quando conjugado com o princípio da proporcionalidade» (Fonte:
Página Oficial da Presidência da República). Admitido o requerimento no prazo
de dois dias (artigo 52º, nº 3, da lei do Tribunal Constitucional), o Tribunal
Constitucional (TC) deverá pronunciar-se no prazo de 25 dias (artigo 278º, nº
8, da Constituição).
Convem, porém, não perder de vista que,
por imperativo da lei do TC (artigo 54º), o Presidente do TC notifica o orgão
de que tiver emanado a norma (ou normas) impugnada(s) para, querendo, se
pronunciar sobre ela(s). Ora, a proposta de lei nº 171/XII/2ª do governo, que
está na origem do decreto nº 187/XII da Assembleia da República, apresenta um longo
e prolixo preâmbulo (ocupa 32 das 46 páginas da proposta) entitulado «exposição
de motivos». São os motivos que, alegadamente, levaram o governo a estabelecer
«mecanismos de convergência do regime de proteção social da função pública com
o regime geral da segurança social» (artigo 1 do referido decreto). É pois
muito plausível que sejam estes os motivos que serão invocados pelo governo e
pela maioria parlamentar responsável pela aprovação do decreto-lei 187/XII
contra a impugnação de que este foi alvo por parte do Presidente da República.
Assim sendo, convem examinar tanto o
artigo impugnado pelo Presidente da República como o teor dos motivos invocados
pelo governo em sua defesa. Tal é o objectivo do presente documento.
A exposição dividir-se-á em duas partes.
Na primeira analisaremos o teor do artigo 7º do decreto 187/XII, objecto da
impugnação do Presidente da República. Na segunda parte, analisaremos a
«Exposição de Motivos» constante da proposta de lei nº171/XII/2ª que pretende
fundamentá-lo.
1.
O cerne da questão
O cerne da questão é efectivamente o
artigo 7º do decreto 187/XII. Resumidamente, esse artigo propõe um corte entre
7,8% e 10%, consoante os casos — na realidade é mais elevado, como se mostrará,
atingindo, em média, 11,1% — nas pensões de aposentação dos actuais aposentados
da função pública (CGA) com a alegação
que tal corte seria uma medida destinada a nivelar estas pensões com aquelas,
alegadamente inferiores em 10%, dos actuais aposentados do sector privado
(CNP).
Esta medida suscita desde logo uma
questão de lógica elementar. Suponhamos (por um momento apenas) que a premissa
de que parte o governo é correcta — a saber, que as pensões de aposentação da
CGA são entre 7,8% e 10% superiores às do CNP. Suponhamos ainda (por um momento
apenas) que o governo está animado das melhores intenções de justiça social — a
saber, proporcionar a todos os aposentados e futuros aposentados a igualdade de
condições perante a lei. Não seria então curial tomar medidas legislativas que
levassem a que as pensões de aposentação do sector privado fossem aumentadas entre
7,8% e 10% para corrigir a distorção? Quem, se assim fosse feito, se poderia
queixar de estar a ser injustiçado, tanto mais que essas pensões são, como
veremos, integralmente financiadas, de forma directa e indirecta, pelos
próprios trabalhadores? Obviamente, ninguém que estivesse em seu perfeito
juízo. Como poderia o mais alto magistrado do Estado português impugnar o
decreto do governo por fundada suspeita (que inúmeras pessoas, entre as quais
me incluo, compartilham) de não ser conforme à Constituição da República
Portuguesa? Não poderia, obviamente. Por que razão não foi então esse o caminho
seguido pelo governo ? Esta questão será respondida na segunda parte deste
documento.
Para já, concentremo-nos no fundamental:
a premissa do governo é verdadeira? Beneficiam os aposentados da CGA de pensões
de aposentação superiores entre 7,8% e 10% às dos seus congéneres do CNP? A resposta
é uma dupla negativa.
Comecemos pelas pensões de sobrevivência,
por ser o caso mais óbvio.
1.1. Pensões de sobrevivência
No CNP (que admnistra as pensões de
aposentação dos trabalhadores do sector privado) a pensão de sobrevivência
corresponde a 60% da pensão do cônjuge
falecido, enquanto a da Função Pública corresponde a 50% da parcela P1
(pensão correspondente ao tempo de serviço até 2005) mais 60% da parcela P2
(pensão correspondente ao tempo de serviço depois de 2005), o que determina que,
na CGA, a pensão de sobrevivência corresponda, em média, a 53% da pensão do cônjuge falecido.
Só a partir de 2010 é que a última
remuneração recebida até 2005 utilizada para o cálculo da P1 (pensão
correspondente ao tempo de serviço até 2005) passou a ser actualizada, sendo-o,
até 2012, com base no índice de revalorização dos salários publicado pelo
Ministério da Solidariedade e da Segurança Social e, depois de 2012, com base
no aumento verificado no índice 100 da escala remuneratória da Função Pública
que é muito inferior àquele (na Segurança Social a remuneração de 2005 é actualizada
em 17,1%, enquanto na CGA é actualizada em apenas 8,2%). Até 2010, o cálculo da
P1 era feito com base na última remuneração recebida sem qualquer atualização.
Para os que estavam na Administração Pública, ou seja, para subscritores, o
cálculo da P1 era feito, não com base na remuneração de 2005, mas sim com base
na última remuneração, ou seja, aquela que tinham no ano em que se aposentaram
(por exemplo, se se aposentaram em 2009 a remuneração utilizada era a de 2009),
o que atenuava a falta de actualização da remuneração. Mas em relação aos ex-subscritores,
até 2010, o cálculo da sua pensão era feito com base na remuneração que tinham na
data em que saíram da Administração Pública, portanto com base numa remuneração
totalmente desvalorizada.
Apesar de ter sido atempadamente
alertado pelos sindicatos da função pública e pela APRe! sobre estes factos, o
governo seguiu em frente com as suas propostas de corte das pensões de
sobrevivência. A alínea c) do nº 1 do artº 7º da proposta de lei 171/XII/2º,
dispõe textualmente o seguinte: «as pensões de sobrevivência de valor global
ilíquido superior a uma vez o indexante de apoios sociais (…) têm o valor
global ilíquido de Dezembro de 2013 reduzido em 10%». Ora, convém saber que o indexante de apoios
sociais (IAS) é igual a 419,22 euros Por conseguinte, todas
as pensões de sobrevivência pagas pela CGA, desde que o seu valor ilíquido
(antes de qualquer desconto) seja superior a 419,22 euros por mês, sofreriam um
corte de 10%. Esta menção ao IAS desapareceu, aparentemente, do decreto 187/XII,
mas não é de excluir que se encontre disfarçada nas formulações do Orçamento de Estado para 2014 (OE-2014) ,
cuja versão final ainda não saíu da Assembleia
da República. (O relatório do OE-2014 tem 225 páginas e a proposta de lei do
OE-2014 tem 345 páginas. Ao todo são 570 páginas que é preciso ler e escrutinar
com muita atenção. Esta precaução, sempre necessária, ganha uma maior acuidade nas
presentes circunstâncias. É que, como veremos, com o governo actual todo o cuidado
é pouco).
Seja como for, uma coisa é clara: as
pensões de sobrevivência da CGA superiores a 600 euros — ou a 750, ou a 900, ou
a 1050, ou a 1200 euros (se o pensionista tiver mais de 75, 80, 85 e 90 anos,
respectivamente) — sofrerão um corte de
10%, se o decreto 171/XII for promulgado.
E não se pense sequer que as pensões de
sobrevivência pagas pela CGA são elevadas. No fim de 2012, as pensões de
sobrevivência pagas pela CGA a 69% dos pensionistas era inferior a 500 euros por
mês; apenas 1,7% recebiam pensões de sobrevivência superiores a 1.500 euros por
mês (em 2012, a pensão média de sobrevivência paga pela CGA era apenas de
451,57 euros por mês). Muitos destes pensionistas só recebiam esta pensão
(Fonte: Relatório e Contas da CGA.2012).
Acresce que as pensões de sobrevivência do
sistema previdencial contributivo fazem parte dos direitos inalienáveis dos
cônjugues (incluindo parceiros de uniões de facto) ou descendentes ou
ascendentes a cargo dos subscritores ou ex-subscritores da CGA. Por isso, estas
pensões não estão dependentes de qualquer “condição de recursos” (ou seja, do
rendimento per capita familiar) —
contrariamente ao que acontece (e bem) no sistema não contributivo de protecção
social de cidadania — nem o corte que o governo pretende fazer nestas pensões se
aplica apenas à 2ª pensão (isto supondo que o cônjuge sobrevivo já recebe uma
pensão), contrariamente ao que afirmou o vice-primeiro ministro Paulo Portas em
conferência de imprensa (13-10-2013). O vice-primeiro ministro também afirmou
na mesma ocasião que as pensões de sobrevivência do CNP são pagas pelo Orçamento
de Estado, o que é falso.
O que é verdadeiro é que o Orçamento de Estado (OE) para 2014
introduz subrepticiamente a “condição de recursos” onde ela não tem cabimento. Assim, o seu artigo 116º
determina que as pensões de sobrevivência futuras cuja soma com outra pensão
que a pessoa eventualmente receba seja superior a 2000 euros sofrerão um corte.
E o corte será calculado segundo procedimentos que constam do referido artigo e
segundo percentagens que constam de uma tabela que o acompanha. No caso da
pensão de sobrevivência ser paga pela CGA, o corte é superior ao que resulta do
caso em que a pensão de sobrevivência é paga pelo CNP, agravando assim (em
desfavor dos pensionistas da CGA) a divergência
que já existe entre os dois regimes. Em suma, o que acontecerá no futuro, se o
decreto 187/XII e o artigo 116º do OE 2014 forem promulgados, é a duplicação
dos cortes nas pensões de sobrevivência atribuídas pela CGA. E isto porque
estas pensões são já calculadas com base em pensões de aposentação que sofrem
um corte de 10% pelo decreto 187/XII, e depois sofrem um novo corte resultante
da aplicação das taxas de formação da pensão constantes do artigo 116º do OE
2014.
Fica assim demonstrada a falsidade do argumento
da «convergência» utilizado pelo governo no caso das pensões de sobrevivência
da CGA.
1.2.
As pensões de aposentação (/reforma/invalidez)
Passemos agora às pensões de
aposentação(/reforma/invalidez).
Consideremos um trabalhador qualquer, que
esteja agora aposentado ao fim de uma carreira contributiva de N anos durante
as quais fez os seus descontos legais com base nas suas remunerações íliquidas
de valor V. Procuremos saber qual o valor da pensão que aufere aplicando-lhe
sucessivamente as regras em vigor na CGA e as regras em vigor no CNP.
De acordo com os cálculos efectuados pelo
doutor Eugénio Rosa (economista, assessor da frente comum dos Sindicatos da
Função Pública e reconhecido estudioso destas matérias), se o aposentado em
causa for um ex-trabalhador do sector privado a sua pensão tem o valor X. Se o
aposentado em causa for um ex-trabalhador da função pública a sua pensão é igual
ou ligeiramente inferior a X. Daqui resulta que, se o decreto 171/XII fosse
promulgado, os aposentados da função pública ficariam com pensões inferiores
entre 8% e 12% às dos seus congéneres do sector privado (Fonte: «A falsa
convergência das pensões da CGA e da Segurança Social e as justificações
falaciosas do governo para cortar nas pensões e enganar e manipular a opinião
pública».11-09-2013. Estudo disponível em www. eugeniorosa.com, pasta: Segurança Social, CGA, Fundos
de Pensões). Sobre este ponto, dispomos também do testemunho directo do próprio
Eugénio Rosa sobre o que aconteceu
quando deu conta ao governo destes factos:
«Durante
a reunião com o Secretário de Estado da Administração Pública em
23-9-2013 afirmámos diretamente que era falsa a afirmação que a pensão
correspondente ao tempo de serviço realizado até 2006 da Administração Pública
era superior à obtida utilizando as regras de cálculo da Segurança
Social. Efetivamente se aplicássemos as regras da CGA e da Segurança
Social ao mesmo trabalhador para calcular a pensão correspondente ao
tempo de serviço e de contribuições até a 2006, o valor da pensão que
obtínhamos com as regras da CGA era superior apenas em 2,9% ao valor que se
obtinha com as regras da Segurança Social, diferença esta que desaparece
quando se tenha em conta que para ser considerado um ano na Segurança
Social basta ter descontado 120 dias, enquanto na CGA é preciso ter um
ano completo (basta faltar um dia para um ano de contribuições não ser
considerado para o cálculo da pensão: P1). E se o governo reduzisse, como
pretende, de 90% (que está em vigor atualmente; na Segurança Social é
considerado 100%) para apenas 80% a parcela da remuneração que serve de
base de cálculo para pensão correspondente ao tempo de serviço até 2005,
o valor da pensão passaria a ser entre 8% e 12% inferior à que se obtém
utilizando as regras da Segurança Social. E entregámos os cálculos por
escrito ao Secretário de Estado. Este foi incapaz de rebater tais argumentos,
refugiando-se no argumento de que a fórmula de cálculo de há 10 ou 20 anos
era diferente. Mas quando afirmámos que o que o governo pretendia
alterar não era fórmula existente há 10 ou 20 anos, pois esta já tinha
sido alterada, mas sim a que estava em vigor em 2013, o Secretário de Estado
da Administração Pública calou-se e ficou sem argumentos. Com o seu silêncio
reconheceu a falsidade do argumento do governo constante da “Exposição
de motivos” da proposta de lei enviada para a Assembleia da República que
foi incluída com o objetivo de condicionar o Tribunal Constitucional»
(Fonte:E Rosa. «As justificações do Secretário de Estado da A. Pública na
reunião de 23-9-2013». www.eugeniorosa.com).
Fica assim demonstrada a falsidade do
argumento da convergência das pensões de aposentação da CGA com as da CNP. Fica também demonstrado que
o governo está perfeitamente ciente de que o seu argumento é falso.
Acresce — e o acréscimo é da mais alta
importância pela sua gravidade — que o decreto 187/XII pretende instituir uma
figura legislativa inédita na ordem jurídica dos Estados de direito
democrático: a da “retroactividade autêntica” ou “própria” das leis. Assim, as suas disposições
aplicar-se-iam não apenas aos futuros aposentados da CGA (com as consequências
já descritas, o que já seria muito grave) mas também aos actuais aposentados.
Ora, o nº 1 do artigo 12º (“Aplicação das leis no tempo. Princípio
geral”) do Código Civil determina: «A lei só dispõe para o futuro; ainda
que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados
os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular». Por
outras palavras, uma nova lei não se pode aplicar a factos ocorridos
anteriormente que caiam no âmbito de lei vigente no momento em que ocorreram. A
Constituição da República Portuguesa acolhe expressamente o princípio da não retroactividade
das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (art. 18º, nº3), das
leis sobre impostos (art. 103º, nº3) e da lei criminal (art. 29, nº4), mas ele
está subjacente a toda a ordem jurídica de um Estado de direito democrático.
Fica assim demonstrado que o governo,
através do decreto nº187/XII não se limita a estatuir o contrário daquilo que
proclama; pretende também fazê-lo ao
arrepio da ordem jurídica vigente.
A
este propósito, cabe aqui registar um pormenor grotesco, para memória futura. O
secretário de Estado da Admnistração Pública, dr. Helder Rosalino, que já nos
havia proposto enriquecer a língua portuguesa com conceitos de tão fino recorte
como «salário zero», «requalificação» e «contribuição extraordinária de
solidariedade» (em vez dos grosseiros «trabalho escravo», «pôr um funcionário
público na prateleira durante 12 meses e a seguir despedi-lo» e «confisco de
uma parte das pensões devidas aos aposentados do sistema previdencial»,
respectivamente), propõe-se agora redefinir o termo «retroactividade» (da lei),
que teria afinal, no seu entender, significado idêntico a «retrospectividade»
(ver, p.ex., o seu artigo no «Público».29-11-2013). Mas todas as leis são, num
certo sentido, retrospectivas, visto que têm de ter em conta as leis vigentes à
data da sua elaboração e mesmo as leis anteriores já revogadas, para serem leis
boas e bem feitas. Mas isso não as torna retroactivas. Imagine-se o que seria
um mundo onde as leis fossem retroactivas. Um novo governo, democraticamente
eleito, poderia fazer, p.ex., uma lei ao abrigo da qual H.Rosalino (entre
outros membros do actual governo) fosse abrangido, no seu serviço de origem
(Banco de Portugal), por uma medida de «requalificação» com «salário zero»,
durante 4 anos, como indemnização simbólica por todos os prejuízos materiais e
arrelias causados aos trabalhadores e aposentados da função pública com a sua
acção legislativa actual. Como reagiria ele? Acharia justo?
1.3.
Conclusão
O decreto 187/XII não estabelece, ao
contrário do que nele se afirma, qualquer mecanismo de convergência do regime das pensões de aposentação (/reforma/invalidez/sobrevivência)
da CGA com o chamado regime geral da segurança social da Segurança Social. O
que esse decreto estabelece é, isso sim, um mecanismo de divergência entre esses dois regimes que subalterniza e penaliza
fortemente os direitos dos futuros aposentados da função pública em relação aos
seus congéneres do sector privado. Acresce
que o decreto, ao determinar a sua aplicação aos actuais aposentados da CGA,
viola um princípio básico do Estado de direito democrático: o da não retroactividade
das leis.
2.
As justificações do governo
Perante estes factos, tão contrários às
suas proclamações, tão arrasadores das suas apregoadas intenções de promover a
equidade em matéria de consolidação do sistema previdencial público, compreende-se
que o governo tenha sentido a necessidade de se justificar. Essa justificação
tomou a forma de uma «Exposição de Motivos», uma longa e prolixa introdução que
serve de preâmbulo à proposta de lei
nº171/XII/2ª.
Mostrarei no que se segue que essa
«Exposição de Motivos», se alguma coisa justifica não é seguramente o decreto
187/XII, que é injustificável pelas razões apontadas na primeira parte deste
texto. Quando muito servirá para nos esclarecer sobre o ideário que preside à
política do governo em todos os domínios. Cumpre-nos, no entanto, por muito que
nos custe, avançar por esse terreno movediço para não sermos acusados de
ignorar ou menosprezar as justificações do governo para actuar como actua. O
resultado, como veremos, é instrutivo.
A.
1ª justificação: todos nos endividámos demais
Na «Exposição de Motivos» da proposta de
lei nº171/XII/2ª, progenitora do decreto 187/XII da Assembleia da República, o
governo apresenta como primeira justificação para o corte das pensões de
aposentação da CGA (com o qual pretende arrecadar 828 milhões de euros), o
seguinte:
«O limite de 3% do
PIB para o défice orçamental nunca foi cumprido, resultando em níveis muito
elevados de dívida pública. Mais ainda, o endividamento excessivo não se
restringiu ao setor público: também as famílias e as empresas acumularam dívida
e também Portugal acumulou uma elevada dívida face ao exterior. Este
comportamento resultou em estagnação económica, aumento de desemprego e perda
de competitividade» (p.1).
O diagnóstico sobre o «endividamento
excessivo» pretende, como se constata, ser salomónico: estaríamos todos
(Estado, empresas e famílias) endividados. Mas essa pretensão salomónica não
colhe.
As fontes de endividamento excessivo do
Estado português nada têm a ver com o sistema previdencial da segurança social,
que é contributivo e exclusivamente financiado pelas contribuições dos seus actuais
e pretéritos subscritores: os trabalhadores por conta de outrem e por conta
própria.
As fontes principais do endividamento
excessivo do Estado são hoje bem conhecidas. São os encargos ruinosos
resultantes: 1) das PPP; 2) da “nacionalização” e/ou “reabilitação” de bancos
privados levados à falência por via da gestão danosa dos seus dirigentes (BPN,
BPP, Banif); 3) da recapitalização da restante banca através da injecção
massiva de fundos públicos, quer sob a forma de capital, quer sob a forma de
instrumentos híbridos (garantia a emissões de títulos de dívida de instituições
bancárias, compra de acções preferenciais, empréstimos e swaps, compras de activos de menor liquidez ou maior risco, etc); 4) da utilização das
empresas públicas como instrumentos privilegiados de desorçamentação, 5) dos
privilégios fiscais concedidos a uma pequena parte da população, como, por
exemplo, em sede de IRS e IRC, as taxas liberatórias aplicáveis a rendimentos
de capital e mais-valias, 6) da fuga aos impostos da chamada “economia
paralela” (cuja dimensão é estimada entre 18% e 23% do PIB). Destes factores
somados resultou, sobretudo a partir de 2003, um aumento constante da dívida pública
(incluindo a componente pública da dívida externa) em percentagem do PIB e dos
encargos com os seus juros. Com a crise mundial desencadeada pela falência do
banco Lehman Brothers (Setembro de 2008), a situação descontrolou-se. Os juros
da dívida portuguesa dispararam e...o resto da história já todos conhecem.
.
Alguns exemplos relativos aos quatro
primeiros factores mencionados, bastarão
para ilustrar a sua importância. 1) Em 2009, segundo o Tribunal de Contas, os encargos
plurianuais com as PPP ascendiam a 50.000 milhões de euros. Em 2014, os encargos
anuais com as PPP previstos no OE-2014 ascendem a 1645 milhões de euros (+89,3%
do que em 2013). Em 2015 e 2016 serão, nas estimativas oficiais, superiores a
1550 milhões de euros. 2) Os custos (efectivos e potenciais) para o erário público
decorrente da “nacionalização” dos prejuízos do BPN já ascendiam, em 2012, a
quase 6.000 milhões de euros (Fonte: Relatório preliminar do grupo técnico da
«Auditoria Cidadã à Dívida»). 3) Para apoio
à capitalização da banca estão previstos, no OE-2014, 6400 milhões de euros, a
somar aos 14.473 milhões de euros que esta recebeu do Estado até Junho 2013. 4)
No primeiro semestre deste ano, foram cancelados antecipadamente 69 contratos swap, no valor de 1500 milhões de euros.
Esses cancelamentos reduziram os
prejuízos financeiros, mas aumentaram o endividamento do sector empresarial do
Estado, já que as empresas tiveram necessidade de contrair crédito para
cancelar esses contratos. Em Junho deste ano, existiam 56 swaps activos em 13 empresas do Estado, com perdas potenciais de
1600 milhões de euros (Fonte: Direcção-Geral do Tesouro e Finanças. 28-11-2013).
A quantificação completa dos encargos que
acarretam todas as fontes de endividamento público (incluindo as autarquias e
os governos regionais) não existe, nem
sequer para as seis fontes acima mencionadas. Só quando for levada a cabo, por
medida legislativa da Assembleia da República, uma auditoria externa à dívida
pública que integre não só representantes de todos os grupos parlamentares mas
também quadros dos organismos públicos relevantes e peritos independentes e que
funcione em regime aberto à sociedade civil, é que poderemos todos perceber a
real extensão deste problema. Mas uma quantificação parcial desses encargos e
da sua origem pode ser encontrada no relatório preliminar do grupo técnico da
«Auditoria Cidadã à Dívida» (Conhecer a
Dívida para Saír da Armadilha. 2012) de leitura obrigatória para quem
queira conhecer a real situação financeira do país. Dele respigamos a seguinte
passagem (p.61):
«Portugal
é o país “Campeão do Mundo” em parcerias público-privadas (PPP), com o maior
gasto em PPP em relação ao PIB (quase 11%) (Fonte: Observatório PPP da
Universidade Católica). As PPP têm contribuído para um agravamento da dívida
pública, com injustificadas taxas de rentabilidade para os consórcios privados que as promoveram. (…) Em
Portugal existem pelo menos 120 PPP negociadas directamente com o Estado Central,
além de centenas de outras a nível local estabelecidas com orgãos do poder
local e com outras empresas do Estado. Dado o elevado número de parcerias,
Portugal era em 2004, o país com maior exposição aos empréstimos do Banco
Europeu de Investimento (BEI), com 2.804 milhões de euros (Cruz, C. e Marques,
R. O Estado e as Parcerias
Público-Privadas. 2012). (…) O investimento em PPP não é contabilizado em
despesa pública, sendo por isso uma estratégia eficaz de desorçamentação do
investimento público. Não é por isso decabido dizer que as PPP empurram para o
futuro a despesa do investimento presente. (…) O entusiasmo pelas PPP dos
governos portugueses dos últimos vinte anos foi activamente apoiado pela União
Europeia com incentivos com implicações nos Quadros de Referência Estratégica
Nacional (QREN)».
O juízo salomónico do governo sobre o «endividamento
excessivo» também não colhe no que respeita às empresas. Convém que se saiba
que, em Outubro de 2012, 30% da dívida das empresas dizia respeito a mil
grandes empresas, 21% a 6 mil médias empresas, 19% a 39 mil pequenas empresas e
os restantes 30% a 321 mil microempresas (Fonte: Boletim Estatístico do Banco
de Portugal. Dezembro de 2012).
No que respeita às
famílias, os números são ainda mais esclarecedores e refutam o «mantra» do
economês em voga: “os portugueses têm vivido acima das suas possibilidades e
você, admita, é um deles”. Em 2010, a maioria das famílias portuguesas (63%)
não devia nada aos bancos ou a
qualquer outra instituição financeira. A maior parte das dívidas das famílias
dizia respeito à aquisição da habitação própria: 24,5% das famílias estava a
pagar empréstimos contraídos para compra da sua habitação. Estes números são
ainda mais instrutivos quando se tem em conta que, segundo o Eurostat, a percentagem das famílias com habitação própria em
Portugal era, em 2011, superior a 75%, facto atribuível à escassez do mercado
de arrendamento habitacional e ao crédito relativamente barato para a aquisição
de habitação. Poucas famílias tinham outras dívidas. 3,3% tinha adquirido empréstimos
para adquirir outros imóveis; 13,5% tinham adquirido empréstimos para outros
fins; e apenas 7,5% estavam a pagar empréstimos obtidos com cartão de crédito,
linhas de crédito e descobertos bancários. É legítimo concluir, perante estes
números, que
¾ das famílias, portuguesas, incluindo as que contraíram empréstimos para
aquisição de habitação própria, se comportaram de maneira racional no que
respeita à gestão dos seus recursos, e não estouvadamente como se pretende
fazer crer. Acresce que quem mais deve é quem mais tem: a mediana da dívida da classe
de riqueza mais elevada é quase seis vezes maior do que a da classe de riqueza
mais baixa (Fonte: Inquérito à situação
financeira das famílias 2010. Banco
de Portugal e INE. Maio de 2012).
A «Exposição de Motivos» omite todas
estas informações do seu diagnóstico sobre «os elevados níveis da dívida
pública». Mas nela se pode ler mais adiante um resumo dos objectivos que o governo
preconiza para a debelar :
«O Programa de Ajustamento Económico e
Financeiro (PAEF) prevê uma atuação em três frentes: consolidação orçamental e
colocação das finanças públicas numa trajetória sustentável; redução dos níveis
de endividamento e recuperação da estabilidade financeira; transformação
estrutural dirigida ao aumento de competitividade, à promoção do crescimento
económico sustentado e à criação de emprego» (p.2).
Estes objectivos parecem razoáveis. Mas
quando passamos aos meios preconizados e empregues pelo governo para os
atingir, o caso muda totalmente de figura. Esses meios são bem conhecidos de
todos: redução dos salários; aumento da jornada de trabalho; redução dos
direitos dos trabalhadores, em particular em caso de despedimento; redução do
montante e da duração do “subsídio” de desemprego; cortes profundos nas funções
sociais do Estado (Saúde, Educação, sistema de protecção social de cidadania da
Segurança Social); privatização do sector empresarial do Estado, seleccionando as
empresas mais lucrativas (EDP, ANA, REN,
CTT…); enormes aumentos de impostos directos e indirectos; taxas mais altas de
acesso aos serviços públicos; cortes drásticos nas pensões de aposentação do
sistema previdencial contributivo da Segurança Social e tentativa de o reconfigurar
num sentido assistencialista (voltaremos adiante, na secção C, a este assunto).
Esta metodologia parece insana, porque
tem como consequência, entre outros efeitos negativos, o aumento galopante do
desemprego, o empobrecimento acelerado de largas faixas
da população e a recessão económica. No entanto, para o governo,
«…estes efeitos a priori negativos são eles próprios instrumentais para o objetivo
de obtenção de um superavit da
balança corrente. O desemprego, aliado à redução do montante e duração do
subsídio, obriga os trabalhadores a aceitar salários mais baixos; a diminuição
do rendimento disponível das famílias decorrente do desemprego e da redução dos
salários faz diminuir as importações. A redução dos salários (chamada
“desvalorização interna”), por outro lado, é tida como condição do aumento das
exportações, por via da redução do seu custo e preço de oferta nos mercados
internacionais» (Fonte: Conhecer a
dívida para saír da armadilha. p.99).
Esta seria então a única solução para
reduzir o défice orçamental e a dívida externa (pública e privada) e pôr o país
a crescer.
Vejamos então quais têm sido os
resultados da política levada a cabo pelo governo em parceria com a “troika”
desde o início de 2011. Entre Dezembro de 2010 e Junho de 2013, a dívida das
Administrações Públicas, a chamada dívida pública, passou de 185.844 milhões de
euros para 252.855 milhões de euros, ou seja, subiu em 36,1%. A dívida pública
na perspectiva do Tratado de Maastricht, que não inclui a totalidade da dívida
pública, aumentou 31,4% (Fonte: Banco de Portugal, INE e Eurostat). No mesmo
período, o PIB (a riqueza produzida) passou de 40.514,6 milhões de euros para
38.329,3 milhões de euros, ou seja, diminuiu em 5,4%; a procura interna passou
de 46.040 milhões de euros para 40.497,1 milhões de euros, ou seja, diminuiu em
12%, e o consumo das famílias passou de 25.813,5 milhões de euros para 23.598,6
milhões de euros, ou seja, diminuiu em 8,6% (Fonte: Contas Nacionais
Trimestrais. INE). A quebra do investimento foi de quase 30% e a da produção
6,3% (Fonte: Novo Rumo para um Portugal
de Futuro. Documento da CIP, CAP, CCP e CTP). O desemprego passou de 10,9%,
no início do mandato deste governo, para 15,6% (838.600 pessoas), no fim do 3º
trimestre de 2013 (Fonte: INE). O
saldo migratório tornou-se negativo em 2012. Em 2011 saíram do país cerca de
56.980 pessoas. Em 2012 esse valor subiu para 69.460 pessoas. Assim, no 3º
trimestre de 2013, a população activa residente diminuiu 135.000 pessoas (2,4%)
face ao trimestre homólogo de 2012, das quais 116.926 eram de nacionalidade
portuguesa (Fonte: INE). Isto significa que, em média, mais de 10.000 pessoas
emigraram por mês nestes dois anos. São valores que só têm precedentes na
década de 60 do século passado, quando vivíamos sob um implacável regime
ditatorial e miserabilista. Com esta diferença: nessa época eram sobretudo
camponeses, operários rurais e industriais com baixas qualificações que
emigravam. Agora são também milhares de jovens com o ensino secundário completo
ou com um diploma de ensino superior. Quanto à dívida pública (na perspectiva
de Maastricht) em percentagem do PIB passou de 108,2%, no início do mandato
deste governo, para 131,4% no primeiro semestre de 2013 (Fonte: Boletim
Estatístico do Banco de Portugal). Só no 2º trimestre deste ano, a dívida
pública subiu mais de 5.000 milhões de euros, a uma cadência superior a 60
milhões de euros por dia e 2,5 milhões por hora. E para pagar os juros aos
credores da dívida em 2014 estão previstos 8.174,8 milhões de euros no OE-2014,
mais do que está previsto para a rubrica “saúde” ou para a rubrica “educação”.
Apesar destes resultados calamitosos
para a grande maioria da população, o governo não erra quando diz que, do seu
ponto de vista, esta política de «contracção orçamental expansionista» (como
alguns ufanamente lhe chamam por amor aos oximoros) está a ter êxito. As
importações sofrerem uma enorme queda e as exportações recuperaram dos mínimos
de 2009, impulsionadas sobretudo pelas exportações de combustível da Galp. A
balança corrente melhorou, por via da balança de bens e serviços que têm agora
um saldo positivo. Tudo o resto constitui o quadro negro descrito.
E ficam as perguntas tidas por inconvenientes:
por que razão deveriam milhares de empresas que produzem para o mercado interno
abrir falência para que as empresas exportadoras possam prosperar se nem sequer
concorrem umas com as outras? E por que razão, para sermos internacionalmente competitivos,
teríamos que “exportar” trabalhadores qualificados (a nossa principal fonte de
riqueza e inovação) em vez de
aproveitarmos os seus talentos cá dentro? Cabe pois fazer mais uma pergunta:
mas quem então beneficia afinal, concretamente, desta política ?
Uma publicação com o expressivo título:
«Relatório da Ultra-riqueza no Mundo 2013» (World
Ultra Wealth Report 2013), do banco suíço UBS, levanta uma ponta do véu. Há
uma pequena minoria da população que não só não tem razões de queixa, como tem
também motivos para se regozijar. Segundo esta publicação, o número de ultramilionários
portugueses (indivíduos com fortunas superiores
a 24,5 milhões de euros) aumentou 10,8%. São agora, em 2013, 870, mais 85 do que
eram em 2012. A sua fortuna também aumentou 11,1%, um valor superior ao da
média dos seus congéneres europeus (8,4%). Estes 870 ultramilionários, que
representam 0,009% da população portuguesa, detêm em conjunto 74 mil milhões de
euros. É um valor bastante próximo dos 78 mil milhões de euros que a «troika»
emprestou a Portugal na condição não apenas de que lhe fossem pagos com juros
(o que é normal), bem superiores porém aos que o BCE concede aos banqueiros (o
que já roça a agiotagem), mas também com a condição suplementar de executar o
seu drástico programa de retrocesso social e empobrecimento da maioria da
população (o que faz da “troika” uma versão recauchutada dos déspotas “iluminados”
do século 18). Segundo o estudo que citámos, Portugal surge em 12º
lugar e 13º lugar na lista europeia no que toca, respectivamente, ao valor
total das maiores fortunas e ao número dos seus detentores individuais. Estes
números colocam Portugal bem à frente da Irlanda (onde há mais 10 ultramilionários
do que em 2012; são agora 580) e da Grécia (onde há mais 50 ultramilionários do
que em 2012; são agora 505). Na verdade, Portugal está à frente de países como a Bélgica,
Dinamarca, Luxemburgo e Áustria, neste particular. Sim, decididamente,
não somos nem a Grécia nem a Irlanda.
Perante estes factos vem-nos à memória
uma pergunta que Almeida Garret fez no seu tempo (século 19), para a qual não
obteve resposta:
«Eu pergunto aos economistas políticos,
aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar
à miséria (…) para produzir um rico?».
No que diz respeito ao conceito de «rico» ninguém sabe muito bem como
defini-lo. A fazer fé nas medidas fiscais do governo actual, «rico» parece ser
quem tenha rendimentos mensais superiores a 600 euros ou 675 euros, ou, talvez,
1350 euros. Desse modo somos quase todos ricos. Mas se nos referirmos ao
conceito de «ultra-rico» do banco UBS (quem tenha fortunas superiores a 24,5
milhões de euros) é hoje possível responder com rigor quantitativo à pergunta
garretiana:
«Se experimentarmos
dividir a riqueza acumulada de 75 mil milhões por 6.790 euros, que é o montante
anual de um salário mínimo, concluímos que os nossos 870 multimilionários têm
uma fortuna amealhada equivalente a 110 milhões de salários mínimos. O tal
salário – de 485 euros mensais – que o governo de Passos Coelho, fazendo eco da
tróica, já nos veio dizer que não é possível aumentar» (João Baptista. O Ribatejo. 14-11-2013).
Em suma, o aumento enorme de impostos e a
política de cortes profundos nas funções sociais do Estado e nas pensões de
aposentação não conseguem parar o aumento da dívida pública:a
trajectória da dívida pública continua a subir, uma vez que era, em Dezembro de
2012, de 123,8%, passando para os 127,1% em Março deste ano e tendo agora
subido para os 131,4%, como vimos. E não
consegue pela boa e simples razão de que o aumento da dívida não tem, como
vimos e veremos, a sua fonte de crescimento acelerado no alegado
sobredimensionamento do Estado Social.
Conclui-se do exposto que a primeira
justificação genérica do governo para o corte das pensões de aposentação da CGA
não tem qualquer relação pertinente com o sistema previdencial contributivo de
que elas são emanação. Resulta apenas de uma tentativa canhestra de atirar
poeira para os olhos da população em geral.
B.
2ª justificação: gastamos demais com o Estado social
Uma segunda
justificação do
governo para fazer cortes nas pensões da CGA, é apresentada nos seguintes
termos, muito semelhantes aliás aos das prelecções que o dr. Medina Carreira
nos faz todas as 2ªs feiras numa estação de televisão:
«Ao
mesmo tempo, Portugal apresenta um nível de despesa pública desproporcionada
face à sua riqueza: em 2013, a despesa pública total (48,6%) estará próxima da
U.E. (49,2%), mas a riqueza produzida por habitante será apenas de 60% da média
europeia (15.600 em Portugal, e 25.700 na U.E. Portugal tem hoje um nível de
despesa excessivo que, como provam os défices persistentes, não consegue
financiar» («Exposição de Motivos», p. 4).
Por incompetência ou por desonestidade
intelectual (o leitor escolherá a hipótese que se lhe afigure mais plausível),
comparam-se duas coisas diferentes — despesa pública em % do PIB com PIB por habitante — para tirar conclusões tecnicamente erradas. É
o mesmo que comparar laranjas com diospiros com o pretexto de que são ambos da mesma
cor. Para o provar, observem-se os dados do quadro 1 mais abaixo.
Os dados do quadro, que são os
divulgados pelo Eurostat, revelam que, em 2012 (não existem ainda dados
fidedignos publicamente disponíveis para 2013), o PIB médio por habitante da União
Europeia (27 países) era de 25.712 euros e, em Portugal, de 15.668 euros, ou
seja, o PIB médio por habitante em Portugal correspondia a 60,9% do da UE-27.
No mesmo ano, a despesa pública por
habitante era na UE-27 de 12,676 euros e em Portugal de 7.442 euros, ou seja,
correspondia apenas a 58,7% da despesa pública por habitante na União Europeia.
Quadro 1
Países
|
PIB 2012
Milhões de euros
|
População 2012
|
PIB por habitante
|
Despesa pública em
% do PIB 2012
|
Despesa Pública por habitante
|
UE-27
|
12.923.199
|
502.623.021
|
25.712 €
|
49,3%
|
12.676 €
|
Portugal
|
165.174
|
10.542.398
|
15.668 €
|
47,5%
|
7.442 €
|
% Portugal em relação à UE-27
|
60,9%
|
|
58,7%
|
Fonte: Eurostat
Mesmo se utilizarmos as percentagens que
constam da «Exposição de Motivos» (2013: Portugal: 48,6%; UE-27: 49,2%) basta
fazer a contas para verificar que a despesa pública por habitante representaria
em Portugal 60,1% da despesa pública por habitante na UE- 27.
Portanto, é falso afirmar que «Portugal tem
um nível de despesa excessivo» (entenda-se, de despesa com as funções sociais
do Estado, pois é essa parte da despesa pública que está aqui em causa), como o
governo afirma na sua «Exposição de Motivos». Os dados do Eurostat mostram
exactamente o contrário: que a despesa pública por habitante é muito inferior à
da média da União Europeia. Esses dados mostram também que não são as despesas
com o Estado social que são a causa dos «défices persistentes que não se
conseguem financiar». As seis razões principais desses défices foram já indicadas
na secção 2.A deste texto. Elas foram todas agravadas pela política
deliberadamente recessiva seguida pelo governo nos útimos três anos.
C.
3ª justificação: o sistema previdencial não é um sistema de capitalização, logo
não tem pernas para andar por si próprio
A terceira justificação genérica que o
governo invoca para os cortes nas pensões de aposentação da CGA — a mesma que
utiliza para a chamada Contribuição Extraordinária de Solidariedade (que se
aplica a todos os aposentados, quer da
CGA quer do CNP) — é a de que o sistema previdencial público é um sistema de
repartição e, como tal, incapaz de gerar reservas próprias como os sistemas de
capitalização. A este respeito, podemos
ler na «Exposição de Motivos» as três afirmações seguintes, extraídas das páginas 8 e 9.
(i)
«Tanto o sistema previdencial do regime
geral como o regime de proteção social convergente são geridos em sistema de
repartição, o que significa que as pensões em pagamento são suportadas pelas
contribuições atuais dos trabalhadores e empregadores(…)».
(ii) «Este
modelo de financiamento, que não assegura a cobertura das responsabilidades dos
direitos em formação através da constituição de provisões, como sucede nos
regimes geridos em sistema de capitalização, tem subjacente um princípio de
solidariedade entre gerações, pressupondo que a geração no ativo suporte o
pagamento das pensões da geração aposentada ou reformada.
(iii)
«A sustentabilidade deste modelo em que
ninguém financia com o seu esforço
contributivo a sua própria pensão, depende da evolução, por natureza incerta
quando projectada a longo prazo, de vários factores (…)»
Estas alegações são ambíguas, enviesadas
e enganadoras. Um exemplo de ambiguidade é a expressão «regime de protecção
social convergente» que mais não é, como veremos, do que uma alusão à Fénix que o governo promete que renascerá
das cinzas da CGA. Quanto às alegações enviesadas e enganosas, delas se dará a
conta no que segue.
1. A Segurança
Social em Portugal inclui dois sistemas públicos diferentes, com missões
diferentes e modos de financiamento diferentes. Esses dois sistemas são: (1) o
sistema previdencial e (2) o sistema de protecção social de cidadania.
O sistema previdencial inclui os trabalhadores
da função pública, por um lado, e os trabalhadores por conta de outrem e por
conta própria do sector privado, por outro. O sistema previdencial é um sistema
contributivo, autofinanciado e misto. As
contribuições dos trabalhadores da função pública são admnistradas pela CGA; as
dos trabalhadores do sector privado são admnistradas pelo CNP (ISS).
O sistema de protecção social de
cidadania inclui três subsistemas cuja destrinça não é pertinente para o caso
em apreço. O sistema de protecção social de cidadania é um sistema não
contributivo e, por conseguinte, não autofinanciado.
2. Afirmar que o
sistema previdencial da segurança social (CGA e CNP) é um sistema contributivo e autofinanciado é o mesmo que dizer que foi concebido para não
precisar de ser alimentado com verbas do Orçamento de Estado, visto que tem
como fonte de financiamento suficiente as contribuições dos trabalhadores e das
entidades empregadoras (públicas ou
privadas, com ou sem fins lucrativos). A contribuição do trabalhador é
financiada por uma parcela do seu salário. A contribuição da entidade empregadora
é financiada por uma parcela da riqueza (bens ou serviços) gerada pelo
trabalhador. Por isso, o sistema previdencial não constitui qualquer encargo
para o Orçamento de Estado, cuja fonte de receita são, como toda a gente sabe,
os impostos (que os trabalhadores e aposentados também pagam, sejam eles do
sector privado ou da função pública). Na verdade, o sistema previdencial não
constitui sequer, tecnicamente, uma “despesa social” do Estado, por muito que
isso não caiba na cabeça do dr. Medina Carreira e de outros fiscalistas da
mesma índole. Quando muito, e por abuso do poder, constitui uma fonte de
receita para alguns governos que dele se servem para cobrir défices
orçamentais, como veremos mais adiante.
O sistema
de protecção social de cidadania da segurança social abrange pessoas que,
na sua grande maioria, nunca descontaram para o sistema previdencial, mas que,
devido à sua situação de pobreza, de carência, de dependência, de
vulnerabilidade ou de exclusão social, precisam de uma ajuda do resto da
sociedade para poderem sobreviver em condições minimamente dignas. Por isso,
este sistema é financiado (e bem) pelo
Orçamento de Estado, ou seja, por todos quantos pagam impostos.
O governo, na «Exposição de Motivos», diz
que o sistema previdencial é um sistema de repartição. Isso não é exacto. O
sistema previdencial é um sistema misto,
um sistema de repartição e de capitalização
(artigo 8º, alínea C; artigo 91º, nº1 nº2; artigo 97, nº2; da lei nº4/2007).
Qualificar o nosso sistema previdencial
de sistema de repartição não
significa, como é dito na «Exposição de Motivos», que «as pensões em pagamento são suportadas pelas contribuições atuais dos
trabalhadores e empregadores(…)». Essa
é uma maneira muito tacanha e enviesada de descrever a realidade, porque ignora
que o sistema previdencial português, passou, desde que vivemos em democracia,
por várias fases: (1) numa primeira fase, a que os especialistas chamam de
“juventude”, o número de aposentados era baixo, sendo muito inferior ao dos
subscritores. Consequentemente, o gasto com pensões de aposentação era reduzido
e as receitas da CGA eram elevadas (e podiam ter sido ainda muito mais elevadas,
como veremos adiante). (2) Segue-se uma segunda fase, que os especialista
qualificam de “fase adulta”, em que o número de aposentados duplica, enquanto
número de subscritores tem um crescimento reduzido. (3) Finalmente, entrou-se
numa fase, qualificada de «grande maturidade do sistema», que é a actual, em
que o número de aposentados se aproxima rapidamente do número de subscritores.
Veremos mais adiante quais as razões para este facto. Seja como for, é só em
relação à terceira fase que tem algum cabimento dizer (e mesmo assim com
qualificações) que as pensões em pagamento estão mais estreitamente dependentes
do número actual de subscritores.
Dizer que o sistema previdencial é um
sistema de repartição não significa, portanto, dizer que uns trabalham e
descontam para os outros não terem de trabalhar nem de descontar, porque todos
trabalharam ou trabalham e todos descontaram ou descontam para poderem não ter
de continuar a trabalhar e a descontar até morrerem. Dizer que o sistema
previdencial é um sistema repartição significa pois, isso sim, que é gerido com
base no princípio: «um por todos e todos por um». Esse princípio engloba e
sintetiza todos os outros que são mencionados na Lei de Bases da Segurança Social,
entre os quais, o da solidariedade, da coesão intergeracional, da igualdade, da
equidade social, da diferenciação positiva e da universalidade (artigo 5º,
«Princípios Gerais» da lei nº4/2007).
Mas o sistema previdencial não é apenas
um sistema de repartição, é também um sistema de capitalização. Isso significa
que uma percentagem (entre 2% e 4%) das contribuições dos trabalhadores e das
suas entidades empregadoras, caso sejam trabalhadores por conta de outrem, reverte
para um fundo especial, denominado Fundo de Estabilização Financeira da
Segurança Social (FEFSS). Este fundo é gerido em regime de capitalização e destina-se a manter uma almofada
financeira que permita acautelar o pagamento das pensões de aposentação por um
período mínimo de dois anos (artigo 91º da lei nº4/2007), mesmo no caso de uma
situação catastrófica imprevisível.
É portanto completamente falso que o
sistema previdencial não consiga «constituir provisões», como se afirma na
«Exposição de Motivos». Esta afirmação é verdadeiramente espantosa, dado que a carteira
de activos financeiros do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social
ascendia, no final de 2012, a 10.994,4 milhões de euros, o valor mais alto de
sempre (Fonte: Relatório de Acompanhamento da Execução do Orçamento da
Segurança Social. Tribunal de Contas).
O governo sabe isso muito bem, visto que
quer utilizar esse Fundo como instrumento para obter receitas extraordinárias
para fazer baixar os défices orçamentais do Estado. Ainda recentemente, foi
amplamente noticiado pela imprensa a obrigação que o governo impôs a este Fundo
de comprar dívida pública portuguesa em montantes elevadíssimos — até 90% do
total dos activos em carteira (Fonte: Portaria
n.º 216-A/2013, de 2 de Julho) — muito para além do que aconselha uma
gestão prudente. Foi esta a última decisão do ministro Vítor Gaspar antes de se
demitir do governo, depois de ter reconhecido que a sua política austeritária
tinha falhado em toda a linha. Com esta manobra o governo espera matar dois
coelhos de uma cajadada: por um lado, baixa o rácio da dívida pública para
valores mais próximas dos exigidos pela «troika», visto que a dívida detida por
entidades que estão dentro do âmbito da administração pública não é
contabilizada na dívida pública, e, por outro lado, segura o valor das taxas de juro no mercado secundário. Mas
essa é também uma manobra perigosa que poderá pôr em risco o pagamento futuro
das pensões de aposentação dos portugueses. Como vários especialistas
alertaram, ao pôr “os ovos todos no mesmo cesto”, o FEFSS pode sofrer grandes
perdas, se a dívida pública portuguesa vier a ser reestruturada.
3. É portanto
falso dizer que, no sistema previdencial actual, «ninguém financia com o seu
esforço contributivo a sua própria pensão». A menos que se considere (o que não
é de excluir) que esta frase expressa tão só um lamento: o de que a contribuição
de todos os trabalhadores (tanto da função pública, como do sector privado)
para o sistema previdencial da segurança social e o valor dos benefícios que
ele garante aos seus subscritores não sejam fixados arbitrariamente pelos
governos de plantão. Mas não temos nenhuma razão, como cidadãos livres de um
país democrático, para lamentar esse facto. É que, se assim fosse, teríamos um
regime assistencialista em que os governos decidiriam a seu bel-prazer o que
cada um tem ou não tem direito de receber em troca das suas contribuições. Não
é o caso, felizmente (pelo menos se pusermos de lado momentâneamente as normas
inconstitucionais contidas nos OE de 2012, 2013 e 2014 e o decreto 187/XII, em
que o governo se arroga abusivamente esse direito).
A taxa contributiva (a percentagem das
remunerações ilíquidas dos trabalhadores com que estes e as entidades empregadoras
contribuem para o sistema previdencial) é fixada actuarialmente (artigo 57, nº3, da lei 4/2007), isto é, por
cálculos matemáticos especializados feitos por peritos na disciplina actuária,
em função do custo financeiro de protecção das seis eventualidades previstas no
sistema previdencial contributivo: 1.velhice (as pensões de
aposentação para os civis e as pensões de reforma para os militares e agentes
policiais); 2. Doença (doença profissional
e acidentes de trabalho); 3. morte (as pensões
de sobrevivência, mais conhecidas por pensões de viuvez). 4. desemprego (o
chamado “subsídio de desemprego”, que não é uma benesse dada por qualquer
potestade governamental, mas uma prestação pecuniária a que o trabalhador tem
direito nessa eventualidade); 5. invalidez
(pensões de invalidez) e 6. parentalidade (vulgarmente conhecida por licença de
maternidade e abonos de família).
4. Esses cálculos
actuariais são, por imperativo legal (artigo 51º, nº2, da lei nº110/2009,
Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social)
revistos de cinco em cinco anos, o que explica as variações que a taxa
contributiva tem sofrido ao longo das décadas. Assim, quaisquer alterações
nestas taxas têm de ser feitas com base em cálculos actuariais, e as obrigações
do Estado perante os trabalhadores nas seis eventualidades previstas decorrem
do valor das contribuições calculadas dessa forma.
5. Por último,
importa lembrar que o sistema previdencial da Segurança Social se rege por uma relação sinalagmática (artigo 54º da lei 4/2007), isto é, por um
contrato bilateral que gera obrigações e direitos específicos entre os
contratantes. Através desse contrato, os trabalhadores (e as suas entidades
empregadoras) vinculam-se à obrigação de entregarem ao Estado (representado pela CGA e pelo CNP), uma certa
percentagem mensal do seu salário bruto durante toda a sua vida activa, e o
Estado, em troca, vincula-se à obrigação, entre outras coisas, de lhes devolver
esse dinheiro sob a forma de uma pensão nos montantes fixados pela lei, depois
da sua aposentação. A pensão de aposentação mais não é, portanto, do que um salário diferido no tempo, integralmente
financiado pelas contribuições feitas ao longo da carreira laboral do seu beneficiário.
Por isso, quando o governo actual decidiu
(e conseguiu, apesar de ser inconstitucional) suprimir dois meses de pensões em
2012, decretar um imposto especial só aplicável aos aposentados (a chamada
C.E.S, “contribuição extraordinária de solidariedade”) e pretende agora cortar entre
8% e 12% das pensões dos aposentados da função pública, rompe essa relação
sinalagmática e coloca-se fora da lei, agindo como se fosse um vulgar assaltante de “esticão”.
Concluímos assim que 3ª justificação do
governo não tem, como as anteriores, correspondência com os factos.
D.
4ª justificação: a situação financeira da CGA
A quarta justificação que o governo
invoca na sua «Exposição de Motivos» para os cortes que pretende fazer nas
pensões de aposentação da CGA são as dificuldades financeiras que este
organismo enfrenta. Essas dificuldades, segundo o governo, decorreriam de três
ordens de factores: (a) uns de política legislativa, (b) outros de natureza
demográfica e (c) outros ainda de natureza económico-financeira (p.16).
Na verdade, as dificuldades financeiras
actuais da CGA, que são reais, resultam da conjugação de quatro factos que englobam
os factores (a) e (c). (O factor (b), como veremos na secção E, é um assunto de
natureza inteiramente diferente). Os quatro factos relevantes são os seguintes, por ordem crescente de antiguidade
e também de importância:
(1) A desconfiança no Estado como pessoa
de bem, capaz de honrar os seus contratos com os cidadãos; (2) A utilização da
CGA como instrumento para gerar receitas extraordinárias, mas sem base de
sustentação a longo prazo; (3) A
transformação da CGA num sistema fechado; (4) A descapitalização da CGA levada
a cabo durante muitos anos por sucessivos governos. Examinemo-los um por um.
(1) Desde 2005, o Estatuto da
Aposentação sofreu contínuas alterações, agravadas a partir de 2011. Desde
então sucederam-se também, sobretudo na função pública, cortes nas remunerações,
confisco de subsídios e pensões, ameaças de transferências para outras zonas
geográficas, colocação de trabalhadores na “prateleira” através da mobilidade especial,
com a consequente redução de remunerações, despedimentos e ameaças de despedimentos
de dezenas milhares de trabalhadores da função pública procurando apresentá-los
à opinião pública como privilegiados. Este clima de intimidação psicológica, de
desconsideração, de insegurança jurídica generalizada, gerou uma grande
desconfiança no Estado como pessoa de bem, capaz de honrar os seus contratos
com os seus funcionários, empurrando prematuramente para a aposentação milhares
deles. Estes preferiram optar por uma pensão reduzida pelas penalizações
inerentes a uma aposentação antecipada (mas que lhes afigurava ser pelo menos
certa), à pensão completa no tempo devido para o efeito (que passaram a olhar
como uma incógnita muito mais ameaçadora dos seus direitos). Tudo isto agravou
as dificuldades financeiras da CGA, já que reduziu as contribuições e aumentou
significativamente a despesa com o pagamento de pensões, ainda por cima na sua
fase de «grande maturidade». A este fonte, muito recente, de dificuldades
financeiras da CGA acrescem as três seguintes mais antigas.
(2) No passado recente, vários fundos de
pensões autónomos, designadamente de empresas públicas (p.ex. Caixa Geral de
Depósitos), privatizadas (p.ex. ANA, PT, CTT) ou ex-privadas (Banco Português
de Negócios) foram transferidos para a Caixa Geral de Aposentações. Estas
operações geraram uma receita extraordinária para cobrir os défices orçamentais,
objectivo dos sucessivos governos responsáveis por essas transferências.
Todavia, para os trabalhadores envolvidos e para a CGA esse processo foi um
péssimo negócio. As perdas de valor que esses activos sofreram (alguns deles
provavelmente já sobrevalorizados no momento da sua transferência para a CGA) tornaram-nos
insuficientes para pagar as pensões dos seus subscritores. No fim de 2011, os
prejuízos acumulados na CGA resultantes das perdas do valor desses activos já
ascendiam a 1324,5 milhões de euros, sendo 89,2% dessas perdas referentes aos
activos dos fundos de pensões da ANA, CGD, PT e Marconi (Fonte: Eugénio Rosa. O futuro da protecção social em Portugal e a
sustentabilidade da Segurança Social e da CGA. Este estudo está inserido no
livro: «A Segurança Social é Sustentável». Bertrand Editora. 2013).
(3) A partir de 2006, mais nenhum trabalhador
da função pública se pôde inscrever na CGA e os trabalhadores admitidos na
função pública a partir dessa data, cerca de 100.000 nas estimativas do
governo, passaram a efectuar os seus descontos para o CNP (o sistema
previdencial do sector privado). Desta forma, impediu-se a entrada de novos
fluxos de receitas contributivas na CGA e quebrou-se o princípio básico da
solidariedade intergeracional estabelecido na Lei de Bases da Segurança Social
(lei nº4/ 2007). Entre 2005 e 2012, como consequência da transformação da CGA
num sistema fechado e da aposentação prematura de milhares de trabalhadores, verificou-se
uma redução importante do número de subscritores, que diminuiu em 208.480
(-28,2%). Por sua vez, esta diminuição levou a uma quebra no total de
remunerações sobre as quais são feitos os descontos (-4.357 milhões de euros,
ou seja, -28,5%) e, concomitantemente, a uma redução das receitas da CGA em 326 milhões
de euros (-23,1%), um valor elevado. O número de aposentados, durante o mesmo
período (2005/2012) aumentou em 84.176 (+22,2%), o que é significativo (Fonte:
Relatórios e Contas da CGA.2005-2012). Assim, se a situação não for invertida,
a CGA caminha para uma morte mais ou menos rápida por asfixia financeira. É este
processo de destruição da CGA que a
«Exposição de Motivos» designa eufemisticamente por “sistema de protecção
social convergente”.
(4) Porém, a mais importante e antiga
fonte das actuais dificuldades financeiras da CGA tem sido a sua
descapitalização ao longo de mais de três décadas. O principal porta-voz do
governo nestes assuntos (o secretário de Estado da Admnistração Pública, dr.
Helder Rosalino), proclama em todas as ocasiões que os sucessivos governos não
descapitalizaram a CGA. E essa posição é também expressa na «Exposição de
Motivos»:
«Deste exercício
resulta também evidente não ter qualquer adesão à realidade a ideia de que
seria o facto de os empregadores dos subscritores da Caixa não terem
contribuído historicamente com uma percentagem das remunerações dos seus
funcionários equivalente à existente no regime geral a responsável pelo
desequilíbrio estrutural do regime de proteção social convergente» (p.
15) .
Note-se que o autor da «Exposição de
Motivos» chama “exercício teórico” a uma listagem de pressupostos de um cálculo
que provaria a sua asserção, mas que nunca
chega a fazer ! Perante estas alegações vale a pena reproduzir aqui um quadro
construído pelo doutor Eugénio Rosa («Sustentabilidade da Segurança social e da
CGA, perspectiva futura e impacto na uniformização das pensões». 18-10-2013), com
base nos relatórios e contas da CGA, que ele se deu ao trabalho de estudar para
depois mostrar de forma quantificada as consequências para a CGA da política de
descapitalização de todos os governos constitucionais que tivemos até ao momento, sem excepção.
Quadro 2
ANOS
|
Quotizações dos
trabalhadores
|
Contribuições das
entidades
empregadoras
(e.e)
|
Transferências
do OE para
a CGA
|
SOMA
Contribuições +
OE)
|
Diferença
entre o que as e.e deviam ter pago (23,75%)
à
CGA e o Pago
|
DIFERENÇA
CAPITALIZADA a 4%
|
Anos
|
VALORES EM PERCENTAGEM DAS REMUNERAÇÕES
|
VALORES EM PERCENTAGEM DAS REMUNERAÇÕES
|
VALORES EM PERCENTAGEM DAS REMUNERAÇÕES
|
VALORES EM
PERCENTAGEM DAS REMUNERAÇÕES
|
Milhões de contos até 2001 (inclusive) e milhões de euros a partir de 2002
|
Milhões de euros
|
1993
|
8%
|
1,2%
|
9,1%
|
10,4%
|
199
|
2.178
|
1994
|
10%
|
1,5%
|
9,9%
|
11,4%
|
195
|
2.052
|
1995
|
10%
|
1,5%
|
13,8%
|
15,3%
|
142
|
1.439
|
1996
|
10%
|
1,6%
|
15,2%
|
16,8%
|
126
|
1.219
|
1997
|
10%
|
1,5%
|
16,8%
|
18,3%
|
101
|
941
|
1998
|
10%
|
1,6%
|
17,0%
|
18,6%
|
104
|
935
|
1999
|
10%
|
1,7%
|
16,2%
|
17,9%
|
131
|
1.128
|
2000
|
10%
|
1,6%
|
16,6%
|
18,2%
|
136
|
1.125
|
2001
|
10%
|
1,6%
|
14,9%
|
16,5%
|
195
|
1.559
|
2002
|
10%
|
1,8%
|
16,6%
|
18,5%
|
750
|
1.154
|
2003
|
10%
|
2,8%
|
17,6%
|
20,4%
|
481
|
712
|
MÉDIA %
|
9,8%
|
1,7%
|
14,9%
|
16,6%
|
|
|
FUNDO DE ESTABILIZAÇÃO
FINANCEIRA DA CGA QUE PODIA TER SIDO CRIADO SE OS GOVERNOS NÃO TIVESSEM
DESCAPITALIZADO A CGA — VALOR OBTIDO CAPITALIZANDO À TAXA DE 4% (SÓ O
EXCEDENTE DE 1993-2003)
|
14.447 milhões €
|
Fonte:
Relatórios e Contas da CGA
Antes de examinarmos o que nos ensina
esse quadro, convem esclarecer o seguinte:
o montante actuarialmente fixado para a taxa contributiva global para o
sistema previdencial, também conhecida por taxa social única (TSU), é,
actualmente, de 34,75% da remuneração ilíquida mensal do trabalhador, cabendo
11% dessa taxa (designada oficialmente por “quotizações”, vulgo descontos) ao
trabalhador e 23,75% dela (designada oficialmente por “contribuições”) à
entidade empregadora. Mas esse montante, que se aplica tanto às entidades
empregadoras privadas como as entitades empregadoras públicas, nunca foi, até hoje, pago pelas
entidades empregadoras públicas.
Examinemos então o quadro 2.
1. Como mostram os
dados que dele constam, no período de 1993-2003, a contribuição dos
trabalhadores da função pública (coluna 2 do quadro) correspondeu, em média, a
9,8% das suas remunerações, enquanto o das entidades empregadoras públicas (coluna
3) rondou em média 1,7%, ou seja, quase seis vezes menos. Se adicionarmos a
este montante as transferências do Orçamento de Estado para a CGA (coluna 4), a
que o governo chama “subsídio” (um termo inadequado e enganoso, pois sugere que
se trata de uma benesse quando o que é feito, de facto, desse modo
discricionário, é repor, e só em parte, as contribuições em
falta das entidades empregadoras públicas), o valor obtido é de 16,6% do valor
das remunerações (coluna 5). Esta é uma percentagem bem inferior à da que
pagaram as entidades empregadores privadas para o CNP durante o mesmo período.
Dizer, por isso, que os governos não descapitalizaram a CGA é, no mínimo,
faltar a verdade, e, no máximo, escarnecer dela.
2. Por outro
lado, o mesmo quadro mostra que se se
tivesse rentabilizado os valores não entregues pelo governo à CGA só durante
aquele período (1993/2003) a uma taxa de 4%, que é aquela que o governo aceitou
à PT e aos bancos aquando da transferência dos fundos de pensões destas
entidades para a responsabilidade do Estado, isso teria permitido à CGA ter
agora um Fundo de Estabilização Financeira próprio com mais de 14.400 milhões
de euros (última coluna, última linha separada). E tenha-se presente que este valor diz respeito apenas a
11 anos de descapitalização da CGA, e que esta não foi criada em 1993, data a
partir da qual todos os novos funcionários públicos foram equiparados a
trabalhadores do sector privado no que toca ao sistema previdencial (a chamada
«convergência»).
3. Recorde-se que
só com a lei 64-A/2008 é que as contribuições dos serviços e organismos de
administração pública para a CGA aumentaram as suas contribuições para 7,5% do
valor das remunerações ilíquidas dos trabalhadores. Em 2010, também pela lei do
Orçamento de Estado esse valor subiu para 15%, e em 2013, também por força da
lei do Orçamento, aumentou para 20%. Portanto, mesmo em 2013 continuam a ser
inferiores à percentagem de 23,75% estabelecida para
as entidades privadas.
4. É evidente que
no período anterior a 1993, que é o primeiro ano considerado no quadro, o saldo
em cada um desses anos foi certamente também positivo. Isto porque estávamos
então na fase de “juventude” do sistema, em que o número de aposentados era
muito baixo e o número de subscritores muito mais elevado. Portanto, se fosse
considerado todo o período de existência da CGA desde que existem governos
constitucionais, as reservas acumuladas seriam certamente muito superiores às
calculadas no quadro.
5. Fica assim
claro que a política dos sucessivos governos foi sempre, enquanto a CGA esteve
na sua fase de juventude, e mesmo na sua fase adulta, a de fixar às entidades
empregadoras públicas uma percentagem muito baixa de contribuição para CGA e sempre muito inferior à das entidades empregadoras
privadas. Em seguida, transferiam do OE apenas o necessário para que, adicionado
ao recebido pela CGA, fosse suficiente para pagar as pensões, ficando com a
diferença.
Não é aliás por acaso, observa E. Rosa
num dos seus estudos, que só a partir de 2004 é que os sucessivos governos começaram
a alterar continuamente o Estatuto da Aposentação, mudando as regras do jogo e
começando a falar, cada vez mais, em “reforma da CGA para garantir a sua
sustentabilidade”, mas sem irem ao cerne das causas das suas dificuldades
financeiras, a principal das quais é a descapitalização da CGA, como acábamos
de ver. É que, enquanto o sistema podia produzir grandes excedentes (fase de
juventude) ou excedentes consideráveis (fase adulta), os sucessivos governos
apropriaram-se desses excedentes canalizando-os para outros fins. Quando o sistema
alcançou a maturidade, procuraram
resolver o problema resultante da falta de reservas reduzindo as pensões dos
trabalhadores, e atirando para cima destes as consequências da sua imprevidência
e má gestão. E o campeão absoluto nesta matéria é, sem qualquer dúvida, o
governo actual.
Perante a análise feita, não se sabe pois
o que mais devemos admirar: se a maleza ou se o desplante destas passagens da «Exposição
de Motivos»:
«O nível de
autofinanciamento das prestações pagas pela Caixa (pensões de aposentação e
sobrevivência atribuídas) por contribuições recebidas dos trabalhadores e das
entidades públicas empregadoras situa-se, em 2013, pouco acima dos 40%, sendo os restantes quase 60% (mais do
triplo da taxa contributiva real do empregador no regime geral da segurança
social para as eventualidades velhice, invalidez e morte) cobertos por transferências do Orçamento do Estado, ou seja, por
impostos ou por recurso ao endividamento. (…)
A evolução
previsível dos fatores críticos para a sustentabilidade financeira estrutural
da Caixa aponta no
sentido da continuação da degradação da situação, num momento em que
desequilíbrios orçamentais estruturais do Estado, vinculações internacionais
relacionadas com estes mesmos desequilíbrios e a situação económica do País não permitem continuar, como até aqui, a
aumentar anualmente o valor da contribuição para a Caixa. O défice anual da
Caixa ascende a 2,6% do PIB, com tendência crescente, situação que se afigura
insustentável, pelas razões expostas em 1 (p.17).
Acresce que existe
também uma enorme desproporção entre
aquilo que é o nível de pensões da Caixa e o esforço contributivo realizado
pelos seus beneficiários, que, recorda-se, contribuíram para aposentação e
pensão de sobrevivência com uma percentagem da sua remuneração de 7% até 1984,
de 8% entre 1985 e 1993, de 10% entre 1994 e 2010 e de 11% desde 2011» (p.14). (A
enfâse, em todas as citações, foi acrescentada por mim. JMCS).
O mundo é assim virado do avesso: «a
enorme desproporção do esforço contributivo» não é a das entidades empregadoras
públicas (que sempre cumpriram “exemplarmente” as suas obrigações, como atesta
o quadro 2 que analisámos), mas a dos trabalhadores da função pública, esses
inqualificáveis “privilegiados” que querem arruinar o país com as suas “extravagantes”
pensões de aposentação e de sobrevivência.
Concluamos a análise da 4ª justificação
do governo.
Sim, as dificuldades financeiras da CGA são
bem reais e muito sérias, mas resultam exclusivamente da imprevidência e da má
governação dos governos. Não podem ser imputadas aos trabalhadores e aposentados
da função pública que a elas são completamente alheios.
Sim, essas dificuldades são todas resolúveis,
mas para isso é necessário, primeiro e antes de mais, assegurar que o governo
actual não possa causar mais prejuízos
do que aqueles que já causou. É imperioso, por conseguinte, que o decreto 171/XII vá parar também ao
arquivo morto onde jazem os decretos e as leis que provaram, após exame
crítico, não ter razão de existir no Portugal democrático.
Ficaremos assim com o tempo e a disponibilidade
suficientes para debatermos as medidas necessárias à solução das dificuldades com
que se debate a CGA, e a sua relação com o sistema previdencial no seu todo —
um tema mais vasto que não foi (nem podia ser) abordado neste texto. O estudo
citado («O Futuro da Protecção Social em Portugal e a Sustentabilidade da
Segurança Social e da CGA». 2013) sugere algumas dessas medidas; por isso, é de
leitura obrigatória para quem se interesse por este assunto. Existirão, sem
dúvida, outras soluções a acrescentar, que o estudo e o debate informado entre
pessoas intelectualmente honestas se encarregarão de trazer à luz do dia.
E.
5ª justificação: equidade entre gerações e demografia
A quinta justificação utilizada pelo governo para fazer
cortes nas pensões da CGA é a da equidade (ou solidariedade) entre gerações que
estaria ameaçada pela demografia: o aumento da esperança média de vida dos
aposentados e o envelhecimento da população dos subscritores («Exposição de
Motivos», p.16).
Na sua formulação técnica mais corrente a
interacção entre os dois factores mencionados expressa-se da seguinte forma: o rácio activos/inactivos,
que é um dos indicadores estruturais a ter em conta nos cálculos actuariais do
financiamento do sistema previdencial, tem vindo a diminuir. No caso particular
da CGA, esse rácio era, no final de 2012, de 1,15 subscritores no activo por
cada aposentado, um valor que cai ainda mais se forem levados em linha de conta
os pensionistas de sobrevivência (Fonte:Relatório e Contas da CGA. 2012).
Convem sublinhar que este rácio se situa em quase metade do verificado há 10
anos (2,19) o que, por si só, ilustra bem os efeitos letais da transformação da
CGA num sistema fechado.
Já examinámos (secção D) esta e outras
razões específicas das dificuldades da CGA, as quais se somam aos efeitos
gerais da política recessiva do actual governo vem conduzindo.
Porém, os adversários do sistema
previdencial público não querem saber dessas razões específicas, nem tão pouco
desses efeitos gerais. Este rácio é, para eles, o pretexto que julgam ideal
para profetizarem a insustentabilidade do sistema previdencial, alegando que
são os trabalhadores no activo, em especial os mais jovens, que têm de
sustentar com as suas contribuições as pensões de uma multidão cada vez mais
numerosa de velhos que teimam em viver mais tempo em média do que viviam os
seus respectivos pais, avós e bisavós e que, por isso, quando chegar a vez dos
actuais subscritores do sistema previdencial passarem à aposentação, já o
sistema estará falido, ou reduzido a uma sombra do que é hoje. Por isso,
aplaudem, alguns com entusiasmo, medidas como as que estão contidas no decreto
nº187/XII.
Não parecem suspeitar, porém, que se as
medidas que aplaudem tivessem êxito, eles seriam as suas vítimas seguintes. As
duas passagens seguintes da «Exposição de Motivos» são muito claras a esse
respeito:
(…) um aposentado
recebe, em média, pensão durante 18,1 anos e
depois ainda deixa aos herdeiros uma pensão de sobrevivência de cerca de
metade da pensão de aposentação (p.15).
A solidariedade
entre gerações não pode deixar de ser bidirecional, dos trabalhadores ativos
para com os pensionistas, mas igualmente destes para com aqueles, não podendo
razoavelmente exigir-se aos primeiros um esforço desproporcionado para aquilo
que são as suas capacidades e para aquilo que serão previsivelmente os
benefícios que colherão no futuro do sistema, isto mesmo admitindo que as
novas regras não serão também elas alvo de alteração em sentido desfavorável no
futuro (p.14).
Este “argumento demográfico” (para lhe
dar um nome que não merece) impressiona pelo seu mal disfarçado ataque a uma
das mais marcantes conquistas civilizacionais do Portugal democrático: a de ter
conseguido, em menos de 40 anos, aumentar a esperança média de vida da sua
população (que passou de 13,5 anos aos 65 anos, em 1970, a 18,8 anos aos 65
anos, em 2012), proporcionando-lhe condições de vida mais dignas do que as que
prevaleceram em qualquer outro período do seu longo passado histórico. Mas tão
ou mais impressionante ainda do que esta diatribe é, porventura, a exibição que
os autores deste argumento fazem da sua ignorância crassa, mas atrevida, onde
vão buscar a sua sustentação. Bastam por isso meia dúzia de linhas para o fazer
cair como um castelo de cartas.
Convém saber que a taxa média de
crescimento da produtividade em Portugal foi de 2,9% ao ano entre 1953 e 2011. Ora,
o professor Pedro Nogueira Ramos (da faculdade de economia da Universidade de
Coimbra, ex-director das Contas Nacionais do INE), mostrou recentemente que
bastaria um aumento médio da produtividade de 0,23% até 2030, e de 0,36% até
2060 para compensar a regressão demográfica (Fonte. Pedro Nogueira Ramos. Torturem os números que eles confessam.Almedina.
2013).
Conclusão
Depreende-se de tudo quanto foi dito nas
secções anteriores que o decreto n.º
187/XII não estabelece qualquer mecanismo de convergência entre as pensões de
aposentação da CGA com as do CNP.
Do que se trata, isso sim, é de operar
um corte profundo e permanente nas pensões de aposentação dos trabalhadores da
função pública que os deixaria numa situação de grande divergência e inferioridade
em relação aos actuais e futuros aposentados do sector privado — um corte ainda
por cima aplicável, retroactivamente, às pensões em pagamento (artigo 7º do
decreto nº187/ XII), o que configura uma clara violação do artigo 12º do código
civil e, por consequência, da Constituição da República Portuguesa, uma vez que
aquele está em conformidade com esta.
José
Manuel Catarino Soares
3 de
Dezembro de 2013