Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

02 outubro, 2015

TEMA 2


CIÊNCIA DE PACOTILHA

(a propósito das eleições de 4 de Outubro)

No Público de 29-09-2015, um investigador italiano, de seu nome Luigi Castelli, do Centro de Neurociências Cognitivas da universidade de Pádua, vem informar-nos que « não cumprir promessas eleitorais não implica sanções ».

Concretizando, no seu douto parecer, os políticos profissionais podem mentir à vontade, dar o dito por não dito, fazer exactamente o contrário do que afirmaram antes de ser eleitos, que os cidadãos não os vão castigar por esse comportamento, quando lhes for dado oportunidade para isso (numas eleições, por exemplo).

O «psicólogo» (é o termo que o Público emprega para o definir) Luigi Castelli diz-nos que « não tem dúvidas quanto ao facto de ser de somenos importância o não cumprimento das promessas eleitorais, ou seja não tem consequências negativas para o incumpridor. Neste caso, o político ».

« Para qualquer um de nós », diz o sr. Castelli, « é muito fácil esquecer, razão pela qual são feitas tantas promessas. Com o correr do tempo, uma promessa sobrepõe-se à anterior com facilidade. O político invoca sempre as circunstâncias − aliás, um dos atributos dos políticos é conseguir mudar a agenda e basta fazê-lo para se esfumar a promessa não cumprida». Por isso, este perito em neurociências cognitivas considera ainda válidas as observações de Quinto Túlio, irmão mais novo de Cícero, sobre a forma de ganhar as eleições: « Se faltares a uma promessa, as consequências são incertas e o número de pessoas afectadas é reduzido ». Era assim no ano 64 antes de Cristo. E continua a ser assim hoje, afirma, desenvolto, o neurocientista cognitivo Luigi Castelli, sem parecer reparar que, ao fazê-lo, nos diz que as novéis “ciências neurocognitivas” não nos conseguem dizer nada de novo, nada que não se conheça, sem elas, há (pelo menos) 2079 anos!

Em suma, segundo o senhor Castelli, somos (todos) muito parecidos, se não mesmo iguais, a um rebanho de carneiros obedientes e ovelhas bem comportadas, entretidos todos os dias a tasquinhar as suas ervinhas, e ruminando: «que bem que sabem», «como é, afinal, tão lindo este prado» (se abstrairmos da presença daquele cão de guarda acolá, mas não digamos mal dele: ele pode ser rude e morder-nos nas canelas, mas o pastor contratou-o para nos defender dos lobos maus que vivem além, na floresta escura »), esquecidos já das maldades que o pastor nos fez na véspera e na antevéspera, e na ante-antevéspera.

Não tenho dúvidas de que William James, Jean Piaget, Lev Vigotsky, Egon Brunswick e tantos outros psicólogos, oferecerão as suas obras completas como prenda ao nosso Luigi Castelli, quando este chegar à antecâmara do paraíso dos psicólogos, com esta amigável dedicatória como bónus: « Luigi, tens ainda uma oportunidade de te redimires das análises fumarentas da política que andaste a fazer lá na Terra, usurpando o nome « psicologia ». Toda a tua “ciência neurocognitiva” é uma versão requentada da « República»  de Platão, um tratado brilhante sobre a maneira como organizar a sociedade para que seja um vale de lágrimas para uns e a terra do leite e do mel para outros. Admiramos o teu inaudito descaramento, mas é a admiração contrita que nos suscitam todos os vendedores de banha de cobra. Fica pois a saber que esta antecâmara deserta em que te encontras (a que chamamos “habitáculo de desinfestação”), não é o local onde nós habitamos. É um local vagamente parecido com o que o teu compatriota Dante chamava « o purgatório », só que, aqui, o único suplício que infligimos a pessoas como tu é a actividade que constitui para nós o maior prazer. Sim, adivinhaste, estudar. Não te faltará tempo para aprenderes alguma coisa. Alegra-te. Tens a eternidade toda para te cultivares. Quando achares que aprendestes alguma coisa de psicologia, quando deixares de esconder a tua ignorância e a tua má-fé atrás de nomes espampanantes (mas com mais buracos do que um queijo suíço) como “ciências neurocognitivas”, chama-nos. Estamos ali, na porta ao lado ».

Mas voltemos à actualidade e adoptemos provisoriamente as categorias platónicas de Luigi Castelli: ovelhas, carneiros, pastores, cães de guarda, etc. Olhemos o mundo como ele o olha e traduzamos a sua ciência neurocognitiva em linguagem comum. Através de uma conferência de imprensa imaginária no Centro Cultural de Belém.

Perguntador: O senhor é um cientista neurocognitivo. Por isso, causa-me alguma estranheza a maneira como fala. Acredita mesmo que o eleitorado português é constituído maioritariamente por carneiros e ovelhas?

Cientista neoplatónico: Creio que sim, metaforicamente falando, claro. Não tenho nada contra que se utilize o vocabulário corrente: dirigentes ou «leaders» ou governantes, eleitores ou cidadãos, etc. Mas nós, cientistas neurocognitivos, preferimos utilizar um vocabulário mais enxuto e preciso. Por isso, falamos em «pastores» e «rebanho». É, na sua essência, a polaridade básica subjacente às modernas democracias, a que chamamos democracias pastoris. Dou-vos um exemplo actual.  As sondagens dão uma maioria à coligação Pàf  (PSD e CDS) que suporta o actual governo. Isso só pode ser explicado pela existência de um sector muito vasto da vossa população que interiorizou a narrativa do governo. Recordo-vos o essencial dessa narrativa, não na linguagem adornada que utilizam os pastores para se dirigirem ao rebanho, mas na linguagem enxuta que utilizamos para a descodificar.

O que dá algo como isto:  “ Portuguesas e Portugueses ! Sois, como bem sabeis, pacíficos e cordatos carneiros e ovelhas. Nós somos, como também bem sabeis, os vossos pastores, e com muito orgulho. É um privilégio sermos os pastores de um rebanho tão sereno como o vosso. Não nos agrada de todo, como malevolamente insinuam os carneiros e ovelhas mutantes, verdadeiras aberrações, termos sido forçados pelos nossos credores a tosquiar-vos à bruta e a mandarmos os nossos cães morder-vos forte e feio nas canelas durante estes anos invernosos, para acudir às necessidades urgentes de liquidez dos nossos banqueiros, dos nossos parceiros privados das parcerias público-privadas, do nosso sector exportador, enfim, daqueles que fazem o mundo pular e avançar. Mas não havia outra opção. Os vossos pastores anteriores (e também, hélas, alguns dos pastores da nossa própria família anteriores aos anteriores) não nos deixaram outra opção. Queriam aplicar-vos uma dose  de um medicamento homeopático chamado PEC 4. Não podia ser! A homeopatia, como sabem, é medicina para papalvos. Para grandes males, grandes remédios. Numa emergência destas era preciso aplicar doses maciças de um medicamento poderoso e com provas dadas, chamado « austeridade », inventado nos laboratórios do FMI, a empresa farmacêutica especializada nos males da economia com mais pergaminhos no mundo inteiro. É um remédio amargo, com efeitos secundários devastadores. Mas resulta!”.

Perguntador: Desculpe interrompê-lo. Mesmo assim, é espantoso constatar a bonomia ou pelo menos a resignação com que o povo português aceitou esse remédio, comparado com o que aconteceu na Grécia, por exemplo. A única explicação que me ocorre é uma frase de Oliveira Salazar (paz à sua alma) que gostava de dizer que o povo português é, cito, um “povo de brandos costumes”. Será esta uma explicação válida?

Cientista neoplatónico (rindo): Bem, podemos dizer que sim, se tivermos o cuidado de inverter o nexo de causalidade implícito na sua pergunta. Não é ao povo português que devemos atribuir a brandura dos seus costumes; é a política do Dr. Salazar, uma combinação muito bem doseada, durante quarenta anos, de coerção estatal brutal (PIDE, Tarrafal, etc.) sobre as ovelhas ranhosas − as ovelhas mutantes como nós lhes chamamos hoje − com uma narrativa muito bem construída para as ovelhas normais (« Beber vinho é dar o pão a 1 milhão de portugueses», « Houve sempre e haverá sempre pobres e ricos», « Somos pobres mas honrados», etc.).

Claro, os tempos não são os mesmos. A narrativa dos pastores tem de evoluir, tem de adaptar-se às transformações do nosso mundo. Em democracia, a coerção estatal brutal não funciona. Mais, é contraproducente. Produz efeitos ecológicos favoráveis ao aparecimento de um número muito elevado de ovelhas e carneiros mutantes. Isso é péssimo para a estabilidade governativa e para a confiança dos investidores, os dois factores a que as agências de notação financeira são supersensíveis. É a receita garantida para a dívida soberana de um país receber a menção «lixo» dessas agências, à qual se segue o cortejo de consequências avassaladoras que todos conhecemos bem. Por isso, o vosso governo, muito judiciosamente, produziu uma narrativa bem adaptada às novas circunstâncias. Uma narrativa simples, como convém às mentes crédulas, um tanto ou quanto infantis, das ovelhas e dos carneiros normais (sem desprimor para os senhores jornalistas aqui presentes, que coloco numa categoria diferente, pois cabe-lhes o nobre papel de servirem de mediadores, de mensageiros, entre os pastores e os rebanhos, metaforicamente falando, claro).

Perguntadora: E em que categoria se coloca o senhor?

Cientista neoplatónico: Bem, obviamente, numa categoria diferente da sua, senhora jornalista. Nós somos cientistas, observadores imparciais da realidade que vos descrevi; a realidade neurocognitiva dos seres humanos, tal como ela se manifesta nas sociedades modernas.   

Mas permitam-me que regresse ao ponto em que estava quando o seu colega  me fez a pergunta anterior à sua (perguntas ambas muito pertinentes, por sinal, e que desde já agradeço). Eu preparava-me precisamente para descrever a segunda componente da narrativa do governo.

Algo como isto: “Portuguesas e Portugueses! O governo anterior (e os outros governos anteriores da mesma família de pastores) deu-vos erva a mais, prados verdejantes a mais para poderdes tasquinhar a vosso bel-prazer. Foram governos esbanjadores. Mas não há almoços grátis, como o nosso mais eminente economista está fartinho de explicar. Agora chegou a hora de pagar a factura desse comportamento um tanto ou quanto estouvado, desculpem-nos a franqueza. A verdade é que vivíeis acima das vossas possibilidades. Por isso tivemos, ainda que a contragosto, de vos tosquiar a eito, à bruta mesmo, mas foi para vosso bem. E tivemos também de reduzir drasticamente a vossa ração de erva diária, para nosso grande pesar. Aproveitamos esta oportunidade para agradecer e louvar o trabalho notável da sociedade civil, em particular do Banco Alimentar e das IPSS. Essas organizações permitiram mitigar as agruras dos mais vulneráveis aos rigores da austeridade. Mas agora o país está diferente. Mais pobre, sem dúvida, mas mais esbelto, mais saudável, mais bem ajustado aos desafios da competitividade internacional, com as finanças controladas”.

Perguntador: E acredita que o eleitorado interiorizou essa narrativa?

Cientista neoplatónico: Sim, não há outra explicação para os resultados das sondagens. Ponhamos a coisa assim. A maioria do eleitorado pensa que os governantes actuais são mentirosos contumazes. Mas um sector muito vasto acredita que essa é a característica mais saliente de todos os políticos. E considera:  “Vale mais ser tosquiado por pastores já conhecidos do que por  pastores desconhecidos, que poderão ser ainda piores − mais  brutos, mais boçais, mais velhacos” − como lhes é dito, de resto, todos os dias pelos governantes actuais (risos). É esse o segredo da grande estabilidade dos partidos do arco da governação e mesmo daqueles que se situam fora desse arco.  

Perguntador: Pedia-lhe um comentário sobre algumas declarações de um nosso colega jornalista, publicadas hoje mesmo, na sua coluna habitual num diário de referência, que parecem ir no sentido do que o senhor disse, mas que, por outro lado, parecem contradizê-lo. Passo a citar:

Afinal, como é possível que num Portugal espremido até à última gota de IVA, de sobrecarga de IRS, de 13º mês, de terrível precariedade e impiedosa austeridade, quatro em cada dez eleitores ainda se mostre disponível para votar em quem nos governou desde 2011? O povo embruteceu de vez?” («O desgraçadismo foi sobrevalorizado»,  João Miguel Tavares. Público.1-10-2015).

Cientista neoplatónico: Não penso que seja pertinente atribuir essa tendência de voto ao « embrutecimento do povo ». Não se trata disso. Trata-se do modo muito profissional, muito competente, como certos pastores conduzem o seu rebanho através de narrativas adequadas às circunstâncias em permanente mutação nas nossas modernas democracias pastoris.

O mesmo perguntador: Espere um pouco. Eu ainda não tinha terminado. Mais adiante o nosso colega escreve o seguinte − passo a citar:

Não, o povo não embruteceu de vez (…). É verdade que boa parte dos portugueses que vão votar na coligação não estão satisfeitos com a governação de Passos Coelho e Paulo Portas. Eu próprio, no próximo domingo, vou votar PàF mais ou menos com a mesma convicção com que os comunistas votaram Mário Soares em 1986. Trata-se de engolir, não direi um sapo, mas, pelo menos, uma rã. Só que não tenho alternativa à rã − não há um único partido que esteja a criticar a coligação por aquilo que ela merece ser criticada. Todos os políticos batem na tecla da austeridade, quando todos os não-políticos têm a perfeita consciência de que a austeridade era inevitável; toda a esquerda acusa o Governo de ter ido além da troika, quando o maior erro do Governo foi ter ficado aquém da troika.

Perante estas declarações, gostaria de lhe colocar uma pergunta. O senhor afirmou há pedaço, que nós, jornalistas, pertencíamos a uma categoria distinta das que apelidou de rebanho e pastores, visto que nos incumbe a função de mensageiros entre elas. Por isso, a minha pergunta é esta: “ É legítimo que um jornalista afirme publicamente que acredita na narrativa dos pastores quando se dirige ao rebanho? Não estará, ao fazê-lo, a afastar-se da sua missão e a afirmar que é também, afinal, não um mensageiro mas (mais) um membro do rebanho?”

Cientista neoplatónico: A sua pergunta levanta questões delicadas que, infelizmente, não posso abordar aqui com a profundidade que merecem, porque me estão a fazer sinal (este zumbido que ouvem é o meu telemóvel a vibrar) de que terei de pôr termo a esta conferência de imprensa dentro de dez minutos no máximo, para atender a outros compromissos.  Limitar-me-ei por isso a exprimir a minha posição em termos gerais, de princípio.

Os jornalistas não estão obrigados a manter uma estrita imparcialidade analítica no exercício da sua profissão. Esse é um dever ao qual só nós, cientistas neurocognitivos, estamos vinculados. Mas considero desejável que os jornalistas tentem emular tanto quanto possível os cientistas neurocognitivos neste particular. Isso é importante se quiserem manter a sua credibilidade junto do rebanho e até junto dos pastores. Os pastores apreciam os jornalistas pela sua capacidade de transmitirem as suas narrativas ao rebanho da maneira mais eficaz possível. Não lhes pedem para afirmarem ao rebanho se  acreditam ou não, e com que grau de convicção,  na bondade das narrativas e mensagens que eles, pastores, dirigem ao rebanho. É fácil entender qual a razão para evitar esses “excessos de zêlo” − digamos assim, para não ferir susceptibilidades. É que, quando os jornalistas procedem desse modo, estão a desqualificar-se, a pôr-se ao nível de uma vulgar ovelha e de um vulgar carneiro. Isso é contraproducente, porque o que as ovelhas e os carneiros normais mais apreciam é a ideia de que os jornalistas têm um acesso privilegiado aos pastores, que são capazes de conversar com eles de igual para igual e depois simplificar as suas narrativas, mas que são também capazes de manter as suas distâncias como mensageiros. O mensageiro não tem de dizer (nem deve) se acredita ou não acredita na verdade ou na sinceridade da mensagem de que é portador. Aliás, essa questão da verdade das narrativas dos pastores, tal como a questão da sinceridade com que as produzem, são completamente irrelevantes na análise do fenómeno político. O que conta é saber se os pastores conseguem ou não fazer com que o rebanho acredite nas suas narrativas.

Perguntador: Gostaria que desenvolvesse o pouco mais a diferença entre o conceito de «povo embrutecido», que o senhor diz rejeitar, e o seu conceito de «rebanho». A mim, francamente, parecem-me ambos pejorativos. É tratar  os cidadãos que não pertencem à classe política, e eles são a esmagadora maioria, como seres estúpidos, destituídos de discernimento.

Cientista neoplatónico: Mas de modo nenhum! «Rebanho» e «pastores» são metáforas cognitivas que utilizamos para tornar perfeitamente inteligível um processo complexo, e inteligível, em primeiro lugar, aos jornalistas, a quem incumbe, como eu disse, a função extremamente importante de mensageiros. São termos que não têm nada de pejorativo. São como os « sabores»  e as «cores»  dos quarks de que falam os físicos, que são, também eles, rótulos puramente analíticos. Nenhum físico saboreou um quark, que eu saiba, ou comprou uma gravata ou um vestido da sua cor de quark favorita! (risos)

 Dou-vos um exemplo recente, muito esclarecedor. Existem cerca de 2 milhões e meio de pensionistas do regime contributivo da segurança social. Destes, uma parte minoritária mas considerável (mais de 300 mil) é constituída por pessoas aposentadas ou reformadas que auferem pensões superiores a 1350 euros. São as pessoas que fizeram maiores descontos para o regime contributivo da segurança social, porque auferiam maiores salários do que os demais pensionistas pelo facto de serem pessoas com mais habilitações, com as profissões mais qualificadas (professores, médicos, engenheiros, etc.). Estes pensionistas  viram-se obrigados pelo governo PSD-CDS a pagar uma Contribuição Extraordinária de Solidariedade (belo oximoro!), um imposto especialmente e exclusivamente formatado para os atingir. Foi o grupo social que pagou a maior factura da política de austeridade, porque estes pensionistas tiveram também de pagar a sobretaxa de IRS e os aumentos de IRS decorrentes da diminuição de escalões que foi aplicada a todos os outros cidadãos. E a maioria destes pensionistas, por serem ex-funcionários públicos, tiverem ainda que pagar os aumentos decretados pelo governo nos descontos para a ADSE. Mais, se não fosse o vosso tribunal constitucional a impedi-lo, o governo PSD-CDS teria ido ainda mais longe, transformando esse imposto num corte permanente de 2% a 3,5% para todas as pensões em pagamento a partir de 1000 euros.

Seria portanto natural que estas pessoas se organizassem para defender os seus direitos adquiridos. Porque se trata de facto de um direito adquirido. As pensões que essas pessoas auferem não são uma benesse de nenhum governo. São um salário diferido, que resulta dos descontos que efectuaram durante a sua vida activa sobre o seu salário e dos descontos que as suas entidades patronais fizeram também com esse fim, uns e outros deduzidos do valor que essas pessoas produziram com  o seu trabalho. E o que vimos nós? Nasceu, de facto, como sabem, uma nova organização vocacionada para esse fim, chamada APRe!. Mas esta organização só conseguiu reunir uns milhares de associados entre as centenas de milhares de potenciais sócios.

Isto permite-nos tirar duas conclusões. Uma é que os mais de 200 ou 300  mil pensionistas que não aderiram a essa organização, que não mexeram uma palha para se oporem ao corte das suas pensões, apesar de terem razões de sobra para isso, mostram bem a eficácia da narrativa austeritária do governo que há pouco vos descrevi. Estas pessoas assimilaram bem essa narrativa. Engoliram tudo, se assim posso dizer: anzol, linha e chumbada. Continuam, em suma, a serem ovelhas e carneiros normais, incapazes de imaginar uma vida sem pastores nem cães de guarda. Há quem faça juízos de valor negativos sobre este facto e sobre o comportamento do governo para com estas pessoas. Mas eu não vou por aí. Como cientista social neurocognitivo encaro estes factos objectivamente. E objectivamente são factos muito reconfortantes. Provam a robustez do principal axioma da moderna ciência social neurocognitiva: a estratificação das sociedades modernas em dois grandes grupos, aqueles que designamos por rebanho e pastores, respectivamente.

A outra conclusão que podemos tirar destes factos, de um ponto de vista neurocognitivo, é que a APRe! é uma associação de ovelhas e carneiros mutantes. Este crescimento súbito de mutantes numa faixa etária avançada é, em si mesmo, um facto deveras intrigante, porventura inédito na Europa, que teremos de estudar melhor. Significa que há um risco potencial muito sério de a política de austeridade poder descarrilar. Foi o que só não aconteceu por um triz na Grécia, onde o número de mutantes de todo o género e de todas as idades cresceu exponencialmente em pouco tempo e assumiu proporções assustadoras. É um risco que não foi previsto pelos pastores, nem mesmo (devo reconhecê-lo a contragosto) por nós, cientistas neurocognitivos. E já que estamos em maré de confidências, permitam-me que vos confidencie também que fomos completamente colhidos de surpresa pelo fenómeno social APRe! Não julgávamos possível que ocorressem mutações deste género em pessoas de cabelos grisalhos ou brancos. Julgávamos que o gene da rebeldia (um gene recessivo) só se manifestava esporadicamente na adolescência. Este é um dos factos que nós costumamos ensinar aos nossos alunos sob a forma de um aforismo brincalhão: “Aos vinte anos muitos de nós querem mudar o mundo. Aos trinta queremos mudar de vida. Aos 40 só queremos mudar os móveis da nossa sala de estar ou mudar de automóvel. Aos 60 só queremos sopas e sossego”. Mas vejamos as coisas pelo seu lado positivo. As ovelhas e os carneiros mutantes continuam a ser uma pequena minoria, nesta como em qualquer outra faixa etária, comparada com a maioria de carneiros e ovelhas normais. Isso significa que as nossas democracias pastoris são estáveis.  

Perguntadora: E os indecisos, não estará a subestimar à sua importância? São uma percentagem considerável. Podem decidir o resultado à última hora, se maioria deles for constituída, para empregar os seus termos, por carneiros e ovelhas mutantes.

Cientista neoplatónico: Os indecisos são uma categoria heterogénea. Uma parte já decidiu em quem votar. Vota neste ou naquele partido, ou vota nulo ou em branco (este é o grupo onde provavelmente encontramos mais carneiros e ovelhas mutantes). Mas vota. Só que se recusa a revelar o sentido do seu voto aos inquiridores. É, aliás,  a razão  pela qual as sondagens falham muitas vezes, sobretudo quando os brancos e nulos decidem “votar útil”, o que significa votar num partido considerado “um mal menor”, o partido com menos possibilidades de os desiludir, porque têm poucas ou nenhumas ilusões nos partidos. A outra parte dos chamados indecisos, que são a maioria, não vai votar. Vai-se abster. Nas eleições de 2011 a abstenção foi de 42%, números redondos. Uma parte muito importante deste sector, abstem-se sempre. São aqueles que consideramos serem as ovelhas e os carneiros genomicamente puros. São os que acham, simplesmente, que a sua sina é ser tosquiada, pois é esse o triste fado das ovelhas e carneiros contra o qual não vale a pena lutar. O seu credo político pode ser resumido assim: “Para quê votar, se todos os pastores se equivalem? Por isso, tanto faz que seja este ou aquele pastor. Façamos o que fizermos, os pastores, sejam eles quais forem, são mais espertos do que nós, carneiros e ovelhas”. É reconfortante saber que esta categoria de eleitores está connosco há mais de dois milénios. O meu colega Quinto Túlio, num estudo pouco conhecido mas notável, detectou a sua presença na Roma antiga. São o esteio mais sólido de todas as democracias …e também, devo dizê-lo, de todas as ditaduras (risos).

Nesse momento, o telemóvel do cientista neurocognitivo começa de novo a vibrar em cima da mesa. O cientista recolhe o telemóvel, guarda-o no bolso do casaco e diz: «Lamento, mas o meu tempo esgotou-se. Não poderei responder a mais perguntas. Boa tarde. Foi um prazer estar convosco. Até a uma próxima oportunidade».

**********

Como o nosso “psicólogo neurocognitivo” se foi embora, ficaram muitas  perguntas por lhe fazer, em especial sobre as próximas eleições de 4 de Outubro. São, todas, perguntas comezinhas, para as quais é fácil encontrar  resposta sem necessidade de recorrer às categorias ovinas, caninas e pastoris da sua sopa de pedra platónica onde se mesclam, quase inextricavelmente,  a descrição de factos, alguma perspicácia, o cinismo, a fanfarronice, a auto-ilusão e o embuste. Para as formularmos e lhes respondermos basta ter memória, respeito pelos factos, saber um pouco de aritmética, ouvir com atenção e ler com igual atenção o que dizem de viva voz e o que escrevem os candidatos às próximas eleições. Mas todas as perguntas que a mim me interessaria fazer e responder se podem resumir, neste momento e para não nos alongarmos mais, a uma só:

Como derrotar a política de « austeridade » que tem sido aplicada nos últimos quatro anos e meio, cujos efeitos conhecemos bem (corte nos salários e nas pensões do sistema contributivo, cortes na ciência e na educação, enorme aumento dos impostos, enorme aumento do desemprego, enorme aumento da emigração por motivos de sobrevivência, enorme aumento do trabalho precário e sem direitos, privatização das empresas públicas mais valiosas e rentáveis: CTT, EDP, REN, ANA, etc.)?

A resposta parece-me evidente. O primeiro passo é derrotar nas eleições de 4 de Outubro os seus fautores: o governo PSD-CDS, a coligação Pàf. É votar para evitar o pior, afastando estes dois partidos do governo.

Quem deseje este resultado deve saber (se é que ainda não sabe) que a abstenção não conta. A abstenção significa aceitar continuar a ser tosquiado como um carneiro ou como uma ovelha, se a coligação Pàf tiver a maioria dos votos. É o tipo de comportamento que permite aos Castelli deste mundo darem um semblante de veracidade à sua ciência de pacotilha.

Votar nulo ou em branco é legítimo. Mas quem tencione votar em branco ou nulo, deve saber (se é que ainda não sabe) que a lei eleitoral separa à partida esses votos dos restantes votos. Os votos nulos ou em branco não têm qualquer influência no apuramento dos resultados.

José Catarino Soares (2-10-2015).

23 julho, 2015

Tema 3

O HUMILHANTE E CALAMITOSO ACORDO IMPOSTO À GRÉCIA 


Os governos do Eurogrupo impuseram à Grécia um humilhante e calamitoso acordo de rendição. O 1º ministro grego, Alexis Tsipras, acabou por capitular, depois do seu povo lhe ter dado, em Janeiro, uma maioria no parlamento por ter prometido não aceitar mais «austeridade», e, em Julho, força e legitimidade muito acrescidas no referendo para poder resistir à pressão para aceitar o inaceitável. 

Os mais benevolentes afirmam: «Tsipras não tinha outra opção diante da força bruta dos seus 18 "parceiros" da chamada zona Euro, apostados em mostrar que não há alternativa à chamada "austeridade". Fez tudo o que podia para resistir, mas acabou por ter de capitular para evitar o pior: a asfixia financeira do país e o caos que se lhe seguiria». 

Mas também se pode dizer, com igual ou maior verdade, que Tsipras não esteve a altura das circunstâncias e que foi vítima das suas ilusões, grandes e funestas ilusões: 

- nos « benefícios do euro»  (uma moeda única que favorece principalmente a Alemanha)
- nas vantagens da « soberania partilhada » (uma folha de parra destinada a encobrir a nudez forte do facto de a « Europa » ser politica e economicamente comandada pela Alemanha), 
- na « solidariedade europeia » (que existe, de facto, e é muito generosa, sempre que se trata de acudir aos interesses dos bancos e das empresas multinacionais à custa do erário público e dos direitos e proventos da maioria da população).   

Estas ilusões explicam provavelmente por que razão Tsipras não preparou qualquer plano (como o seu ex-ministro das finanças lhe sugeriu) para a eventualidade de não conseguir a anuência da « zona euro » para uma reestruturação da dívida da Grécia que lhe permitisse sair da espiral do empobrecimento progressivo e infindável. Confiou, até ao fim, na boa vontade e na racionalidade dos seus "parceiros" europeus, cuja vontade única e único racional de actuação eram o de o fazer capitular, custasse o que custasse. As únicas divergências entre os 18 « parceiros » diziam respeito à dose de « austeridade » a aplicar, uma vez descartada a alternativa defendida pelo ministro alemão das finanças, o « democrata-cristão » Schäuble, de expulsar a Grécia da zona Euro (uma alternativa vetada  por Merkel, Hollande e Renzi, que a consideraram como demasiado arriscada e mesmo aventureira) e só depois negociar o pacote de « austeridade ». 


Tsipras meteu-se, assim, numa situação impossível. Trocou o seu moderado programa eleitoral (acabar com a « austeridade ») por mais austeridade, em nome da permanência no Euro e da promessa que terá, um dia, um alívio na dívida odiosa e ilegal que os políticos corruptos que o antecederam contraíram para salvar os bancos estrangeiros (alemães, franceses, etc.) e gregos e encher os bolsos da oligarquia grega e internacional. Sim, esse alívio na dívida acabará por chegar, um dia, quando o acordo tiver produzido os seus efeitos devastadores.

A maioria do povo grego, a acreditar nas sondagens, parece ter-lhe perdoado o facto de ter capitulado, atendendo às circunstâncias e ao modo como o fez. Mas não é plausível que essa magnanimidade possa durar. 

Para já terá de governar contra uma parte importante dos deputados da sua coligação, que acabará por se esfrangalhar, e de se apoiar nos deputados dos partidos pró-austeridade que o povo grego derrotou nas eleições e no referendo para poder aprovar as medidas que se comprometeu a aplicar.

E terá de se haver sobretudo com o seu povo, agora que aceitou tudo: vender os portos e os aeroportos, privatizar a companhia pública da electricidade, acabar com o complemento solidário para os idosos com pensões muito baixas, cortar ainda mais nas pensões de aposentação, modificar ainda mais as leis laborais a favor do patronato, cortar ainda mais nos salários dos trabalhadores da função pública, reverter as medidas que tomou desde que foi eleito para fazer frente os efeitos da crise humanitária, adoptar legislação que contorne os acordãos do tribunal constitucional do seu país, subir o IVA de quase tudo, eliminar o factor de insularidade (as ajudas fiscais às ilhas para compensar o preço acrescido dos fretes) e vender ou hipotecar 50 mil milhões de euros em propriedades e bens do Estado grego (que parece não ter sequer património que valha metade desse valor) para pagar aos generosos prestamistas.

A cara sempre sorridente de Tsipras agora é esta.

Não é caso para menos. Traíu o mandato que o povo lhe deu. 

Segue o documento que o Eurogrupo o fez assinar, com as anotações de Yanis Varoufakis que descodificam a língua de pau em que está escrito. A tradução do documento é do Infogrécia. A tradução das anotações de Varoufakis é do autor deste blogue a partir do original. As notas foram também acrescentadas ao texto original pelo autor deste blogue.

23-07-2015



O “acordo” de Bruxelas sobre a Grécia  (anotado por Yanis Varoufakis)


15 Julho, 2015

O ex-ministro das Finanças grego decidiu dar a conhecer as suas notas pessoais [a vermelho] sobre o texto que serviu de « acordo » do Eurogrupo com a Grécia e no qual, poucos dias depois, já quase ninguém diz acreditar.

A Cimeira do Eurogrupo sublinha a necessidade crucial de restabelecer a confiança com as autoridades gregas [i.e. o governo grego deve introduzir novas medidas de austeridade severa dirigida contra os mais fracos, que já sofreram gravemente], como pré-requisito para um eventual acordo futuro sobre um novo programa do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) [i.e. para um novo empréstimo-para-adiar-e-fazer-de-conta].

Neste contexto, é fundamental que as autoridades gregas assumam as suas responsabilidades [i.e. o governo do Syriza deve assinar uma declaração a dizer que passou a adoptar a “lógica” da troika] e que os compromissos políticos sejam seguidos de uma aplicação bem sucedida.

Um Estado-Membro da área do euro que solicite assistência financeira do MEE deverá apresentar, sempre que possível, um pedido semelhante ao FMI. Esta é uma condição prévia para o Eurogrupo chegar a acordo sobre um novo programa do MEE. Consequentemente, a Grécia solicitará a assistência continuada do FMI (acompanhamento e financiamento) a partir de março de 2016 [i.e. Berlim continua a acreditar que a Comissão não é de confiança para fazer de “polícia” dos próprios programas de “resgate” europeus].

Dada a necessidade de restabelecer a confiança com a Grécia, a Cimeira do Euro saúda os compromissos assumidos pelas autoridades gregas no sentido de legislarem sem demora sobre um primeiro conjunto de medidas [i.e. a Grécia deve sujeitar-se ao sufoco orçamental, mesmo antes de ser garantido algum financiamento]. As referidas medidas basear-se-ão integralmente num acordo prévio com as Instituições e incluirão:

até 15 de julho

– a racionalização do sistema do IVA [i.e. torná-lo mais recessivo através de aumentos de taxas que encorajam uma maior evasão a este imposto] e o alargamento da base de tributação para aumentar as receitas [i.e. desferir um golpe profundo à única indústria em crescimento da Grécia – o turismo];

– a adopção de medidas imediatas para melhorar a sustentabilidade a longo prazo do sistema das pensões, no âmbito de um vasto programa de reforma das pensões [i.e. reduzir as pensões mais baixas, ignorando que a razia no capital dos fundos de pensões se deveu ao PSI * da troika em 2012 e aos efeitos nefastos da queda no emprego e do trabalho não declarado];

– a garantia da total independência jurídica do ELSTAT (autoridade estatística grega)[i.e. a troika exige controlo absoluto sobre a forma como o equilíbrio orçamental é calculado, para assim controlar por inteiro a magnitude da austeridade que impõe ao governo];

– a plena aplicação das disposições pertinentes do Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governação na União Económica e Monetária, em particular, tornando o Conselho Orçamental plenamente operacional antes da finalização do Memorando de Entendimento e introduzindo cortes quase automáticos nas despesas no caso de desvios em relação aos objectivos ambiciosos para o saldo primário, depois de consultado o Conselho Orçamental e sob reserva de aprovação prévia pelas Instituições [i.e. o governo grego, que sabe que as metas orçamentais impostas nunca serão atingidas com a austeridade imposta, deve comprometer-se a aplicar novas e automáticas medidas de austeridade que resultem de novos falhanços da troika];

até 22 de julho

– a adopção do Código de Processo Civil, que representa uma importante reformulação dos procedimentos e disposições do sistema de justiça civil e pode acelerar significativamente o processo judicial, bem como reduzir os custos [i.e. execuções de hipotecas, despejos e liquidação de milhares de lares e de empresas que não estejam em condições de continuar a pagar as suas hipotecas/ empréstimos];

– a transposição da Directiva Recuperação e Resolução Bancárias, contando com o apoio da Comissão Europeia.

Somente após a aplicação jurídica das primeiras quatro medidas supramencionadas e a aprovação pelo Parlamento grego, bem como a verificação pelas Instituições e o Eurogrupo, de todos os compromissos incluídos no presente documento se poderá tomar, de forma imediata, a decisão de mandatar as Instituições para negociar um Memorando de Entendimento [i.e. o governo do Syriza deve ser humilhado tanto quanto lhe for pedido que o faça para impor uma dura austeridade como primeiro passo para pedir outro empréstimo tóxico, do mesmo tipo dos que o Syriza ficou internacionalmente famoso por combater].

A tomada dessa decisão ficará sujeita à conclusão dos procedimentos nacionais e ao cumprimento das condições prévias estabelecidas no artigo 13.º do Tratado MEE, com base na avaliação a que se refere o n.º 1 desse artigo. Para que haja uma base para a celebração bem-sucedida do Memorando de Entendimento, as medidas de reforma propostas pela Grécia precisam de ser seriamente reforçadas para terem em conta a situação económica e orçamental do país, que se deteriorou gravemente durante o último ano [i.e. o governo do Syriza deve aceitar a mentira de que foi ele, e não as tácticas de estrangulamento dos credores, que causou a deterioração aguda da economia nos últimos seis meses – ou seja, pede-se à vítima que assuma a culpa em lugar do agressor].

O Governo grego precisa de se comprometer formalmente a reforçar as suas propostas [i.e. a torná-las mais recessivas e desumanas] numa série de domínios identificados pelas Instituições, com um calendário claro e satisfatório para a adopção de legislação e a sua aplicação, incluindo marcos de referência estruturais, etapas e marcos de referência quantitativos, a fim de haver clareza quanto à orientação das políticas a médio prazo.

Em acordo com as Instituições, necessita nomeadamente de:

– levar a cabo ambiciosas reformas [i.e. cortes] das pensões e especificar políticas para compensar integralmente o impacto orçamental da decisão do Tribunal Constitucional sobre a reforma das pensões de 2012 [i.e. cancelar a decisão do Tribunal a favor dos pensionistas] e implementar a cláusula de “défice zero” [i.e. cortar em 85% o complemento solidário para idosos que o governo do Syriza defendeu com unhas e dentes nos últimos cinco meses] ou medidas alternativas mutuamente aceitáveis [i.e. encontrar vítimas “equivalentes"] até outubro de 2015;

– adoptar reformas mais ambiciosas para o mercado de produtos, com um calendário preciso para a aplicação de todas as recomendações do Guia de Avaliação de Concorrência da OCDE (volume 1) [i.e. as recomendações que a OCDE afastou após ter redesenhado estas reformas em colaboração com o governo do Syriza], incluindo o comércio ao domingo, as épocas de saldos, a propriedade das farmácias, o leite e as padarias, com excepção dos produtos farmacêuticos não sujeitos a receita médica, que serão incluídos numa próxima fase, bem como para a abertura de profissões fechadas que são cruciais no plano macroeconómico (por exemplo, o transporte por ferry). No seguimento do Guia de Avaliação da Concorrência da OCDE (volume 2), a indústria transformadora terá de ser incluída nas ações prévias;

– no que respeita aos mercados da energia, prosseguir a privatização do operador da rede de transporte de eletricidade (ADMIE) exceto se forem encontradas medidas de substituição que tenham efeitos equivalentes na competitividade, conforme acordado pelas Instituições [i.e. a ADMIE será vendida a interesses instalados estrangeiros a mando das Instituições];

– no que respeita aos mercados de trabalho, levar a cabo um reexame e uma modernização rigorosos da negociação coletiva [i.e. assegurar que nenhuma negociação colectiva será permitida], do direito à greve [i.e. que deve ser proíbida] e, em conformidade com a directiva e as melhores práticas da UE nesta matéria, dos despedimentos colectivos [i.e. devem ser permitidos por capricho do patronato], em sintonia com o calendário e a abordagem acordados com as Instituições [i.e. a troika decide].

Com base nestas avaliações, as políticas do mercado de trabalho deverão ser alinhadas pelas boas práticas internacionais e europeias, e não deverão passar pelo regresso a políticas do passado que não são compatíveis com os objetivos da promoção do crescimento sustentável e inclusivo [i.e. não pode haver mecanismos que o trabalho assalariado possa usar para obter melhores condições por parte dos empregadores];

– adoptar as medidas necessárias para reforçar o sector financeiro, nomeadamente medidas decisivas quanto aos empréstimos improdutivos [i.e. um tsunami de execuções fiscais está iminente] e medidas para reforçar a governação do Fundo Helénico de Estabilidade Financeira (HFSF na sigla inglesa) e dos bancos [i.e. o povo grego que sustenta o HFSF e os bancos não terá qualquer controlo sobre o HFSF e os bancos], eliminando, em particular, qualquer possibilidade de ingerência política, sobretudo nos processos de nomeação [i.e. à excepção da interferência política da troika]. Além disso, as autoridades gregas devem tomar as seguintes medidas:

– desenvolver um programa de privatizações significativamente reforçado e com uma melhor governação. Serão transferidos ativos gregos de valor para um fundo independente que monetizará os ativos através de privatizações e de outros meios [i.e. um Treuhand à moda da Alemanha de leste deverá vender toda a propriedade pública mas sem os investimentos equivalentes que a Alemanha Ocidental fez na Alemanha Oriental em compensação pelo desastre do Treuhand **]. A monetização dos activos será uma das fontes para proceder ao reembolso agendado do novo empréstimo do MEE, e gerar, em todo o ciclo de vida do novo empréstimo, um total que se pretende que atinja os 50 mil milhões de EUROS, dos quais 25 mil milhões serão usados para o reembolso da recapitalização dos bancos e outros ativos e 50% de cada euro remanescente (ou seja, 50% de 25 mil milhões de EUROS) serão usados para reduzir o rácio dívida/PIB e os restantes 50% serão usados para investimentos [i.e. a propriedade pública será vendida e as magras receitas vão para o serviço de uma dívida impagável – nada sobrando para o investimento público ou privado]. Este fundo será estabelecido na Grécia e gerido pelas autoridades gregas sob a supervisão das Instituições europeias pertinentes [i.e. ficará em nome da Grécia, mas, tal como o HFSF e o Banco da Grécia, será controlado em absoluto pelos credores]. Mediante acordo com as Instituições e com base nas melhores práticas internacionais, deverá ser adoptado um quadro legislativo para garantir a transparência dos procedimentos e a adequada fixação do preço de venda dos ativos, de acordo com os princípios e normas da OCDE em matéria de gestão das empresas públicas [i.e. a Troika fará como bem lhe aprouver];

– em consonância com as ambições do Governo grego, modernizar e reforçar significativamente a administração grega, e implementar um programa, sob os auspícios da Comissão Europeia, para o reforço das capacidades e a despolitização da administração grega [i.e. tornar a Grécia numa zona onde a  democracia deixou de existir e passou a ser moldada em Bruxelas, uma forma de governo alegadamente tecnocrático, que é politicamente tóxico e inepto do ponto de vista macroeconómico]. Deverá ser apresentada uma primeira proposta até 20 de julho, após os debates com as Instituições. O Governo grego compromete-se a reduzir ainda mais os custos da administração grega [i.e. reduzir os salários mais baixos enquanto aumenta um pouco os salários de alguns apparatchiks simpatizantes da troika], em conformidade com o calendário acordado com as Instituições;

– normalizar plenamente os métodos de trabalho com as Instituições, incluindo as necessárias acções no terreno, em Atenas, a fim de melhorar a execução e o acompanhamento do programa [i.e. a troika contra-ataca e exige que o governo grego a convide a regressar a Atenas como Conquistador – a “paz cartaginesa” em todo o seu esplendor]. O Governo precisa de consultar as Instituições e acordar com estas em tempo útil todos os projectos legislativos nos domínios relevantes antes de os submeter a consulta pública ou de os apresentar ao Parlamento [i.e. o parlamento grego deve, uma vez mais, após breves cinco meses de independência, ser um apêndice da troika – aprovando leis traduzidas mecanicamente]. A Cimeira do Euro volta a realçar que a execução é fundamental; nesse contexto, saúda a intenção das autoridades gregas de lançar às Instituições e aos Estados-Membros, até 20 de julho, um pedido de assistência técnica, e pede à Comissão Europeia que coordene este apoio da Europa;

– com excepção da lei da crise humanitária, o Governo grego reexaminará, tendo em vista a sua alteração, a legislação introduzida que é contrária ao acordo de 20 de fevereiro, voltando a alinhá-la pelos anteriores compromissos do programa, ou identificará equivalentes compensatórios claros para os direitos adquiridos que foram subsequentemente criados [i.e. para além de prometer que não voltará a legislar de forma autónoma, o governo grego irá anular retroactivamente as leis que aprovou nos últimos cinco meses].

Os compromissos acima enumerados constituem os requisitos mínimos para encetar as negociações com as autoridades gregas. No entanto, a Cimeira do Euro deixou bem claro que o início das negociações não exclui um eventual acordo final sobre um novo programa do MEE, que terá de basear-se numa decisão sobre a totalidade do pacote (incluindo as necessidades de financiamento, a sustentabilidade da dívida e um eventual financiamento intercalar) [i.e. autoflagelar-se, impor mais austeridade a uma economia esmagada pela austeridade, e depois logo se vê se o Eurogrupo nos enterrará com novos empréstimos tóxicos e insustentáveis].

A Cimeira do Euro toma nota das possíveis necessidades de financiamento do programa, que oscilam entre 82 e 86 mil milhões de EUROS de acordo com a avaliação das Instituições [i.e. o Eurogrupo fez aparecer um número gigantesco, bem maior que o necessário, para assinalar que a reestruturação da dívida está afastada e que a escravidão da dívida ad infinitum é a regra do jogo]. A Cimeira do Euro convida as Instituições a explorar as possibilidades de reduzir o pacote de financiamento através de uma via orçamental alternativa ou de um aumento das receitas das privatizações [i.e. pois sim, e até pode ser possível que os porcos consigam voar]. O restabelecimento do acesso aos mercados, que constitui um objectivo de qualquer programa de assistência financeira, reduz a necessidade de utilizar à totalidade do envelope de financiamento [i.e. o que é algo que os credores farão tudo para evitar, por exemplo assegurando que a Grécia só entrará no programa de ‘quantitative easing’ do BCE em 2018, quando o ‘quantitative easing’*** chegar… ao fim].

A Cimeira do Euro toma nota das prementes necessidades de financiamento da Grécia, que realçam a necessidade de progredir muito rapidamente na obtenção de uma decisão sobre um novo Memorando de Entendimento: de acordo com as estimativas, são necessários 7 mil milhões de EUROS até 20 de julho e mais 5 mil milhões de EUROS até meados de agosto [i.e. “adiar-e-fazer-de-conta”, aqui em nova versão]. A Cimeira do Euro reconhece a importância de assegurar que o Estado soberano grego possa pagar ao FMI e ao Banco da Grécia os montantes em atraso e honrar as suas obrigações de dívida nas próximas semanas, a fim de criar condições que permitam uma conclusão ordenada das negociações. Se as negociações não forem concluídas rapidamente, será a Grécia a suportar todos os riscos [i.e. uma vez mais, pedem que a vítima assuma a culpa em lugar do agressor]. A Cimeira do Euro convida o Eurogrupo a debater urgentemente estas questões.

Atendendo aos graves desafios com que se depara o sector financeiro grego, o pacote total de um possível novo programa do MEE teria de incluir o estabelecimento de uma reserva de 10 a 25 mil milhões de EUROS para o sector bancário a fim de responder às potenciais necessidades de recapitalização bancária e aos custos de resolução, sendo que 10 mil milhões desse montante seriam disponibilizados imediatamente numa conta separada no MEE [i.e. a troika admite que a recapitalização dos bancos em 2013-2014, que, segundo ela, só necessitaria no máximo de uns 10 mil milhões, foi insuficiente – mas, como é óbvio, deita as culpas… ao governo do Syriza].

A Cimeira do Euro está ciente de que uma rápida decisão sobre o novo programa é uma condição para permitir a reabertura dos bancos, evitando assim um aumento do pacote de financiamento total [i.e. A troika fechou os bancos da Grécia para obrigar o governo do Syriza a capitular e agora clama pela sua reabertura]. O BCE/MUS procederá a uma avaliação completa depois do verão. A reserva global permitirá suprir os eventuais défices de capital na sequência da avaliação completa efetuada depois de o quadro legal ter sido aplicado.

Existem graves preocupações quanto à sustentabilidade da dívida grega [N.B. A sério? Ena!]. Isso deve-se ao afrouxamento das políticas durante os últimos doze meses, o que resultou na recente deterioração do enquadramento macroeconómico e financeiro a nível interno [i.e. não foram os “resgates” de adiar-e-fazer-de-conta de 2010 e 2012 que, juntamente com a austeridade sabotadora do PIB, que levaram a dívida a escalar para picos inimagináveis – foi a perspectiva, e a realidade, de um governo que criticou os empréstimos dos “resgates” de adiar-e-fazer-de-conta que… levaram à Insustentabilidade da Dívida!].

A Cimeira do Euro recorda que os Estados-Membros da área do euro têm adoptado, ao longo dos últimos anos, um considerável conjunto de medidas para apoiar a sustentabilidade da dívida da Grécia, o que facilitou o serviço da dívida grega e reduziu significativamente os custos [i.e. o 1º e 2º programas de “resgate” fracassaram, a dívida disparou como não podia deixar de disparar, já que o verdadeiro objectivo dos programas de “resgate” era transferir as perdas dos bancos para os contribuintes europeus]. Sendo este o pano de fundo, no contexto de um eventual programa futuro do MEE, e em consonância com o espírito da declaração do Eurogrupo de novembro de 2012 [i.e. uma promessa de reestruturação da dívida aos anteriores governos gregos que nunca foi cumprida pelos credores], o Eurogrupo mantém-se disposto a ponderar, se necessário, possíveis medidas adicionais (eventual alargamento dos períodos de carência e dos prazos de pagamento) a fim de assegurar que as necessidades de financiamento brutas se mantenham a um nível sustentável. Estas medidas ficarão dependentes da aplicação integral das medidas a acordar num eventual novo programa, e serão ponderadas após a primeira conclusão positiva da avaliação [i.e. Uma vez mais, a troika deixará o governo grego trabalhar sob uma dívida impagável e quando, em consequência disso, o programa falhar, a pobreza aumentar ainda mais e os rendimentos caírem muito mais, então podemos cortar parte da dívida – como fez a troika em 2012].

A Cimeira do Euro salienta que não podem ser efectuados cortes nominais da dívida [N.B. O governo do Syriza tem vindo a propor, desde janeiro, uma reestruturação moderada da dívida, sem nenhum corte, tirando o máximo partido das previsões do lucro actual líquido gerado pelos reembolsos da Grécia aos credores – o que foi sempre recusado pela troika porque o seu objectivo era, simplesmente, humilhar o Syriza]. As autoridades gregas reiteram o seu inequívoco compromisso de honrar de forma integral e atempada as obrigações financeiras que assumiram para com todos os seus credores [N.B. o que só poderá acontecer após uma reestruturação substancial da dívida]. Desde que estejam reunidas todas as condições necessárias contidas no presente documento, o Eurogrupo e o Conselho de Governadores do MEE podem, em conformidade com o artigo 13.º, n.º 2, do Tratado MEE, conferir mandato às Instituições para negociar um novo programa do MEE, se estiverem reunidas as condições prévias do artigo 13.º do Tratado MEE com base na avaliação referida no artigo 13.º, n.º 1. Para apoiar o crescimento e a criação de emprego na Grécia (nos próximos 3 a 5 anos) [N.B. Após destruírem o emprego e o crescimento nos últimos cinco anos…], a Comissão trabalhará em estreita colaboração com as autoridades gregas para mobilizar um montante que poderá ascender a 35 mil milhões de euros (ao abrigo de vários programas da UE) para financiar o investimento e a actividade económica, incluindo o investimento nas PME [i.e. usará a mesma ordem de grandeza dos fundos estruturais, mais algum dinheiro a fingir, como o que esteve disponível em 2010-2014]. Como medida excepcional e atendendo à situação única da Grécia, a Comissão irá propor um aumento de mil milhões de euros do nível de pré-financiamento para dar um impulso imediato ao investimento, a analisar pelos colegisladores da UE [i.e. dos tais 35 mil milhões anunciados, considerem-se estes mil milhões como dinheiro a sério]. O Plano de Investimento para a Europa**** também proporcionará oportunidades de financiamento para a Grécia [i.e. o mesmo plano a que a maioria dos ministros da zona euro chama um programa fantasma].


NOTAS

* PSI: acrónimo em inglês de « private sector involvement » (“envolvimento do sector privado”). Refere-se à intromissão dos mercados financeiros e outros interesses privados em assuntos de governo, como, por exemplo, as chamadas dívidas soberanas.

** A Treuhand (ou Treuhandanstalt) foi uma instituição pública fiduciária criada na Alemanha de leste em 1990, encarregada de admnistrar e privatizar as empresas e demais património (imóveis, herdades, florestas e farmácias públicas) da Alemanha de leste (ex- RDA). Encerrou as suas actividades em 1994, deixando uma dívida de 275 mil milhões de marcos que só foi amortizada em 2009. 

*** Quantitative easing (flexibilização quantitativa) é um eufemismo escolhido para designar a política monetária que os bancos centrais (como o Banco Central Europeu ou a Reserva Federal Americana) adoptam quando decidem aumentar a oferta de dinheiro em circulação com dinheiro “criado a partir do nada” – “creatio ex nihilo”−, usando-o para comprar activos financeiros, nomeadamente dívida pública, aos bancos comerciais e outras instituições financeiras (p.ex. seguradoras). Funciona desta forma:

Os bancos comerciais e outras instituições financeiras detêm vários biliões de euros, dólares, etc., em obrigações do Tesouro, bilhetes do Tesouro, etc., que seriam difíceis de vender na quantidade que o banco central está disponível para comprar sem provocar uma queda acentuada no seu preço (desvalorização desses activos), pelo que os bancos vão mantendo essas obrigações em carteira.

Então, a dado momento, o banco central, com dinheiro criado a partir do nada, compra essas obrigações e esses títulos do Tesouro e esse dinheiro entra directamente nas contas dos bancos comerciais e outras instituições financeiras em contrapartida pelas obrigações vendidas.

Os bancos comerciais e outras instituições financeiras, passam assim a dispor dessa liquidez, que se espera que decidam usar para financiar as empresas e as famílias, de forma a que possam investir ou a consumir mais, estimulando a economia como um todo.


****Plano de Investimento para a Europa, também conhecido por plano Juncker,