CIÊNCIA
DE PACOTILHA
(a
propósito das eleições de 4 de Outubro)
No Público de 29-09-2015, um investigador italiano, de seu nome Luigi
Castelli, do Centro de Neurociências Cognitivas da universidade de Pádua, vem
informar-nos que « não cumprir promessas eleitorais não implica sanções ».
Concretizando, no seu
douto parecer, os políticos profissionais podem mentir à vontade, dar o dito
por não dito, fazer exactamente o contrário do que afirmaram antes de ser
eleitos, que os cidadãos não os vão castigar por esse comportamento, quando lhes
for dado oportunidade para isso (numas eleições, por exemplo).
O «psicólogo» (é o termo
que o Público emprega para o definir)
Luigi Castelli diz-nos que « não tem dúvidas quanto ao facto de ser de somenos
importância o não cumprimento das promessas eleitorais, ou seja não tem
consequências negativas para o incumpridor. Neste caso, o político ».
« Para qualquer um de nós
», diz o sr. Castelli, « é muito fácil esquecer, razão pela qual são feitas
tantas promessas. Com o correr do tempo, uma promessa sobrepõe-se à anterior com
facilidade. O político invoca sempre as circunstâncias − aliás, um dos
atributos dos políticos é conseguir mudar a agenda e basta fazê-lo para se
esfumar a promessa não cumprida». Por isso, este perito em neurociências
cognitivas considera ainda válidas as observações de Quinto Túlio, irmão mais
novo de Cícero, sobre a forma de ganhar as eleições: « Se faltares a uma
promessa, as consequências são incertas e o número de pessoas afectadas é
reduzido ». Era assim no ano 64 antes de Cristo. E continua a ser assim hoje, afirma,
desenvolto, o neurocientista cognitivo Luigi Castelli, sem parecer reparar que,
ao fazê-lo, nos diz que as novéis “ciências neurocognitivas” não nos conseguem
dizer nada de novo, nada que não se conheça, sem elas, há (pelo menos) 2079
anos!
Em suma, segundo o senhor
Castelli, somos (todos) muito parecidos, se não mesmo iguais, a um rebanho de
carneiros obedientes e ovelhas bem comportadas, entretidos todos os dias a
tasquinhar as suas ervinhas, e ruminando: «que bem que sabem», «como é, afinal,
tão lindo este prado» (se abstrairmos da presença daquele cão de guarda acolá,
mas não digamos mal dele: ele pode ser rude e morder-nos nas canelas, mas o
pastor contratou-o para nos defender dos lobos maus que vivem além, na floresta
escura »), esquecidos já das maldades que o pastor nos fez na véspera e na
antevéspera, e na ante-antevéspera.
Não tenho dúvidas de que
William James, Jean Piaget, Lev Vigotsky, Egon Brunswick e tantos outros
psicólogos, oferecerão as suas obras completas como prenda ao nosso Luigi
Castelli, quando este chegar à antecâmara do paraíso dos psicólogos, com esta
amigável dedicatória como bónus: « Luigi, tens ainda uma oportunidade de te
redimires das análises fumarentas da política que andaste a fazer lá na Terra,
usurpando o nome « psicologia ». Toda a tua “ciência neurocognitiva” é uma
versão requentada da « República» de Platão, um tratado brilhante sobre a
maneira como organizar a sociedade para que seja um vale de lágrimas para uns e
a terra do leite e do mel para outros. Admiramos o teu inaudito descaramento,
mas é a admiração contrita que nos suscitam todos os vendedores de banha de
cobra. Fica pois a saber que esta antecâmara deserta em que te encontras (a que
chamamos “habitáculo de desinfestação”), não é o local onde nós habitamos. É um
local vagamente parecido com o que o teu compatriota Dante chamava « o
purgatório », só que, aqui, o único suplício que infligimos a pessoas como tu é
a actividade que constitui para nós o maior prazer. Sim, adivinhaste, estudar. Não
te faltará tempo para aprenderes alguma coisa. Alegra-te. Tens a eternidade
toda para te cultivares. Quando achares que aprendestes alguma coisa de
psicologia, quando deixares de esconder a tua ignorância e a tua má-fé atrás de
nomes espampanantes (mas com mais buracos do que um queijo suíço) como “ciências
neurocognitivas”, chama-nos. Estamos ali, na porta ao lado ».
Mas voltemos à
actualidade e adoptemos provisoriamente as categorias platónicas de Luigi
Castelli: ovelhas, carneiros, pastores, cães de guarda, etc. Olhemos o mundo
como ele o olha e traduzamos a sua ciência neurocognitiva em linguagem comum.
Através de uma conferência de imprensa imaginária no Centro Cultural de Belém.
Perguntador:
O senhor é um cientista neurocognitivo. Por isso, causa-me alguma estranheza a
maneira como fala. Acredita mesmo que o eleitorado português é constituído
maioritariamente por carneiros e ovelhas?
Cientista
neoplatónico: Creio que sim, metaforicamente falando,
claro. Não tenho nada contra que se utilize o vocabulário corrente: dirigentes
ou «leaders» ou governantes, eleitores ou cidadãos, etc. Mas nós, cientistas
neurocognitivos, preferimos utilizar um vocabulário mais enxuto e preciso. Por
isso, falamos em «pastores» e «rebanho». É, na sua essência, a polaridade
básica subjacente às modernas democracias, a que chamamos democracias pastoris.
Dou-vos um exemplo actual. As sondagens
dão uma maioria à coligação Pàf (PSD e
CDS) que suporta o actual governo. Isso só pode ser explicado pela existência
de um sector muito vasto da vossa população que interiorizou a narrativa do
governo. Recordo-vos o essencial dessa narrativa, não na linguagem adornada que
utilizam os pastores para se dirigirem ao rebanho, mas na linguagem enxuta que
utilizamos para a descodificar.
O que dá algo como isto: “ Portuguesas e Portugueses ! Sois, como bem
sabeis, pacíficos e cordatos carneiros e ovelhas. Nós somos, como também bem
sabeis, os vossos pastores, e com muito orgulho. É um privilégio sermos os
pastores de um rebanho tão sereno como o vosso. Não nos agrada de todo, como
malevolamente insinuam os carneiros e ovelhas mutantes, verdadeiras aberrações,
termos sido forçados pelos nossos credores a tosquiar-vos à bruta e a mandarmos
os nossos cães morder-vos forte e feio nas canelas durante estes anos
invernosos, para acudir às necessidades urgentes de liquidez dos nossos
banqueiros, dos nossos parceiros privados das parcerias público-privadas, do
nosso sector exportador, enfim, daqueles que fazem o mundo pular e avançar. Mas
não havia outra opção. Os vossos pastores anteriores (e também, hélas, alguns dos pastores da nossa
própria família anteriores aos anteriores) não nos deixaram outra opção. Queriam
aplicar-vos uma dose de um medicamento homeopático
chamado PEC 4. Não podia ser! A homeopatia, como sabem, é medicina para
papalvos. Para grandes males, grandes remédios. Numa emergência destas era
preciso aplicar doses maciças de um medicamento poderoso e com provas dadas, chamado
« austeridade », inventado nos laboratórios do FMI, a empresa farmacêutica
especializada nos males da economia com mais pergaminhos no mundo inteiro. É um
remédio amargo, com efeitos secundários devastadores. Mas resulta!”.
Perguntador: Desculpe
interrompê-lo. Mesmo assim, é espantoso constatar a bonomia ou pelo menos a
resignação com que o povo português aceitou esse remédio, comparado com o que
aconteceu na Grécia, por exemplo. A única explicação que me ocorre é uma frase
de Oliveira Salazar (paz à sua alma) que gostava de dizer que o povo português
é, cito, um “povo de brandos costumes”. Será esta uma explicação válida?
Cientista
neoplatónico (rindo): Bem, podemos dizer que sim, se tivermos
o cuidado de inverter o nexo de causalidade implícito na sua pergunta. Não é ao
povo português que devemos atribuir a brandura dos seus costumes; é a política
do Dr. Salazar, uma combinação muito bem doseada, durante quarenta anos, de
coerção estatal brutal (PIDE, Tarrafal, etc.) sobre as ovelhas ranhosas − as
ovelhas mutantes como nós lhes
chamamos hoje − com uma narrativa muito bem construída para as ovelhas normais («
Beber vinho é dar o pão a 1 milhão de portugueses», « Houve sempre e haverá sempre pobres e
ricos», « Somos pobres mas honrados», etc.).
Claro, os tempos não são
os mesmos. A narrativa dos pastores tem de evoluir, tem de adaptar-se às
transformações do nosso mundo. Em democracia, a coerção estatal brutal não
funciona. Mais, é contraproducente. Produz efeitos ecológicos favoráveis ao
aparecimento de um número muito elevado de ovelhas e carneiros mutantes. Isso é
péssimo para a estabilidade governativa e para a confiança dos investidores, os
dois factores a que as agências de notação financeira são supersensíveis. É a
receita garantida para a dívida soberana de um país receber a menção «lixo»
dessas agências, à qual se segue o cortejo de consequências avassaladoras que
todos conhecemos bem. Por isso, o vosso governo, muito judiciosamente, produziu
uma narrativa bem adaptada às novas circunstâncias. Uma narrativa simples, como
convém às mentes crédulas, um tanto ou quanto infantis, das ovelhas e dos
carneiros normais (sem desprimor para os senhores jornalistas aqui presentes,
que coloco numa categoria diferente, pois cabe-lhes o nobre papel de servirem
de mediadores, de mensageiros, entre os pastores e os rebanhos, metaforicamente
falando, claro).
Perguntadora: E
em que categoria se coloca o senhor?
Cientista
neoplatónico: Bem, obviamente, numa categoria diferente
da sua, senhora jornalista. Nós somos cientistas, observadores imparciais da
realidade que vos descrevi; a realidade neurocognitiva dos seres humanos, tal
como ela se manifesta nas sociedades modernas.
Mas permitam-me que
regresse ao ponto em que estava quando o seu colega me fez a pergunta anterior à sua (perguntas ambas
muito pertinentes, por sinal, e que desde já agradeço). Eu preparava-me precisamente
para descrever a segunda componente da narrativa do governo.
Algo como isto: “Portuguesas
e Portugueses! O governo anterior (e os outros governos anteriores da mesma
família de pastores) deu-vos erva a mais, prados verdejantes a mais para
poderdes tasquinhar a vosso bel-prazer. Foram governos esbanjadores. Mas não há
almoços grátis, como o nosso mais eminente economista está fartinho de
explicar. Agora chegou a hora de pagar a factura desse comportamento um tanto
ou quanto estouvado, desculpem-nos a franqueza. A verdade é que vivíeis acima
das vossas possibilidades. Por isso tivemos, ainda que a contragosto, de vos
tosquiar a eito, à bruta mesmo, mas foi para vosso bem. E tivemos também de reduzir
drasticamente a vossa ração de erva diária, para nosso grande pesar.
Aproveitamos esta oportunidade para agradecer e louvar o trabalho notável da
sociedade civil, em particular do Banco Alimentar e das IPSS. Essas
organizações permitiram mitigar as agruras dos mais vulneráveis aos rigores da
austeridade. Mas agora o país está diferente. Mais pobre, sem dúvida, mas mais
esbelto, mais saudável, mais bem ajustado aos desafios da competitividade
internacional, com as finanças controladas”.
Perguntador:
E acredita que o eleitorado interiorizou essa narrativa?
Cientista
neoplatónico: Sim, não há outra explicação para os
resultados das sondagens. Ponhamos a coisa assim. A maioria do eleitorado pensa
que os governantes actuais são mentirosos contumazes. Mas um sector muito vasto
acredita que essa é a característica mais saliente de todos os
políticos. E considera: “Vale mais ser
tosquiado por pastores já conhecidos do que por
pastores desconhecidos, que poderão ser ainda piores − mais brutos, mais boçais, mais velhacos” − como
lhes é dito, de resto, todos os dias pelos governantes actuais (risos).
É esse o segredo da grande estabilidade dos partidos do arco da governação e
mesmo daqueles que se situam fora desse arco.
Perguntador:
Pedia-lhe
um comentário sobre algumas declarações de um nosso colega jornalista, publicadas
hoje mesmo, na sua coluna habitual num diário de referência, que parecem ir no
sentido do que o senhor disse, mas que, por outro lado, parecem contradizê-lo.
Passo a citar:
Afinal, como é possível que
num Portugal espremido até à última gota de IVA, de sobrecarga de IRS, de 13º
mês, de terrível precariedade e impiedosa austeridade, quatro em cada dez
eleitores ainda se mostre disponível para votar em quem nos governou desde 2011?
O povo embruteceu de vez?” («O desgraçadismo foi sobrevalorizado», João Miguel Tavares. Público.1-10-2015).
Cientista
neoplatónico: Não penso que seja pertinente atribuir
essa tendência de voto ao « embrutecimento do povo ». Não se trata disso. Trata-se
do modo muito profissional, muito competente, como certos pastores conduzem o
seu rebanho através de narrativas adequadas às circunstâncias em permanente
mutação nas nossas modernas democracias pastoris.
O
mesmo perguntador: Espere um pouco. Eu ainda não tinha
terminado. Mais adiante o nosso colega escreve o seguinte − passo a citar:
Não, o povo não
embruteceu de vez (…). É verdade que boa parte dos portugueses que vão votar na
coligação não estão satisfeitos com a governação de Passos Coelho e Paulo
Portas. Eu próprio, no próximo domingo, vou votar PàF mais ou menos com a mesma
convicção com que os comunistas votaram Mário Soares em 1986. Trata-se de
engolir, não direi um sapo, mas, pelo menos, uma rã. Só que não tenho
alternativa à rã − não há um único partido que esteja a criticar a coligação
por aquilo que ela merece ser criticada. Todos os políticos batem na tecla da
austeridade, quando todos os não-políticos têm a perfeita consciência de que a
austeridade era inevitável; toda a esquerda acusa o Governo de ter ido além da
troika, quando o maior erro do Governo foi ter ficado aquém da troika.
Perante estas
declarações, gostaria de lhe colocar uma pergunta. O senhor afirmou há pedaço,
que nós, jornalistas, pertencíamos a uma categoria distinta das que apelidou de
rebanho e pastores, visto que nos incumbe a função de mensageiros entre elas.
Por isso, a minha pergunta é esta: “ É legítimo que um jornalista afirme
publicamente que acredita na narrativa dos pastores quando se dirige ao
rebanho? Não estará, ao fazê-lo, a afastar-se da sua missão e a afirmar que é também,
afinal, não um mensageiro mas (mais) um membro do rebanho?”
Cientista
neoplatónico: A sua pergunta levanta questões
delicadas que, infelizmente, não posso abordar aqui com a profundidade que
merecem, porque me estão a fazer sinal (este zumbido que ouvem é o meu
telemóvel a vibrar) de que terei de pôr termo a esta conferência de imprensa
dentro de dez minutos no máximo, para atender a outros compromissos. Limitar-me-ei por isso a exprimir a minha
posição em termos gerais, de princípio.
Os jornalistas não estão
obrigados a manter uma estrita imparcialidade analítica no exercício da sua profissão.
Esse é um dever ao qual só nós, cientistas neurocognitivos, estamos vinculados.
Mas considero desejável que os jornalistas tentem emular tanto quanto possível
os cientistas neurocognitivos neste particular. Isso é importante se quiserem
manter a sua credibilidade junto do rebanho e até junto dos pastores. Os
pastores apreciam os jornalistas pela sua capacidade de transmitirem as suas
narrativas ao rebanho da maneira mais eficaz possível. Não lhes pedem para
afirmarem ao rebanho se acreditam ou
não, e com que grau de convicção, na
bondade das narrativas e mensagens que eles, pastores, dirigem ao rebanho. É
fácil entender qual a razão para evitar esses “excessos de zêlo” − digamos
assim, para não ferir susceptibilidades. É que, quando os jornalistas procedem
desse modo, estão a desqualificar-se, a pôr-se ao nível de uma vulgar ovelha e
de um vulgar carneiro. Isso é contraproducente, porque o que as ovelhas e os
carneiros normais mais apreciam é a ideia de que os jornalistas têm um acesso
privilegiado aos pastores, que são capazes de conversar com eles de igual para
igual e depois simplificar as suas narrativas, mas que são também capazes de
manter as suas distâncias como mensageiros. O mensageiro não tem de dizer (nem
deve) se acredita ou não acredita na verdade ou na sinceridade da mensagem de
que é portador. Aliás, essa questão da verdade das narrativas dos pastores, tal
como a questão da sinceridade com que as produzem, são completamente
irrelevantes na análise do fenómeno político. O que conta é saber se os
pastores conseguem ou não fazer com que o rebanho acredite nas suas narrativas.
Perguntador:
Gostaria que desenvolvesse o pouco mais a diferença entre o conceito de «povo
embrutecido», que o senhor diz rejeitar, e o seu conceito de «rebanho». A mim,
francamente, parecem-me ambos pejorativos. É tratar os cidadãos que não pertencem à classe
política, e eles são a esmagadora maioria, como seres estúpidos, destituídos de
discernimento.
Cientista
neoplatónico: Mas de modo nenhum! «Rebanho» e «pastores»
são metáforas cognitivas que utilizamos para tornar perfeitamente inteligível
um processo complexo, e inteligível, em primeiro lugar, aos jornalistas, a quem
incumbe, como eu disse, a função extremamente importante de mensageiros. São
termos que não têm nada de pejorativo. São como os « sabores» e as «cores»
dos quarks de que falam os físicos, que são, também eles, rótulos
puramente analíticos. Nenhum físico saboreou um quark, que eu saiba, ou comprou
uma gravata ou um vestido da sua cor de quark favorita! (risos)
Dou-vos um exemplo recente, muito esclarecedor.
Existem cerca de 2 milhões e meio de pensionistas do regime contributivo da
segurança social. Destes, uma parte minoritária mas considerável (mais de 300
mil) é constituída por pessoas aposentadas ou reformadas que auferem pensões
superiores a 1350 euros. São as pessoas que fizeram maiores descontos para o
regime contributivo da segurança social, porque auferiam maiores salários do
que os demais pensionistas pelo facto de serem pessoas com mais habilitações,
com as profissões mais qualificadas (professores, médicos, engenheiros, etc.).
Estes pensionistas viram-se obrigados pelo
governo PSD-CDS a pagar uma Contribuição
Extraordinária de Solidariedade (belo oximoro!), um imposto especialmente e
exclusivamente formatado para os atingir. Foi o grupo social que pagou a maior factura
da política de austeridade, porque estes pensionistas tiveram também de pagar a
sobretaxa de IRS e os aumentos de IRS decorrentes da diminuição de escalões que
foi aplicada a todos os outros cidadãos. E a maioria destes pensionistas, por
serem ex-funcionários públicos, tiverem ainda que pagar os aumentos decretados
pelo governo nos descontos para a ADSE. Mais, se não fosse o vosso tribunal
constitucional a impedi-lo, o governo PSD-CDS teria ido ainda mais longe, transformando
esse imposto num corte permanente de 2% a 3,5% para todas as pensões em pagamento a partir de 1000 euros.
Seria portanto natural
que estas pessoas se organizassem para defender os seus direitos adquiridos.
Porque se trata de facto de um direito adquirido. As pensões que essas pessoas auferem
não são uma benesse de nenhum governo. São um salário diferido, que resulta dos
descontos que efectuaram durante a sua vida activa sobre o seu salário e dos
descontos que as suas entidades patronais fizeram também com esse fim, uns e
outros deduzidos do valor que essas pessoas produziram com o seu trabalho. E o que vimos nós? Nasceu, de
facto, como sabem, uma nova organização vocacionada para esse fim, chamada
APRe!. Mas esta organização só conseguiu reunir uns milhares de associados
entre as centenas de milhares de potenciais sócios.
Isto permite-nos tirar
duas conclusões. Uma é que os mais de 200 ou 300 mil pensionistas que não aderiram a essa organização, que não mexeram uma palha para se
oporem ao corte das suas pensões, apesar de terem razões de sobra para isso,
mostram bem a eficácia da narrativa austeritária do governo que há pouco vos
descrevi. Estas pessoas assimilaram bem essa narrativa. Engoliram tudo, se
assim posso dizer: anzol, linha e chumbada. Continuam, em suma, a serem ovelhas
e carneiros normais, incapazes de imaginar uma vida sem pastores nem cães de
guarda. Há quem faça juízos de valor negativos sobre este facto e sobre o
comportamento do governo para com estas pessoas. Mas eu não vou por aí. Como
cientista social neurocognitivo encaro estes factos objectivamente. E
objectivamente são factos muito reconfortantes. Provam a robustez do principal
axioma da moderna ciência social neurocognitiva: a estratificação das sociedades
modernas em dois grandes grupos, aqueles que designamos por rebanho e pastores, respectivamente.
A outra conclusão que
podemos tirar destes factos, de um ponto de vista neurocognitivo, é que a APRe!
é uma associação de ovelhas e carneiros mutantes.
Este crescimento súbito de mutantes numa faixa etária avançada é, em si mesmo,
um facto deveras intrigante, porventura inédito na Europa, que teremos de
estudar melhor. Significa que há um risco potencial muito sério de a política
de austeridade poder descarrilar. Foi o que só não aconteceu por um triz na
Grécia, onde o número de mutantes de todo o género e de todas as idades cresceu
exponencialmente em pouco tempo e assumiu proporções assustadoras. É um risco que
não foi previsto pelos pastores, nem mesmo (devo reconhecê-lo a contragosto)
por nós, cientistas neurocognitivos. E já que estamos em maré de confidências,
permitam-me que vos confidencie também que fomos completamente colhidos de surpresa
pelo fenómeno social APRe! Não julgávamos possível que ocorressem mutações
deste género em pessoas de cabelos grisalhos ou brancos. Julgávamos que o gene
da rebeldia (um gene recessivo) só se manifestava esporadicamente na
adolescência. Este é um dos factos que nós costumamos ensinar aos nossos alunos
sob a forma de um aforismo brincalhão: “Aos vinte anos muitos de nós querem
mudar o mundo. Aos trinta queremos mudar de vida. Aos 40 só queremos mudar os
móveis da nossa sala de estar ou mudar de automóvel. Aos 60 só queremos sopas e
sossego”. Mas vejamos as coisas pelo seu lado positivo. As ovelhas e os carneiros
mutantes continuam a ser uma pequena minoria, nesta como em qualquer outra faixa
etária, comparada com a maioria de carneiros e ovelhas normais. Isso significa
que as nossas democracias pastoris são estáveis.
Perguntadora:
E
os indecisos, não estará a subestimar à sua importância? São uma percentagem
considerável. Podem decidir o resultado à última hora, se maioria deles for
constituída, para empregar os seus termos, por carneiros e ovelhas mutantes.
Cientista
neoplatónico: Os indecisos são uma categoria
heterogénea. Uma parte já decidiu em quem votar. Vota neste ou naquele partido,
ou vota nulo ou em branco (este é o grupo onde provavelmente encontramos mais carneiros
e ovelhas mutantes). Mas vota. Só que se recusa a revelar o sentido do seu voto
aos inquiridores. É, aliás, a razão pela qual as sondagens falham muitas vezes,
sobretudo quando os brancos e nulos decidem “votar útil”, o que significa votar
num partido considerado “um mal menor”, o partido com menos possibilidades de
os desiludir, porque têm poucas ou nenhumas ilusões nos partidos. A outra parte
dos chamados indecisos, que são a maioria, não vai votar. Vai-se abster. Nas
eleições de 2011 a abstenção foi de 42%, números redondos. Uma parte muito
importante deste sector, abstem-se sempre. São aqueles que consideramos serem as
ovelhas e os carneiros genomicamente puros. São os que acham, simplesmente, que
a sua sina é ser tosquiada, pois é esse o triste fado das ovelhas e carneiros
contra o qual não vale a pena lutar. O seu credo político pode ser resumido
assim: “Para quê votar, se todos os pastores se equivalem? Por isso, tanto faz
que seja este ou aquele pastor. Façamos o que fizermos, os pastores, sejam eles
quais forem, são mais espertos do que nós, carneiros e ovelhas”. É
reconfortante saber que esta categoria de eleitores está connosco há mais de
dois milénios. O meu colega Quinto Túlio, num estudo pouco conhecido mas
notável, detectou a sua presença na Roma antiga. São o esteio mais sólido de
todas as democracias …e também, devo dizê-lo, de todas as ditaduras (risos).
Nesse momento, o
telemóvel do cientista neurocognitivo começa de novo a vibrar em cima da mesa. O
cientista recolhe o telemóvel, guarda-o no bolso do casaco e diz: «Lamento, mas
o meu tempo esgotou-se. Não poderei responder a mais perguntas. Boa tarde. Foi
um prazer estar convosco. Até a uma próxima oportunidade».
**********
Como o nosso “psicólogo
neurocognitivo” se foi embora, ficaram muitas perguntas por lhe fazer, em especial sobre as
próximas eleições de 4 de Outubro. São, todas, perguntas comezinhas, para as
quais é fácil encontrar resposta sem
necessidade de recorrer às categorias ovinas, caninas e pastoris da sua sopa de
pedra platónica onde se mesclam, quase inextricavelmente, a descrição de factos, alguma perspicácia, o
cinismo, a fanfarronice, a auto-ilusão e o embuste. Para as formularmos e lhes
respondermos basta ter memória, respeito pelos factos, saber um pouco de aritmética,
ouvir com atenção e ler com igual atenção o que dizem de viva voz e o que
escrevem os candidatos às próximas eleições. Mas todas as perguntas que a mim me
interessaria fazer e responder se podem resumir, neste momento e para não nos alongarmos mais, a uma só:
—
Como derrotar a política
de « austeridade » que tem sido aplicada nos últimos quatro anos e meio, cujos
efeitos conhecemos bem (corte nos salários e nas pensões do sistema
contributivo, cortes na ciência e na educação, enorme aumento dos impostos,
enorme aumento do desemprego, enorme aumento da emigração por motivos de
sobrevivência, enorme aumento do trabalho precário e sem direitos, privatização
das empresas públicas mais valiosas e rentáveis: CTT, EDP, REN, ANA, etc.)?
A resposta parece-me evidente. O
primeiro passo é derrotar nas eleições de 4 de Outubro os seus fautores: o
governo PSD-CDS, a coligação Pàf. É votar para evitar o pior, afastando estes
dois partidos do governo.
Quem deseje este
resultado deve saber (se é que ainda não sabe) que a abstenção não conta. A
abstenção significa aceitar continuar a ser tosquiado como um carneiro ou como
uma ovelha, se a coligação Pàf tiver a maioria dos votos. É o tipo de comportamento
que permite aos Castelli deste mundo darem um semblante de veracidade à sua ciência
de pacotilha.
Votar nulo ou em branco é
legítimo. Mas quem tencione votar em branco ou nulo, deve saber (se é que ainda
não sabe) que a lei eleitoral separa à partida esses votos dos restantes votos.
Os votos nulos ou em branco não têm qualquer influência no apuramento dos
resultados.
José
Catarino Soares (2-10-2015).
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