Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

12 abril, 2021

 tema 3

Ainda não sabem que são fascistas 

José Catarino Soares

 

1. Introdução

 

José Sócrates foi primeiro-ministro do governo português entre 2005 e 2009, depois do seu partido, o Partido Socialista (PS), ter obtido uma maioria absoluta no parlamento (121 deputados, 52%) com 2.588.312 votos (45% dos votos expressos) nas eleições legislativas de 2005.  Foi a primeira e única vez, até à data, que o PS conseguiu uma maioria absoluta.

Em 2009, José Sócrates e o PS tornaram a obter a maioria, mas desta vez relativa, nas eleições legislativas, com 2.077.238 votos (36,6% dos votos expressos), que lhes deram 91 deputados (42,17%) no parlamento.

Em Março de 2011, José Sócrates pediu a demissão e o seu governo caíu. Nas eleições legislativas antecipadas realizadas em Abril desse ano, o PS perdeu a maioria relativa em favor do PSD, o qual, juntamente com o CDS, formou um governo de coligação, maioritário em votos (50,4% dos votos expressos) e deputados (132 deputados, 57,9 %). Perante esta derrota, José Sócrates demitiu-se de secretário-geral do PS na noite das eleições.

 

2. Operação Marquês

 

Em 21 de Novembro de 2014, José Sócrates foi detido aparatosamente no Aeroporto de Lisboa, à sua chegada de Paris, com ampla cobertura em directo de uma estação de televisão (Correio da Manhã) do Grupo Cofina, indiciado por crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais, corrupção e tráfico de influências, no âmbito da chamada Operação Marquês. Três dias depois e após ter sido interrogado pelo juiz Carlos Alexandre, este optou por colocar o ex-primeiro ministro em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Évora, instalação de alta segurança inaugurada durante o seu mandato. Esteve preso 288 dias em prisão preventiva e mais 42 em prisão domiciliária. Em 6 de Outubro de 2015, foi-lhe aplicada a medida de coacção denominada “Termo de Identidade e Residência”, com proibição de contactar os restantes arguidos do processo Operação Marquês e de sair do país sem autorização prévia.

Em Janeiro de 2019 deu-se início à fase instrutória do processo no Tribunal Central de Instrução Criminal, em Lisboa. Em 9 de Abril de 2021, o juiz Ivo Rosa leu a súmula da decisão instrutória da Operação Marquês. A decisão implica que José Sócrates será julgado por seis crimes: três crimes de branqueamento de capitais e três crimes de falsificação de documentos.

9 de Abril de 2021. O juiz Ivo Rosa lê durante mais de 3 horas uma súmula da decisão instrutória do processo Operação Marquês. Foto de Mário Cruz. Lusa. Pool


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Um crime de branqueamento de capitais de José Sócrates por utilização de contas bancárias junto do Montepio Geral da arguida Inês do Rosário, em coautoria com Carlos Santos Silva;

# Um crime de branqueamento de capitais de José Sócrates, em coautoria com Carlos Santos Silva, relativamente ao uso das contas bancárias do arguido João Perna;

# Um crime de branqueamento de capitais de José Sócrates envolvendo 167.402,5 euros com origem no arguido Carlos Santos Silva no interesse do arguido José Sócrates;

# Um crime de falsificação de documentos de José Sócrates, em coautoria com Carlos Santos Silva, relativo à produção de documentação do arrendamento de um apartamento em Paris;

# Um crime de falsificação de documentos de José Sócrates, em coautoria com Carlos Santos Silva, referente a contratos de prestação de serviços da RMF Consulting e envolvendo figuras como Domingos Farinho;

# Um crime de falsificação de documentos de José Sócrates em coautoria com Carlos Santos Silva relativo a contratos de prestação de serviços da RMF Consulting e envolvendo figuras como António Manuel Peixoto e António Mega Peixoto

Quanto aos restantes crimes imputados a José Sócrates (e Carlos Santos Silva), «profere-se decisão de não pronúncia», disse Ivo Rosa. Ou seja, José Sócrates não vai ser julgado por nenhum dos crimes de corrupção de que era acusado pelo Ministério Público.

A tese do procurador do Ministério Público, Rosário Teixeira, é a de que José Sócrates recebeu cerca de 34 milhões de euros, entre 2005 e 2015, a troco de favorecer interesses de Ricardo Salgado no Grupo Espírito Santo (GES) e na Portugal Telecom (PT), de favorecer interesses de Diogo Gaspar Ferreira e Rui Horta e Costa para garantir a concessão de financiamento da Caixa Geral de Depósitos ao empreendimento imobiliário Vale do Lobo, no Algarve, e de favorecer negócios, nomeadamente fora do país, do Grupo Lena.

O juiz Ivo Rosa concluiu que o Ministério Público não apresentou provas que sustentassem esses crimes de corrupção e que os indícios apresentados pelo Ministério Público na sua acusação padeciam de «incoerência total», «fantasia e especulação» ou eram «inócuos». Todavia, o juiz Ivo Rosa formou a convicção, baseada em indícios e elementos de prova carreados pelo Ministério Público que considerou consistentes, de que José Sócrates foi corrompido pelo seu amigo Carlos Santos Silva. Na tese do juiz Ivo Rosa, Carlos Santos Silva não era o testa de ferro para o dinheiro que José Sócrates teria recebido  – a tese do Ministério Público – antes um corruptor.

Segundo Ivo Rosa, os 1,7 milhões de euros das contas de Carlos Santos Silva que serviram para pagar – ora em dinheiro vivo, ora directamente – viagens ou as despesas, de amigas e ex-mulher de Sócrates e do próprio, não configuram um crime. Porém, a forma como o dinheiro era feito chegar a Sócrates e as despesas pagas indiciam «um mercadejar do cargo» (sic) e um certo «clima» de utilização do cargo de primeiro-ministro, tendo em conta os montantes. «O facto de ser primeiro-ministro conduzia a essas entregas», disse o juiz, para quem «Carlos Santos Silva era pago pelo Grupo Lena para abrir portas»Por isso, transferindo verbas para o seu amigo José Sócrates, podemos estar, concluiu o juiz, perante a prática de actos que configuram um «crime de corrupção activa e passiva sem demonstração de acto concreto».  

Todavia, já se deu uma prescrição desse crime. Apesar de ter considerado que esse crime de corrupção já prescreveu, o juiz de instrução considerou que o mesmo podia relevar para efeitos da imputação de outros crimes, nomeadamente de lavagem de dinheiro sujo. E por isso decidiu levar José Sócrates e Carlos Santos Silva a julgamento pelos seis crimes já referidos.

9 de Abril de 2021, Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa. José Sócrates escuta a leitura da súmula da decisão instrutória sobre o processo Operação Marquês. 

 3. Reacções

A decisão instrutória do juiz Ivo Rosa é um documento com 6.728 páginas. Para a ler com a devida atenção e olho crítico são necessárias várias semanas. Quem queira refutá-la precisará no mínimo de 120 dias tantos quantos requereu o procurador do Ministério Público Rosário Teixeira para a poder contestar.

No entanto, isso não impediu que a decisão instrutória do juiz Ivo Rosa tivesse desencadeado imediatamente uma enxurrada de juízos muito severos por parte da grande maioria dos comentadores das estações de televisão, de rádio e dos jornais e uma onda de insultos e invectivas ressumando ódio e fúria nas redes sociais. 

Foram também muitos os que vieram rasgar as vestes em público e fazer prova de uma sapiência jurídica que até agora ninguém lhes conhecia. Por exemplo, o editor (ele prefere dizer publisher) e colunista do Observador, José Manuel Fernandes, afirmou, do alto da sua cátedra em direito criminal, que a decisão instrutória do juiz Ivo Rosa «não foi um erro da Justiça. Foi um insulto ao país» (Observador, 10 de Abril de 2021)Outro grande jurista ignoto, o jornalista João Miguel Tavares, não hesitou em afirmar que «Ivo Rosa não salvou José Sócrates. Salvou o sistema que o alimentou e que ele próprio promoveu» (Público, 9 de Abril de 2012). O director do Público, Manuel Carvalho – que nos informa, no seu CV, ser «licenciado em História» e «escrever sobre tudo um pouco, principalmente nas áreas da economia associadas ao desenvolvimento regional, à indústria e à agricultura» – sentenciou no mesmo dia em que Ivo Rosa leu a sua decisão instrutória : «Esta sexta-feira, tivemos um juiz que preferiu investir-se de um papel de guardião da análise textual, em vez de privilegiar a lógica dos indícios ou dos factos. O juiz preferiu vestir a toga do burocrata em detrimento da sua função de promotor da Justiça» (A corrupção nunca existiu”, Público, 9 de Abril de 2021). Um ex-candidato à presidência da República, Henrique Neto, chegou a dizer que «Ivo Rosa é uma espécie de OVNI do sistema de justiça português» (TVI24, 10 de Abril de 2021). 

O ex-secretário de Estado, ex-ministro, ex-deputado, ex-chefe do grupo parlamentar e ex-presidente do PSD, conselheiro de Estado e comentador da SIC, Marques Mendes, foi ainda mais longe ao afirmar: «Este juiz [Ivo Rosa] ou é ingénuo ou faz-se de ingénuo ou vive num mundo à parte. Em qualquer dos casos, um homem assim é um perigo à solta» (SIC, 11 de Abril de 2021). Em 18 de Abril, na mesma estação de televisão, Marques Mendes voltou à carga, desta vez para qualificar a alegada ingenuidade de Ivo Rosa de «ingenuidade delirante», acrescentando que a sua decisão instrutória «foi um arraso na confiança dos cidadãos na justiça». Por seu turno, o ex-dirigente estudantil do PCP, ex-secretário de Estado do VI governo provisório, ex-deputado constituinte do PS, ex-ministro do PS no 1º Governo constitucional, ex-reformador da AD [Aliança Democrática:coligação formada pelo PSD, CDS, PPM e Movimento dos Reformadores], ex-deputado do PS, ex-presidente da Fundação Francisco Manuel dos Santos, António Barreto, declarava, em tom tétrico, sobre a decisão instrutória do Tribunal de Investigação Criminal relativa ao processo Operação Marquês: «Nunca imaginei que fosse possível assistir, em directo, ao quase suicídio de uma instituição. O que se passou nesta última semana andou muito perto disso, de um gesto sacrificial ou de uma descida aos infernos. A Justiça portuguesa nunca conseguirá, antes de muitos anos, recuperar uma parcela do prestígio perdido, que já era pouco, mas parecia recuperar gradualmente. Este espectáculo indecoroso foi na verdade o último acto de um folhetim» (Escombros”, Público, 17 de Abril de 2021). [ver Nota] 

O expoente máximo desta onda de “histeria colectiva” e de “tiro ao juiz”, como a qualificou um professor da faculdade de direito da Universidade do Porto (André Lamas Leite, “A Histeria Colectiva”, Público, 11 de Abril de 2021), foi uma petição redigida por um cidadão que dá pelo nome de Vítor Manuel de Magalhães Miranda Neves, dirigida ao «Exmo Senhor Presidente da Assembleia da República», ao «Exmo Senhor Provedor de Justiça» [os peticionários desconhecem que este cargo é actualmente exercido por uma mulher daí “o senhor”] e ao «Exmo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça». A petição solicita «o afastamento do Sr. Juiz Ivo Nelson de Caires Batista Rosa de toda a Magistratura», «face à sua parcialidade e consecutivos erros judiciais lesivos ao Estado e à Nação Portuguesa», alegando ainda que ele «não tem perfil, rigor e equidade para exercer tal cargo».

No momento em que escrevo (dia 12 de Abril de 2021, 17h23), a petição já tinha recolhido 177.860 assinaturas.

 

4.  Montesquieu  

 

Há, porém, um pequeno e um grande problema com esta petição, de que os seus subscritores não parecem ter a mínima consciência.

O pequeno problema é que as entidades a quem a petição é dirigida não têm qualquer competência para satisfazer a sua pretensão. A Constituição da República Portuguesa em vigor estabelece  a independência dos tribunais (artigo 203.º) e que os juízes não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei (artigo 216.º).

A Constituição estabelece também (artigo 111.º) a separação entre o chamado poder executivo (vulgo, o governo e o Presidente da República), o poder legislativo (vulgo, o parlamento) e o poder judiciário (vulgo, os tribunais). Nenhum destes poderes, designados na Constituição por “órgãos de soberania”, se pode sobrepor aos demais; nenhum deles pode interferir no funcionamento quotidiano dos demais, a não ser pelas vias legais.

Este princípio da separação dos poderes foi claramente formulado por Charles-Louis de Secondat, barão de Montesquieu, na sua obra De l’Esprit des Lois (1748) [Sobre o Espírito das Leis]. Mas a verdade é que esse princípio já tinha sido proposto por Aristóteles no seu tratado A Política escrito talvez entre 343-335 a.C., o período em que foi preceptor de Alexandre O Grande. O mesmo princípio foi ulteriormente retomado por Nicolau Maquiavel em O Príncipe (1515) e por John Locke no Segundo Tratado sobre o Governo Civil (1680). Ambos influenciaram Montesquieu.

Capa da edição original (1748) do livro Sobre o Espírito das Leisde Montesquieu.
«Loix» era a grafia antiga de «lois» [leis].   


Podemos, pois, presumir, relativamente ao senhor Vítor Manuel de Magalhães Miranda Neves e aos seus 177.859 compinchas, que, de duas uma: ou (i) nunca ouviram falar de Montesquieu, ou sequer da separação dos três poderes políticos, ou (ii) estão-se borrifando para essa separação. Provavelmente, estes peticionários distribuem-se pelos dois grupos: (i) e (ii).

 

5. Fascistas que ainda não sabem que o são

 

O grande problema com esta petição é que o que os peticionários pedem  sejam eles do grupo (i) ou do grupo (ii)  só pode ser atendido por um regime fascista. É no fascismo que os três poderes se amalgamam no “princípio do chefe” (Al. Führerprinzip), segundo o qual “a palavra e a vontade do chefe estão acima das leis escritas e todas as políticas públicas, todas as decisões administrativas, todas as decisões judiciais, todos os cargos públicos devem trabalhar para a realização desse desiderato”. 

Depois da “Noite dos Longos Punhais” (30 de Junho de 1934) – quando assassinou e mandou assassinar Ernst Röhm e dezenas de “camisas castanhas” (o nome coloquial dos membros do SA, uma milícia paramilitar do seu partido) e prender milhares de outros camisas castanhas”,  para assim agradar ao comando da Reichswehr (as Forças Armadas alemãs)  Adolf Hitler ilustrou bem esse princípio ao declarar no Reichstag (o parlamento alemão que o regime nazi transformou numa câmara de eco de Hitler), em 13 de Julho de 1934: «Nessa hora, eu era responsável pelo destino da nação alemã e era, por conseguinte, o juíz supremo do povo Alemão!».

Ernst Röhmer, comandante do Sturmabteilung (SA)[Destacamento Tempestade, usualmente traduzido como “Secções de Assalto”], uma das milícias paramilitares do partido nazi, cujos membros eram conhecidos como os Camisas Castanhas. 13 de Agosto de 1933. Bundesarchiv_Bild_102-15282A. 


João Bernardo (J.B.) publicou há uns anos (2014), na revista electrónica brasileira Passa Palavra, um excelente estudo, em 5 partes, intitulado Ainda não sabiam que eram fascistas, que passou a ser a versão ampliada e actualizada das páginas 390-419 do seu livro Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta (Porto: Afrontamento, 2003). Nesse estudo se mostra quem foram e como actuaram os pioneiros do fascismo na Europa, mas que ainda não sabiam que eram fascistas porque, como diz J.B., «na história, os actores, ou autores, desconhecem
[o mais das vezes] o enredo em que participam, ou que julgam escrever» (o parêntese entre colchetes foi intercalado por mim).

Esta observação aplica-se também à petição para afastar o juíz Ivo Rosa. Na sua maioria, os seus subscritores são fascistas que ainda não sabem que o são.

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Declaração de interesses. Nunca falei nem nunca me cruzei com José Sócrates. Nunca votei nele nem no PS, o seu ex-partido. Não tenho nenhum apreço pelas suas ideias políticas. Também não conheço nem nunca falei com o juíz Ivo Rosa. Mas não alinho com nenhuma “caça às bruxas”, seja qual for o nome das pretensas bruxas: José Sócrates, Ivo Rosa ou outro qualquer.

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[Nota] Todo este parágrafo que começa por “O ex-secretário de Estado, ex-ministro...” e termina em  Público, 17 de Abril de 2021”, foi acrescentado por mim em 19 de Abril de 2021. Nessa data, às 11h,14m, a petição para afastar o juíz Ivo Rosa já tinha recolhido 193.401 assinaturas.  

25 fevereiro, 2021

 Tema 3


Alice, a Rainha Branca

e os sindicatos “impossíveis”

José Catarino Soares

 

1. Introdução

 

Este artigo é uma sequela imprevista do anterior, As razões da fraqueza da classe dos trabalhadores assalariados e os meios da sua superação (1), publicado neste blogue em 7 de Fevereiro de 2021 (v. Arquivo do Blogue no fim da coluna da direita).

O motivo para o escrever foram alguns comentários e algumas objecções que ele suscitou a dois dos meus amigos (um do sexo feminino [f] e outro do sexo masculino [m]). Vou numerar esses comentários com estas letras e algarismos romanos para facilitar remissões ulteriores. Um desses comentários dizia em substância o seguinte:

f-I) O teu artigo é uma glosa, mais uma, da velha palavra de ordem “a união faz a força”. Mas como poderão trabalhadores com qualificações e remunerações tão diferentes quanto, por exemplo, os pilotos e os trabalhadores administrativos da TAP, coabitar no seio de um mesmo e único sindicato ? E já agora: qual é a razão da pulverização sindical ?

 

2. As razões da pulverização sindical

 

Respondi à minha amiga que ambas as perguntas tinham uma resposta fácil. A pulverização sindical é o resultado inevitável da construção de sindicatos profissionais e de ofício.

Segundo a taxonomia ESCO (European Skills, Competences, Qualifications and Occupations) da Comissão Europeia, existem 2.942 profissões e ofícios (Ingl. “occupations”). Se os sindicatos forem construídos tomando como unidade de base uma profissão ou um ofício, o resultado, mesmo agregando várias profissões ou vários ofícios num mesmo sindicato [1], será a existência de centenas de sindicatos, alguns dos quais muito pequenos.

Por exemplo, existem, como assinalei no artigo anterior, 14 sindicatos na TAP, uma empresa que tinha 8.510 trabalhadores em Setembro de 2020. Isso dá uma média de 607 trabalhadores por sindicato, se todos os trabalhadores forem sindicalizados!

Em Setembro de 2020, aquando do seu último (XIV) congresso, a CGTP declarou ter 556.363 associados, organizados em 125 sindicatos. Isso dá uma média de 4.459 associados por sindicato (!). Em Março de 2017, aquando do seu último (XIII) congresso, a UGT declarou ter 458.000 associados, organizados em 50 Sindicatos. Isso dá uma média de 9.160 trabalhadores por sindicato (!). São, em ambos os casos, números irrisórios.

A pulverização sindical não é uma pecha do movimento sindical português. É uma pecha da maioria do movimento sindical à escala internacional. Alguns exemplos: na Argentina existem 91 sindicatos, nos Estados Unidos 130 sindicatos, no Reino Unido 168, no Brasil 16.393 sindicatos (!!). De resto, os números do Brasil são de 2017 e portanto estão já desactualizados, porque, a cada mês que passa, surge um novo sindicato. Só as igrejas evangélicas, que nascem todos os dias como cogumelos, registam um crescimento maior do que esse. Pode parecer uma piada ou um paradoxo, mas até existe “o sindicato dos trabalhadores de sindicatos[2].

As grandes excepções são a Áustria, com 7 sindicatos, e a Alemanha, com 8 sindicatos. Não há mistério nenhum nisto: é o resultado do facto da organização sindical nesses dois países tomar por unidade de base os ramos de indústria/actividade económica, que não são exactamente os mesmos de um país para outro [3].

No caso da Áustria, a Österreichischer Gewerkschaftsbund (ÖGB Confederação dos Sindicatos Austríacos) agrupa os seguintes 7 sindicatos: o GPA-djp (trabalhadores de escritório do sector privado, da indústria gráfica, da indústria do papel e do jornalismo); o GÖD (trabalhadores da administração pública, dos serviços públicos e das empresas públicas); o PRO-GE (trabalhadores das indústrias de transformação); o Younion (trabalhadores das autarquias locais); o Vida (trabalhadores dos transportes e serviços); o GBH (trabalhadores da construção civil e da indústria da madeira); o GPF  (trabalhadores dos correios e das telecomunicações).

No caso da Alemanha, a Deutscher Gewerkschaftsbund (DGB – Confederação dos Sindicatos Alemães) agrupa os seguintes 8 sindicatos: o IG-BAU (trabalhadores da construção civil, da agricultura e do ambiente), o IG-BCE (trabalhadores da indústria química, da energia e das minas), o GEW (trabalhadores da educação e da ciência), o IG-M (trabalhadores da metalurgia), o NGG (trabalhadores da indústria agro-alimentar e da hotelaria), o EVG (trabalhadores ferroviários), o Ver.di (trabalhadores dos serviços), e o GdP (os polícias).

Mas, poderá perguntar-se, por que razão, então, se constroem e mantêm sindicatos por profissão e ofício em tantos países se isso conduz à pulverização sindical ? 

Não é certamente porque isso seja conducente a uma defesa mais vigorosa e eficaz dos interesses dos trabalhadores assalariados enquanto classe explorada (veremos, num próximo artigo, qual o significado desta expressão muito mal compreendida) – e não enquanto mero conglomerado estatístico de milhares de profissões diferentes –, visto que a pulverização sindical é sinónimo de desunião, fraqueza combativa e frouxidão reivindicativa.

Acresce que os próprios trabalhadores, apesar de não saberem como superá-la, parecem ver essa pulverização com muito maus olhos. Uma prova disso é a taxa de sindicalização em Portugal, que caiu de 60% em 1976 para 15,3% em 2019. Foi uma das maiores quedas verificadas nos países membros da Organização do Comércio e Desenvolvimento Económico (OCDE). O relatório desta organização sobre a negociação colectiva, divulgado em Novembro de 2019, mostra ainda que Portugal tem uma das mais baixas taxas de sindicalização na Europa ocidental. Só a França e a Espanha estão abaixo, de acordo com dados de 2016, os últimos disponíveis para todos os 36 países membros desta organização [4].

Assim sendo, só há uma resposta possível: a construção/manutenção de sindicatos de profissão e ofício e a concomitante pulverização sindical existem porque são a melhor forma de apresentar como inevitável a entronização de um grupo social, ao qual chamarei os gestores da massa laboral (por analogia com os “gestores da massa falida”), que serve de intermediário permanente entre o patronato – ou entre o governo-patrão que esteja em funções (no caso dos trabalhadores da administração pública e das empresas públicas) – e os trabalhadores assalariados. A sua função é a de moderar e arbitrar os conflitos entre os trabalhadores e o patronato/governo-patrão.

Este facto não é uma novidade recente. Muito longe disso. É uma realidade que persiste há mais de um século. Na Itália, o dirigente máximo dos sindicatos profissionais e de ofício no início do século XX, Rinaldo Rigola (1868-1954), exprimiu com toda a franqueza a função dos gestores da massa laboral nos seguintes termos:

As categorias de ofícios dos mais diversos, disseminadas nos meios mais diversos, não se organizaram e não puderam superar as crises senão na medida em que encontraram homens de valor e de confiança dispostos a trabalhar para elas. Pelo contrário, as categorias de ofícios que tiverem maus chefes não conseguiram organizar-se ou só conseguiram dotar-se de uma organização defeituosa [5].

Rinaldo Rigola considerava-se um típico e ilustre exemplar desses “chefes valorosos e de confiança” dos sindicatos de profissões e ofícios e não podemos acusá-lo de gabarolice. Ele sabia do que falava e falava do que sabia. Foi o primeiro secretário-geral da Confederazione Generale del Lavoro (CGdL) de 1906 a 1918 e o presidente fundador da Associazione Nazionale Studi–Problemi del Lavoro durante a vigência do regime fascista de Benito Mussolini, com quem pactuou a partir de 1926.  

Em resumo: a pulverização sindical enfraquece os trabalhadores, diminui a sua capacidade combativa e a sua eficácia reivindicativa, mas é um seguro de vida que garante uma existência confortável aos gestores da massa laboral, a oligarquia dirigente dos sindicatos profissionais e de ofício.

Compreende-se, por isso, a hostilidade e o ódio figadal de que os wooblies (os trabalhadores associados no sindicato Industrial Workers of the World [IWW]) eram alvo, nos EUA, por parte do patronato americano (v. figura 1), mas também por parte dos chefes da AFL (American Federation of Labor, a central dos sindicatos de profissões e ofícios, criada em 1886), no primeiro quartel do século XX, nos EUA, com a sua ideia e a sua prática de sindicatos organizados por ramos de indústria/actividade económica (e não por profissões e ofícios), coordenados entre si numa única e grande confederação sindical, transprofissional e transnacional (One Big Union”, como diziam os wooblies).

Figura 1. Um cartoon anti-IWW do jornal patronal American Employer, publicado em 1913 no jornal Ohio Star. Neste cartoon, a actividade dos Industrial Workers of the World (IWW) é apresentada como um vulcão de ódio que entra em erupção na cidade de Akron, capital do Estado de Ohio e hoje a 5ª cidade mais populosa dos EUA. A erupção é obra de uma potência oculta e sem rosto que calca na chaminé do vulcão os ácidos e álcalis do “ódio de classe comercializado” e dos “jornais incendiários”. Da cratera do vulcão brotam nuvens venenosas que poluem o ar e que trazem consigo a figura ameaçadora e com cara de poucos amigos de um trabalhador sindicalizado dos IWW que empunha a tocha da “destruição industrial” e da “anarquia”. Pelas rachas da chaminé do vulcão jorra a lava negra da “anarquia”, do “caos”, das “paixões desenfreadas”, da “sabotagem”, da “ilegalidade”, do “ettorismo” e do “haywoodismo” que ameaçam submergir na sua progressão as cidades e as quintas do Ohio. “Ettorismo e “Haywoodism” são dois neologismos que aludem a Joseph (“Smiling Joe”) James Ettor e William (“Big Bill”) Haywood, respectivamente, dois dos mais destemidos e populares activistas americanos do IWW à época.


Apesar da sua prática ter enfrentado violentíssimos ataques do patronato e dos governos da oligarquia dominante americana (uma poderosíssima  plutocracia capitalista) que quase a obliteraram durante mais de 50 anos [6], a ideia que fundou os IWW – e que era, então (1905), uma ideia nova e não apenas nos EUA – continua viva e mais actual do que nunca, capaz de inspirar uma prática correspondente ao seu desiderato, com a condição de que sejam muitos a resgatá-la das brumas do esquecimento, como eu o estou a fazer aqui.


3. Como pode funcionar um sindicato por ramo de indústria/ actividade económica

 

Num sindicato de tipo IWW, não há dirigentes que “representam” os trabalhadores. São os trabalhadores que se representam a si próprios, não como membros de um ofício e de uma profissão entre milhares de outras, mas como trabalhadores assalariados num determinado ramo de indústria/actividade económica, adoptando formas de organização democráticas, antioligárquicas, como as que serão exemplificadas mais abaixo.

O lema igualitário, antioligárquico, de um sindicato industrial é muito simples: Não reconhecer direitos sem deveres, nem deveres sem direitos aos seus associados [7]. A tradução prática deste lema é também muito simples:

a) Ninguém deve exercer sozinho uma função sindical;

b) Ninguém deve ter responsabilidades sindicais exclusivas;

c) Num sindicato não há chefes e subordinados, dirigentes e dirigidos. Todos são iguais em direitos e deveres.   

Isto significa, por exemplo, que todos os cargos e todas as funções sindicais (delegados sindicais, negociadores sindicais, tesoureiros sindicais, piquetes de greve, etc.) devem ser exercidos colegialmente para evitar a síndrome da “solidão do guarda-redes antes de uma grande penalidade”, para prevenir os erros e as falhas evitáveis, para promover a solidariedade, a confiança mútua e a entreajuda dos associados. Significa que todos os cargos e todas as funções sindicais específicas devem ser exercidos por tiragem à sorte e rotativamente por todos os associados (para não entronizar ninguém e promover a aprendizagem de todos) e por períodos curtos (para não sobrecarregar ninguém com um fardo excessivo). Significa que as decisões mais importantes – como, por exemplo, a de convocar ou desconvocar uma greve – são tomadas por referendo de todos os associados.

É óbvio que um sindicato de ramo de indústria/actividade económica organizado segundo estes princípios não precisa de eleições periódicas e de campanhas eleitorais para eleger os seus chefes, porque não necessita de chefes. Os chefes só são necessários nas organizações oligárquicas por predefinição, como são as forças militares, as forças policiais e as firmas capitalistas, onde a hierarquia de poderes e a cadeia de comando são imprescindíveis ao seu funcionamento.

Com a obsolescência funcional das eleições e das campanhas eleitorais nos sindicatos para a selecção dos gestores da massa laboral fica desde logo eliminada pela raíz uma das fontes principais de corrupção, demagogia, nepotismo, promiscuidade e colusão desses gestores com as oligarquias patronais e partidárias [8].    

Respondo agora à segunda objecção de f-I. Nada impede que as especificidades de uma dada categoria profissional (por exemplo, a dos pilotos da TAP) sejam defendidas, tal como as especificidades de qualquer outra categoria profissional (por exemplo, os trabalhadores administrativos da TAP), no seio de um sindicato onde coabitem uns e outros. Bastaria que os trabalhadores da TAP estivessem associados num único sindicato da aviação civil (em vez dos actuais 14 sindicatos de profissões e ofícios) organizado segundo os princípios expostos mais acima.   

E só haveria vantagens que assim sucedesse — por exemplo, na elaboração e negociação de um contrato colectivo de trabalho feito a contento de todos. Num tal contrato colectivo de trabalho, as cláusulas específicas relativas aos pilotos teriam de ser redigidas, discutidas e aprovadas pelos próprios pilotos, sem interferência obstrutiva dos trabalhadores administrativos (ou de qualquer outra categoria profissional da mesma empresa). E o mesmo sucede relativamente às cláusulas específicas relativas aos trabalhadores administrativos: só a eles caberia redigi-las, discuti-las e aprová-las sem interferência obstrutiva dos pilotos (ou de qualquer outra categoria profissional da mesma empresa). As cláusulas gerais, comuns a todos os trabalhadores, seriam discutidas e aprovadas por todos os trabalhadores, independentemente da sua categoria profissional ou do seu ofício. Uma vez elaborado e aprovado, desta maneira, o contrato colectivo de trabalho dos trabalhadores da TAP, a sua negociação com o conselho de administração da TAP seria feita segundo os princípios da paridade (de representação categorial), colegiabilidade e rotatividade dos trabalhadores incumbidos da sua negociação.  

Mas se um trabalhador, seja ele piloto, administrativo ou de outra qualquer categoria profissional fôsse atacado pela entidade patronal, todos se mobilizariam em sua defesa: “Um ataque a um, é um ataque a todos” («An injury to one, is an injury to all»), como diziam os wooblies já em 1905.

 

Figura 2. Emblema de lapela do IWW (Industrial Workers of the World) com o lema: um ataque a um é um ataque a todos


      4. Alice e a Rainha Branca

Aqui chegados, eis, porém, que surgiram duas novas objecções:  


f-II) Considero abissal a distância salarial, e as respectivas condições de vida,  entre um comandante da TAP e de um trabalhador administrativo da mesma firma. É como um país, todos nós lhe pertencemos e não o queremos perder: “É o nosso país”…Porém, quanta diferença de condições de vida entre os cidadãos! ...  Dificilmente se podem pôr de acordo ricos e pobres, privilegiados e sacrificados...

m-III) A pulverização sindical chegou a tal ponto (o poder apostou forte neste domínio, desde os tempos da “unicidade sindical” ) que voltar a unir as pontas é trabalho de Hércules. Creio que não deve haver hoje, em Portugal, uma profissão que não tenha dupla filiação, no mínimo. E a cada processo de luta, em vez de assistirmos à reunificação, acaba por surgir um novo sindicato (o dos Professores, que bem conhecemos, é um bom exemplo).

Por outras palavras (as minhas): f-II assevera que O Oriente é o Oriente e o Ocidente é o Ocidente e nunca os dois se hão-de encontrar [9], ao passo que m-III afirma que o esterco criado pela pulverização sindical orquestrada pelos gestores da massa laboral pede meças ao que existia nos estábulos do rei Áugias, pelo que só Hércules o poderia limpar. Moral da história: os sindicatos por ramo de indústria/actividade económica são impossíveis ou só serão possíveis no dia de São Nunca à Tarde.

Ao ler estas objecções e ao pensar nas respostas a dar-lhes apercebi-me que umas e outras eram muito semelhantes às de um diálogo entre Alice e a Rainha Branca no conto Alice do Outro Lado do Espelho de Lewis Carroll.

[Rainha Branca:] Vamos começar por considerar a tua idade — quantos anos tens?

[Alice:] Tenho sete anos e meio exactamente.

Não precisas de dizer exactualmente”, fez notar a Rainha. Eu consigo acreditar em ti sem isso. Agora vou dar-te algo para acreditares. Só tenho cento e um anos, cinco meses e um dia.

Não posso acreditar nisso !, disse Alice.

Figura 3. A Raínha Branca afirma que tem 101 anos de idade. Ao vê-la com uma aparência tão jovem, Alice recusa-se a acreditar. Foto de Anne Hathaway, que interpreta o papel de Raínha Branca no filme de Tim Burton Alice in Wonderland (2010), livremente inspirado nos contos Alice’s Adventures in Wonderland and Through the Looking-Glass, de Lewis Carroll.
 

Não podes? disse a Rainha num tom de lástima. Tenta outra vez: inspira fundo e fecha os olhos.

Não vale a pena tentar – disse Alice –, não se pode acreditar em coisas impossíveis.

Atrevo-me a dizer que não tens muita prática – respondeu a Rainha – Quando tinha a tua idade fazia-o durante hora e meia. Olha, às vezes conseguia acreditar em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço [10].

Valerá a pena lembrar as “coisas impossíveis” que já aconteceram,  mesmo que nos fiquemos só por aquelas que ocorreram durante a nosso tempo de vida — a destes meus amigos e a minha?

Lembro apenas seis, para não destoar da Rainha Branca: o voo de Yuri Gagarin (1961) a bordo da nave espacial Vostok I, o primeiro ser humano a ir ao espaço sideral e a fazer uma órbita completa ao redor do planeta Terra; o voo da nave espacial Apolo 11 que transportou Michael Collins, Neil Armstrong e Buzz Aldrin, os primeiros seres humanos a orbitar a Lua e a pisar a sua superfície (1969); o derrube do regime fascista em Portugal (1974) que vigorava em Portugal há 48 anos por um golpe de Estado organizado por capitães; a derrota dos EUA, a maior potência  militar de todos os tempos, na guerra do Vietnam (1975); a queda do muro de Berlim e a reunificação da Alemanha (1989-1990); a  implosão da União Soviética (1991).

Comparada com estes acontecimentos, a ideia de uma reconstrução antioligárquica do movimento sindical com base em sindicatos por ramos de indústria/actividade económica não se afigura tão “impossível” quanto possa parecer à primeira vista. Alice não é necessariamente mais realista do que a Rainha Branca. Uma viveu ainda demasiado pouco tempo para acreditar em “coisas impossíveis”, a outra já viveu o suficiente para saber que elas são mais frequentes do que comummente se supõe.

 

5. Diferenças salariais e de condições de vida

 

Há um ponto que convém esclarecer: a diferença salarial e de condições de vida entre um comandante da TAP e um trabalhador administrativo da mesma companhia aérea será assim tão abissal que justifique a recusa do primeiro em coabitar com o segundo num mesmo sindicato?

Antes de responder a esta pergunta, convém saber que há quatro escalões ou categorias de pilotos na TAP: oficial piloto 1, oficial piloto 2, oficial piloto 3 e comandante.

Um comandante com 20 anos de experiência que faça voos de longo curso pilotando um Airbus A330 tem, actualmente, uma remuneração (bruta) fixa de 11.303,28 euros mensais. Este salário é composto por um vencimento de categoria de 7.040,96 euros mensais, 1.826,70 euros de vencimento de senioridade e 2.435,60 euros de vencimento de exercício. 

Figura 4. Airbus A330


Já um oficial de piloto com um ano de experiência que faça apenas voos de médio curso, pilotando um Airbus A320, recebe 3.830,28 euros mensais de vencimento de categoria, 57,45 euros de vencimento de senioridade e 76,61 euros mensais de vencimento de exercício. No total recebe por mês 3.964,34 euros em remuneração fixa [11].

Figura 5. Airbus A320, o avião comercial de passageiros mais vendido até à data.


Assim sendo, a distância salarial existente entre um comandante sénior da TAP e um oficial piloto 1 (7.739 euros) é muito maior do que a distância salarial entre um oficial piloto 1 da TAP e um TPPC sénior (1.515 euros) ou que a distância salarial existente entre um oficial piloto 1 e um TC sénior (1.720 euros). 

Consideremos agora duas categorias de trabalhadores administrativos da TAP: a de técnico de planeamento, preparação e compras (TPPC) e a de técnico comercial (TC). Os TPPC seniores ganham 2.449 euros mensais e os TC seniores ganham 2.244 euros mensais [12]

No entanto, se seguíssemos a linha de raciocínio de f-II, teríamos de concluir que a diferença de salários e de condições de vida entre comandantes seniores e oficiais pilotos juniores das linhas aéreas da aviação comercial é tão grande que dificilmente se poderiam pôr de acordo na defesa de interesses comuns e justificaria que os comandantes constituíssem um sindicato profissional (o sindicato dos comandantes da aviação civil), distinto do sindicato profissional dos oficiais pilotos (o sindicato dos pilotos da aviação civil).

Não afirmo que isso não possa vir a acontecer, pois é precisamente essa a lógica do sindicalismo profissional que conduz à pulverização sindical. Mas espero que este exemplo sirva para mostrar que essa lógica tem tanto de absurdo como de contraproducente para os trabalhadores assalariados que nela se deixam enredar.

 

6. Dois aliados da pulverização sindical

 

Há um ponto, porém, em que estou pronto para concordar com as objecções f.-II e m.-III destes meus amigos. Mas para isso tenho de modificar as suas teses da seguinte forma: impossível não é, mas não será certamente tarefa fácil superar a actual pulverização sindical.

A razão para isso não reside na astúcia e na capacidade de persuasão e de manobra dos gestores da massa laboral (que não devem ser subestimadas [8]), mas em dois discretos mas poderosos aliados que os apoiam.

O aliado mais discreto da pulverização sindical é a ignorância da maioria dos trabalhadores sobre o que fazer para superar esse estado de coisas, apesar da grande insatisfação que ele suscita e apesar da solução do problema poder ser encontrada escavando – e nem sequer é preciso escavar muito! – na própria história internacional do movimento sindical dos trabalhadores, um filão inesgotável de ensinamentos. Mas este é um aliado transitório que poderá desaparecer de cena muito rapidamente, se houver vontade de o fazer desaparecer com uma campanha maciça de esclarecimento e debate.

 

Um aliado igualmente discreto, mas muito mais poderoso e duradouro da pulverização sindical, é o aristocratismo profissional a ideia de que há profissões que são intrinsecamente melhores, mais nobres, mais respeitáveis, mais úteis de que todas as outras e que merecem ser mais bem pagas e mais acarinhadas do que todas as outras, razão pela qual os trabalhadores com essas profissões não podem coabitar (“nada de misturas!”) no mesmo sindicato com trabalhadores do mesmo ramo de indústria/actividade económica  mas de outras profissões.

 

O aristocratismo profissional é uma crença meritocrática muito enraizada nos grupos profissionais (relativamente) mais bem pagos da classe trabalhadora, tais como, por exemplo, os pilotos de linha aérea da aviação comercial, os médicos, os professores e os enfermeiros [13].

 

Figura 6Manifestação de enfermeiros em Março de 2019. Da leitura do cartaz depreende-se que, um ano antes da pandemia  do SARS-CoV-2 ter começado, já havia enfermeiros que reivindicavam serem considerados heróis. Foto de Nuno Ferreira Santos.


6.1. O caso dos pilotos de linha área

 

Frequentemente, esses grupos profissionais são também os mais qualificados, mas isso nem sempre acontece. Os pilotos de linha aérea, de avião ou helicóptero, são um exemplo disso.

Para se ser piloto de linha aérea da aviação comercial não é necessário fazer um doutoramento, um mestrado ou sequer uma licenciatura. Basta ter completado 21 anos, possuir o 12.º ano de escolaridade, passar os testes médicos e psicotécnicos específicos, e frequentar com aproveitamento um curso profissional para pilotos numa escola certificada. Os programas destes cursos têm uma duração mínima de 18 meses e são necessários para se obter uma licença de piloto profissional. O seu currículo compõe-se, regra geral, de doze disciplinas, que vão da meteorologia às técnicas de navegação. Depois da obtida esta licença teórica de piloto de linha aérea, são necessárias, no caso dos aviões, 1.500 horas de voo (das quais 500 horas em tripulação múltipla) para se graduar como oficial piloto e 3.000 horas de voo para poder assumir funções de comandante, bem como formação específica para cada modelo de avião.

Comparado com o longo processo de formação de um médico – curso integrado (licenciatura + mestrado) de 6 anos, mais um ano de Internato Geral (também conhecido por Ano Comum) e, pelo menos, mais 4 anos de Especialidade –, de um investigador científico ou de um professor do ensino superior, a formação dos pilotos de linha aérea pode considerar-se curta e relativamente estreita do ponto de vista dos conhecimentos e aptidões a adquirir. Isso não impede que esta profissão seja um ambiente propício para a propagação do aristocratismo profissional.

A questão não pode ser aqui aprofundada. Limitemo-nos a constatar que são as profissões mais diferenciadas pela (i) grande complexidade e/ou pelo custo elevado da sua formação inicial e contínua (embora não sendo necessariamente as mais qualificadas) devido ao elevadíssimo valor mercantil da aquisição e manutenção dos equipamentos que manuseiam [p. exemplo, um avião Airbus A380 custava cerca de 445 milhões de dólares americanos em 2018; o simulador de voo do Embraer E190 custava em 2019 mais de 16 milhões de dólares americanos], (ii) pelos potenciais riscos de vida que correm os segmentos da população afectados pelo seu exercício (passageiros, doentes, etc.) e que dispõem amiúde de um mercado de emprego internacional (o que lhes permite ter uma maior mobilidade profissional e auferir melhores salários do que outras com qualificações comparáveis), que são mais propensas a alimentar a crença auto-referencial na superioridade dos seus predicados.

Figura 7. Airbus A380, o maior avião de passageiros até à data. Pode transportar 853 passageiros e voar 14.500 km sem escalas. 

Figura 8. Simulador de voo do Embraer E190-6. Por fora, a principal parte do simulador é uma enorme caixa circular, com 10 toneladas de peso, presa ao chão e erguida por seis cilindros electropneumáticos. O seu custo é cerca de metade do avião correspondente e inclui um sistema de projecção de imagens capaz de reproduzir qualquer cenário no planeta, computadores de última geração para garantir a interface dos instrumentos (iguais aos de um E190 real) com os programas informáticos de controlo e até uma máquina de produzir fumo para simular um incêndio a bordo. Foto de Fernando Pires/Divulgação.
 

Por isso, são elas que constituem a base social de apoio mais firme do sindicalismo profissional. E é nelas também que encontramos os exemplos mais claros da pulverização sindical. Refiro-me aos professores e aos enfermeiros.

6.2. O caso dos enfermeiros e o caso dos professores

 

Existiam cerca de 76.000 enfermeiros em Portugal em 2019 (fonte: Pordata). Desconhece-se o número de enfermeiros sindicalizados. Segundo Gorette Pimentel, presidente do Sindicato Independente de Todos os Enfermeiros Unidos (SITEU) – o mais recente sindicato de enfermeiros, fundado em 2020 –, haveria apenas 10.000 enfermeiros sindicalizados (Público, 26-02-2020). Como se isto não bastasse, estes estão distribuídos por sete sindicatos, o que dá, uma média de 1.428 sindicalizados por sindicato (!):

— Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), Sindicato dos Enfermeiros (SE), Sindicato Independente dos Profissionais de Enfermagem (SIPEnf), Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (SINDEPOR), Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE), Sindicato dos Enfermeiros da Região Autónoma da Madeira (SERAM), Sindicato Independente de Todos os Enfermeiros Unidos (SITEU).

O caso dos professores ainda é mais caricato. Há 146.992 educadores de infância, professores do ensino básico e professores do ensino secundário e 35.283 professores no ensino superior [14]. E há 29 sindicatos de professores (!):

— Sindicato dos Professores da Zona Norte (SPZN), Sindicato dos Professores do Norte (SPN), Sindicato dos Professores da Zona Centro (SPZCENTRO), Sindicato dos Professores da Região Centro (SPRC), Sindicato dos Professores da Grande Lisboa (SPGL), Sindicato Democráticos dos Professores da Grande Lisboa e Vale do Tejo (SDPGL), Sindicato dos Professores da Zona Sul (SPZS), Sindicato Democrático dos Professores do Sul (SDPSUL), Sindicato dos Professores da Madeira (SPM), Sindicato Democrático dos Professores da Madeira (SDPMADEIRA), Sindicato dos Professores da Região dos Açores (SPRA), Sindicato Democrático dos Professores dos Açores (SDPA), Sindicato dos Professores no Estrangeiro (SPE), Sindicato dos Professores nas Comunidades Lusíadas (SPCL), Sindicato Independente dos Professores e Educadores (SIPE), Sindicato dos Professores Licenciados pelos Politécnicos e Universidades (SPLIU), Sindicato Nacional e Democrático dos Professores (SINDEP), Sindicato dos Professores Licenciados pelas Escolas Superiores de Educação e Universidades (SEPLEU), Sindicato Nacional dos Professores Licenciados (SNPL), Sindicato Nacional dos Profissionais da Educação (SINAPE),  Associação Sindical de Professores Licenciados (ASPL), Sindicato dos Professores e Educadores do Ensino Básico (SIPPEB), Sindicato Nacional dos Professores do Ensino Secundário (SNPES), Associação dos Trabalhadores da Educação (ATE), Associação Nacional dos Professores Contratados (ANPC), Sindicato Nacional dos Trabalhadores de Educação a Contrato (SINATEC), Associação Sindical dos Professores  (PRÓ-ORDEM), Sindicato de Todos os Professores (STOP), Sindicato Nacional do Ensino Superior (SNESUP).

O número de associados destes sindicatos é também um segredo bem guardado. Mas houve quem se desse ao trabalho de estimar esse número por métodos indirectos [15]. O resultado, para 17 dos 29 sindicatos, é o que consta da tabela seguinte.

Número de Associados

Sindicatos

Mais de 5000

SPGL

4500-4999

SPN

SPZN

4000-4499

SPLIU

3500-3999

SEPLEU

SPRC

SINDEP

3000-3499

SIPE

SPZC

2500-2999

SPZS

SNPL

2000-2499

Sinape

               1500-1999

                SDPSul

               1000-1499

                SDPGL

     ASPL

               500 a 999

               Pró-ordem

            Menos de 500

                SIPPEB

      ATE


7. Conclusão

Obviamente, não há nada que justifique, muito pelo contrário, o vaticínio de que é nos professores, nos enfermeiros, nos médicos, nos pilotos de linha aérea e noutros grupos imbuídos de aristocratismo profissional que se iniciará o processo de regeneração e reconstrução do movimento sindical segundo os princípios formulados há mais de um século pelos IWW.

Figura 9. Joseph (“Smiling Joe”) Ettor (1885-1948), dos IWW – o homem de fato escuro debruçado sobre a balaustrada – discursa para os barbeiros em greve, na Union Square, em Nova Iorque, 1913Na 2ª faixa a partir da esquerda lê-se: «Os Industrial Workers of the World conduzem esta greve. Isso significa êxito»Na 4ª e 5ª faixas pode ler-se: «Queremos um dia de trabalho de 12 horas. Ao sábado queremos terminar o trabalho às 16 horas. Os nossos patrões pensam que não trabalhamos o suficiente»Estas reivindicações, que nos parecem hoje modestíssimas, eram de facto muito ousadas à época. A prova disso é que o patronato da época as descrevia como o “ettorismo”: a chegada do caos, da anarquia e da destruição industrial (ver figura 1). Esta foto dá-nos bem a noção do longo e atribulado caminho que percorremos nos últimos 100 anos e do muito que devemos aos Industrial Workers of the World para aqui chegarmos.   

Não sei, ninguém sabe, onde e quando começará esse processo. Só sei que é muito provável que isso aconteça por razões de fundo que se prendem com as leis sociológicas do capitalismo. Mas uma coisa é certa: o capitalismo subsistirá, apesar das suas persistentes dificuldades internas [16], enquanto os trabalhadores assalariados não estiverem social e politicamente unidos e preparados para o superar.

O fraccionamento dos trabalhadores é uma condição fundamental da sobrevivência do capitalismo. A pulverização sindical dos trabalhadores – entenda-se, o seu fraccionamento numa miríade de sindicatos de profissão e de ofício – é uma das grandes contribuições de uma parte da “esquerda” para a solidez e a perpetuação do capitalismo.

                …………………………………………………………….

Notas e Referências


[1] Por exemplo, o Sindicato dos Capitães, Oficiais Pilotos, Comissários e Engenheiros da Marinha Mercante – OFICIAISMAR, filiado na CGTP. 

[2] Juan Arias, “Uma Lava Jato para investigar os sindicatos”. El País Brasil, 4 de Abril de 2017. Na verdade, o que parece piada ou paradoxo não o é. É uma consequência lógica da oligarquização interna dos sindicatos e da sua pulverização profissional. 

[3] O caso da Suécia é digno de nota, porque apresenta uma situação híbrida. Existem nesse país três centrais sindicais: a Landsorganisationen i Sverig (LO), a mais antiga e a maior, com cerca de 1.280.000 associados; a Tjänstemännens Centralorganisation (TCO), com cerca de 950.000 associados, principalmente trabalhadores de colarinho branco; a Sveriges Akademikers Centralorganisation (SACO), que organiza cerca de 460.000 funcionários públicos e outros profissionais com diplomas de ensino superior. Claramente, as linhas de separação entre estas três organizações têm a ver com o aristocratismo profissional (sobre este conceito, ver a secção 5 do texto principal) de que estão imbuídas a TCO e a SACO. Não é por acaso que estas duas organizações estão organizadas com base em sindicatos de profissões e ofícios e que só a LO esteja organizada com base em ramos de indústria/de actividade económica. A LO (a Confederação Sindical Sueca) agrupa os seguintes 13 sindicatos: Byggnads (trabalhadores da construção civil), SEF (trabalhadores da electricidade), Fastigeths (trabalhadores da manutenção dos edifícios), GS (trabalhadores dos meios de comunicação social, da floresta e das indústrias da madeira), Handels (trabalhadores do comércio), HRF (trabalhadores da hotelaria e da restauração), IF Metall (trabalhadores da metalurgia), Kommunal (trabalhadores das autarquias locais), Livs (trabalhadores da alimentação), Malarna (trabalhadores da pintura e da decoração), Pappers (trabalhadores das indústrias da polpa de papel e do papel), Seko (trabalhadores das comunicações e dos serviços), SMF (trabalhadores da música), Transport (trabalhadores dos transportes). Convém acrescentar que a existência de sindicatos organizados por ramos de indústria/actividade é uma condição necessária mas não suficiente para a defesa dos interesses dos trabalhadores. As tendências à burocratização/oligarquização dos sindicatos manifestam-se igualmente, e com muita força, nos sindicatos organizados por ramos de indústria/actividade, como os da Alemanha e da Áustria. Para as combater com êxito, são necessárias medidas de outro género, abordadas na secção 3 deste artigo.

[4] São os seguintes os Estados-Membros da OCDE: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, Coreia do Sul, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estados Unidos, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Islândia, Israel, Itália, Japão, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, México, Noruega, Nova Zelândia, Países Baixos, Polónia, Portugal, Reino Unido, República Checa, Suécia, Suíça e Turquia.

[5] Citado por Robert Michels. Les Partis politiques.Essai sur les tendances oligarchique des démocraties.  Paris. Ernest Flammarion Éditeur, 1914, p.109. Para um estudo aprofundado, já neste século (XXI), sobre as tendências oligárquicas nos sindicatos  incluindo sindicatos por rama de actividade/indústria como os da DGB alemã – e o grau mais avançado da sua degenerescência (o uso das quotizações, dos fundos de greve e dos fundos de pensões dos trabalhadores como instrumento de acumulação patrimonial e financeira ao serviço da acumulação do capital) ler O Capitalismo Sindical, de João Bernardo e Luciano Pereira. São Paulo: Xamã VM Editora e Gráfica Ltda, 2008. 

[6] Os IWW foram alvo dos mais violentos e malévolos ataques de que há memória na história do movimento sindical internacional, quer por parte do patronato, da presidência e do Congresso dos EUA, quer por parte dos dirigentes da American Federation of Labor (AFL) — a federação dos sindicatos profissionais e de ofícios, criada em 1886 e que ainda hoje existe sob a designação de AFL-CIO, depois de se ter fundido com o Congress of Industrial Organizations (CIO). Esses ataques não podem ser aqui relatados, mesmo sumariamente. Exigiriam muitos artigos sucessivos. Limitar-me-ei a salientar que todas as armas ao dispor das classes dominantes estado-unidenses foram usadas contra os IWW, com aquela ferocidade sem-cerimónias que os seus membros aprenderam a cultivar durante a estabelecimento da escravatura nos Estados do Sul, da expansão territorial para Oeste, da guerra para expulsar as populações índias nativas dos seus territórios de caça e da restauração das leis racistas de segregação (ditas leis Jim Crow) no chamado “período da reconstrução”, depois da guerra civil e da abolição da escravatura. Falo de linchamentos, assassinatos, infiltrações e agressões físicas por agentes provocadores da agência de detectives particulares Pinkerton, rusgas policiais e apreensão de documentos e material sem mandado, despedimentos sem justa causa, detenções arbitrárias, prisões em massa, leis celeradas, difamações, tudo foi feito para esmagar os wooblies (v. Fred Thompson. The I. W. W, Its First Fifty Years, 1905-1955: The History of an Effort to Organize the Working Class. Industrial Workers of the World, 1955;  Melvyn Dubofsky (1969). We Shall Be All: a history of the Industrial Workers of the World. Champaign III: University of Illinois Press.2nd edition, 2013; Eric Thomas Chester. The Wobblies in Their Heyday: The Rise and Destruction of the Industrial Workers of the World during the World War I Era. Santa Barbara, California: Praeger, 2014).

[7]. Este lema faz parte dos Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876), a primeira organização do seu género na história humana. Os estatutos desta associação foram redigidos por Karl Marx, um dos seus fundadores, por incumbência dos demais. 

[8] Dois exemplos, entre mil, da corrupção, demagogia, nepotismo, promiscuidade e colusão de gestores da massa laboral com o patronato e as chefias partidárias que dominam o poder político e o aparelho de Estado nos regimes de oligarquia electiva. O primeiro exemplo é o do Otto Mata Rama, presidente do Sindicato dos Comerciários [= empregados do comércio] do Rio de Janeiro, no Brasil. O pai de Otto Mata Rama, Luizant Mata Rama, chegou a este sindicato como interventor, em 1966, nomeado pela Ditadura Militar. Ficou no Sindicato, como presidente, durante 40 anos. Só saíu dele quando morreu, em 2006, sucedendo-lhe o filho, Otto Mata Rama. Este senhor, a sua mulher, a sua irmã, a sua mãe e outros 15 membros da sua família, prosseguiu na peugada do pai, transformando o Sindicato a que presidia numa lucrativa empresa familiar. Nunca lhe faltou dinheiro para uma vida de nababo. Utilizava uma luxuosa fazenda com piscina olímpica comprada para servir, alegadamente, de colónia de férias dos associados do Sindicato, como se fosse propriedade sua e da sua família. Foi acusado, em 2015, de ter desviado do sindicato 100 milhões de reais [15,3 milhões de euros ao câmbio de hoje, 21-02-2021], ao qual cobrava despesas suspeitas com advogados, dívidas em impostos, juros, multas e outros gastos, inclusivamente as suas viagens de recreio, como, por exemplo, uma viagem à Disneylândia. Na lista de bens em seu nome, tem uma mansão num condomínio de luxo avaliada em mais de 2 milhões de reais [306.487 euros, ao câmbio de hoje, 21-02-2021], apartamentos, casas de campo, terrenos, carros importados, e uma lancha de recreio. Otto Mata Rama é também sócio de duas empresas de táxi aéreo. Tem dois aviões e um helicóptero. O seu descaramento chegou ao ponto de ter fechado uma subsede do sindicato em Copacabana que atendia os sócios do Sindicato, transformando-a na sede das suas duas empresas. Talvez, quiçá, como prémio desta exemplar carreira de gestor da massa laboral, Otto Rama Mata foi nomeado pela então Presidente da República, Dilma Roussef, para ser o representante do Brasil numa conferência mundial sobre o trabalho realizada na Suíça em Junho de 2013 (“Dirigentes de sindicatos enriquecem com desvio de dinheiro”, globo.com g1, Edição do dia 14/06/2015).

O segundo exemplo envolve o Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores em Transporte Rodoviário Urbano de São Paulo, que associa cerca de 50 mil trabalhadores e é o maior do Brasil nesta profissão. O secretário-geral é Francisco Xavier da Silva Filho, conhecido também como Chiquinho, “Chico Rico” ou “Chico Propina”.  Num telemóvel foi encontrada uma “lista de propinas” (= “luvas”, dinheiro para untar as mãos alguém em troca de favores) indicando pagamentos até 280 mil reais por mês [42.908 euros, ao câmbio de hoje, 21-02-2021] para 16 dirigentes do sindicato, além do “Chico Propina”. A lista dos pagamentos era pormenorizada –  com apelidos, cargos e valores – em agenda. O total ultrapassa 1 milhão de reais [153.244 euros] por mês. A investigação policial concluiu que parte desse dinheiro vinha de empresas rodoviárias de transporte de passageiros. A outra parte das “luvas” vinha de empresas contratadas pelo sindicato. “Chico Propina”, que é apontado pela Polícia Civil como chefe da organização criminosa, acumula um património que impressionou os detectives da polícia pelo seu volume “faraónico”. Uma das pessoas influentes envolvida neste negócio seria o deputado federal José Valdevan de Jesus Santos, do Partido Liberal (PL), conhecido como Valdevan 90. A suspeita é de que parte do dinheiro desviado do sindicato serviu para financiar a sua campanha em 2018 (“Dirigente de grande sindicato é investigado por desviar milhões de reais de trabalhadores”, globo.com g1, edição de 27/12/2020).

[9] A tradução é minha. A frase original é de Rudyard Kipling, nas suas Barrack-room Ballads, 1892: “Oh, East is East, and West is West, and never the twain shall meet”. Aqui, Kipling lamenta o abismo de compreensão existente entre os Britânicos e os habitantes do subcontinente indiano. 

[10] A tradução é minha. A Rainha Branca (também conhecida como Mirana Marmoreal) é uma personagem ficcional, baseada na peça de xadrez do mesmo nome (também conhecida como Dama Branca), do conto Through the Looking-Glass, and What Alice Found There de Lewis Carroll (publicado em Portugal como Alice do Outro Lado do Espelho e no Brasil como Alice Através do Espelho e O Que Ela Encontrou Por Lá e ainda Alice No País Dos Espelhos), um livro de 1871, a continuação do célebre Alice’s Adventures in Wonderland (As Aventuras de Alice no País das Maravilhas), de 1865.

[11] Fonte: “Pilotos da TAP ganham mais do que os da concorrência?” Juliana Nogueira Santos. (Polígrafo, 19 de Dezembro de 2020.)

[12] Fonte: “Tabela salarial em vigor desde 1 de Janeiro de 2020 na TAP” (Sindicato dos Trabalhadores da Aviação e Aeroportos [SITAVA]).

[13] Não estou a dizer que os trabalhadores portugueses destas profissões são bem pagos. Por exemplo, mais de mil enfermeiros pediram à sua Ordem profissional a declaração necessária para exercerem no estrangeiro em 2020, um ano marcado pela pandemia e pela dificuldade em contratar estes profissionais em Portugal, dada a sua escassez actual (Público 12 de Janeiro de 2021). Consideram-se mal pagos em Portugal, mas bem pagos no Reino Unido, França, Espanha e Suíça, entre outros países  para onde emigram e encontram trabalho facilmente. São já mais de 21 mil os que trabalham no estrangeiro, segundo a Ordem dos Enfermeiros. Estou a dizer – coisa bem diferente – que os trabalhadores assalariados portugueses destas profissões são mais bem pagos, em Portugal ou no estrangeiro, do que a generalidade de outros trabalhadores portugueses que possuem qualificações equivalentes ou superiores. Os professores do ensino básico e secundário e sobretudo os pilotos das linhas aéreas da aviação comercial são dois bons exemplos bem documentados.

 

Se, em quase todos os países da OCDE, os rendimentos salariais dos professores ficam, em média, abaixo do rendimento salarial de outros profissionais licenciados, em Portugal, (assim como na Letónia e na Costa Rica) acontece a situação inversa, assinala o relatório Education at a Glance (OCDE, 2020). Nos países da OCDE, os professores recebem, em média, 80% a 94% do rendimento médio dos trabalhadores licenciados. Em Portugal, os valores estão cerca de 40% acima do que é pago a um profissional com habilitação superior. Esta vantagem salarial registada em Portugal é particularmente visível, destaca o relatório da OCDE, nos docentes entre os 25 anos e os 34 anos, que ganham em média mais 45% a 48% do que os demais trabalhadores com as mesmas qualificações e idade. Essa vantagem vai-se  esbatendo em faixas etárias mais avançadas.

 

Sobre os pilotos da TAP, que são cerca de 1350, convém saber que, segundo o Acordo de Empresa estabelecido entre a administração da TAP e o Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil (SPAC) em 2010, actualizado depois em 2018, existem 4 tipos de remunerações: as fixas, as variáveis, o vencimento horário (aplicável quando os pilotos trabalham horas extraordinárias) e uma ajuda complementar para oficiais piloto, também para situações extraordinárias. A remuneração fixa é composta pelo vencimento de categoria, vencimento de senioridade e vencimento de exercício. A remuneração variável é composta por três vencimentos diferentes: o subsídio complementar de refeições em serviço, ou subsídio de aterragem (valor que é pago a cada aterragem do piloto); a ajuda de custo complementar; e a retribuição especial (valor pago por cada dia de trabalho). Além do mais, o subsídio de aterragem depende do tipo de avião pilotado e, consequentemente, do tipo de viagem: os aviões corpo largo  são utilizados para viagens de longo curso e os corpo estreito para médio curso, o que quer dizer que os pilotos dos primeiros recebem mais em subsídio de aterragem do que os dos segundos. As categorias profissionais organizam-se em oficial piloto 1, oficial piloto 2, oficial piloto 3 e comandante, sendo que o último tem um salário mais alto do que o primeiro. Em suma, o salário é  mais alto quanto mais anos de experiência tem um piloto e quanto maior for o avião pilotado.

Este quadro foi elaborado com dados fornecidos pelo Ministério das Infraestruturas e Habitação sobre a remuneração total bruta (fixa e variável) dos pilotos da TAP, Ibéria e Air Europa. O quadro indica, por exemplo, que um piloto da TAP com um ano de experiência recebe, no mínimo, 84 mil euros brutos por ano, mais do dobro dos 40 mil que a Ibéria ou a Air Europa pagam. No caso de um comandante com 15 anos de carreira, a remuneração anual bruta pode chegar a 207 mil euros na TAP, o que compara com 155 mil na Air Europa ou 115 mil na Ibéria. O ministério explica ainda que a comparação é feita com a Ibéria e a Air Europa porque partilham com a TAP duas características: terem sede em cidades com custo de vida similar e serem ambas companhias concorrentes da TAP no mercado sul-americano. Os dados das remunerações da TAP considerados para esta comparação são os base fixos definidos para 2019 e os variáveis de 2018, A comparação é feita através da estimativa da remuneração total bruta com base nos dados públicos sobre os Acordos de Empresa dessas três companhias, posteriormente calibrada com base em entrevistas. O ministério não define, contudo, os valores base utilizados para o cálculo das remunerações variáveis.  (“Pilotos da TAP chegam a ganhar mais do dobro que os da Ibéria e Air Europa”, Eco, 16 de Dezembro de 2020).

 

O Sindicato dos Pilotos da Aviação Civil (SPAC) contestou estes números. Num comunicado aos seus associados a que a Lusa teve acesso afirmou: «os valores divulgados pelo ministro das Infraestruturas e Habitação […] estão errados e não correspondem aos vencimentos dos pilotos da TAP». Precisa que «o custo com pilotos da TAP nos anos de 2018 e 2019 foi significativamente agravado por recurso a trabalho extraordinário a pedido da empresa». «Custos por trabalho extra não são a mesma coisa que salários», sustenta o SPAC. Assim, o que o SPAC contesta parece ser o tratamento dos dados pelo ministério, alegando que a bonificação dada pelo trabalho extraordinário (decorrente do aumento da procura) já se aplicava em 2018 e não apenas em 2019.O jornal Eco pediu ao SPAC dados que sustentem as acusações de que os números fornecidos pelo Ministério das Infraestruturas e Habitação estão errados, mas não obteve resposta. Já o jornal Polígrafo teve mais sorte, pois recebeu do SPAC uma resposta pormenorizada a esta questão, demasiado longa para ser aqui reproduzida. Limito-me a salientar que a análise do Polígrafo dos dados fornecidos pelo SPAC detectou que as únicas diferenças entre os dados do SPAC e os dados do Ministério eram relativas às remunerações dos comandantes com 10 e 15 anos de experiência da TAP (que ganham mais do que os da Ibéria e da Air Europa), o que não acontece com os comandantes com 25 anos de experiência (que ganham menos do que os dessas duas companhias). Passo a transcrever a conclusão a que chegou a jornalista do Polígrafo:  .

 

«Em conclusão, se observarmos pelo ângulo do SPAC, indicando que os valores da Iberia e da Air Europa dizem respeito aos rendimentos base, em cinco dos sete casos hipotéticos verifica-se que os pilotos da TAP ganham mais do que os da concorrência. Já se seguirmos os passos do Governo e fizermos as contas aos rendimentos variáveis com as médias apontadas pelas fontes, os pilotos da TAP ganham entre 10 mil e 40 mil euros acima da concorrência anualmente. Ainda assim, as especificidades das tabelas salariais dos pilotos, bem como de todas as condições definidas no acordo de empresa entre a SPAC e a TAP tornam muito difícil esta comparação. Mais, não só tivemos de utilizar valores de referência que podem não ser iguais aos do Governo, como não nos foi possível confirmar os valores apontados pelo Governo e pelo SPAC como referência para os concorrentes» (“Pilotos da TAP ganham mais do que os da concorrência?Polígrafo, 29 de Dezembro de 2020).

 

Penso que tudo o que foi dito mais acima é esclarecedor. Porém, o que me interessa aqui não é saber quem tem os números correctos ou mais correctos: se é o ministério das infraestruturas ou se é o SPAC. O que me interessa aqui é tão-somente mostrar que os pilotos da TAP são um grupo de trabalhadores relativamente bem pago.


[14] Os números são de 2019. Fonte: PORDATA.

[15] Fonte: Luís Braga,Quanto professores sindicalizados há em Portugal? 25 setembro, 2018.https://www.comregras.com/quantos-professores-sindicalizados_/ 

[16] Freeman, Alan (2019). “The sixty-year downward trend of economic growth in the industrialised countries of the world.” GERG Data Group working paper Nº1, January 2019. Manitoba: Geopolitical Economy Research Group.