Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

17 junho, 2023

 Tema 3

Em memória de Daniel Ellsberg 

José Catarino Soares

 

Daniel Ellsberg morreu ontem, aos 92 anos, vítima de um cancro pancreático. 

Em 1971 [ver comentários], Ellsberg, um consultor da Rand Corporation, divulgou os chamados Pentagon Papers — 7.000 páginas de documentos ultra-secretos sobre a intervenção militar dos EUA no Vietnam de 1945 a 1967, incluindo as trapaças e mentiras de cinco presidentes americanos sobre esse assunto e os preparativos americanos para uma guerra nuclear contra a China em 1958. Henry Kissinger [1] apelidou-o de «o homem mais perigoso da América».

Este corajoso lançador de alertas, que se arriscou a passar a vida inteira na prisão para impedir uma guerra (a guerra no Vietnam), merecia ter sido galardoado com o Prémio Nobel da Paz pela sua incansável luta, de uma vida inteira, pelo desarmamento nuclear universal. Mas nunca o foi, é claro, porque o Prémio Nobel da Paz foi sequestrado e corrompido há muitos, muitos anos pelo comité norueguês, em clamorosa violação do testamento de Alfred Nobel [2].

O último livro de Ellsberg, The Doomsday Machine: Confessions of a Nuclear War Planner (2017), é de leitura obrigatória. Mas duvido que seja traduzido para Português.

Daniel Ellsberg (à direita) e Julian Assange (à esquerda).Desconheço o autor da foto e a data em que foi tirada. a
Daniel Ellsberg (à direita) e Julian Assange (à esquerda).
Desconheço o nome do autor da foto e a data em que foi tirada.

Notas

[1] Henry Kissinger, que festejou recentemente os seus 100 anos, foi Conselheiro Nacional de Segurança e Ministro dos Negócios Estrangeiros dos EUA durante as presidências de Gerald Ford e Richard Nixon.  

[2] Ver José Catarino Soares, O pseudoprémio Nobel da paz— edição de 2022. Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue. 17 de Outubro de 2022.

09 fevereiro, 2023

 Temas 2 e 3

Volodymyr Zelensky é «a figura do ano 2022»

(para o Financial Times, a Time, etc.).

É, de facto, mas pelas piores razões 

José Catarino Soares

6º. artigo da série

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!

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Índice

1.      Introdução

2.      Zelensky antes de 20 de Maio de 2019

2.1.  Zelensky como avatar de Goloborodko

2.2.  Kolomoysky, patrocinador de Zelensky

2.2.1.        Kolomoysky, patrocinador de Zelensky (II)

2.2.2.        Kolomoysky, patrocinador de Zelensky (III)

2.3.  Os progenitores da candidatura de Zelensky à presidência

2.4.  Um candidato corrupto e nepotista, como se veio a descobrir

2.5.  O programa eleitoral de Zelensky

2.6.  Uma prova precoce dos grandes talentos de Zelensky como comediante, agora no palco da política-espectáculo

3.      Zelensky entre 20 de Maio de 2019 e 24 de Fevereiro de 2022

3.1.  Stepan Bandera

3.2.  Movimentos, partidos e bandos armados neonazis na Ucrânia

3.3.  Zelensky (I): entradas de leão

3.4.  Zelensky (II): saídas de sendeiro

3.5.  Zelensky alia-se aos banderistas neonazis e adopta a sua ideologia belicista

4.      Zelensky de 24 de Fevereiro de 2022 até hoje

4.1.  Zelensky estende o ramo de oliveira duas vezes

4.2.  Boris Johnson entra em cena e o ramo de oliveira desaparece de vez,

como que por encanto

4.3.  Zelensky ataca em todas as direcções

4.3.1.     Abolir a distinção entre civil e combatente e fazer dos civis escudos humanos

4.3.2.        Um canal de televisão único e exclusivamente presidencial

4.3.3.        Proibição de 11 partidos de oposição

4.3.4.        Ataque cerrado aos trabalhadores e aos seus sindicatos

4.3.5.        “Caça” (com licença para matar) aos cidadãos russófonos e russófilos

4.3.6.        Listas negras dos inimigos a abater

4.3.7.        Ataque à liberdade de religião

5.    Zelensky, herói e espelho mágico do “Ocidente alargado

5.1. Zelensky é um porta-estandarte? Seja. Mas de qual estandarte?

5.2. O papel que Zelensky rejeitou e o papel que aceitou desempenhar

 

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 N.B. A quem não tenha tempo ou paciência para ler este artigo (que é longo) de uma só vez, recomendo que o faça em três vezes: A) capítulos 1 e 2; B) capítulo 3; C) capítulos 4 e 5. A quem não tenha tempo ou paciência para ler este artigo todo, recomendo que leia, pelo menos, os capítulos 4 e 5, que são os mais actuais.

1. Introdução

Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, foi escolhido pelo jornal britânico Financial Times e pela revista americana de informações semanais Time, como sendo «a pessoa do ano 2022» — um galardão atribuído, diz a Time, «à pessoa que mais influenciou os acontecimentos dos últimos 12 meses, para o bem ou para o mal...». Em Portugal, o jornal Diário de Notícias, a estação pública de televisão RTP-1 e a revista Visão escolheram-no também como a «Figura Internacional do Ano».

Capa da revista TIME de 7 de Dezembro de 2022. Ilustração de Neil Jamieson.
                                                                      

Volodymir Zelensky foi escolhido como sendo “a pessoa do ano” 2022 pelo jornal britânico Financial Times. 5 de Dezembro de 2022

 

Volodymyr Zelensky foi eleito “figura internacional do ano” pelo jornal português Diário de Notícias16 de Dezembro de 2022. 

Concordo com a escolha do Financial Times, da Time, do Diário de Notícias, da RTP-1, e da Visão, mas acrescento ‒ contrariamente à opinião dos redactores das duas primeiras publicações e da última‒ que Zelensky é (ou foi) a figura do ano 2022 pelas piores razões. Neste artigo argumento essas razões e exponho os factos que as sustentam.

Devo, todavia, advertir o leitor para uma lacuna importante deste artigo. Salvo no que respeita à liberdade de religião, deixei propositadamente de lado os factos ‒ e são muitos ‒ atinentes à política de canceladura cultural [Ingl. cancel culture] que tem vindo a ser praticada pelo regime de Zelensky [a trípode constituída por ele próprio, como presidente da república + o(s) seu(s) governo(s) + os deputados do seu partido, Servente do Povo, que têm a  maioria absoluta no parlamento ucraniano] relativamente à cultura russa sob os seus vários aspectos  língua, arte, ciência, tecnologia, desporto, etc. Esse é um tema que carece de alguém mais bem preparado do que eu para o tratar cabalmente e a quem eu, quando muito, poderia emprestar uma mão (se fôsse escrito a duas mãos e não a solo).

Se houver, entre os leitores deste blogue, alguém que conheça bem a cultura russa (pelo menos nas suas  componentes mais afectadas pela canceladura cultural por  parte do regime de Zelensky: a língua e a arte) e queira aceitar este desafio, não hesite em dar um passo em frente e contactar-me. Poderá fazê-lo escrevendo a sua mensagem no espaço reservado aos “comentários” (a mensagem dessa pessoa permanecerá confidencial, pois os comentários só são publicados com a minha permissão prévia), indicando um endereço de correio electrónico para que eu possa contactá-la ulteriormente.

2. Zelensky antes de 20 de Maio de 2019

Para sabermos o que disse e fez Zelensky para ser escolhido a pessoa do ano 2022, temos de saber o que disse e fez depois de 24 de Fevereiro de 2022 (data em que as tropas russas invadiram a Ucrânia), mas sem esquecer o que ele disse e fez antes e depois de ter sido empossado presidente da República da Ucrânia, em 20 de Maio de 2019. Destarte, procederei por ordem cronológica, começando pelo período anterior a 20 de Maio de 2022.

2.1. Zelensky como avatar de Goloborodko

Antes de ser eleito presidente da república da Ucrânia, Volodymyr Zelensky era um produtor e realizador televisivo, um comediante e um artista de variedades muito popular na Ucrânia.

Nesta última qualidade, podemos vê-lo, por exemplo, nesta vídeocurta 

[https://www.youtube.com/watch?v=Uv_WWzjrUrI], 

a desfazer-se de um bigode e de um traje de cossaco russo ou ucraniano (entendidos, quiçá, como símbolos tradicionais de “masculinidade tóxica” pelo realizador do espectáculo, quiçá o próprio Zelensky) para, de seguida, já vestido de calças justas e corpete de napa preta e calçado com sapatos altos de senhora, exibir então os seus dotes de dançarino (em estilo “gay” [?] ou “transsexual” [?]).

A sua fama atingiu o auge quando, durante três anos, (2015-2018) divertiu o público televisivo na Ucrânia e na Rússia com o seu papel como protagonista principal na telenovela O Servente do Povo — uma produção do seu grupo empresarial Estúdio Kvartal 95. Nessa telenovela, Zelensky interpretou o papel de um professor de história do liceu, Vasyl Goloborodko, que, indignado com a corrupção crónica do seu país, concorre à presidência da república ucraniana com o patrocínio dos seus alunos e, contra todas as expectativas (incluindo as suas), é eleito presidente.

Em 2018-2019, Zelensky tornou real a ficção televisiva. Começou por constituir, em Março de 2018, com os seus sócios no Estúdio Kvartal 95, um partido denominado Servente do Povo, tal como a telenovela homónima. Em seguida, concorreu às eleições presidenciais da Ucrânia em Dezembro de 2018 e, contra todas as expectativas, ganhou-as, tal como Goloborodko, a personagem principal da telenovela. Venceu, à segunda volta, com uma maioria (73,2%) dos votos expressos (62,1% dos eleitores inscritos). Tomou posse como presidente da república em 20 de Maio de 2019. Já presidente, convocou eleições legislativas antecipadas para 21 de Julho de 2019, que o seu partido, Servente do Povo, venceu com uma maioria (43,1 %) dos votos expressos (49,8% dos eleitores inscritos), e uma maioria absoluta de deputados no parlamento (254 em 450).

Neste processo em que a realidade parece imitar a ficção literária/televisiva em toda a linha, há, porém, dois aspectos importantes a realçar em que isso não acontece e que são praticamente desconhecidos do grande público.

O primeiro aspecto diz respeito ao patrocínio da candidatura de Zelensky. Não foram os fãs de Zelensky-comediante que tiveram a ideia da candidatura de Zelensky à presidência da Ucrânia. Quem teve a ideia dessa candidatura, quem o convenceu a lançar-se nessa aventura cuidadosamente planeada (visto que começou pela criação do partido Servente do Povo, um ano antes das eleições presidenciais), quem patrocinou financeiramente a campanha eleitoral de Zelensky como avatar de Goloborodko ‒ feita, quase toda ela, nos seus canais de televisão e nas redes sociais ‒ foi o seu anfitrião televisivo, o milmilionário [1] e governante Ihor Kolomoysky.

O segundo aspecto prende-se com as credenciais de Zelensky em matéria de corrupção e nepotismo, dois pontos fortes da sua campanha eleitoral.  

Examinemos o primeiro aspecto em primeiro lugar. Vale a pena determo-nos alguns momentos sobre a biografia de Kolomoysky porque é muito instrutiva para a cabal compreensão do presidente Zelensky.

2.2. Kolomoysky, o patrocinador de Zelensky (I)  

Kolomoysky é o principal proprietário (70%) do Grupo Media 1+1, que detém seis canais de televisão, entre os quais o canal de televisão, 1+1, onde Zelensky trabalhava e que co-produzia e difundia a sua afamada telenovela O Servente do Povo.

Kolomoysky foi co-fundador e co-proprietário do banco PrivatBank, o maior banco comercial da Ucrânia, assim como do Grupo PrivatBank — uma coligação empresarial multinacional cujo controlo se estende a milhares de empresas em praticamente todos os sectores de actividade económica e financeira na Ucrânia, na União Europeia, na Geórgia e na Rússia.

Sede Social do PrivatBank na cidade ucraniana de Dnipro, 2010. (Foto: Olga Vaganova, CC BY-SA 3.0, Wikimedia Commons).

Este grupo económico tinha ou tem na sua carteira investimentos e participações nas ferroligas, na distribuição de gás, nos grandes órgãos mediáticos de comunicação-social-e-entretenimento, no futebol profissional, em linhas aéreas, na indústria metalúrgica e nas indústrias petrolíferas (na Ucrânia, Rússia e Roménia).

Em 2012, a revista americana Forbes considerou Kolomoysky a 3ª. pessoa mais rica da Ucrânia e a 377ª. pessoa mais rica do mundo, com uma fortuna estimada de 3 mil milhões de dólares americanos. Estes predicados valeram-lhe ser considerado um dos mais influentes “oligarcas” ucranianos.

— Um excurso terminológico

Tenho de fazer aqui um parêntesis para esclarecer que “oligarca” é um termo grego cujo significado técnico original [2] foi deturpado pelo sistema mediático dominante de comunicação social do chamado “Ocidente alargado” e pelas suas fontes académicas. A deturpação consistiu em (i) modificar o seu significado potencial e (ii) reduzir, concomitantemente, a sua referência (tanto o seu designatum como seu denotatum) [3].

Assim, no que concerne (i), o termo oligarca foi confinado à esfera económico-financeira e passou a ser usado como sinónimo de plutocrata — não, todavia, qualquer género de plutocrata, mas apenas aqueles plutocratas que fizeram fortuna por meios ilícitos ou de licitude muito duvidosa. Concomitantemente, no que concerne (ii), o termo oligarca passou a denotar plutocrata (na acepção supramencionada), mas exclusivamente na Rússia e na Ucrânia da era pós-soviética, bem como, menos frequentemente, noutros países ex-membros do pacto de Varsóvia, mas não no resto do mundo capitalista. Neste resto (que representa, afinal, a maioria dos países do mundo) os plutocratas são apelidados de milionários, multimilionários, milmilionários (Ingl. billionaires; Fr. milliardaires), magnatas, ultrarricos e outros termos afins.

Neste artigo, como em todos os meus artigos, emprego oligarca no seu sentido técnico original [4]. Oligarquia (Gr. oligoi, “os poucos” + arkho, “comandar”, “reger”) designa, em qualquer sociedade, um regime político onde uma classe social privilegiada, bem definida e pouco numerosa e mais ou menos estratificada internamente em camadas, secções, segmentos ou grupos, consoante o modo de produção material [= as condições tecnológicas, ambientais e demográficas do processo de trabalho] dos bens e serviços necessários à reprodução da sociedade em apreço e o modo de apropriação social do sobrevalor criado pelo trabalho nessas condições domina economicamente a sociedade e, em grande medida, também a dirige politicamente.

Nas sociedades onde vigora praticamente sozinho há mais de um século ou onde prevalece, supremo, o modo capitalista de produção material e de apropriação social do sobrevalor o que sucede, aliás, actualmente, em todos os países no mundo inteiro, embora em graus diversos e em duas versões principais distintas [5] a classe economicamente dominante (por ser detentora dos meios industriais de produção, transporte, distribuição e comunicação [“meios industriais de produção”, para abreviar] dos bens e serviços que são vendidos/alugados como mercadorias e por ser ela que dirige e controla o processo de trabalho em todas as suas facetas, incluindo a duração e a intensidade da jornada de trabalho) assegura a sua dominação sobre o resto da população por intermédio de duas camadas suas muito restritas e especializadas (e, por conseguinte, também elas oligárquicas) que se auto-intitulam amiúde, colectivamente, de “elite dirigente”: a dos gestores empresariais (a “elite empresarial”), que exercem a sua actividade principalmente na esfera do poder económico, e a dos governantes (a “elite governante”), que exercem a sua actividade principalmente na esfera do poder político.

A grande diferença entre estes dois grupos oligárquicos da elite dirigente (entre os quais existem, aliás, várias portas giratórias) reside no seu mecanismo de selecção e reprodução socioprofissional. Enquanto a elite empresarial se reproduz em vaso relativamente fechado, sem qualquer mecanismo de validação directa da população (a não ser no que respeita às propensões e aos hábitos de consumo da miríade de mercadorias que os gestores empresariais estão encarregados de lhe oferecer para compra ou aluguer e que, por isso, precisam constantemente de auscultar, moldar e incentivar), uma parte da elite governante pode ser ‒ e é, actualmente, em muitos países ‒ eleita por sufrágio universal. Isso exige dela uma maior maleabilidade e versatilidade para se manter à tona de água.

Neste sentido, tanto Ihor Kolomoysky como Volodymyr Zelensky; tanto Elon Musk (director  executivo e principal accionista da Tesla [de que é também co-fundador], da Twitter e de outras grandes firmas, que ocupa a 2ª. posição ordinal na lista da revista Forbes relativa à pessoas mais ricas do mundo, com uma fortuna avaliada em 168,5 mil milhões de dólares americanos [158,2 mil milhões de euros]) como Joe Biden; tanto Maria Fernanda Amorim (principal accionista do grupo Amorim, que ocupa a posição 601.ª na lista de 2022 da Forbes das pessoas mais ricas do mundo com uma fortuna avaliada em 4,7 mil milhões de dólares [4,26 mil milhões de euros]), como Marcelo Rebelo de Sousa são oligarcas. Um regime político dominado por oligarcas é uma oligocracia.  

2.2.1. Kolomoysky, patrocinador de Zelensky (II)

Kolomoysky construiu a sua enorme fortuna no topo do PrivatBank principalmente como “raider” [que traduzirei por corsário ou pirata]. Num artigo de 2015 para a Harper’s Magazine, Andrew Cockburn explicou o significado do termo “raiding” [que traduzirei por pirataria empresarial] com a ajuda de Matthew Rojansky, director do Instituto Kennan no Woodrow Wilson Center for International Scholars.

Há empresas reais na Ucrânia «registadas com sedes e cartões de visita, empresas [que se especializam] em várias dimensões do processo de pirataria empresarial, que inclui indivíduos armados para fazer coisas, falsificar documentos, subornar notários, subornar juízes». Rojansky descreve Kolomoysky como «o oligarca-pirata mais famoso [da Ucrânia], acusado de ter conduzido uma campanha de actos maciços de pirataria empresarial ao longo dos cerca de dez anos, até 2010», construindo um império baseado na banca, produtos químicos, energia, meios de comunicação e metais, e centrado no PrivatBank, o maior banco do país, que detém 26 por cento de todos os depósitos bancários ucranianos. A dada altura, as práticas comerciais de Kolomoysky levantaram sobrancelhas suficientes em Washington para o colocar na lista de proibição de vistos, impedindo a sua entrada nos Estados Unidos [6].

De facto, as muitas tropelias e fraudes financeiras, de Kolomoysky valeram-lhe ser investigado pelo FBI em 2019 e judicialmente processado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros dos EUA [Department of State] em 2020. Em 5 Março de 2021, os EUA proibiram a sua entrada nesse país devido ao seu «envolvimento em significativa corrupção» (Anthony Blinken, ipsi dixit) [7].

Esta frase de Blinken (actual ministro dos Negócios Estrangeiros do presidente Joe Biden) alude ao facto de o PrivatBank, depois de ter sido “ordenhado” por Kolomoysky e os seus sócios mediante avultados pseudo-empréstimos em proveito próprio e múltiplos outros negócios escuros, acabou por ser nacionalizado (Dezembro de 2016) pelo governo do presidente Poroshenko e posteriormente liquidado (Fevereiro de 2017). Em Janeiro de 2022, o Ministério da Justiça dos EUA apresentou uma queixa civil contra Kolomoysky ‒ a quarta contra ele e Gennadiy Bogolyubov onde se alega que estes dois homens, que eram proprietários do PrivatBank, desviaram e defraudaram o banco em 5,5 mil milhões de dólares   dinheiro que, entretanto, desapareceu.

Alegadamente, os dois homens obtiveram empréstimos e linhas de crédito fraudulentas de 2008 a 2016 e lavaram partes dos seus lucros criminosos utilizando uma série de contas bancárias de empresas-fantasma, principalmente na sucursal do PrivatBank em Chipre, antes de transferirem os fundos para os EUA, onde continuaram a lavá-los ilegalmente através de uma empresa associada que operava a partir da sua sede em Miami. Parte do dinheiro roubado era proveniente de empréstimos do FMI concedidos ao governo ucraniano após o golpe de Estado de Maidan de 2014, que foi pago pelo Banco Nacional da Ucrânia ao PrivatBank. De acordo com um perfil no The American Spectator, Kolomoysky lavou milhões de dólares em Cleveland, Ohio, e em todo o Midwest onde, como «um dos maiores proprietários de imobiliário da região», ele «dirigiu um dos maiores esquemas Ponzi na história mundial» [8].

Ao nacionalizar o PrivatBank em 2016, a Ucrânia colocou efectivamente o fardo de um resgate multi-milmilionário sobre os ombros dos contribuintes [9].

Apesar de correr também o risco de perder a nacionalidade ucraniana pelas suas numerosas tropelias de pirata empresarial, Kolomoysky é um homem prevenido. Cuidou de adquirir também a nacionalidade cipriota e a nacionalidade israelita e os respectivos passaportes, apesar da lei ucraniana proibir a dupla nacionalidade («mas não a tripla nacionalidade», terá gracejado Kolomysky).

2.2.2. Kolomoysky, patrocinador de Zelensky (III)

Kolomoysky não alcançou notoriedade apenas como homem de negócios. Alcançou-a também como mecenas e como governante. Como mecenas, foi presidente da Comunidade Judaica Unida da Ucrânia, vice-presidente da Federação de Futebol da Ucrânia e presidente da União Judaica Europeia.

Como governante, a sua carreira começou logo após o golpe de Estado que culminou o movimento EuroMaidan. Lembremo-nos que este golpe de Estado forçou a destituição inconstitucional do presidente eleito Viktor Yanukovych, em Fevereiro de 2014. Nessa altura, o “Presidente interino,” nomeado pelos golpistas, Oleksandr Turchynov, nomeou Kolomoysky governador de Dnipropetrovsk, o segundo maior oblast da Ucrânia, com uma população de 3,1 milhões de habitantes, 67% dos quais têm o ucraniano como idioma materno e 32% têm o russo como idioma materno, segundo o último recenseamento (2001).

Como governador, Kolomoysky esforçou-se por criar uma reputação de duro implacável. Nenhum pormenor foi descurado para alcançar esse efeito, a começar pela decoração do seu gabinete, onde os visitantes eram brindados com a contemplação de um enorme tanque de cinco metros de comprimento com um tubarão que era alimentado por Kolomoysky durante as audiências, presumivelmente para enervar e intimidar os seus interlocutores. É caso para dizer:

Se ele [Kolomoysky] não existisse, Richard Marcinko tê-lo-ia provavelmente inventado como vilão num dos seus romances Rogue Warrior [10].

Logo em Abril de 2014, Kolomoysky ofereceu uma recompensa financeira de 10.000 dólares (como se fazia no velho Oeste americano relativamente a bandidos muito perigosos) pela captura de todo e qualquer “homenzinho verde[11] entenda-se, de militantes e activistas russófonos apoiantes da causa da autodeterminação da população da região de Donbass.

Cartaz do velho Oeste americano prometendo uma recompensa de 5.000 dólares pela captura, vivo ou morto, de um assaltante de comboios. Kolomoysky recorreu ao mesmo método na Ucrânia contemporânea para capturar os militantes e activistas russófonos apoiantes da causa da autonomia da região de Donbass, que ele encarava como inimigos a abater.

Propôs também incentivos financeiros para a entrega de armas por parte de membros das milícias de autodefesa que se formaram nas repúblicas populares de Donetsk e Luhansk. Em 3 de Junho de 2014, Kolomoysky ofereceu uma recompensa de 500 mil dólares pela entrega de Oleg Tsaryov, um dirigente político dos autonomistas russófonos de Donbass. Sabe-se também que Kolomoysky terá gastado 10 milhões de dólares para criar um exército privado, os batalhões Dnipro 1 e Dnipro 2, com 20.000 homens, e terá fornecido fundos para os batalhões Aidar, Azov e Donbass [12], todos eles formados por diferentes facções de ultranacionalistas “banderistas” — admiradores e seguidores de Stepan Bandera (1909-1959), um ultranacionalista ucraniano pró-nazi sobre o qual terei mais coisas a dizer mais adiante (v. secção 3.1).

O então governador Kolomoysky (à esquerda) cumprimenta Yuri Bereza, comandante do batalhão Dnipro, em Março de 2014. Fonte: kyivpost.com

Estas medidas extraordinárias tinham uma dupla motivação: (i) restabelecer a autoridade do Estado central ucraniano contra a rebelião autonomista da população russófona e russófila de Donbass e (ii) vingar-se das medidas que a Federação Russa tinha, entretanto, tomado contra os interesses de Kolomoysky, ao nacionalizar as suas propriedades na Crimeia, incluindo um aeroporto civil. Segundo o primeiro-ministro da república da Crimeia, Sergey Aksyonov, a nacionalização dos bens de Kolmoysky foi

totalmente justificada, devido ao facto de ele [Kolomoysky] ser um dos iniciadores e financiadores da operação especial antiterrorista na Ucrânia Oriental [= Donbass e sudeste da Ucrânia, N.E.] onde cidadãos russos estão a ser mortos [13].

Em resposta, em Janeiro de 2016, Kolomoysky apresentou uma queixa contra a Rússia no Tribunal Permanente de Arbitragem, que o governo russo se recusou a aceitar.

Durante a sua carreira, Kolomoysky enfrentou muitas alegações de malfeitorias, nomeadamente as de contratar assassinos profissionais para matar os seus inimigos, praticar a pirataria empresarial (sob a forma, como vimos, da intimidação armada e da tomada de posse de empresas pela força das armas) e empregar o suborno nos seus negócios [14]. Negou repetidamente a veracidade dessas alegações. Mas os seus actos falam mais alto do que as suas palavras. Por exemplo,

Quando o aliado de Kolomoysky e presidente da empresa estatal de transporte de petróleo da Ucrânia, UkrTransNafta, foi demitido por Poroshenko no início de 2015, o oligarca [Kolomoysky] enviou homens armados, com máscaras a ocultar-lhes o rosto, para atacarem a sede da empresa durante a noite. Enfrentou com raiva jornalistas e deputados que se apressaram a chegar ao local, gritando que «vim libertar o edifício dos sabotadores russos», num alvoroço que se tornou viral no YouTube. Depois das Forças Especiais terem rechaçado a sua surtida violenta e ilegal, Kolomoysky passou a ser um homem marcado [15].

Passou a ser visto como um desafio directo à autoridade do Estado e a evocar o medo de uma Ucrânia fraca, corrompida pela corrupção e pelo nepotismo, que se desfazia em feudos controlados por oligarcas rivais. «O presidente deve colocar Kolomoysky no seu lugar», trovejou o deputado Serhiy Leshchenko. O desejo deste deputado parece ter sido atendido, embora muito tardiamente e por quem menos se esperaria [16].

2.3. Os progenitores da candidatura de Zelensky à presidência

Disse mais acima (secção 2.1) que o homem que teve a ideia da candidatura de Zelensky à presidência da Ucrânia, que o convenceu a lançar-se nessa aventura e que patrocinou financeiramente a sua campanha eleitoral foi o milmilionário e governante Ilhor Kolomoysky.  

Devo agora fazer um pequeno aditamento a esta declaração. Segundo confidenciou o próprio Kolomoysky, a ideia de lançar Zelensky como candidato à presidência da República da Ucrânia não foi apenas uma ideia sua, mas sua e de Arsen Avakov. Este era, à época, ministro da Administração Interna (vulgo, ministro das polícias) do governo do presidente Petro Poroshenko e foi, mais tarde, nomeado Ministro da Administração Interna do presidente Zelensky. Demitir-se-ia deste cargo em 21 de Julho de 2021.

O empresário [Kolomoysky] não desmentiu a informação sobre o [seu] financiamento da campanha de Zelensky, mas deixou a indicação de que a ideia de nomear este candidato lhe pertencia não só a ele mas também ao actual Ministro da Administração Interna, Arsen Avakov. O objectivo do projecto era substituir Petro Poroshenko, de cuja política o povo ucraniano já estava cansado [17].

Convém saber que Arsen Avakov se ilustrou, na sua longa passagem pelo Ministério da Administração Interna da Ucrânia, onde esteve sete anos consecutivos (22 de Fevereiro de 2014-21 de Julho de 2021), por várias proezas. Entre elas destaco:

(i) ter ajudado a criar, em 2014, os batalhões voluntários da chamada Operação Antiterrorista (ATO, no acrónimo ucraniano) — ou seja, as tropas banderistas que o governo saído do golpe de Estado de 2014 enviou para sufocar a sublevação das populações russófonas de Donbass [18];

(ii) ter apoiado o batalhão Azov e, mais tarde, tê-lo integrado, transformado em regimento Azov, na estrutura da Guarda Nacional da Ucrânia, um corpo militar-policial sob a tutela do Ministério do Interior (Administração Interna em Portugal). Recordo ainda que este é o ministro que disse, em 2014, «prometer tudo e mais coisa aos russos [entenda-se, aos habitantes russófonos e russófilos de Donbass] e depois enforcá-los após a vitória» [18];

(iii) ter obstruído, de todos os modos ao seu alcance, a investigação destinada a apurar a identidade dos mandantes e dos autores materiais dos crimes de sangue cometidos na praça Maidan (49 mortos e 157 feridos), durante os tumultos que precederam e culminaram no golpe de Estado de Fevereiro de 2014, que derrubou o presidente eleito Viktor Yanukovych [19];

(iv) ter nomeado Vadim Troyan, comandante interino do batalhão Azov, como chefe da polícia do oblast (≈ distrito) de Kiev [20].

Regressemos a Kolomoysky. Um mês antes das confidências supracitadas, Kolomoysky tinha revelado outro facto desconhecido:

O sr. Kolomoysky disse a um confidente no ano passado que o Sr. Zelensky iria concorrer à presidência, muito antes do comediante anunciar a sua candidatura na véspera do Ano Novo [21].

O apoio de Kolomoysky ao candidato presidencial Zelensky manifestou-se também de outras formas.

Além de fornecer apoio financeiro durante as eleições ucranianas de 2019, Kolomoysky forneceu um carro a Zelensky e emprestou-lhe o seu advogado pessoal [Andriy Bohdan] para ser conselheiro de campanha e promover a sua candidatura em vários meios de comunicação social de que era proprietário. Os laços estreitos entre os dois eram evidentes em 2018 quando Zelensky viajou para Genebra, na Suíça, para o aniversário de Kolomoysky, e depois voltou a Genebra mais dez vezes. Quando Kolomoysky se mudou para Tel Aviv, Israel, Zelensky viajou para lá para o visitar três vezes, de acordo com a Radio Free Europe [22].

 O Financial Times acrescenta:  

O comediante [isto é, Zelensky, agora candidato presidencial, N.E.] também admitiu ter ao seu serviço pessoal de segurança oferecido pela estação de televisão 1+1 do oligarca [Kolomoysky] [23].

Tudo isto não passou completamente despercebido durante a própria campanha de Zelensky à presidência da república ucraniana.

Considerando que Bohdan representa os interesses de Kolomoysky em tribunal, onde o oligarca exige uma compensação do Estado ucraniano pela nacionalização do PrivatBank, tal envolvimento activo de Bohdan na equipa de Zelenskiy levanta questões preocupantes [24].

Zelensky alegou que a sua relação com Kolomoysky não era política, mas meramente profissional. Tinha ido visitá-lo à Suíça e a Israel apenas por causa do seu trabalho na televisão. No entanto, Zelensky cuidou de o recompensar quando se tornou presidente. Uma das coisas que fez para isso foi demitir os opositores de Kolomoysky: o Procurador-Geral da República, o governador do Banco Nacional da Ucrânia, e o seu próprio primeiro-ministro, Oleksiy Honcharuk, que tentou regular o controlo de Kolomoysky sobre uma empresa de electricidade estatal. O parlamento da Ucrânia, onde o partido do Presidente (Servente do Povo) tem a maioria absoluta, também aprovou uma medida que impediu Kolomoysky de ter de pagar impostos mais elevados sobre as suas operações mineiras [25].

                                                                       
O presidente Zelensky encontra-se com Kolomoysky (sentada ao lado de Zelensky, à direita na foto) em 27 de Setembro de 2019.  Em frente a Kolomoysky está Andriy Bodhan, chefe de gabinete de Zelensky (à época) e advogado de Kolomoysky. Ao lado de Kolomoysky está Serhiy Shefir, sócio de Zelensky na Estúdio Kvartal 95 e seu assessor principal na Presidência da República. À sua frente está Oleksiy Honcharuk, primeiro-ministro do governo de Zelensky (à época).

2.4. Um candidato corrupto e nepotista, como se veio a descobrir

Abordo agora o segundo aspecto da candidatura presidencial de Zelensky que referi na secção 2.1: as suas credenciais em matéria de luta contra a corrupção e o nepotismo.

Este aspecto é da maior importância porque, durante a campanha eleitoral para a presidência da República [1ª. volta: 31 de Março 2019; 2ª. volta: 21 de Abril 2019], Zelensky comprometeu-se, entre outras coisas, a combater a corrupção e o nepotismo cultivados em grande escala pelas facções mais poderosas da oligarquia económica e política da Ucrânia. O caso não é para menos porque a Ucrânia é considerada como sendo um dos países mais corruptos do mundo. Em 2012, a Ernest & Young uma empresa multinacional de consultoria, auditoria, “planeamento fiscal” e transações colocou a Ucrânia entre os três países mais corruptos de 43 inquiridos, ao lado da Colômbia e do Brasil. Em 2015, o jornal londrino The Guardian chamou à Ucrânia «a nação mais corrupta da Europa». A Transparência Internacional abona no mesmo sentido [26].

Ciente destes factos, Zelensky atacou políticos como o candidato Petro Poroshenko — um multimilionário (considerado o 6º. homem mais rico da Ucrânia à época) eleito presidente da República à primeira volta, em 25 de Maio de 2014, com 54,7% dos votos expressos. Um dos trunfos de Zelensky, neste particular, foi uma investigação divulgada durante a campanha eleitoral, segundo a qual Poroshenko e a sua camarilha tinham criado um esquema de branqueamento de capitais na Ukroboronprom, um conglomerado de empresas em vários sectores das indústrias de defesa (vulgo, indústrias de armamento).

A mensagem de Zelensky funcionou. Zelensky ganhou com 73% dos votos expressos à segunda volta, em Maio de 2019, e agora, três anos e meio depois, foi eleito “figura internacional” do ano 2022 pelo magazine Time e pelos jornais Financial Times e Diário de Notícias como um herói do nosso tempo digno de todos os encómios.

Mas existem vários óbices a esta entronização mediática de Zelensky, que estes órgãos de imprensa e, na verdade, quase todo o sistema mediático dominante de comunicação social do chamado “Ocidente alargado” ou “Ocidente colectivo fingem ignorar. Um deles, prende-se precisamente com as credenciais de Zelensky em matéria de corrupção e nepotismo. Vejamos então o que se oferece dizer sobre este assunto.

Em 21 de Abril de 2022, a revista semanal Forbes estimou a fortuna de Volodymyr Zelensky em 30 milhões de dólares americanos, assim discriminados:

O seu principal activo: uma participação estimada de 25% no Kvartal 95, um grupo de empresas que produzem espectáculos humorísticos, que transferiu para os seus sócios após ter sido eleito presidente, embora seja provável que recupere as suas acções após deixar o cargo. O Kvartal 95 produziu e é proprietário da série Servente do Povo, uma comédia política popular protagonizada por Zelensky como professor do liceu ucraniano, que é eleito presidente. Netflix, que anteriormente transmitia o espectáculo entre 2017 e 2021, voltou a adquirir os direitos em Março. Com receitas anuais estimadas em 30 milhões de dólares, a Forbes Ucrânia avalia a participação de Zelensky [no Estúdio Kvartal 95] em 11 milhões de dólares. /…/ [N.E., realce, por meio de letra grossa, acrescentado ao original]

A Forbes estima que toda a carteira imobiliária de Zelensky vale 4 milhões de dólares, incluindo mais dois apartamentos de propriedade total, dois que ele co-detém, uma única propriedade comercial e cinco lugares de estacionamento. Zelensky era proprietário de uma vivenda no Forte dei Marmi, Itália, no valor de 4,6 milhões de dólares em Dezembro de 2019, de acordo com o mais recente registo da sua sociedade gestora de participações sociais [a Maltex Multicapital Corp., N.E.]. Aparentemente, vendeu-a durante 2020 (tinha aparecido nas suas declarações para 2018 e 2019 mas não para 2020) juntamente com um pequeno terreno e 5 quartos de hotel na Geórgia (investimentos populares de classe média-alta na Ucrânia). O dinheiro destas vendas foi declarado e está incluído na estimativa da Forbes, mas como a soma é inferior ao valor estimado do imóvel, é possível que Zelensky continue a ser um beneficiário de facto ou que o dinheiro seja investido noutro lugar./…/ [N.E.= nota editorial]

Estimamos que ele e a sua esposa, Olena Zelenska, partilham uma conta bancária com cerca de 2 milhões de dólares em dinheiro e títulos do Estado. Os seus outros activos, constituídos por dois carros e algumas jóias, não valem mais de 1 milhão de dólares [27].

Pela Forbes ficámos então a saber que Zelensky é um multimilionário (alguém que possui muitos milhões de dólares), mas não um milmilionário (um multimilionário que possui mil milhões de dólares ou mais). Para a Forbes estas distinções são tão importantes como era, outrora, a distinção entre a baixa nobreza (viscondes sem grandeza, barões e fidalgos) e a alta nobreza (duques, marqueses, condes e viscondes com grandeza). Mas a Forbes é muitíssimo discreta, como lhe compete, sobre o modo concreto como estas fortunas multimilionárias ou milmilionárias foram acumuladas e como são geridas, trate-se de Zelensky ou de outro multimilionário ou milmilionário qualquer. Repare-se que as únicas informações concretas que a Forbes nos dá acerca de Zelensky neste particular (e que, aliás, são de molde a deixar os mais curiosos com a pulga atrás da orelha) são aquelas que estão grafadas em letra grossa na citação mais acima.

Para sabermos mais sobre esses temas, precisamos de recorrer a outras fontes de informação. No que respeita a Zelensky, convém saber que os candidatos à presidência da república ucraniana são obrigados, por lei, a apresentar uma declaração de rendimentos relativa ao ano anterior ao ano das eleições. Este documento é depois examinado pela Agência Nacional de Prevenção da Corrupção, que, subsequentemente, publica os resultados da auditoria.

Ora, durante a campanha eleitoral, um membro do partido Solidariedade Europeia (o partido do presidente Petro Poroshenko), o deputado Volodymyr Ariev, publicou um gráfico no Facebook com o propósito de mostrar pormenorizadamente que Zelensky e os seus sócios no Estúdio Kvartal 95 estariam envolvidos num grande esquema de corrupção. De 2012 a 2016, 41 milhões de dólares teriam sido canalizados do PrivatBank de Kolomoysky para as contas de Zelensky e dos seus sócios através de uma teia de empresas intermediárias sediadas em paraísos fiscais (Ilhas Virgens Britânicas, Chipre e Belize). Ariev afirmou na mesma altura que Kolomoysky utilizou as empresas e contas de Zelensky para a lavagem de dinheiro desviado do seu banco em proveito próprio.

Volodymyr Ariev não forneceu provas concretas das suas acusações e, por essa razão, o caso acabou por não ter repercussões negativas para a candidatura de Zelensky. Mas, em Agosto de 2021, já no segundo ano da presidência de Zelensky, o caso começou a mudar de figura.

Segundo o jornal Die Welt, um documentário intitulado “Offshore 95 — Os Negócios Secretos do Presidente Zelensky” estava agendado para ser exibido em Outubro de 2021 em Kiev. Esse documentário revelaria uma teia de negócios e fortunas escondidas em paraísos fiscais, descoberta por jornalistas de investigação ucranianos, e que envolveria contas ligadas ao presidente da Ucrânia em paraísos fiscais. A estreia do documentário foi cancelada à última hora, com os responsáveis da ‘Pequena Ópera’, onde o documentário seria exibido, a ligarem para os jornalistas que iam assistir e a explicarem: «Não vamos exibir o filme sobre o presidente» [28].

Mas foi sol de pouca dura. Em Outubro de 2021, os Pandora Papers divulgados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ, no acrónimo inglês) mostraram que Zelensky e os seus sócios no Estúdio Kvartal 95, operavam uma rede de empresas de fachada sediada em três paraísos fiscais: Ilhas Virgens Britânicas, Chipre e Belize. Essa rede foi construída a partir da Maltex Multicapital Corp.— uma firma gestora de participações sediada nas Ilhas Virgens Britânicas, da qual Zelensky e os seus sócios no Estúdio Kvartal 95 eram os proprietários.

A rede da Maltex começou a ser urdida em 2012, o ano em que o Estúdio Kvartal 95 começou a trabalhar para o canal de televisão 1+1 de Kolomoysky.  Parte dessa rede era gerida com a ajuda da Fidelity Corporation Services, uma firma de consultoria extraterritorial (Ingl. offshore) — isto é, sediada num paraíso fiscal. Concomitantemente, os documentos divulgados pelos Pandora Papers mostram que, pelo menos alguns dos pormenores do esquema revelado por Ariev, mais de dois anos antes, correspondem à realidade. Destarte, os Pandora Papers mostram que 10 das empresas pormenorizadas no gráfico de Ariev, que teriam recebido dinheiro do banco de Kolomoysky através desses paraísos fiscais, pertenciam ou pertenceram a Zelensky e aos seus sócios [29]. Essa informação não estava anteriormente disponível.

Por exemplo, os Pandora Papers mostram que a SVT Films Ltd uma empresa pertencente (em metade do seu valor financeiro) à Maltex desde Maio de 2013 deveria receber 1,2 milhões de dólares em taxas de licenciamento até Janeiro de 2013 de uma empresa situada num paraíso fiscal e ligada ao canal de televisão 1+1 de Kolomoysky pelo programa de televisão “Faça rir um comediante”. Em 2015, uma empresa chamada Gimentiano Holdings Ltd, que era, em última análise, propriedade de Andriy Iakovlev, outro dos sócios de Zelensky no Estúdio Kvartal 95, também recebeu 750.000 dólares americanos na sua conta na sucursal de Chipre do PrivatBank de Kolomoysky. O dinheiro veio da SVT Films Ltd para «pagamento de dividendos intercalares».

Os documentos divulgados pelos Pandora Papers revelam também outros segredos de Zelensky que estavam, até então, bem guardados. Por exemplo, ficámos a saber que a Maltex Multicapital Corp. foi dividida, em 2017, em partes iguais, por empresas de fachada pertencentes a Zelensky, aos irmãos Serhiy Shefir e Borys Shefir, e a Andriy Iakovlev, respectivamente. Ivan Bakanov, outro sócio de Zelensky no Estúdio Kvartal 95, ficou à testa de outra empresa de fachada que passou a actuar como mandatária e avalista da propriedade dos outros quatro homens da Maltex.

Zelensky (ao centro) com os irmãos Shefir: Serhiy (à esquerda) e Borys (à direita). Em pano de fundo, vê-se o logotipo publicitário do Estúdio Kvartal 95

Zelensky, juntamente com a sua esposa, Olena Zelenska, possuía um quarto da Maltex através de uma empresa registada no Belize chamada Film Heritage. Porém, em 2019, em plena campanha eleitoral do candidato Zelensky à presidência da república, a Film Heritage transferiu a sua propriedade da Maltex para outra empresa pertencente ao seu sócio e amigo Serhiy Shefir. Os documentos de transferência foram preparados por Iurii Azarov, um advogado ucraniano que já tinha trabalhado para o Estúdio Kvartal 95.

A transferência parece ter sido um grande acto de generosidade de Zelensky em favor do seu sócio e amigo Serhiy Shefir. Mas desengane-se quem possa pensar assim. É que, apesar de ter aparentemente desistido das suas acções (verosimilmente para não ter de declarar a sua posse à Agência Nacional de Prevenção da Corrupção), os documentos divulgados pelos Pandora Papers mostram que, seis semanas depois, foi feito um acordo que permitia que a Maltex continuasse a pagar dividendos à Film Heritage (apesar desta empresa já não ser proprietária da Maltex…) que agora pertence exclusivamente à esposa de Zelensky, a senhora Olena Zelensky! Antes de Outubro de 2022, Zelensky nunca tinha mencionado a Maltex em nenhuma das suas declarações de rendimentos, incluindo uma apresentada para 2018, quando ainda possuía 25 por cento desta empresa.

Para não me alongar demasiado, vou passar por cima dos investimentos que os sócios de Zelensky no Estúdio Kvartal 95 em particular Boris Shefir, Ivan Balkanov e Andriy Iakovlev fizeram através da Maltex e sobre os eventuais proventos que Zelinsky poderá ter auferido em resultado disso [30]. Julgo ter carreado provas suficientes das falcatruas de Volodymyr Zelensky para esconder a sua fortuna em paraísos fiscais e fugir ao pagamento de impostos no país de que é o presidente da república. O seu sócio e amigo Serhiy Shefir confessou candidamente que essas falcatruas eram necessárias por causa da ameaça ao Estúdio Kvartal 95 que representam «as autoridades [isto é, a autoridade tributária na época do presidente Viktor Yanukovych, N.E.] e os bandidos» [31] — como se ambos estivessem no mesmo plano! Mais ainda, o próprio Zelensky confessou, ainda mais candidamente que o seu sócio Serhiy Shefir, que essas falcatruas foram feitas para escapar ao pagamento de impostos na Ucrânia.

O Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky admitiu que tinha contas em paraísos fiscais antes de ser eleito para o cargo. Ele disse isto numa emissão do canal de televisão ICTV. Explicou que as empresas sediadas em paraísos fiscais [offshore companies, no original, N.E.] eram necessárias para se protegerem contra os impostos ucranianos. Segundo ele, durante o tempo do Presidente ucraniano Viktor Yanukovych (2010-2014), toda a gente “estruturava” os seus negócios [entenda-se, maquilhava e martelava a contabilidade das suas empresas, N.E.]. «A autoridade tributária visitava-nos, se não todos os dias, pelo menos uma vez por semana. E por isso havia estruturação para tais coisas. Tinha o nome de “estruturação de negócios”», disse o político [32].

Sobre as credenciais de Zelensky em matéria de corrupção estamos, pois, esclarecidos: Zelensky faz parte do grupo dos corruptos, não do grupo dos inimigos da corrupção. E, de caminho, ficámos a conhecer uma das três razões principais pelas quais o presidente Yanukovych era tão odiado por aqueles que o derrubaram em Fevereiro de 2014 através de um golpe de Estado (veremos qual era uma segunda  razão desse ódio na secção 2.5 e uma terceira razão na secção 3.1).

Chega-se a uma conclusão semelhante no que respeita às credenciais de Zelensky em matéria de nepotismo. Em 11 de Fevereiro de 2020, Zelenskyy nomeou Andriy Yermak, um advogado e produtor de televisão seu velho amigo, como Chefe do Gabinete do Presidente da Ucrânia. No dia seguinte, Yermak tornou-se membro do Conselho Nacional de Segurança e Defesa. Dois dos parceiros de Zelensky na rede extraterritorial da Maltex Multicapital Corp., que eram/são também sócios do seu grupo empresarial de produção de espectáculos Estúdio Kvartal 95, foram nomeados pelo presidente Zelensky para ocuparem altas posições no aparelho de Estado ucraniano. Serhiy Shefir, o seu produtor televisivo e roteirista no Estúdio Kvartal 95, foi nomeado “assessor principal do presidente Zelensky” (cargo que julgo ser equivalente ao que resultaria da fusão das funções de chefe de gabinete do primeiro-ministro e chefe da Casa Civil da presidência da República em Portugal), enquanto Ivan Bakanov, seu amigo de infância, passou a chefiar o Serviço de Segurança da Ucrânia (mais conhecido pela sigla ucraniana SBU).


2019. O chefe do SBU, Ivan Bakanov (de costas), num encontro de trabalho com o presidente Zelensky. Bakanov ocupou o cargo de Agosto de 2019 a Julho de 2022. Foto: President.gov.ua.

O SBU é uma força militar que actua nas áreas de contra-espionagem, contra-informação e combate ao terrorismo e que opera a sua própria Unidade de Forças Especiais, o Grupo Alfa. É a maior agência do seu género na Europa, com um número de agentes (29.000-30.000) seis vezes maior do que o da soma das suas congéneres britânicas (MI5 e MI6) e equivalente ao do FBI americano, apesar da população da Ucrânia (43,8 milhões em 2021) ser uma vez e meia menor do que a do Reino Unido (67,3 milhões) e sete vezes menor do que a dos EUA (333,5 milhões) no mesmo ano.

As qualificações de Bakanov para chefiar o SBU eram apenas as de ser (i) amigo de infância de Zelensky, (ii) seu sócio e chefe de produção televisiva no Estúdio Kvartal 95, e (iii) director financeiro da Maltex Multicapital Corp, a firma gestora de participações que administrava os seus bens em três paraísos fiscais. Portanto, sobre a atitude de Zelensky perante o nepotismo, estamos também esclarecidos.

2.5. O programa eleitoral de Zelensky

Existe uma tradução inglesa do programa político com que Zelensky se apresentou às eleições presidenciais de 2019 [33]. Julgo que quem se dê ao trabalho de o ler terá dificuldade em não concordar com o seguinte resumo, feito, na altura, por uma politóloga ucraniana.

O programa de Zelensky é uma mistura de ideias, desejos, e, ocasionalmente, políticas específicas. De um modo geral, oferece muito poucas soluções concretas. Se for eleito, Zelensky planeia introduzir a democracia directa na Ucrânia, tornando mais fácil a organização de referendos. O programa contém medidas destinadas a reforçar o Estado de direito, tais como o levantamento da imunidade do presidente e dos deputados, aprovando uma lei que permita destituir o presidente da república, e retirar o mandato aos deputados que se ausentem das sessões parlamentares ou que votem ao mesmo tempo por vários colegas ausentes. Na secção, bastante abstracta, relativa à defesa e segurança, o programa nunca menciona a Rússia, embora descreva um “Estado agressor” que ocupa território ucraniano. Curiosamente, o programa de Zelensky sugere a organização de um referendo sobre a adesão à OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte], embora alterações recentes à Constituição ucraniana tenham sido consagradas à aspiração da Ucrânia a aderir à UE e à OTAN [Este trecho alude ao facto de o parlamento ucraniano ter inscrito na Constituição o desejo da Ucrânia de ser admitida na UE e na OTAN, N.E.].

Entretanto, na frente económica, Zelensky planeia reduzir o papel do Estado no mercado e aumentar os salários dos trabalhadores da educação e da saúde, embora o faça de forma muito abstracta. Algumas das disposições concretas, tais como a substituição do imposto sobre o rendimento por um imposto sobre dividendos do capital e a introdução de um mercado de terras agrícolas são também preconizados por Poroshenko.

Em geral, Zelensky tem sido até agora muito vago sobre as suas políticas e visão para o futuro. Assim, tem sido extremamente difícil dizer o que ele representa ou verificar os factos relativos às suas declarações omissas sobre política da maneira como os peritos o fazem para outros candidatos. Ele raramente menciona factos. Talvez não seja surpreendente que, segundo uma sondagem realizada em Março [de 2019], apenas cerca de 20 por cento dos apoiantes de Zelensky conhecem a sua posição ou a posição do seu programa sobre questões-chave tais como a relação [da Ucrânia] com a UE, a OTAN e a Rússia [34].  

Note-se que Zelensky, com raríssimas excepções, não se deu ao trabalho de fazer comícios, participar em debates e dar entrevistas durante a campanha eleitoral para explicar os seus pontos de vista políticos e as suas propostas políticas ao eleitorado ucraniano. Quando os resultados da primeira volta determinaram que passariam ambos à segunda volta, recusou participar no segundo debate com o seu rival e presidente cessante, Petro Poroshenko. Quase toda a sua campanha (com excepção, salvo melhor informação, de um debate e uma entrevista) foi feita através da divulgação de pequenos discursos e vídeo-rábulas nas redes sociais FaceBook, YouTube e Instagram.

Mas há dois pontos do seu programa eleitoral que vale a pena salientar e ressalvar. O primeiro diz respeito aos referendos sobre os pedidos de adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e a outras organizações internacionais similares isto é, cuja entrada não é livre, mas está dependente de certos critérios estabelecidos pelos seus membros efectivos como, por exemplo, a União Europeia. O programa eleitoral de Zelensky diz explicitamente:  

A minha primeira proposta legislativa será sobre a soberania popular. Com essa proposta, nós estabeleceremos um mecanismo colectivo através do qual o povo da Ucrânia, e só ele, irá configurar os principais objectivos da governo através de referendos e outras formas de democracia directa. /…/ O movimento da Ucrânia rumo à OTAN e a outras associações similares é um compromisso para com a nossa segurança. Acredito neste compromisso e que ele deve ser confirmado por um referendo nacional.

Abordarei a questão da entrada da Ucrânia na OTAN mais adiante (secção 3.5). Aqui limitar-me-ei à questão de saber se a promessa (velada) de Zelensky de fazer um referendo sobre o pedido de adesão à UE fazia sentido (do ponto de vista da “soberania popular” de que ele se raclamava) e porquê. Respondo à questão pela afirmativa e passo a explicar porquê.

Em primeiro lugar, convém saber que a população ucraniana estava (e é verosímil que continue a estar) longe de ser unanimemente ou mesmo maioritariamente favorável a um acordo de associação com a UE, que conduzisse/conduza eventualmente, daqui a X anos ou décadas, à sua integração plena nesta organização, sobretudo se um tal acordo fôsse/for feito em detrimento de um acordo com a Rússia. Uma prova disso é que, em Novembro de 2013, uma sondagem efectuada pelo Kyiv International Institute of Sociology (KIIS) mostrou que a população ucraniana estava dividida ao meio entre um acordo de associação com a União Europeia e uma união aduaneira com a Rússia [35].

Este resultado compreende-se perfeitamente, se tivermos em linha de conta que (i) a população ucraniana, além das divisões de classe que a percorrem, é um mosaico de etnias e línguas, e que (ii) a Rússia não é um país qualquer para a Ucrânia, mas o país com o qual a Ucrânia esteve profundamente entrosada durante séculos no plano económico e em todos os demais planos em particular durante mais de 70 anos no século XX, até à dissolução da União Soviética e com a qual, como seria de esperar, continuou a estar muito entrosada nos planos económico e cultural, mesmo depois de ter votado (1 de Dezembro de 1991) pela independência.

A Ucrânia, durante a presidência de Viktor Yanukovych, era favorável a um acordo quer com a Rússia, quer com a UE [36]. Acresce que a Rússia (mais concretamente, o governo de Putin) não se opunha à conclusão de um acordo de associação da Ucrânia com a UE. A única coisa que fazia valer era que um tal acordo nunca deveria ser feito em detrimento da relação da Ucrânia com a Rússia. Foi a UE que se opôs terminantemente à coexistência de dois acordos um da Ucrânia com a Rússia e outro da Ucrânia com a UE. Fê-lo pela boca do presidente da Comissão Europeia à época, Durão Barroso, que a intimou a escolher: ou um ou outro, mas não ambos [37]. Durão Barroso e os seus sucessores consideravam e consideram que a Ucrânia deve, desejavelmente, ser uma fronteira fortificada, militarizada e OTANizada entre o Ocidente e a Rússia, ao passo que a Rússia considerava que ela deve ser, desejavelmente uma fronteira desfortificada, desmilitarizada e desOTANizada entre a Rússia e o Ocidente [38].

E foi também (e talvez sobretudo) por ter querido garantir a coexistência desses dois acordos um com Rússia, outro com a UE que o presidente eleito Viktor Yanukovych, já tão odiado por duas razões (uma que foi indicada na secção 2.4, outra que será indicada na secção 3.1), somou uma terceira, que lhe foi fatal. Yanukovytch foi derrubado em Fevereiro de 2014 por um golpe de Estado feito por uma coligação de partidos com assento parlamentar, coadjuvados, na rua, por grupos ultranacionalistas e neonazis ucranianos, uns e outros activamente instigados pelo governo dos EUA e complacentemente apoiados pela UE [39]. O seu derrube implicou também o derrube do seu primeiro-ministro Mykona Azarov e do seu governo, que tanto tinham pugnado pela efectivação e coexistência dos dois acordos como sendo a solução que melhor servia os interesses da Ucrânia no curto, médio e longo prazo.

Sabemos que, entretanto, Zelensky se “esqueceu” do referendo sobre um acordo de associação da Ucrânia com a UE ‒ tal como se “esqueceu” do referendo sobre o pedido de adesão à OTAN ‒ que havia prometido realizar no seu programa eleitoral (“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades…”). Numa das suas muitas reviravoltas, passou a ser um defensor incondicional da adesão à UE, cuja candidatura apresentou reiteradamente com grande insistência. Em 8 de Abril de 2022, a actual presidente da Comissão Europeia, Ursula van der Leyen, recompensou-o com a promessa de uma adesão “acelerada” à UE, cuja data, porém, deixou para as calendas gregas...

O segundo ponto a salientar e a ressalvar no programa eleitoral com que Zelensky se candidatou à presidência da república ucraniana diz respeito à sua posição sobre a guerra que, na altura, já se desenrolava há 5 anos consecutivos em Donbass e que opunha as tropas ucranianas e as milícias populares de autodefesa das repúblicas populares de Donetsk e Luhansk. Vale a pena reproduzir aqui, na íntegra, o breve trecho do programa eleitoral de Zelensky dedicado a esta importantíssima questão.

Temos de ganhar a paz para a Ucrânia. Dos garantes do Memorando de Budapeste [Rússia, EUA e Reino Unido, N.E.] e dos nossos parceiros na UE, solicitaremos formalmente apoio à Ucrânia no nosso esforço para pôr fim à guerra, para recuperar os territórios temporariamente ocupados, e para forçar o agressor a pagar pelos danos que foram causados. A salvaguarda dos nossos interesses e territórios nacionais não pode estar sujeita a qualquer negociação [40].

Repare-se que não há aqui uma palavra sequer sobre a necessidade da Ucrânia cumprir os Acordos de Minsk (1 e 2), o único modo de «ganhar a paz para Ucrânia» que então se lhe oferecia.

Traduzi os Acordos de Minsk e publiquei-os em anexo ao primeiro artigo desta série: As guerras na Ucrânia eram evitáveis: os acordos de Minsk (2014-2015) e as propostas de tratado da Rússia (2021) (Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue 4 de Agosto de 2022). Quem se dê ao trabalho de ler esses Acordos, que ocupam apenas algumas páginas A4, verificará que a principal tarefa para pôr fim à guerra fratricida em Donbass incumbia à Ucrânia, que teria, entre outras coisas, de modificar profundamente a sua Constituição de maneira a reconhecer e garantir formalmente a autonomia político-administrativa e cultural das populações russófonas de Donbass.

Porém, no seu programa eleitoral, Zelensky ignorou deliberada e completamente as obrigações da Ucrânia decorrentes dos Acordos de Minsk. Pior ainda, diz sibilinamente que os não vai cumprir se for eleito presidente da república («A salvaguarda dos nossos interesses e territórios nacionais não pode estar sujeita a qualquer negociação») e afirma, desafiadoramente, que tudo fará para «forçar o agressor a pagar pelos danos que foram causados». Insinua aqui que o agressor na guerra que se travava (e continua a travar-se) na região de Donbass seria a Rússia, quando o único agressor das populações russófonas e russófilas dessa região era (e continuou a ser até a hoje) a Ucrânia, como mostrei em artigos anteriores desta série (As guerras na Ucrânia eram evitáveis: os acordos de Minsk (2014-2015) e as propostas de tratado da Rússia (2021), ver especialmente a secção 3.3. Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue 4 de Agosto de 2022; Quem anexou a Crimeia: foi a Rússia ou a Ucrânia? ver especialmente a secção 3.6. Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue 22 de Agosto de 2022; Quatro Proposições Falsas, ver especialmente as secções 2, 3, 4 e 5. Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue 24 de Setembro 2022; Qual é a morada dos assassinos de Darya Dugina e o que é que isso tem a ver com as guerras na Ucrânia? ver especialmente a secção 7. Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue 5 de Novembro de 2022).  

2.6. Uma prova precoce dos grandes talentos de Zelensky como comediante, agora no palco da política-espectáculo

De onde vem, então, a ideia de um Zelensky que teria sido eleito presidente da república ucraniana em grande medida por ter explicitamente assumido o mandato de negociar um acordo de paz com as repúblicas populares de Donetsk e Luhansk que pusesse termo à guerra em Donbass?

Repare-se que essa é uma ideia largamente difundida não só pelo sistema mediático dominante de comunicação social (o que nos deve imediatamente pôr de sobreaviso), mas também por órgãos mediáticos alternativos de comunicação social que respeitam escrupulosamente a Declaração dos Deveres e Direitos dos Jornalistas (1971), conhecida por Declaração de Munique (uma circunstância que nos leva a acreditar no que lemos, vemos e ouvimos no campo noticioso).  

Uma prova disso é a citação seguinte, extraída de um excelente artigo de Max Blumenthal e Alexander Rubinstein publicado num dos órgãos mediáticos de comunicação social mais fidedignos e confiáveis, o The Grayzone:   

Eleito numa plataforma de desescalada das hostilidades com a Rússia, Zelensky estava determinado a aplicar a chamada Fórmula Steinmeier, concebida pelo então Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, Walter Steinmeier, que apelou a eleições nas regiões de língua russa de Donetsk e Lugansk [41].

Porém, como vimos, não se encontra sequer o mínimo vestígio destas ideias (“plataforma de desescalada das hostilidades” e “determinação em aplicar a fórmula Steinmeier”) no programa eleitoral de Zelensky. De onde vêm elas então?

Foi devido a uma mistura de persistência na busca e de sorte que descobri, muito recentemente, no YouTube [42], qual poderá ter sido a fonte das afirmações de Blumenthal e Rubinstein: uma entrevista que Zelensky deu em Dezembro de 2018. Numa agência noticiosa ucraniana e num jornal ucraniano [43], encontrei, respectivamente, uma transcrição parcial em Inglês e um resumo, também em Inglês, dessa entrevista, da qual passo a citar a parte mais relevante para os meus propósitos actuais:

Depois disso [i.e. uma declaração de Zelensky feita em Agosto de 2014, quando ainda estava a muitos anos de distância de fundar um partido e de se candidatar a presidente da república da Ucrânia, N.E.], o tema da guerra em Donbass foi mencionado publicamente por Zelensky apenas nos espectáculos do Evening Quarter [um programa televisivo de humor e sátira produzido pelo Estúdio Kvartal 95, N.E.]. Contudo, em Dezembro de 2018, o artista quebrou o silêncio e deu uma longa entrevista ao jornalista Dmitry Gordon, onde falou, pela primeira vez, da sua visão sobre como resolver o conflito em Donbass.

«Quais são os caminhos? Os acordos de Minsk não funcionam. Vamos para lá com guerra? Sou contra a guerra em geral, porque sou uma pessoa assim. Posso ser duro como dirigente, mas sou bastante liberal na minha maneira de pensar. Todo este tópico, todos estes pedaços de terra, é tudo sobre a vida humana. Tudo em geral. Portanto, eu tomaria a vida humana, e diria: este é o nosso objectivo, vamos salvar o povo,» disse ele. Assim, Zelensky excluiu completamente a opção de libertação militar dos territórios ocupados.

«Se tivermos de falar, bem, teremos de falar, quer queiramos, quer não, mas estou pronto a chegar a um acordo mesmo com o diabo careca, desde que ninguém morra. Penso que este é, pelo menos, o primeiro passo a dar: parar de disparar e desenvolver o nosso país,» afirmou o político.

Segundo ele, será necessária conversar directamente com os russos («porque não faz sentido conversar com os dirigentes da República Popular de Donetsk [RPD] e da República Popular de Luhansk [RPL] que são fantoches dos russos»), sentar-se à mesa de negociações, oferecer as suas opções e ouvir os adversários. Depois de compilar a lista das exigências de uns e de outros, será possível encontrar «um meio termo» que satisfaça todos, acredita Zelensky.

Segundo o artista, será então necessário divulgar o acordo à população e, em seguida, submetê-lo a um referendo ou a votação electrónica.

Quase imediatamente após a sua declaração sobre a sua intenção de se candidatar à presidência, Volodymyr Zelensky dirigiu-se aos ucranianos com um pedido para o ajudarem na elaboração de um programa eleitoral. Pediu a todos que lhe dissessem por escrito quais eram os cinco principais problemas da Ucrânia a resolver. Uma semana depois, os resultados preliminares do inquérito, com base em mais de 120 mil respostas, foram publicados no canal oficial da “equipa de Zelensky” na rede social Telegram.

A “Guerra no Leste da Ucrânia” apareceu como estando em primeiro lugar. Consequentemente, o tema da paz em Donbass pode ser uma das chaves na campanha eleitoral de Zelensky [44]. [o realce por meio de traço grosso pertence ao texto original, N.E.]

Vale a pena salientar alguns pontos nestas declarações:

― 1) A afirmação antecipada de Zelensky de que, se fôsse eleito presidente da república, não iria cumprir os Acordos de Minsk a que o Estado ucraniano se vinculou voluntariamente em 2014 e 2015, tal como o seu antecessor Poroshenko não os cumprira durante o seu mandato (razão pela qual não funcionaram);

2) A eliminação (imaginária), em clara violação dos artigos 12 e 13 dos Acordos de Minsk-2, dos representantes da RPD e da RPL signatários e formalmente designados como partes interessadas e interlocutores válidos necessários dos Acordos de Minsk 2 da mesa de hipotéticas negociações de paz a realizar durante o seu mandato;

3) A promessa de um referendo sobre os eventuais resultados de hipotéticas negociações de paz a realizar durante o seu mandato — negociações que seriam, porém (em virtude da premissa assinalada no ponto 1), realizadas fora do quadro e contra as disposições dos Acordos de Minsk.

Tudo isto se encontra misturado, na referida entrevista de Zelensky, com reiteradas profissões de fé antibelicista e de amor pela paz da sua parte. Foram, verosimilmente, estas profissões de fé na possibilidade de pôr fim à guerra em Donbass por meios diplomáticos que lhe conferiram uma aura enganadora de candidato presidencial amante da paz. “Verosimilmente” porque, como vimos, o fim da guerra e a solução pacífica do problema da população russófona e russófila de Donbass era considerada unanimemente (e muito justamente), pelos eleitores potenciais de Zelensky, como o problema mais importante que confrontava a Ucrânia.

Na verdade, as declarações de Zelensky nessa entrevista estão em perfeita consonância com o programa eleitoral com que se apresentou às eleições presidenciais de 2019 e que citei mais acima na íntegra, no que diz respeito a esta magna questão. São ambas uma mão cheia de vento.

Numa entrevista publicada três dias antes da segunda volta das eleições presidenciais (realizada em 21 de Abril de 2019), Zelensky confirmou esta avaliação [45] ao declarar que era contra a concessão de um “estatuto especial” (entenda-se: um estatuto de autonomia político-administrativa e cultural) à população russófona e russófila da região de Donbass, tal como estava previsto nos artigos 3 e 7 do Acordo de Minsk-1 e nos artigos 4, 9, 11 e 12 do Acordo de Minsk-2/resolução 2022 do Conselho de Segurança da ONU. Nessa entrevista, disse também que se fôsse eleito presidente não assinaria uma lei de amnistia para os militantes e activistas da RPD e da RPL, contrariando assim o artigo 6 do Acordo de Minsk-1 e o artigo 5 do Acordo de Minsk-2.

Com base em todos os elementos de informação disponíveis que descrevi nesta secção e nas secções anteriores incluindo, em lugar de destaque, as suas entrevistas de Dezembro de 2018 e de Abril de 2019 e o lacónico parágrafo sobre a guerra em Donbass do seu programa eleitoral podemos concluir, creio, o seguinte. Zelensky revelou, já no período que mediou entre a fundação do seu partido até à segunda volta das eleições presidenciais (18 Março de 2017-21 de Abril de 2019), uma grande capacidade de aplicar os seus inegáveis dotes de comediante e de artista de variedades ao palco mediático da política-espectáculo onde, como é bem sabido, as bravatas políticas e os truques de ilusionismo político são muito remuneradores em “likes” [👍] e votos.  

3. Zelensky entre 20 de Maio de 2019 e 24 de Fevereiro de 2022

Estas duas datas são as da tomada de posse de Zelensky como presidente da república da Ucrânia e da invasão da Ucrânia pelas tropas da Rússia, respectivamente. Não vou descrever e analisar todos os aspectos da presidência de Zelensky neste período — tarefa que exigiria, só por si, um longo artigo. Basta dizer aqui que a sua conduta decepcionou profundamente aqueles (no número dos quais não me incluo) que nele depositaram grandes expectativas, em particular em matéria de luta contra a corrupção e o nepotismo [46]. Tal como o fiz na secção 2, vou concentrar-me apenas naqueles aspectos que permitem elucidar e fundamentar a minha afirmação de que Zelensky foi escolhido como a figura internacional do ano 2022 pelas piores razões.

Antes, porém, terei de fazer um breve excurso sobre os movimentos, partidos e grupos armados paramilitares na Ucrânia. Sem essa informação, o que direi mais adiante acerca da conduta de Zelensky como presidente da república da Ucrânia não seria apreensível, presumo, pela maioria dos leitores

3.1. Stepan Bandera

Na Ucrânia pululam, desde os anos 1990, muitos movimentos, grupos e partidos ultranacionalistas de extrema-direita e de cariz fascista (justificarei mais adiante esta última caracterização), em particular na sua variante nazi — a mais histriónica, mortífera e hedionda. A sua presença e influência alargaram-se e intensificaram-se a partir de 2014, quando obtiveram uma grande vitória política ao conseguirem, juntamente com os seus aliados parlamentares e com o auxílio da embaixada dos EUA, derrubar, como já referi, o presidente livremente eleito, Viktor Yanukovych, através de um golpe de Estado sangrento (49 mortos e 157 feridos). Todos eles têm profundas raízes no passado recente da Ucrânia ocidental e do sudeste da Polónia, na região conhecida por Galícia, no período entre as duas guerras mundiais, durante a 2ª. guerra mundial e no pós-2ª. guerra mundial até 1950.  

As principais figuras tutelares e de culto desta movida ultranacionalista de extrema-direita são Stepan Bandera, Roman Shukhevytch, Iaroslav Stetsko, Dmytro Dontsov, Mykola Stsiborsky, Ievhen Onatskyi [47]. Os três primeiros são conhecidos historiograficamente como sendo os dirigentes máximos da OUN-B [a facção chefiada por Bandera (daí o B) da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (Orhanizatsiia Ukraїns’kykh Natsionalistiv), ou OUN na sigla ucraniana, sendo a OUN-M a facção chefiada por Andrii Melnyk, rival de Bandera] e do seu braço armado, o Exército Insurrecto Ucraniano (Ukraїns’ka Povstans’ka Armiia), ou UPA na sigla ucraniana. Por conseguinte, são eles também os responsáveis máximos pelos morticínios efectuados pela OUN-B e pelo UPA em Volínia, na Galícia oriental e em Lviv, durante os anos 1939-1950 — em números redondos cerca de 103 mil civis polacos, 40 mil judeus e 20 mil ucranianos (estes últimos por serem suspeitos de apoiar ou simpatizar com a União Soviética) [48].

Doravante, por comodidade de expressão, qualificarei todos esses movimentos, partidos e grupos ultranacionalistas de extrema-direita, colectivamente, de banderistas, uma vez que Stepan Bandera é a sua figura de culto dominante. E não o é apenas para os ultranacionalistas de extrema-direita.

Basta dizer que, em 22 de Janeiro de 2010, no Dia da Unidade da Ucrânia, o então presidente da república da Ucrânia, Viktor Yushchenko, atribuiu a Bandera a condecoração de Herói da Ucrânia (a título póstumo) por «defender ideias nacionais e lutar por um Estado ucraniano independente». Um neto de Bandera recebeu a condecoração das mãos de Yushchenko numa cerimónia oficial realizada na Casa da Ópera Nacional em Kiev. Já em 2007, o mesmo Yushchenko tinha atribuído a mesma condecoração de Herói da Ucrânia a Roman Shukhevytch, irmão de armas de Bandera na OUN-B e no UPA.  

Em Janeiro de 2011, o presidente da república Viktor Yanukovich revogou o decreto de atribuição da condecoração a Bandera do seu antecessor (essa era uma das três razões pela qual Yanukovytch era tão odiado pelos partidos, grupos, movimentos e personalidades que fizeram ou apoiaram o golpe de Estado que viria a derrubá-lo três anos depois), apoiando-se numa sentença de anulação desse decreto emitida pelo tribunal administrativo de Donetsk, datada de 2 de Abril de 2010 e confirmada pela instância superior desse tribunal em 23 de Junho de 2010. O ex-presidente Yushchenko qualificou essa decisão como «um grande erro».  

A sua opinião é compartilhada por uma grande parte da população da Ucrânia ocidental. A prova disso é que Stepan Bandera tem, nessa parte da Ucrânia, 43 estátuas e outros monumentos em sua honra; cinco museus que lhe são dedicados; 51 ruas, avenidas, praças e outros locais públicos com o seu nome; além de ter sido nomeado cidadão honorário de muitas cidades [49]. Todas estas homenagens a Bandera, a que acrescem um selo postal com o seu retrato e as marchas anuais em sua memória (que eram financiadas pelo Estado ucraniano até 2019), surgiram apenas nos últimos 21 anos, desde que a Ucrânia se tornou um Estado independente (1991).

 Selo postal ucraniano comemorativo do centenário do nascimento de

Stepan Bandera (2009). Autor do selo: Vasil Vasilenko

Um último exemplo do grau de penetração da ideologia do ultranacionalismo banderista na sociedade ucraniana reside na ubiquidade da sua palavra de ordem e saudação pública favorita: “Slava Ukraini!” [Glória à Ucrânia!]. Esta palavra de ordem foi originalmente cunhada pela Liga dos Fascistas Ucranianos, em 1920, que se fundiu mais tarde com a OUN. A palavra de ordem “Slava Ukraini!”, combinada com o gesto ritual de inspiração nazi/fascista de levantamento do braço e da mão direita, tornou-se uma saudação regular dos membros da OUN-B a partir dos dois julgamentos de Stepan Bandera que ocorreram em Varsóvia, de 18 de Novembro de 1935 a 13 de Janeiro de 1938. O primeiro desses julgamentos ‒ em que Bandera foi sentenciado com a pena de morte (mais tarde comutada para prisão perpétua) sob a acusação de ser o mandante do assassinato de Bronislav Pieracki, Ministro do Interior da Polónia ‒ marcou a primeira ocorrência pública da saudação nazi/fascista “Slava Ukraini!” que Bandera fez questão de usar, mais tarde acompanhada da saudação, também ela de inspiração nazi/fascista,  Heroiam slava! [Glória aos heróis !]. 

Monumento a Stepan Bandera em Lviv, fotografado em 2017. Foto de Juliette Decker.

 

1 de Janeiro de 2015. Marcha com tochas, ao estilo nazi, em honra do 106º. aniversário de Stepan Bandera. Fonte da foto: Wikipedia Commons.


1 de Janeiro de 2018. Marcha com tochas, ao estilo nazi, em honra do 109º. aniversário de Stepan Bandera. Foto: Valentyn Ogirenko. Reuters.


1 de Janeiro de 2021. Kiev. Marcha com tochas, ao estilo nazi, em memória do 112º. aniversário do nascimento de Stepan Bandera. Foto: Valentyn Ogirenko. Reuters. 


1 de Janeiro de 2022. Kiev. Marcha em memória do 113º. aniversário de Stepan Bandera. Repare-se no padre à direita da rapariga, muito plausivelmente um membro da facção da Igreja Ortodoxa Ucraniana (IOU) que declarou obediência ao regime de Zelensky. Na secção 4.3.7 deste artigo esta facção será designada pela sigla IOU-bis. Foto: Efrem Lukatsky/AP.

Hoje em dia, não são apenas os activistas do Movimento Azov e dos demais movimentos, grupos e partidos ultranacionalistas de extrema-direita que utilizam essa palavra de ordem como forma de identificação pública e reconhecimento recíproco. São também militares, agentes da polícia,  deputados e membros do governo, a começar por Zelensky. A única diferença relativamente aos tempos de Stepan Bandera é que o gesto ritual de outrora (braço direito pronado e estendido, com a mão rasa e os dedos unidos), foi agora substituído por um novo gesto ritual: braço direito pronado e flectido no cotovelo, com o punho fechado a tocar no peito na zona do coração.

Banderistas é uma qualificação válida apenas para movimentos, partidos e grupos ultranacionalistas de extrema-direita na Ucrânia. Alargando, porém, o escopo de observação, considerarei os banderistas, colectivamente, como ultranacionalistas de direita e neofascistas ou neonazis, (empregarei mais frequentemente o qualificativo “neonazi” por ser historicamente o mais adequado ao banderismo) pelas razões que expus num artigo anterior deste blogue (Assassinatos de Estado, fantasmagorias ideológicas, patranhas mediáticas e moralismo farisaicoTertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue ⟶ 5 de Dezembro de 2022), nomeadamente por satisfazerem os critérios 3, 4 e 5 da caracterização de fascismo que expus na secção 3.4. desse artigo.

Acresce ‒ e este é um ponto fundamental ‒ que a qualificação do ultranacionalismo ucraniano de extrema-direita como sendo nuclearmente neonazi não é uma mera hipótese teórica. É um facto atestado pelos estudos empíricos do melhor investigador desta problemática [50].

3.2. Movimentos, partidos e bandos armados neonazis na Ucrânia

O número, a variedade, o magistério doutrinário, a influência ideológica ‒ um exemplo dos dois últimos itens é o papel fulcral que tiveram na criação, em 2018, do Ministério dos Assuntos dos Veteranos de Guerra [da primeira guerra na Ucrânia, a guerra no Donbass contra a população russófona que se sublevou contra o golpe de Estado de Fevereiro de 2014 e contra as leis liberticidas que os golpistas decretaram de imediato] ‒ e, sobretudo, (i) o grau de actividade paramilitar ou militar, (ii) a total impunidade com que a desenvolvem e (iii) a implantação no aparelho policial e militar de Estado, destes movimentos, partidos e grupos ultranacionalistas neonazis/neofascistas, não têm paralelo nos seus congéneres em qualquer outro país europeu e na Rússia.

 Este facto causa um enorme embaraço aos defensores de Zelensky e do seu regime que se esforçam por apresentá-los como bastiões da liberdade e da democracia, assim como, mais especiosamente, aos defensores do apoio militar da OTAN, da UE e do G7 a Zelensky e ao seu regime nas guerras na Ucrânia sejam eles de “esquerda”, de “centro” ou de “direita”, e residam eles neste e no outro lado do Atlântico que o tentam minimizar e desvalorizar de todas as maneiras. 

Mas os factos são teimosos e falam por si. Quando considerados à luz dos critérios supramencionados ‒ sobretudo os critérios (i), (ii), (iii) ‒ tais movimentos, partidos e grupos têm uma importância muito superior à que lhes cabe quando considerados apenas à luz da sua expressão eleitoral.  

Eis uma lista (incompleta) dos movimentos/partidos/grupos ultranacionalistas e neonazis que operam actualmente na Ucrânia e que, todos eles, se desdobram em bandos armados paramilitares [51].

1. Assembleia Nacional Ucraniana-Auto-defesa Nacional Ucraniana (ANU-AdNU) Esta organização ultranacionalista tem a sua origem na primeira conferência das Organizações Nacionalistas Ucranianas realizada em Viena, em 1929. Ela foi o pilar da resistência antissoviética e pró-nazi durante a 2ª. guerra mundial até aos anos 1960. Depois da independência da Ucrânia, a ANU-AdNU, que renasce em 1991, constituiu-se em partido político. Em 22 de Maio de 2014 é rebaptizada Sector Direita (Ucr. Pravyi Sektor) e torna-se um novo partido. Em Abril de 2015, a ANU-AdNU decide regressar à cena política e forma um novo partido.

Emblema da ANU-AdNU. Fonte da ilustração: Wikipédia.

2. União Pan-Ucraniana Svoboda (= Liberdade). Esta organização é um partido ultranacionalista ucraniano criado em 1991 com o nome Partido Social-Nacionalista da Ucrânia (PSNU). Para além do seu nome (que evoca o “nacional-socialismo” de Hitler), o partido reivindica a herança política e doutrinária de Stepan Bandera. Durante a segunda metade dos anos 1990, o partido incorpora membros de grupúsculos de “Cabeças Rapadas” (Ingl. skinheads) e similares que contribuem ainda mais para sua reputação antissemita. Em 1993, o partido organiza os Destacamentos Nacionais de Segurança, uma organização paramilitar que faz desfiles em uniforme negro ou em camuflado. Em 1994, o PSNU concorre às eleições parlamentares regionais e obtém 10% dos votos em Lviv. Em 1998, o seu chefe, Oleh Tyhnybok é eleito deputado no parlamento ucraniano. Em 1999, o PSNU organiza uma nova componente paramilitar, o Patriota da Ucrânia. De 1991 a 2003, o emblema do PSNU é uma combinação das letras “i” e “n” do alfabeto ucraniano para formar a símbolo da “ideia de nação”.

Símbolo do PSNU


Não é por caso que este símbolo é uma variação do Wolfsangel (o gancho do lobo), a imagem invertida (em espelho) do brasão da 2ª. Divisão Panzer Waffen SS “Das Reich” da Alemanha nazi.

Brasão da 2ª. divisão Panzer Waffen SS

 

O símbolo do PSNU foi posteriormente adoptado também pela ANU-AdNU e pelo Movimento Azov (nas suas diferentes componentes). Talvez por essa razão, o Svoboda passou a usar, a partir de 2003, para se diferenciar, um outro logotipo de identificação, a mão com três dedos.

O símbolo do Svoboda é, desde 2013, é mão de três dedos salientes que simboliza o tridente. O tridente é o brasão nacional da Ucrânia. Fonte da ilustração: Wikipédia.

3. Patriota da Ucrânia (PU). Esta organização ultranacionalista foi criada em 2005 pelo PSNU e registada oficialmente em Janeiro de 2006. Era dirigida, na altura, por André Bilestsky, seu fundador. Os PU combatem pela «raça branca» e por uma «Europa branca» e «racialmente homogénea». Preconizam uma forma de Estado que apelidam de “naçãocracia” segundo os princípios doutrinários estabelecidos por Mykola Stsiborsky nos anos 1930. Em 2014, o Patriota da Ucrânia dissolveu-se oficialmente e passou a integrar o Sector Direita.

2018. Manifestação de ultranacionalistas neonazis ucranianos. Na primeira fila, ao centro, está Andriy Biletsky, fundador da ANU-AdNU, do  PU, do Movimento Azov e dirigente do partido Corpo NacionalEm 2010, Biletsky afirmou que o propósito nacional da Ucrânia era o de «conduzir as raças brancas do mundo numa cruzada final contra as raças subhumanas [Untermenschen] dirigidas pelos judeus» [52]Foto: Sergii Kharchenko, NurPhoto, Getty Images

4. Corpo Negro. Esta organização ultranacionalista paramilitar foi formada em 2014 por militantes oriundos do movimento AutoMaidan e do Patriota da Ucrânia. O Corpo Negro não parece ter-se dissolvido, mas ter-se integrado no braço armado do Movimento Azov onde dispõe de unidades de combate distintas.

5. Tridente (Trizub em ucraniano). Também chamado Organização Pan-ucraniana Tridente em nome de Stepan Bandera, este grupo foi fundado em 1993 pelo Congresso dos Nacionalistas Ucrânianos, ele próprio composto de membros da OUN-B. Os membros do Tridente estão integrados no Corpo de Voluntários Ucranianos do Sector Direita, onde constituem pequenas unidade de combate.

                                                                                

Brasão do Grupo Tridente. O tridente (desenho vermelho no interior do brasão) é também o símbolo nacional da Ucrânia. Fonte da ilustração: Wikipédia.



6. Sector Direita (Praviy Sektor, em ucraniano). Esta organização político-militar foi fundada em 2013, aquando das manifestações do Euromaidan. É uma espécie de rival do Movimento Azov, embora também se reclame ‒ tal como ele e tal como todas outras organizações ultranacionalistas de direita na Ucrânia ‒ da herança política e doutrinária de Stepan Bandera. A coluna vertebral do Sector Direita é o seu braço armado, o Corpo de Voluntários Ucranianos (DUK no acrónimo ucraniano). É composto por unidades de combate e de reserva que, antes da guerra que começou em Fevereiro de 2022, estavam repartidas pelos diferentes oblasts do território ucraniano (salvo no território controlado pelas repúblicas populares de Luhansk e Donetsk). A estrutura operacional activa do Sector Direita integra grupos armados oriundos da Svoboda, do Tridente, da ANU-AdNU, do Patriota da Ucrânia, da Assembleia Nacional-Social, do Martelo Branco e da Sich dos Cárpatos. Ao contrário do Movimento Azov, as tropas do Corpo de Voluntários Ucranianos não estão, por vontade própria,  integradas nas estruturas estatais ucranianas.

Brasão do Sector DireitaFonte da ilustração: Wikipédia.


7. Exército Voluntário Ucraniano (UDA, no acrónimo ucraniano). Esta organização paramilitar foi criada em Dezembro 2015 por Dmytro Yarosh (de quem voltaremos a falar mais tarde, na secção 3.5). Yarosh abandonou o Sector Direita para formar um novo movimento político, denominado Acção, e uma nova organização paramilitar, o dito Exército Voluntário Ucraniano, constituído com base no 5º. e 8º. batalhões e no batalhão médico do Corpo de Voluntários Ucranianos (Sector Direita). O Exército Voluntário Ucraniano tem, quando são tomados em conjunto, três traços distintivos relativamente a formações congéneres: a) é composto de voluntários ucranianos e estrangeiros; b) recusou-se (tal como o Sector Direita) a entrar nas forças armadas ucranianas (FAU), mas coordena as suas acções com o estado-maior da FAU; e c) está implantado em Kiev e na parte ocidental da Ucrânia, mas tem o seu quartel general em Dnipro, na parte russófona do país.

Brasão do Exército Voluntário Ucraniano. Repare-se que retoma todos os elementos do simbolismo do brasão do Sector Direita, mas num arranjo gráfico diferenteFonte da ilustração: Wikipédia


8. Movimento Azov. Este movimento compreende três componentes principais: A) Brigada Azov (o seu ramo armado militar); B) o Corpo Nacional (o seu ramo político); C) a Centúria (o seu ramo policial). Compreende também várias componentes periféricas, como a Irmandade dos Veteranos de Guerra (que desempenhou um papel central na criação e na orientação do Ministério dos Assuntos dos Veteranos de Guerra), o Corpo Civil (o seu ramo propagandístico, que publica livros, artigos, entrevistas e traduções de autores ultranacionalistas e de extrema-direita, velha e nova, e realiza palestras, conferências e encontros do mesmo teor), o Corpo da Juventude (que organiza acampamentos de crianças e jovens com diversas actividades, incluindo montar e desmontar armas de fogo) e o Corpo Desportivo (que organiza treino em artes marciais mistas e outras actividades desportivas para os jovens). Descreverei aqui, muito sucintamente, apenas as três componentes principais.

13 de Junho de 2021. A Brigada Azov (na altura Regimento Azov) desfila nas ruas de Mariupol. Foto de Wanderer 777.


A) Brigada Azov. O antepassado mais antigo da Brigada Azov foi o Batalhão de Voluntários Azov, fundado em 5 de Maio de 2014 por Andriy Biletsky com elementos oriundos dos grupos Patriota da Ucrânia e AutoMaidan. Foi integrado no serviço especial de patrulha da polícia do Ministério do Interior. Em 17 de Setembro de 2014, o batalhão é reorganizado e elevado ao estatuto de regimento (Regimento especial de polícia Azov) por ordem do ministro do Interior. É um regimento que atrai muitos voluntários, nacionais e estrangeiros (19 nacionalidades diferentes). Em 11 de Novembro de 2014, o regimento Azov é transferido para a Guarda Nacional, da qual passa a fazer parte com um elevado grau de autonomia. Embora os seus efectivos e o seu escalão hierárquico como regimento sejam muito superiores aos de um batalhão, o sistema mediático dominante de comunicação social do chamado “Ocidente alargado” [os países da OTAN, UE, EEE, EFTA, G7 + Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia] continua a chamá-lo batalhão. A rendição de cerca de 2.500 dos seus elementos depois da tomada da fábrica Azovstal, em Mariupol, pelas tropas russas, mostrou urbi et orbi que se tratava de uma brigada e não de um regimento, muito menos de um batalhão. O regimento Azov inclui unidades independentes, como o batalhão de reconhecimento e sabotagem Kraken, que opera no sector de Kharkov. Segundo o Washington Post (3 de Junho de 2022), só o batalhão Kraken contava cerca de 1.800 homens Em 16 de Janeiro de 2023, André Biletsky anunciou que o regimento Azov tinha sido oficialmente elevado à categoria de brigada, sendo agora a Terceira Brigada de Assalto autónoma das Forças Armadas Ucranianas. Isto parece indicar que os seus efectivos foram reconstituídos com novos recrutas ao nível que tinha antes da grande derrota que sofreu em Mariupol.

Brasão actual da Brigada Azov. No centro, as três espadas parecem evocar o tridente, símbolo nacional da Ucrânia. Fonte da ilustração: Wikipedia

B)  Corpo Nacional. O Corpo Nacional foi criado em 21 de Dezembro de 2015 por Andriy Biletsky, como ramo político do Movimento Azov, mas a sua existência só se materializou à luz do dia no seu congresso de fundação, em 14 de Outubro de 2016, pela fusão dos grupos Tschasni Spani e Patrioti Ukranii [Patriota da Ucrânia]. Odia e o mês para o congresso de fundação do Corpo Nacional foram escolhidos para coincidir com a do congresso de fundação do Exército Insurrecto Ucraniano (UPA), o braço militar de OUN-B de Stepan Bandera, em 14 de Outubro de 1941.

1 de Janeiro de 2019. Activistas do Corpo Nacional durante uma marcha de comemoração do 110º.  aniversário do nascimento de Stepan Bandera. Foto: Valentyn Ogirenko. Reuters.


O seu programa é uma mescla de naçãocracia e ultranacionalismo ucraniano com um projecto incoerente de união dos países do Mar Negro (Geórgia, Turquia, Bulgária e Roménia, mas não a Rússia) e dos países Bálticos (Estónia, Letónia, Lituânia) — dois conjuntos entre os quais não existe contiguidade geográfica. Assim, o ponto 2.3. do seu programa reza: «A Ucrânia é a base da união Báltica-Mar Negro da nova unidade europeia. Um novo vector da geopolítica ucraniana».

Países Bálticos. Autor do Mapa. Peter Fitzgerald


Países do Mar Negro (Black Sea). Fonte da ilustração: Dreamstime.
 

C) A Centúria (que se autodesignava, anteriormente, como Milícia Nacional) é o ramo policial do Movimento Azov. Antes do começo da segunda guerra na Ucrânia (em 24 de Fevereiro de 2022) a Centúria estava representada em todas as grandes cidades da Ucrânia, salvo nos oblasts de Luhansk e Donetsk. A Centúria foi criada, em 2018, para funcionar como uma força paramilitar de rua, alegada e ostensivamente para manter “a lei e a ordem” nas ruas da Ucrânia — “a lei e a ordem” ditadas e interpretadas pelo Movimento Azov, bem entendido. A Centúria bem depressa se tornou conhecida pelas suas agressões organizadas contra cidadãos que se identificam ou que são identificados com minorias étnicas ‒ como, por exemplo, os Ciganos ‒; contra os que se identificam ou são identificados com minorias sexuais, habitualmente designados sob a sigla LGBTQ+ ; contra os que pertencem a partidos de esquerda e contra os alegadamente pró-russos. Também têm participado nas chamadas “invasões” de zonas comerciais e empresas, alegadamente a pedido de patronos empresariais e políticos. Mas a sua consagração oficial e coroa de glória viria quando, em 2019, a Comissão Eleitoral Central da Ucrânia deu autorização à Centúria (que à época ainda se chamava Milícia Nacional) para supervisionar oficialmente as eleições presidenciais do país. «Se precisarmos de dar um soco na cara de alguém em nome de justiça» ‒ escreveu Ihor Mykhailenko o fundador da Centúria ‒ «fá-lo-emos sem hesitação».

Crianças num acampamento do Movimento Azov em 2015. Repare-se que tanto as crianças como os adultos fazem o gesto ritual que acompanha a exclamação “Slave Ukraini!” (Glória à Ucrânia!). Fonte da foto: The Grayzone.

9. S14. Este grupo não é específico da Ucrânia. Está presente em vários países europeus porque a componente neonazi é mais forte do que a componente ultranacionalista. O seu nome é baseado numa frase de 14 palavras: «Temos de assegurar a existência do nosso povo e um futuro para as crianças brancas». Participou nos tumultos da praça Maidan que foram a parte mais visível do golpe de Estado que derrubou o presidente Viktor Yanukovych e permanece activo na Ucrânia. Em 2018, recebia subsídios do governo ucraniano pela suas «actividades patrióticas», as quais se resumiam a atacar acampamentos de ciganos nos arrabaldes de Kiev e alugar os seus serviços para acções violentas de pirataria empresarial.

10. Outros. Há outros movimentos e grupos ultranacionalistas neonazis, tais como o Martelo Branco, o Sich dos Cárpatos, a Divisão Misantrópica, o Tradição e Ordem, o Batalhão Voluntário OUN, que, pelo seu carácter mais discreto e por falta de informação suficiente, não serão aqui descritos. Julgo que aqueles que foram descritos nas nove entradas anteriores são suficientes para se entender quão infestada está a sociedade ucraniana pelas actividades e pela ideologia deste tipo de activistas e do protagonismo que exercem com a cumplicidade activa ou sob a vista benevolente dos seus governantes eleitos. Zelensky não constitui uma excepção a esta avaliação, bem pelo contrário, como veremos com mais pormenor nas secções seguintes.

3.3. Zelensky (I): entradas de leão

Em Donbass, o SBU, as Forças Armadas Ucranianas e as forças paramilitares da movida bandeirista desenvolveram, entre 2015 e 2018, uma Operação Anti-Terrorista (ATO, no acrónimo ucraniano), montada e comandada pelo SBU. Tratou-se de uma operação dita de “segurança interna” contra as populações autonomistas russófonas que os governos ucranianos pós-golpe de Estado de Fevereiro de 2014 apelidam de “bandidos e terroristas”.

A partir do dia 30 de Abril de 2018, a operação ATO foi convertida numa operação militar especial denominada Operação das Forças Interarmas (OOS, na sigla ucraniana), colocado sob o comando da estado-maior general das Forças Armada Ucranianas. O seu objectivo é a «a libertação dos territórios temporariamente ocupados». Com a ajuda de conselheiros miliares dos países da OTAN, as forças da OOS reagruparam o conjunto das forças de segurança, militares e paramilitares sob um comando único.

Em Outubro de 2019, quando a OOS em Donbass se arrastava sem fim à vista, Zelensky viajou, com a televisão atrás, até Zolote, uma cidade de 14.000 habitantes no oblast de Luhansk, cortada ao meio pela “linha de contacto” [linha da frente para ambas as partes beligerantes] nesta região disputada pelas tropas ucranianas, de um lado, e pelas milícias de autodefesa das repúblicas populares de Luhansk e Donetsk, do outro. A alta intensidade desta guerra, silenciada pelo sistema mediático dominante de comunicação social no chamado “Ocidente alargado,” pode ser avaliada pelo número das suas vítimas mortais (civis, na sua maioria, e militares): mais de 14.000, na sua maioria (2/3) do lado russófono e pró-autonomista, desde 14 de Abril de 2014 até 31 de Dezembro 2021 — dois meses antes, portanto, da invasão das tropas russas, em 24 de Fevereiro de 2022 [53].

Em Zolote, Zelensky encontrou os veteranos endurecidos das unidades paramilitares banderistas que participavam na OOS, e que já tinham participado na ATO, contra as milícias das repúblicas autonomistas de Donbass e do sudeste da Ucrânia. Em Zolote, esses milicianos estavam situados apenas a cem metros de distância do lugar visitado por Zelensky. Ficou famoso e registado em vídeo [https://www.youtube.com/watch?v=rgkPpsyUFcMo] o confronto que Zelensky teve com esses paramilitares, a quem intimou que depusessem as armas que usavam ilegalmente e que obedecessem às ordens do presidente da república da Ucrânia, ele próprio, ali à frente deles, em carne e osso, para se chegar a um acordo mútuo com o “inimigo”.

Sobre esse acordo, Zelensky afirmou que os habitantes locais queriam alargar a “zona cinzenta” um quilómetro para cada lado da linha de contacto e que a maior distância entre os dois lados diminuiria o número de soldados que morriam todos os meses. Mas os veteranos banderistas argumentaram que esse recuo das tropas ucranianas era, efectivamente, uma capitulação e que os habitantes locais não o apoiavam.

Contudo, o maior pomo de discórdia surgiu quando alguém informou Zelensky de que os veteranos banderistas tinham armas ilegais, que, alegadamente, armazenavam debaixo das suas camas. O presidente exigiu então que retirassem essas armas de Zolote. Quando um veterano, Denys Yantar, disse que eles não tinham armas ilegais e quis discutir as suas objecções contra a iniciativa de apaziguamento da guerra de Zelensky, este ficou furioso [54]. O The Grayzone resumiu a visita de Zelensky a Zolote da seguinte maneira:

Num confronto frente a frente com militantes do Batalhão neonazi Azov, que tinham lançado uma campanha chamada “Não à Capitulação” para sabotar a iniciativa de paz, Zelensky encontrou um muro da teimosia. Com os apelos ao recuo [mútuo de ambas as partes beligerantes] da linha da frente firmemente rejeitados, Zelensky perdeu as estribeiras [melted down, no original] perante a câmara de televisão. Eu sou o presidente deste país. Tenho 41 anos de idade. Não sou um falhado. Vim ter convosco e digo-vos: ‘Removam as armas’, implorou Zelensky [em vão] aos combatentes [55].

Quando o vídeo do confronto tempestuoso de Zelensky com os banderistas de Zolote se espalhou pelas redes de comunicação social ucranianas, Zelensky tornou-se o alvo de uma campanha de intimidação não só de toda a súcia fascista, mas também da própria oposição parlamentar.

Foi assim que Andriy Biletsky, o chefe do batalhão Azov, lançou uma campanha com a palavra de ordem “Não à capitulação!” e prometeu trazer milhares de combatentes a Zolote se Zelensky continuasse a pressionar pela entrega das armas.

Do lado dos partidos de oposição parlamentar houve também reacções hostis à iniciativa do presidente. Por exemplo, Sviatoslav Vakarchuk, músico de rock e dirigente do partido Voz, que tem 20 deputados no parlamento, escreveu no Facebook que conversas desrespeitosas com veteranos [neonazis] «não trariam paz, mas sim raiva». A cantora Sofia Fedyna, deputada do partido Solidariedade Europeia do ex-presidente Petro Poroshenko, que tem 27 deputados no parlamento, foi mais longe. Não hesitou em fantasiar em público que Zelensky seria feito em fanicos por uma granada lançada por um miliciano das repúblicas populares de Donbass.

O sr. Presidente pensa que é imortal [disse ela num vídeo muito visto no Facebook]. Uma granada pode explodir ali, por acaso. E seria a coisa mais agradável possível se acontecesse durante um bombardeamento de Moscovo quando alguém chega à linha da frente vestido com uma camisa branca ou azul [56] [uma alusão ao facto de Zelensky ter, em vezes anteriores, visitado a linha da frente em trajes civis, em vez de trajes militares]

Embora Zelensky tenha conseguido um pequeno alargamento da “zona cinzenta” dos dois lados da linha de contacto em Zolote, os grupos, partidos e movimentos neonazis aumentaram o escopo e a intensidade da sua campanha Não à Capitulação!”

E em poucos meses, a luta começou de novo a aquecer em Zolote, desencadeando um novo ciclo de violações do Acordo de Minsk [entenda-se, Minsk-2, N.E.]. Nessa altura, o batalhão Azov já tinha sido formalmente incorporado no exército ucraniano e a sua ala paramilitar de rua, conhecida como o Corpo Nacional, foi destacada para todo o país sob a supervisão do Ministério da Administração Interna ucraniano, juntamente com a Polícia Nacional [57].

3.4. Zelensky (II): saídas de sendeiro

Perante a tentativa falhada de desmobilizar os paramilitares banderistas neonazis de Zolote e a campanha de intimidação de Biletsky, Zelensky decidiu chamar ao palácio presidencial todas as facções da movida banderista e celebrar com elas um acordo de não-agressão mútua. No dia seguinte, declarou aos jornalistas: «Encontrei-me ontem com veteranos. Estavam todos presentes — o Corpo NacionalAzov e todos os demais».


Outubro de 2019. Zelensky reúne, a seu pedido, com “veteranos” de todas as facções da súcia banderista neonazi, incluindo Yehven Karas, o chefe do bando paramilitar S14 (na foto, o indivíduo com um debrum branco na gola, sentado à direita, na fila em frente a Zelensky) e Dmytro Shatrovsky, comandante da Irmandade dos Veteranos de Guerra da brigada Azov (na foto, é o 3º. indivíduo a contar de Zelensky para a esquerda). Fonte da foto: The Grayzone.


Em Novembro de 2019, pouco depois do encontro de Zelensky com os chefes da movida banderista neonazi, a sua ministra dos Assuntos dos Veteranos, Oksana Koliada, e Oleksiy Honcharuk, o seu primeiro-ministro e chefe-adjunto do gabinete presidencial, participaram num concerto neonazi organizado por Andriy Medvedko, um dirigente do S14 acusado judicialmente de ser um assassino. Koliada não se limitou assistir ao concerto, mas promoveu-o. Honcharuk também não se limitou a assistir ao concerto. Foi ao palco elogiá-lo [58].

Novembro de 2019. Oleksiy Honcharuk, à época primeiro-ministro do governo de Zelensky, discursa no palco do concerto neonazi Veteranos Fortes, animado pela banda musical neonaziSokyra Peruna, cujo reportório inclui canções de negação do Holocausto, tais como “Seis milhões de palavras mentirosas” [Six Million Words of Lies]. Fonte da foto: The Grayzone.

Os meses de Outubro e Novembro de 2019 marcam, portanto, uma viragem na conduta de Zelensky, já que assinalam o início da sua capitulação perante a movida banderista neonazi — uma capitulação que se tornará cada vez mais acentuada com o correr do tempo e que se cristalizará, de uma maneira completamente explícita, em 2020 e 2021, como veremos mais adiante.

As ilusões políticas têm, porém, um prazo de validade muito superior a qualquer outro construto perecível. Em Novembro de 2019, a esperança que Zelensky cumprisse o seu programa de pacificação ainda estava bem vivaz em muitos dos seus apoiantes, como se verifica, por exemplo, por este relato de um centro especializado na análise da extrema-direita, que nunca escondeu as suas simpatias por Zelensky:

A assinatura dos Acordos de Minsk por P. Poroshenko em 2015, é considerada pelos nacionalistas como uma “manobra táctica” bem-sucedida e nada mais. O famoso oligarca ucraniano e antigo parceiro de negócios de Zelensky, I. Kolomoysky disse: «A assinatura destes acordos foi um truque táctico — o exército ucraniano sofreu severas derrotas perante as milícias [de Lugansk e Donetsk], e Poroshenko teve de evitar uma derrota final». Por outro lado, a conciliação com a extrema-direita também não é admissível para V. Zelensky. Isso prejudicará a sua credibilidade como dirigente capaz de influenciar a situação política no país e de ter pleno controlo sobre o parlamento. A reputação de “político fraco” poderia arruinar este artista do entretenimento da era pós-soviética, que ascendeu a um Olimpo político, tendo hoje uma taxa de aprovação de 71% [59].

3.5. Zelensky alia-se aos banderistas neonazis e adopta a sua ideologia belicista  

Os sectores mais intransigentes da súcia banderista foram os primeiros a compreender o pleno significado da sua reunião com Zelensky em Outubro de 2019. Ao convocar essa reunião, Zelensky mostrou-lhes ser um “político fraco”, disposto a vergar-se perante as suas exigências, e eles concluíram logicamente que quanto mais o pressionassem mais depressa ele se transformaria numa ferramenta útil nas suas mãos.

Foi assim que, por exemplo, Andriy Biletsky, o primeiro comandante do regimento Azov, continuou a sua campanha contra qualquer veleidade de Zelensky chegar a um entendimento com as repúblicas populares de Luhansk e Donetsk.


14 de Fevereiro de 2020. Andriy Biletsky e militantes do seu partido Corpo Nacional manifestam-se diante da residência oficial do presidente Zelensky para denunciar a atitude (capitulacionista, a seu ver) de Zelensky em relação à questão de Donbass e sudeste ucranianoNos cartazes Zelensky é caricaturado como sendo um amiguinho de Putin. Foto: Sergei Supinsky.

2020-2021 foram os anos em que Zelensky abandonou definitivamente as suas veleidades de pacificador do conflito armado em Donbass e se reposicionou como belicista-mor, alinhando-se com a constelação do ultranacionalismo banderista de inspiração nazi.

Assim, em Setembro de 2020, Volodymyr Zelensky promulgou a Estratégia Nacional de Segurança da Ucrânia e, seis meses depois, em Março de 2021, promulgou a nova Estratégia Militar da Ucrânia — documentos que, tudo indica, terão sido redigidos por especialistas da OTAN e por elementos do comando das Forças Armadas da Ucrânia. A aprovação destes documentos representou, na prática, a renúncia definitiva de Zelensky não só ao cumprimento dos acordos de Minsk (que, de resto, nunca teve intenção de cumprir), mas também aos desígnios diplomáticos que tinha manifestado durante a sua entrevista de Dezembro de 2018 — uma viragem que os seus críticos “moderados” da véspera se apressarem a aplaudir calorosamente [60].

Mas, mais importante do que isso, esses documentos consagraram, sem papas na língua, a tese de que o inimigo principal da Ucrânia era a Rússia (designada como tal, nesses documentos) e que a tarefa principal da Ucrânia era preparar-se, nos prazos mais breves possíveis e com a ajuda da OTAN, para uma guerra generalizada com a Rússia, tal como tinha sido sugerido e anunciado por Oleksiy Arestovych na sua entrevista de 18 de Março de 2019 [61].

Em 24 de Março de 2021, Zelensky promulgou o decreto nº. 117/21 que visa reanexar a Crimeia (incluindo a cidade Sebastopol), uma república autónoma da Federação Russa e um território russo há mais de dois séculos [62]. Ora, um tal desiderato implica (i) destruir previamente, pela força das armas, as repúblicas populares de Donetsk e Luhansk (que se interpõem territorialmente entre a Ucrânia e a Crimeia), espezinhando assim os Acordos de Minsk, para, em seguida, (ii) invadir e ocupar a Crimeia e, por conseguinte, a Rússia, iniciando uma guerra com esse país.   

Em 2 de Novembro de 2021, Zelensky nomeou Dmitry Yarosh para o posto de Conselheiro do Comandante-em-Chefe das Forças Armadas ucranianas, o General Valerii Zaluzhnyi. Yarosh é o fundador e dirigente do Exército Voluntário Ucraniano, o braço armado do Sector Direita, uma organização neonazi já mencionada na secção 3.2.

O general Valerii Zaluzhnyi (à esquerda), Comandante-em-Chefe das Forças Armadas ucranianas, abraça Dmitry Yarosh (à direita), fundador e dirigente do Exército Voluntário Ucraniano e nomeado seu conselheiro em Novembro de 2021Demitir-se-ia desse cargo um mês depois, sem dar explicações para o facto. Fonte da foto: FaceBook de Yarosh.

Convém conhecer as outras competências que levaram Zelensky a nomeá-lo para esse importantíssimo e misterioso posto.

Yarosh é membro, desde há longa data, das redes stay-behind [= que ficam clandestinamente na retaguarda do inimigo, N.E.] da Aliança Atlântica [= OTAN/NATO]. Ele já fora incumbido pela CIA de coordenar os grupúsculos nazis e islamistas contra a Rússia, em 2007, durante a segunda guerra na Tchechénia, quando os reuniu em Ternopol (oeste da Ucrânia). Ele desempenhou um papel central nos eventos do EuroMaidan, em 2014, à frente do Pravyy Sektor («Sector Direita»). Yarosh foi deputado [de 2014 a 2019] e candidato à eleição presidencial [de 2014]. Gravemente ferido em 2015 [na guerra em Donbass, onde combatia nas fileiras do Exército Voluntário Ucraniano, N.E.], foi forçado a retirar-se durante vários anos [das actividades militares][63].

Acresce a isto dois pormenores deveras elucidativos sobre a natureza do regime político vigente na Ucrânia e da presidência de Zelensky. O primeiro diz respeito à nuvem de opacidade que rodeia a nomeação de Yarosh. Ninguém sabe ‒ para além, naturalmente, de Zelensky, Zaluzhni e do próprio Yarosh ‒ o que Yarosh tem, concretamente, por missão fazer. É segredo de Estado [64], tal como a alegada retirada da nacionalidade ucraniana a Kolomoysky (ver nota [16]).

O segundo pormenor é inteiramente ao estilo da Cosa Nostra. Dmytro Yarosh foi entrevistado pelo órgão noticioso ucraniano Obozrevatel, em 27 de Maio de 2019, uma semana depois da tomada de posse de Volodymyr Zelensky como presidente da república. Nessa entrevista, Yarosh ameaçou assassinar Zelensky, afirmando que ele seria enforcado em Khreshchatyk, a avenida principal de Kiev, se cumprisse qualquer parte dos Acordos de Minsk. Vale a pena reproduzir aqui excertos dos trechos mais importantes dessa entrevista, sobre a qual o sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado” manteve um rigoroso silêncio.

Yarosh:  O formato Minsk ‒ e estou sempre a falar disto ‒ é uma oportunidade para ganhar tempo, armar as Forças Armadas, mudar para os melhores padrões mundiais no sistema de segurança e defesa nacional. Esta é uma oportunidade para manobrar. Mas não mais do que isso. O cumprimento dos Acordos de Minsk é a morte do nosso Estado. Eles não valem uma gota de sangue dos rapazes e raparigas, dos homens e mulheres que morreram nesta guerra [em Donbass]. Nem uma gota. /.../

Entrevistadora: À espera do que o recém-eleito Presidente vai dizer?

Yarosh: Não só. Vamos lutar e preparar-nos. Estamos à espera do que ele vai dizer e, mais importante, de como ele irá agir. “Pelos seus frutos os conhecereis”, diz a Escritura [Mateus, 7:6, N.E.] Os frutos” iremos vê-los, em algum momento, lá para o Outono /…/

A dado passo, a entrevistadora pergunta a Yarosh qual é a sua relação com Kolomoysky, que tinha chamado ao conflito em Donbass uma “guerra civil”. Yarosh responde que tem uma boa opinião de Kolomoysky, que mantém as melhores relações com ele, com quem colaborou frutuosamente em 2014, quando ele era governador de Dnepropetrovsk, mas rejeita a alegação de “guerra civil” para qualificar o conflito armado em Donbass.

Yarosh: Ele sabe perfeitamente bem que não há aí nenhum conflito civil. O que há é a ocupação do nosso território pelas tropas e mercenários russos que estão ao serviço da Rússia. Isso é evidente. Talvez algo o esteja a pressionar a fazer tais afirmações. Aparentemente, algum tipo de interesse comercial. Este é o principal perigo da oligarquia, tal como a vejo. Eles, os oligarcas, são pessoas talentosas, porque sem talento é impossível construir tais negócios e ganhar milhares de milhões. Mas o perigo dos oligarcas é que eles são compradores. Eles estão-se nas tintas para a Mãe Pátria. Eles precisam de dinheiro. O lucro faz vista grossa sobre tudo. E depois podem negociar com a Rússia em quaisquer condições. E é por isso que Zelensky é muito perigoso para nós, ucranianos. Eu sinto-o.

Entrevistadora: Qual é o perigo?

Yarosh: As suas declarações sobre a paz a qualquer preço são perigosas para nós. Volodymyr simplesmente não sabe o preço deste mundo. Ele pode ter estado em concertos perto da frente de batalha. Mas quando os meus rapazes [entenda-se, os jovens soldados do Exército de Voluntários Ucranianos, N.E.]  foram feitos em fanicos por granadas russas e depois esses fanicos tiveram de ser recolhidos e enviados para as suas mães, o preço parece ser de alguma forma completamente diferente...

Entrevistadora: Está a tentar encontrar-se com ele agora?

Yarosh: Sim. Já lhe enviei um par de mensagens, mas ele continua em silêncio. Talvez não lhe tenham chegado. Ele é um homem ocupado..., Mas mesmo que esse encontro não tenha lugar, está tudo bem. Ele só precisa de compreender uma verdade: os ucranianos não podem ser humilhados. Os ucranianos, após 700 anos de escravidão colonial, podem ainda não ter aprendido plenamente como construir um Estado. Mas aprendemos muito bem a fazer uma sublevação e a matar todas aquelas “águias” que estão a tentar parasitar o suor e sangue dos ucranianos. Zelensky disse no seu discurso de tomada de posse que estava pronto a perder taxas de aprovação, popularidade, posição...Não, o que ele perderá é a vida. Ele será enforcado numa árvore qualquer em Khreshchatyk — se trair a Ucrânia e as pessoas que morreram na Revolução [entenda-se: no golpe de Estado de Fevereiro de 2014 que derrubou o presidente livremente eleito Viktor Yanukovych, N.E.] e na Guerra [travada em Donbass contra as milícias de autodefesa das repúblicas populares Luhansk e Donetsk, N.E.] [realce, por meio de traço grosso, acrescentado ao original] [65]

Perante estas declarações, podemos perguntarmo-nos se Zelensky não terá nomeado Yarosh conselheiro do Comandante-em-Chefe das Forças Armadas ucranianas para neutralizar a ameaça de morte que Yarosh lhe fez, conquistando as suas boas graças. Julgo que esta é uma interpretação muito plausível, tanto mais que o próprio Yarosh, num gesto calculado, abriu a porta a essa possibilidade. De facto, num outro passo da mesma entrevista, Yarosh afirmou cinicamente:

E é muito importante que ele [Zelensky] compreenda isto [que pode ser enforcado pelos banderistas neonazis se se atrever a cumprir os Acordos de Minsk. N.E.]. E se assim fizer [isto é, se abdicar desses acordos, mais do que não seja para não incorrer na ira de Yarosh e da demais súcia banderista e para poder, assim, salvar a pele, N.E.] Zelensky tem todas as possibilidades de se tornar um bom presidente e um supremo Comandante-em-chefe combatente. Pode dar um incentivo para acelerar a reforma das Forças Armadas da Ucrânia e de outras estruturas de poder estatal, de acordo com os melhores padrões mundiais. E não só os da NATO ... Pode unir os ucranianos do mundo inteiro, o que aumentará cem vezes o potencial do Estado e a capacidade de repelir a agressão russa.  Pode até tornar-se um nacionalista ucraniano maior do que Yarosh, porque, neste momento, tem muito mais margem de manobra sobre o desenvolvimento da nação ucraniana.

Manifestamente, estas palavras não caíram em saco rôto. Como vimos, desde a insólita reunião de Outubro de 2021 com os representantes de toda a súcia banderista, a conduta de Zelensky passou a estar alinhada com os votos que Yarosh tinha formulado, mais de um ano antes, sobre a conduta que Zelensky teria de adoptar para «se tornar um bom presidente». Acrescento mais dois exemplos dessa conduta, colhidos na imprensa ucraniana e na imprensa americana dominante.

1.º exemplo. Em 31 de Novembro de 2021, Zelensky nomeou uma das figuras mais sinistras dos serviços secretos da Ucrânia, Oleksander Poklad, para chefiar o departamento de contra-espionagem do SBU.

Antes de ingressar no SBU, onde foi subindo até alcançar o lugar de chefe da 5ª. directoria do departamento de contra-espionagem (de que agora é o chefe máximo), Poklad ganhou fama como advogado trapaceiro. Em 1996 foi condenado a 6 anos de prisão por extorsão. Foi libertado ao fim de dois anos e meio graças a um a amnistia. Em seguida, fez parte, durante 8 anos, de um bando de criminosos que, entre outras actividades criminosas (roubos, assaltos à mão armada, extorsão, anulação de dívidas, tráfico de drogas, assassinatos por encomenda), controlava os mercados e os depósitos de petróleo em Kremenchug. Mas a sua participação nesse bando nunca lhe trouxe dissabores com a polícia [66]. E foi já com estes antecedentes criminais que ingressou no SBU.

No SBU, Poklad recebeu a alcunha de “Estrangulador” devido à sua forma favorita de torturar prisioneiros. Ficou conhecido como especialista em fabricar falsas acusações de alta traição e golpe de Estado feitas a pedido da mais altas instâncias do oligarquia política e da oligarquia financeira e sobre ele pesam suspeições de estar envolvido em mais do que um assassinato de Estado. A república popular de Donetsk, por exemplo, acusou-o de ser responsável pelo assassinato do seu presidente, Alexander Zakharchenko [67].

2.º exemplo. Em 18 de Abril de 2019, no período entre as duas voltas das eleições para a presidência da república da Ucrânia, o então candidato Volodymyr Zelensky exprimiu-se assim sobre Stepan Bandera:

Há heróis inegáveis. Stepan Bandera é um herói para uma certa percentagem de ucranianos, e isso é normal e fixe. Ele é uma daquelas pessoas que defenderam a liberdade da Ucrânia.

[Podemos vê-lo, aqui, https://www.youtube.com/watch?v=3cKddCGzmdc a exprimir de viva-voz esta opinião sobre a “inegável heroicidade” de Bandera — um ultranacionalista ucraniano filonazi, detentor de um cadastro gigantesco de inegáveis crimes genocidários (cf. secção 3.1)].

Mas penso que quando baptizamos tantas ruas e pontes com o mesmo nome, isso não é inteiramente correcto. A propósito, não se trata [apenas] de Stepan Bandera. Posso dizer o mesmo acerca de Taras Grigoryevich Shevchenko [poeta, prosador, pintor, desenhador e nacionalista ucraniano do século XIX, considerado como a maior figura artística da Ucrânia, N.E.]. Tenho muito respeito pelo seu espantoso trabalho. Mas temos de recordar os heróis de hoje, os heróis da arte, os heróis da literatura, simples heróis da Ucrânia. Por que é que não damos os seus nomes [às ruas, pontes, etc.] — os nomes dos heróis que unem hoje a Ucrânia? Há tanta tensão na Ucrânia que deveria ser feito tudo o que é possível para unir a Ucrânia [68].

Em 20 de Abril de 2021, um repórter do New York Times, em visita à Ucrânia, relatou:

Em Avdiivka, uma unidade voluntária do [partido] ultranacionalista Sector Direita da Ucrânia mantém um lobo de estimação numa jaula fora do gabinete do comandante. O comandante, Dmytro Kotsyubaylo ‒ cujo nome de guerra é Da Vinci ‒ graceja que os combatentes alimentam o lobo com os ossos das crianças de língua russa, uma referência aos tropos dos órgãos mediáticos de comunicação social do Estado russo sobre as maldades dos ucranianos nacionalistas [69].

Em 1 de Dezembro de 2021 ‒ já completamente esquecido das suas declarações de Abril de 2019 sobre os simples heróis da Ucrânia, os heróis pacíficos da arte e da literatura que unem em vez de dividirem ‒ Zelensky atribuiu ao autor do gracejo sobre as crianças de língua russa o título de Herói da Ucrânia, a mais alta condecoração que pode ser concedida a um cidadão individual pelo governo da Ucrânia. Para ele, isso, nessa altura, já se tinha tornado tão «normal e fixe» como para Dmytro Yarosh, Oleksander Poklad, Andriy Biletsky, Yehven Karas, Yuri Bereza, Dmytro Shatrovsky, Dmytro Kotsyubaylo e outros que tais.

1 de Dezembro de 2021. Numa cerimónia no parlamento ucraniano com muita pompa e circunstância, Zelensky galardoa Dmytro Kotsyubaylo, com a condecoração de Herói da Ucrânia, a mais alta condecoração da Ucrânia. Kotsyubaylo é o comandante da 1.ª secção de assalto do Sector Direita («Praviy Sektor»), uma organização paramilitar neonazi que se reclama da herança política de Stepan Bandera. Foto: Focus.ua

4. Zelensky de 24 de Fevereiro de 2022 até hoje

Recordemos alguns factos recentes, mas que ‒ com o troar contínuo dos canhões e a avalancha de notícias e pseudonotícias sobre as guerras na Ucrânia, as sanções económicas contra Rússia, os efeitos devastadores de ambas e os efeitos tantas vezes boomerang das sanções ‒ parecem, agora, ser apenas fiapos de um sonho prazenteiro salvo das brumas da memória.

4.1. Zelensky estende o ramo de oliveira duas vezes

Quando a guerra eclodiu com a Rússia, em 24 Fevereiro de 2022, Zelensky pareceu ter mudado instantaneamente de ideias e abandonado, pelo menos durante algum tempo, os seus planos belicistas de anexação da Crimeia, destruição das repúblicas populares de Donetsk e Luhansk e adesão à OTAN.

No dia 25 de Fevereiro de 2022, apenas algumas horas depois da invasão da Ucrânia pelas tropas da Rússia, Zelensky declarou-se pronto a negociar com Putin todas as suas exigências, incluindo a neutralidade militar [70]. E foi ouvido pelo outro lado. A primeira reunião de negociações teve lugar quatro dias após o início da invasão, em 28 de Fevereiro, na Bielorrússia. Concluiu sem resultados, com as delegações de ambos os lados a regressarem às suas capitais para consultas. Uma segunda e terceira rondas de conversações tiveram lugar em 3 e 7 de Março de 2022, na fronteira Bielorrússia-Ucrânia, num local não revelado na região de Gomel, na Bielorrússia. Mas também não conduziram a resultados palpáveis.

Não sabemos ‒ pelo menos por enquanto ‒ quais foram as causas deste malogro. Mas uma delas poderá ter sido a surpreendente declaração que a União Europeia (UE) fez no dia 27 de Fevereiro de 2022, na véspera da primeira reunião de negociações entre a Ucrânia e a Rússia, anunciando a oferta de um pacote de 500 milhões de euros em ajuda militar (armas e munições) à Ucrânia.


 27 de Fevereiro de 2022. Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, e Josep Borrell, alto representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, anunciam 500 milhões de euros de ajuda militar (armas e munições) à Ucrânia. Foto: Stephanie Lecocq, AFP via Getty Images.

Lembram-se dos lemas do “Partido” governante de “Oceania” (no romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell)? Um deles era Guerra é Paz. Foi o lema que a UE adoptou no fim de Fevereiro de 2022.

Convém saber que os tratados da UE impedem a UE de utilizar o seu orçamento normal para financiar operações com implicações militares ou de defesa. Contudo, a UE não hesitou em passar por cima dessas baias e criar um instrumento especial de financiamento fora do orçamento, denominado “Mecanismo de Paz Europeu”, com um limite máximo de 5 mil milhões de euros que pode ser utilizado para fornecer ajuda militar.

«Pela primeira vez, a UE financiará a compra e entrega de armas e outro equipamento a um país que esteja a ser atacado», disse a Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, numa aparição nos meios de comunicação social ao lado do chefe da política externa da UE, Josep Borrell. «Este é um momento de viragem», acrescentou ela [71].

Em 29 de Março, mais de um mês depois, Zelensky reiterou com muita veemência a sua disponibilidade para negociar com a Rússia. Fê-lo numa entrevista que deu em russo a jornalistas russos independentes, na mesma semana em que as negociações entre os dois países iriam recomeçar na Turquia, e que a BBC noticiou assim:

O Presidente ucraniano anuncia a disponibilidade do seu governo para discutir a adopção de um estatuto neutral como parte de um acordo de paz com a Rússia. /…/ Garantias de segurança e neutralidade, estatuto não-nuclear do nosso Estado. Estamos prontos para avançar nesta direcção. Este é o ponto mais importante”, disse Zelensky na entrevista videofilmada de 90 minutos. Mais tarde, num vídeo dirigido à sua nação naquela noite, Zelensky disse que a Ucrânia estava à procura da paz “sem demoras” [72].

Estas declarações auspiciosas vieram na sequência de uma quarta e quinta rondas de conversações entre a Ucrânia e a Rússia que tiveram lugar, respectivamente, em 10 e 14 de Março em Istambul, na Turquia, e que são, portanto, indicativas de que essas conversações correram bem. Tudo, pois, parecia encaminhado para se chegar, desta vez, a resultados satisfatórios para ambas as partes beligerantes.

4.2. Boris Johnson entra em cena e o ramo de oliveira desaparece de vez, como que por encanto

Porém, em meados de Abril, tudo muda de figura. A partir desta data, Zelensky parece ter-se convencido (ou ter sido convencido) de que a Ucrânia pode derrotar militarmente a Rússia e que, por conseguinte, não precisa de negociar com ela seja o que for, a não ser, talvez, corredores humanitários e trocas de prisioneiros.

Em 18 de Abril, numa entrevista à CNN, perguntado se achava que a Ucrânia poderia ser vitoriosa contra a Rússia respondeu: «sim, evidentemente, e será vitoriosa». É também a partir desta data que Zelensky começa a afirmar que a Ucrânia não abdicará de qualquer parcela do seu território, o que parece indicar que nunca reconhecerá a autonomia e muito menos a secessão das repúblicas de Lugansk e Donetsk, nem o resultado da luta da Crimeia para reafirmar a sua independência em relação à Ucrânia, apesar da população destes territórios ter decidido, por via de referendo, integrar-se na Federação Russa, e mesmo que ela venha a reiterar essa decisão, pela mesma via, vezes sem conta.

É também a partir desta data que Zelensky inicia uma campanha sistemática sob a palavra de ordem: “dêem-nos armas, mais armas e armas melhores”. Esse passou a ser o seu mantra em todas as suas intervenções públicas e, em particular, em todos os discursos que foi convidado a fazer nos parlamentos de muitos países. A razão de ser desta novel convicção bélica de Zelensky relativamente à Rússia parece ser esta afirmação de Lloyd Austin, o chefe do Pentágono estadunidense, em 25 de Abril de 2022:

[A] Acreditamos que podemos vencer, que eles podem vencer se tiverem o equipamento certo, o apoio certo. [B] Vamos continuar a fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para garantir que eles recebem o equipamento de que necessitam o mais rapidamente possível. [C] Queremos ver a Rússia enfraquecida ao ponto de não poder fazer o tipo de coisas que fez na invasão da Ucrânia [73].

«Nós» refere-se às Forças Armadas dos EUA e da OTAN, «eles» refere-se às Forças Armadas da Ucrânia. O apoio dos EUA, da OTAN, da UE e do Reino Unido a Zelensky em armas, munições, equipamento, treino, apoio logístico, informações militares e dinheiro não tem faltado e atingiu mesmo dimensões grandiosas. Antes da guerra, por exemplo, os EUA doavam à Ucrânia 300 milhões de euros por ano; depois do começo da guerra passaram a doar 48 mil milhões por ano (ou 68 mil milhões, segundo outras fontes) e estão mais 37,5 mil milhões na calha [74]. A União Europeia e os seus países membros, pela voz de Joseph Borrell, gabam-se de ser o primeiro doador da Ucrânia, com 50 mil milhões de euros [75].

Destarte, os EUA, a OTAN, a UE e o Reino Unido (outro grande doador) parecem decididos a combater a Rússia por intermédio da Ucrânia e até ao último soldado ucraniano, com o objectivo de enfraquecer a Rússia, mesmo que isso acarrete a destruição da infraestrutura e da economia da Ucrânia e o êxodo e empobrecimento da maioria da sua população. Não estão minimamente interessados em pôr um termo imediato à guerra, que poupe centenas de milhares de vidas e evite mais destruições maciças de bens (móveis e imóveis), e numa solução negociada que acomode os interesses das três partes beligerantes: Ucrânia, população russófona do Donbass e sudeste da Ucrânia, Rússia.

A metamorfose mais recente de Zelensky ‒ ou, se se preferir, o papel mais recente que tem vindo a desempenhar ‒ começou, portanto, na segunda quinzena de Abril de 2022, cerca de um mês e meio depois da invasão das tropas russas (24 de Fevereiro de 2022).

Para fixar as ideias, podemos associá-la à visita-surpresa (i.e., não anunciada aos órgãos mediáticos de comunicação social) que Boris Johnson, então primeiro-ministro do Reino Unido, fez a Zelensky em 9 de Abril de 2022. A relação entre a visita de Boris Johnson e a viragem de 180º de Zelensky relativamente ao modo de pôr um termo às guerras na Ucrânia pode ser (e foi de facto) interpretada não como uma mera sequência temporal de factos díspares, mas como uma relação de causa-efeito. Por exemplo, nesta análise de um comentador muito arguto e qualificado:

De facto, a Rússia e a Ucrânia estavam à beira de formalizar um acordo nesse sentido nas negociações previstas para o início de Abril de 2022 em Istambul. Esta negociação, no entanto, foi interrompida na sequência da intervenção do então primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que vinculou a continuação da prestação de assistência militar à Ucrânia à vontade da Ucrânia de forçar a conclusão do conflito no campo de batalha, em oposição às negociações. A intervenção de Johnson foi motivada por uma avaliação por parte da OTAN de que os fracassos militares russos iniciais eram indicativos da fraqueza russa. O estado de espírito na OTAN, reflectido nas declarações públicas do Secretário-Geral da OTAN Jens Stoltenberg («Se Putin vencer, não será apenas uma grande derrota para os ucranianos, mas será uma derrota, e perigosa, para todos nós») e do Secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin («Queremos ver a Rússia enfraquecida ao ponto de não poder fazer o tipo de coisas que fez ao invadir a Ucrânia») foi usar o conflito russo-ucraniano como uma guerra por procuração destinada a enfraquecer a Rússia ao ponto de nunca mais procurar empreender uma aventura militar como a Ucrânia. A par de uma malfadada guerra económica, a intervenção [do Reino Unido (Johnson), da OTAN (Stoltenberg), e dos EUA (Austin), N.E.] foi também concebida para derrubar o governo russo, como o Presidente Joe Biden admitiu na Primavera passada. [76]

Um dia saberemos qual foi a intervenção de Johnson junto de Zelensky em 9 de Abril de 2022 e se produziu o efeito descrito nesta análise. Como Johnson assinou recentemente um contrato para escrever as suas memórias do período em que foi primeiro-ministro do RU e como é um fanfarão inveterado, talvez esse dia esteja mais próximo do que se poderia imaginar sem essa circunstância.  

O que é certo é que foi a seguir à sua visita a Kiev, que o ramo de oliveira que Zelensky tinha estendido à Rússia desapareceu definitivamente e como que por encanto, substituído pelo dedo médio espetado. Para isso, terão contribuído, também, poderosamente, as ajudas que a Comissão Europeia foi dando ao esforço militar da Ucrânia. Em 23 Março e em 13 de Abril de 2021, a Comissão Europeia doou mais 1000 milhões de euros (500 + 500, respectivamente) à Ucrânia, seguidos de mais 1000 milhões de euros em 23 Maio e em 22 de Julho (500 + 500, respectivamente).

Definitivamente embriagado com a ilusão tóxica de conseguir obter uma vitória militar da Ucrânia contra a Rússia ‒ e não uma vitória qualquer, mas uma vitória capaz de lhe assegurar a conquista de um território que nunca foi ucraniano (a Crimeia) e a recuperação de oblasts (Luhansk, Donetsk, Zaporíjia, Kerson) cuja população, maioritariamente russófona e russófila, o governo do seu antecessor Poroshenko  e o seu próprio governo  tudo fizeram para inimizar durante 8 anos ‒ Zelensky foi até ao ponto extremo de promulgar, em 4 de Outubro de 2022, um decreto da sua autoria em que proíbe a si mesmo qualquer negociação com Putin !

4.3. Zelensky ataca em todas as direcções

Antes mesmo de estar possuído pelo seu actual frenesim guerreiro, Volodymyr Zelensky deixou cair completamente a máscara benevolente de humilde servente do povo, para encarnar o seu novo papel político: o de tirano eleito, autor de uma série de decretos com os quais deu início a uma campanha presidencial contra o “inimigo interno” — a oposição política, a auto-organização dos trabalhadores, o discurso dissidente, a liberdade de religião e, fundamentalmente, a liberdade de expressão, sem qual o debate, a oposição e a dissidência no plano das ideias, do discurso e da auto-organização não podem existir em nenhum domínio de actividade e criatividade humanas.

A salva inaugural destes ataques contra o “inimigo interno” foi, paradoxalmente, um ataque em regra ao Direito Internacional Humanitário.

4.3.1. Abolir a distinção entre civil e combatente e fazer dos civis escudos humanos

O emprego de escudos humanos é um crime de guerra, expressamente proibido pelo Direito Internacional Humanitário, também conhecido como Direito Internacional dos Conflitos Armados (vulgo, “as leis da guerra”) — nomeadamente pela Terceira Convenção de Genebra (relativa aos prisioneiros de guerra), pela Quarta Convenção de Genebra (relativa aos civis protegidos), pelo Protocolo Adicional I (relativa aos civis em geral), assim como pelo estatuto do Tribunal Penal Internacional. Tanto a Ucrânia como a Rússia subscreveram estas convenções e os seus protocolos adicionais.

Por “emprego de escudos humanos” entende-se, especificamente,

o emprego da presença (ou do movimento) de civis ou outras pessoas protegidas para tornar certos pontos ou áreas (ou forças militares) imunes às operações militares

ou ainda,

uma colocação intencional de civis ou pessoas fora de combate [tais como pessoal médico e paramédico, bombeiros, prisoneiros de guerra, N.E.] junto a objectivos militares [tais como forças militares, obuses, tanques de guerra, depósitos de munições, centros de radares e de comunicação, centrais eléctricas, N.E.]  com a finalidade específica de tentar evitar os ataques a esses objetivos [77].

O emprego, numa guerra, de civis como escudos humanos é uma das violações mais cínicas da abolição da distinção entre combatente e civil ou pessoa fora de combate, a qual constitui a base sustentação de todo o moderno edifício do direito internacional humanitária — a sua Norma nº.1.

Norma 1. As partes em conflito devem distinguir entre civis e combatentes em todas as circunstâncias. Os ataques só podem ser dirigidos contra os combatentes. Os ataques não podem ser dirigidos contra os civis [78].

Sem a Norma nº. 1, a sua base de sustentação, todo o edifício do Direito Humanitário Internacional se desmorona fragorosamente.

Ora, logo no mês de Março de 2022, três semanas depois da invasão da Ucrânia pelas tropas russas, uma repórter do Washington Post tinha observado em Kiev numerosas situações que apontavam para o emprego generalizado de civis ucranianos como escudos humanos. Reproduzi o essencial das suas observações num artigo anterior desta série (Assassinatos de Estado,  fantasmagorias ideológicas, patranhas mediáticas  e moralismo farisaico. Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue 5 de Dezembro de 2022), pelo que é desnecessário repeti-las aqui.  

O que é importante relembrar aqui é a resposta por escrito que o governo de Zelensky deu às perguntas que a repórter do Washington Post lhe fez, também por escrito,  a respeito das suas observações e de observações semelhantes de um observador da Human Rights Watch, igualmente presente em Kiev nessa altura. As respostas do governo de Zelensly foram dadas por Oleksiy Arestovych ‒ um velho conhecido dos leitores deste blogue ‒ apresentado pelo Washington Post como sendo conselheiro do chefe de gabinete do Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky”.


    Oleksiy Arestovych. Conselheiro da presidência da república ucraniana. Foto: Anadolu Agency via Getty Images

Em resposta às perguntas escritas do Washington Post, Oleksiy Arestovych, disse que a doutrina militar do país, aprovada pelo parlamento, prevê o princípio da “defesa total.” Isto significa que os voluntários nas Forças de Defesa Territorial ou noutras unidades de autodefesa têm a autoridade legal para protegerem as suas casas, que se encontram na sua maioria em áreas urbanas. Além disso, argumentou que o direito internacional humanitário ou as leis da guerra não se aplicam a este conflito porque «a principal tarefa da campanha militar de Putin é a destruição da nação ucraniana». Arestovych disse que o Presidente russo Vladimir Putin tem negado, repetidamente, a existência da Ucrânia como uma nação independente. «Por conseguinte, o que está a acontecer aqui não é uma competição entre exércitos europeus de acordo com as regras estabelecidas, mas uma luta do povo pela sobrevivência, perante a uma ameaça existencial», disse Arestovych [79]. [realce, por meio de letra grossa, acrescentado ao original, N.E.]

É curioso notar que Arestovich poderá ter sido uma vítima colateral inesperada da política de “defesa total” cuja apologia fez tão eloquente como demagogicamente. Em 14 de Janeiro de 2023, afirmou publicamente, num canal de YouTube onde comenta diariamente o evoluir da guerra para mais de 200 mil subscritores, que o míssil russo que destruiu nesse dia um edifício residencial na cidade de Dnipro [anteriormente Dnepropetrovsk], provocando pelo menos 44 mortos e 22 desaparecidos, teria sido abatido pela defesa aérea ucraniana e caído, por isso, no prédio, onde explodiu, quando o alvo visado seria uma central eléctrica próxima. A afirmação de Arestovich parece ter sido concebida como um elogio às capacidades da defesa aérea ucraniana. No entanto, caíu muito mal nas fileiras dos próceres do regime, alguns dos quais o acusaram de alta traição. Perante isto, Arestovich ‒ o homem que mais sonhou com «uma grande guerra da Ucrânia com a Rússia que tivesse como recompensa a integração da Ucrânia na OTAN» e que viveu o suficiente para ver o seu sonho realizado [80] ‒ decidiu retractar-se, acabando por se demitir no dia 17 de Janeiro último. No mesmo dia, confessou com amargura o seu espanto com o que lhe aconteceu: «a quantidade de ódio que me foi dirigida é incomparável com as consequências do erro que cometi nas minhas declarações públicas» [81].   

― Seja como for, ficámos, uma vez mais, esclarecidos com as suas explicações sobre a política de «defesa total». O regime de Zelensky não hesitou, desde o início da segunda guerra na Ucrânia, em violar a Norma Nº.1 do Direito Internacional Humanitário, empregando civis ucranianos como escudos humanos para defender as suas tropas das tropas russas que as querem destruir [82].

«A Ucrânia não tem cidadãos civis. Agora todos estão na guerra contra a ocupação moscoviana».
Este cartaz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia faz a apologia do conceito
de 
defesa total” mencionado por  Oleksiy Arestovych — ou seja, a abolição da distinção entre combatentes e civis; a distinção que constitui a base do direito internacional humanitário (ou “leis da guerra”). É a justificação encontrada pelo governo de Zelensky para a utilização dos civis ucranianos como “escudos humanos” e para dar aos polícias e militares ao seu serviço licença para assassinarem civis que sejam considerados como inimigos. «Moscoviano» é um termo pejorativo dos banderistas para denominar xenofobicamente os russos. 

4.3.2. Um canal único e exclusivamente presidencial de televisão

― Em 18 de Março de 2022, Zelensky invocou a lei marcial (equivalente, grosso modo, ao “estado de sítio” previsto no artigo 19º. da Constituição portuguesa [84]), que tinha promulgado em 24 de Fevereiro de 2022, para decretar (decreto nº. 152/2022)

a unificação de todos os canais de televisão nacionais, cujo conteúdo de programação consista principalmente em programas informativos e/ou informativos e analíticos numa única plataforma de comunicação estratégica — uma maratona informativa de 24 horas [por dia, 7 dias por semana, denominada] “As únicas Notícias#UArazom” [UA são as duas letras da abreviatura de Ucrânia no código da Organização Internacional para Padronização (ISO no acrónimo inglês) e “razom” quer dizer “juntos” em ucraniano, N.E.]

A razão oficial invocada para justificar este monopólio e controlo presidencial da informação televisiva foi o de combater a «desinformação» e a «distorção da informação» disseminada pela Rússia (malfeitorias de que Zelensky, os seus colaboradores e os seus capangas estão, obviamente, isentos) e «dizer a verdade sobre a guerra» (de que Zelensky os seus colaboradores e os seus capangas se julgam, naturalmente os únicos detentores).  

Convém lembrar que mais de um ano antes da invasão das tropas russas, em 3 de Fevereiro de 2021, Zelensky tinha proibido, durante cinco anos, as actividades de oito órgãos de informação, entre os quais três canais de televisão ‒ ZIK, NewsOne e 112 Ucrânia ‒ alegando que essa proibição se destinava a «lutar contra o perigo da agressão russa na arena da informação» [85]. A medida era tão brutalmente repressiva que Zelensky se sentiu na necessidade de se explicar junto dos seus amigos e aliados estrangeiros. Em 3 de Maio de 2021, numa reunião com os embaixadores dos países do G7 e da União Europeia em Kiev, Zelensky explicou o encerramento forçado destes três canais de televisão nos seguintes termos:

As sanções contra os meios de comunicação social são sempre uma decisão difícil para qualquer governo, excepto para um governo autoritário. Esta decisão não foi uma decisão tomada de ânimo leve, mas sim uma decisão longamente ponderada, baseada em informações de muitas agências governamentais ucranianas durante muito tempo. Isto não é de forma alguma um ataque à liberdade de expressão, é uma decisão bem fundamentada para proteger a segurança nacional [86] [o realce, por meio de letra grossa, foi acrescentado ao original. Onde está “difícil” deve ler-se “contranatura”, se entendermos que a liberdade de expressão é uma liberdade básica que nenhum governo tem o direito de abolir ou restringir em nome seja do que for, N.E.].

Se não soubéssemos qual é a sua origem, poder-se-ia pensar que este naco de prosa e a sua mensagem ‒ “é porque vos amamos muito e queremos proteger-vos das falsas notícias, que vos amordaçamos, vendamos e tapamos os ouvidos” ‒ saiu direitinho do “Ministério do Amor” da Oceania, no romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell. Aqui, também, a realidade imita a ficção literária.  

No dia 29 de Dezembro de 2022, Zelensky promulgou uma lei que o seu partido, Servente do Povo, tinha proposto e aprovado no parlamento; uma lei para amordaçar ainda mais a comunicação social independente. A lei estipula que um órgão de imprensa ou qualquer órgão de comunicação social pode ser imediatamente encerrado se não estiver devidamente licenciado. Ora, a entidade administrativa que distribui as licenças e que pode decidir o encerramento de um órgão de comunicação social, sem qualquer decisão de um tribunal, estará ‒ adivinhem ‒ sob o controlo de Zelensky.  

A Federação Europeia de Jornalistas criticou a lei quando ela ainda estava na sua fase de discussão parlamentar e exigiu que fôsse retirada, afirmando:

A lei propõe-se atribuir poderes de regulação arbitrários e desproporcionados ao regulador nacional, o Conselho Nacional de Difusão, que teria autoridade não só sobre os meios audiovisuais, mas também sobre a imprensa e os meios digitais

O secretário-geral da Federação Europeia de Jornalistas, Ricardo Gutierrez, acrescentou:

A regulamentação coerciva posta nas mãos de um regulador totalmente controlado pelo governo que está prevista na lei é digna dos piores regimes autoritários. Deve ser retirada. Um Estado que aplicasse tais disposições não tem lugar, pura e simplesmente, na União Europeia. A regulamentação dos órgãos mediáticos de comunicação social deve ser aplicada por uma agência independente do governo e o seu objectivo deve ser a independência desses órgãos, não o seu controlo [87].

A senhora Ursula von der Leyen, que se deslocou a Kiev para entregar pessoalmente a Zelensky o formulário para o pedido de adesão da Ucrânia à UE, não tem a mesma opinião do que Gutierrez sobre o que pode ou não pode caber dentro da União Europeia. Mas Gutierrez tem seguramente razão quanto ao mais.

Por seu turno, o Sindicato Nacional de Jornalistas da Ucrânia disse que a lei era «a maior ameaça à liberdade de expressão na história (da Ucrânia) independente». O sindicato acrescentou que a adopção da lei poderia «lançar a sombra de um ditador» sobre Zelensky.

Ditador” não é o termo adequado para o caso em apreço [88]. Tirano eleito seria bem mais ajustado [89]. Quanto ao mais, o sindicato nacional dos jornalistas ucranianos tem seguramente razão.

4.3.3. Proibição de 11 partidos de oposição 

― Em 21 de Março de 2022, Zelensky invocou mais uma vez a lei marcial para, desta vez, suspender de uma assentada onze (11) partidos de oposição, acusados de serem pró-russos. Em 3 de Maio uma lei do parlamento, elaborada pelos deputados do partido do presidente, Servente do Povo, confirmou essa decisão, transformando a suspensão em proibição — lei essa que Zelensky, por sua vez, promulgou em 14 de Maio. Em seguida, em Junho de 2022, os tribunais administrativos de primeira instância ‒ e, nos casos em que houve recurso, os tribunais administrativos de segunda instância e até, pelo menos num caso (o do partido de direita Plataforma da Oposição — pela vida) ‒ o supremo tribunal, em sessões à porta fechada, onde não foram admitidos sequer jornalistas, determinaram o confisco dos bens destes partidos ‒ sedes, viaturas, etc.‒ em favor do Estado![90]

Os partidos proscritos abrangem um largo espectro da oposição ucraniana, da direita à esquerda, incluindo a esquerda social-democrata (Partido Socialista da Ucrânia) e o próprio partido comunista da Ucrânia — que agora se apresenta sob a bandeira da coligação Oposição de Esquerda, depois de ter sido banido em 2015 (acusado de alta traição, por causa do seu apoio à luta pela autodeterminação da população russófona de Donetsk e Lugansk e contra a anexação da Crimeia pela Ucrânia) e proibido de utilizar a palavra “comunista” e o emblema da foice e do martelo para se identificar, em virtude das leis de “descomunização” de 2015.

A lista dos partidos proscritos é a seguinte: Plataforma de Oposição —pela Vida (o maior partido de oposição, que dispunha de 43 dos 451 deputados do parlamento ucraniano), Bloco da Oposição (o segundo maior partido dos 11 proscritos, que dispunha de 6 deputados no parlamento), Nashi [= “Nosso”], Oposição de Esquerda, Derzhava [= “país”, “nação”], Partido Socialista Progressista da Ucrânia, Partido Socialista da Ucrânia, União das Forças de Esquerda, Os Socialistas, Partido de Shariy, Bloco Volodymyr Saldo. O partido do ex-presidente Poroshenko e cinco outros pequenos partidos parlamentares não foram abrangidos por esta proibição porque Zelensky entende, do alto da sua omnisciência, que «dizem a verdade sobre a guerra». Os partidos neonazis, como o Svoboda, Corpo Nacional, Sector Direita, foram também deixados intocados por esta proibição porque, também eles, no omnisciente entendimento de Zelensky, «dizem a verdade sobre a guerra».

Um investigador ucraniano, profundo conhecedor da realidade social da Ucrânia, escreveu a este propósito:

A maioria dos partidos [ditos] “pró-russos” na Ucrânia são, antes de mais, “pró-si próprios” e têm interesses autónomos e fontes de rendimento na Ucrânia. Estão a tentar capitalizar os agravos reais de uma minoria considerável de cidadãos ucranianos de língua russa concentrados nas regiões do sudeste [do país]. Estes partidos têm efectivamente um apoio público significativo. Por exemplo, três dos partidos recentemente suspensos participaram nas eleições parlamentares de 2019 e, em conjunto, receberam cerca de 2,7 milhões de votos (18,3 por cento) e nas últimas sondagens realizadas antes da invasão russa, estes partidos obtiveram colectivamente cerca de 16-20 por cento dos votos.

Outros partidos da lista de suspensão de Zelenskyy têm uma orientação de esquerda. Alguns deles desempenharam um papel importante na política ucraniana nos anos 1990-2000, com é o caso dos partidos Socialista e Socialista Progressista, mas, agora, já foram todos completamente marginalizados. De facto, não existe hoje nenhum partido político na Ucrânia que tenha as palavras “esquerda” ou “socialista” no seu nome, que possa conseguir obter qualquer parte considerável do voto geral, agora ou num futuro previsível. A Ucrânia já tinha suspendido, em 2015, todos os partidos comunistas do país ao abrigo da lei de “descomunização”, que foi fortemente criticada pela Comissão de Veneza. A última ronda de suspensões pode não ser necessariamente motivada pelo desejo de apagar a esquerda da esfera política da Ucrânia, mas contribui certamente para tal agenda.

A ironia está em que a suspensão destes partidos é completamente desprovida de significado para a segurança da Ucrânia. É verdade que alguns dos partidos suspensos, como os “socialistas progressistas”, foram forte e genuinamente pró-russos durante muitos anos. No entanto, praticamente todos os dirigentes e patrocinadores destes partidos com qualquer influência real na Ucrânia condenaram a invasão da Rússia, e estão agora a contribuir para a defesa da Ucrânia [91]

A proscrição dos 11 partidos ucranianos é uma medida liberticida do presidente Zelensky muito semelhante, nos seus efeitos, à decisão que o comediante Zelensky, encarnando a personagem fictícia de Goloborodko (o presidente da república da Ucrânia na telenovela O Servente do Povo) toma num certo momento: assassinar com sucessivas rajadas de metralhadora todos os deputados do parlamento ucraniano. Essa cena edificante e com o seu quê de premonitório pode ser vista aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=JceiIUTMvD0&t=112s]

4.3.4. Ataque cerrado aos trabalhadores e aos seus sindicatos

Em Julho de 2022, o parlamento ucraniano [Ucr. “Verkhovna Rada”] aprovou três leis que constituem um ataque cerrado contra os direitos dos trabalhadores assalariados e contra os seus sindicatos.

― Comecemos pela lei nº. 5371 que é, tal como as duas outras, da autoria do partido Servente do Povo [Ucr. “Slouha Narodu”], o partido de direita neoliberal de Zelensky, e, em especial, da deputada Galina Tretyakova, presidente da Comissão Parlamentar de Política Social e Protecção dos Direitos do Veteranos de Guerra, bem conhecida dos trabalhadores ucranianos e detestada por muitos deles.

Não há qualquer dúvida que Tretyakova estava concertada com Zelensky porque foram inúteis (como seria de esperar) todos os apelos a Zelensky para que não promulgasse a lei, como ele acabou por o fazer em 17 de Agosto de 2022. A lei foi promulgada com uma única modificação, acrescentada à última da hora por pressão dos sindicatos mais conformistas: a lei vigorará só enquanto estiver em vigor a lei marcial — ou seja, enquanto os trabalhadores estiverem nas piores condições para defenderem os seus direitos e as suas reivindicações laborais perante as entidades patronais.

É que a classe trabalhadora ucraniana está actualmente muito enfraquecida pelo resultado cumulativo de três processos distintos, mas convergentes: (i) a destruição de 5 milhões de postos de trabalho (números da OIT) por efeito das duas guerras que se travam na Ucrânia; (ii) a conscrição e o serviço militar obrigatório de centenas de milhares de trabalhadores, e (iii) a proibição de greves e outras formas de luta dos trabalhadores (manifestações de rua, etc.) imposta pela lei marcial [decreto presidencial Nº. 64/2022 de 24 de Fevereiro de 2022, que tem vindo a ser sucessivamente prorrogado].  

De acordo com o código laboral ucraniano que vigorava até à aprovação da lei nº. 5371, os contratos de trabalho são celebrados por sindicatos, ou por comissões trabalhadores mandatadas pelos trabalhadores, e empresas. A lei nº. 5371 retira os trabalhadores de empresas com menos de 250 empregados do âmbito de aplicação do código do trabalho. Estas empresas representam mais de 80% de todas as empresas ucranianas. A lei priva os trabalhadores destas empresas do direito à negociação colectiva ‒ sobre salários, horários de trabalho, férias, etc. ‒ com a entidade patronal, transferindo todo o âmbito da regulamentação laboral para contratos individuais de trabalho. Mais ainda, permite às empresas com menos de 250 trabalhadores descartarem as convenções colectivas existentes na celebração de contratos de trabalho individual e anula o poder legal que os sindicatos tinham de vetarem despedimentos de trabalhadores e de militantes sindicais.

 Doravante, qualquer tentativa de proteger os direitos laborais dos trabalhadores será imediatamente sancionada com o despedimento dos militantes sindicais e os sindicatos serão privados do direito de os proteger. O carácter profundamente retrógrado desta lei está bem patente no facto de ela violar várias convenções internacionais (nº.95, nº.132, nº.135, nº.158), assim como as recomendações nº. 85 e nº.166 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Mais ainda, a lei nº. 5371 viola a própria constituição da Ucrânia, nos seus artigos 22, 24, 36, 43 e 45.

A destruição, para a esmagadora maioria das empresas ucranianas, dos acordos colectivos de trabalho negociados pelos sindicatos também encoraja os gestores e os donos das grandes empresas a dividi-las em empresas mais pequenas, na medida do possível, a fim de escaparem ao cumprimento do código do trabalho e à protecção legal dos direitos laborais dos trabalhadores [92].

― O parlamento ucraniano também aprovou a lei nº. 5161, que permite a todas a empresas contratarem até 10% da sua mão-de-obra na modalidade de contratos “ocasionais” ou de “zero horas”. Antes da aprovação desta lei, como na maioria dos países europeus, as empresas eram obrigadas a cumprir os requisitos legais relativos ao horário mínimo de trabalho, e só estavam autorizadas a estabelecer postos de trabalho temporário ou de curta duração apenas para processos laborais que se provem serem de duração limitada (por exemplo, a ceifa e apanha do trigo no Verão).

A lei nº. 5161 mudou drasticamente este quadro ao permitir que 10% dos trabalhadores de uma empresa se vejam atribuir contratos de trabalho sem um número estabelecido de horas de trabalho diário (daí a expressão “contrato de zero horas”) e que são válidos somente para 32 horas por mês. Esta lei é um regresso ao século XIX, uma lei que viola a própria convenção nº.1 da OIT ‒ a sua convenção fundadora (1919) ‒ sobre a duração do trabalho. Além disso, os trabalhadores com este tipo de contrato de trabalho ficam obrigados a estar de “prevenção” todos os dias para realizarem todo e qualquer trabalho que lhes for atribuído. Ao contrário da lei nº. 7351, esta lei continuará a vigorar para além do termo da lei marcial — se depender exclusivamente da vontade dos seus autores, bem entendido.

― A terceira lei anti-laboral aprovada pelo parlamento ucraniano, a lei nº. 725, diz respeito ao pagamento de salários a quem deixou ou teve de deixar o seu posto de trabalho para servir nas forças armadas ucranianas. A lei isenta as empresas da responsabilidade de pagar salários aos trabalhadores que estão com licença militar, transferindo esse pagamento para o orçamento de Estado. Porém, como o Estado ucraniano assume estes pagamentos e quer fazer poupanças (não nos esqueçamos que o orçamento do Estado ucraniano é quase integralmente financiado pelos EUA, a UE e o Reino Unido, ou seja pelos contribuintes desses países), a grande maioria destes trabalhadores, agora nas forças armadas, também receberá cortes acentuados na sua remuneração.

Os sindicatos ucranianos já receberam uma série de queixas de membros seus actualmente no exército que expressam consternação por terem recebido um corte no seu salário enquanto combatem de armas na mão no campo de batalha. Destarte, inadvertidamente (ou talvez não), Zelensky e o seu partido, Servente do Povo, fizeram saber aos trabalhadores assalariados que os consideram como serventes das empresas em tempo de paz e como carne para canhão em tempo de guerra.

Não é um exagero meu. É o que se infere do teor destas leis e que é, aliás, corroborado pelas declarações do governo ucraniano. O governo de Zelensky e o seu partido, Servente do Povo, argumentaram que a nova legislação laboral se destinava a aliviar as dificuldades que as empresas ucranianas enfrentam em tempo de guerra. Todavia, o mesmo Partido e o mesmo governo tentaram aprovar esta novas leis em 2021, quando a Ucrânia e a Rússia ainda não estavam em guerra. Tiveram, então, de recuar devido à mobilização dos trabalhadores e voltaram agora à carga a coberto da lei marcial. Na verdade, a sua posição sobre a legislação laboral está bem patente neste argumento do Servente do Povo:

a extrema super-regulação do emprego contradiz os princípios da auto-regulação do mercado e da moderna gestão do pessoal [93].

― Dois projectos de lei adicionais sobre matéria laboral deram entrada, em Julho de 2022, no parlamento ucraniano. Um deles propõe uma revisão drástica do próprio código de trabalho da Ucrânia. Este introduziria um dia de trabalho máximo de 12 horas e permitiria às empresas despedir trabalhadores a qualquer momento sem justa causa.

O outro projecto de lei propõe a confiscação das propriedades da principal central sindical da Ucrânia, a Federação dos Sindicatos da Ucrânia (FPU, na sigla ucraniana) — prédios urbanos que lhes servem de sedes, casas de repouso, pousadas, albergues, complexos desportivos, centros culturais [94].


À esquerda, o Centro Internacional de Artes e Cultura, também conhecido como Palácio de Outubro, um edifício da central sindical ucraniana (FPU) em Kiev. À direita o Edifício dos Sindicatos (sede principal da FPU), situado na avenida principal de Kiev, fotografado em 2018, já reconstruído, depois do incêndio criminoso que sofreu durante os tumultos que culminaram no golpe de Estado que derrubou o presidente eleito, Viktor Yanukovych, em Fevereiro de 2014. Fonte das fotos: Wikipedia.

Este valiosíssimo património, com um valor monetário estimado (por baixo) em 2 mil milhões de euros, é uma herança da era soviética. É um património que foi inteiramente construído, durante décadas, na Ucrânia soviética, com o dinheiro das quotas dos trabalhadores para os sindicatos e cujos imóveis se destinam, ontem como hoje, ao usufruto dos trabalhadores. A FPU salienta com razão:

Consideramos que o direito protegido dos sindicatos a desenvolverem livremente os seus programas e actividades está interligado, é interdependente e está inter-relacionado com o direito dos sindicatos a possuírem bens como meio através dos quais tais programas e actividades são proporcionados aos seus membros [95].

Convém saber que, desde Fevereiro de 2022, quase todas as propriedades da FPU foram convertidas, ao abrigo da lei marcial, em instalações de abrigo e refúgio temporário para pessoas deslocadas internamente em consequência da segunda guerra na Ucrânia. Em Julho de 2022, já tinham passado mais de 300.000 ucranianos deslocados por essas instalações de abrigo e refúgio que são propriedade sindical.

Zelensky e o seu partido, Servente do Povo, querem aproveitar-se da lei marcial e dar um passo mais para alcançar um objectivo acarinhado de longa data por alguns corretores políticos do poder económico: transferir o património imobiliário da FUP para o Fundo de Propriedade Estatal da Ucrânia (criado em 1991 para gerir edifícios públicos) possivelmente para, num segundo tempo, o privatizar em proveito do mercado dos empreendimentos turísticos e imobiliários.

4.3.5. “Caça” (com licença para matar) aos cidadãos russófonos e russófilos

Nesta subsecção, limitar-me-ei a repetir o que já disse em artigo anterior desta série [Qual é a morada dos assassinos de Darya Dugina e o que é que isso tem a ver com as guerras na Ucrânia? Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue 5 de Novembro de 2022], mas que não sei se foi lido por todos os leitores do presente artigo.

No artigo US believes Ukrainians were behind an assassination in Russia (New York Times, 5 de Outubro de 2022) os jornalistas seus autores dão alguns exemplos da prática de perseguição policial sistemática que o SBU tem vindo a desenvolver contra cidadãos ucranianos russófonos e russófilos das regiões de Donbass e do sudeste a Ucrânia, como se estes fôssem criminosos.

Um oficial militar ucraniano de alta patente, que se recusou a ser identificado por causa da sensibilidade do tema, disse que as forças ucranianas, com a ajuda de combatentes locais, tinham levado a cabo assassinatos e ataques contra ucranianos que acusam de colaboracionistas e funcionários russos em territórios ucranianos ocupados. Estes indivíduos incluem o governador da região de Kherson que foi nomeado pelo Kremlin, que foi envenenado em Agosto e teve de ser evacuado para Moscovo para receber tratamento de urgência. [realce, por meio de letra grossa, acrescentado ao original, N.E.]

Colaboracionistas” é um dos nomes que o governo ucraniano e o SBU dão às populações russófonas e russófilas de Donbass e do sudeste da Ucrânia  (i) que se revoltaram, em Março de 2014, contra o golpe de Estado de Fevereiro de 2014 que derrubou o  presidente Viktor Yanukovych e contra a opressão linguística e cultural do Estado ucraniano que se lhe seguiu; (ii) que proclamaram, em Março de 2014, as Repúblicas populares de Donetsk e Lugansk, ao mesmo tempo que decidiam, após referendo sobre o assunto, pedir a sua integração na Federação Russa, e que (iii) num segundo referendo, que ocorreu em 24-27 de Setembro de 2022, votaram outra vez nessas duas repúblicas‒ assim como nos oblasts de Zaporizhia e Kherson ‒ a favor da integração desses territórios na Federação Russa.

Esse nome não é neutral. “Colaboracionistas” foi o epíteto pejorativo (Fr. collabos) que, durante a 2ª. Guerra Mundial, os membros da Resistência francesa à ocupação da França pelas tropas da Alemanha Nazi deram aos franceses que “colaboraram” com o ocupante, ou com o regime de Vichy seu aliado, na denúncia, detenção, prisão e deportação de cidadãos que lutavam contra essa ocupação.

Destarte, os cidadãos russófonos e russófilos, especialmente os que habitam nos oblasts de Donbass e do sudeste da Ucrânia, são falaciosamente assimilados, pelo governo de Zelensky a “agentes russos” e/ou “traidores à pátria” ‒ a “pátria” que os oprime, bombardeia e mata há 8 anos consecutivos e que eles repudiam ‒ que, por isso, merecem ser assassinados. Se Zelensky fosse presidente (ou rei) de Espanha, organizaria, seguindo a mesma ordem de ideias, o assassinato daqueles galegos (e creio que são muitos) que desejam que a Galiza faça parte de Portugal ‒ ou forme com ele uma federação ou uma confederação e não da Espanha, e o assassinato dos catalães que se pronunciaram, maioritariamente (90%), em referendo realizado em 2017, pela secessão e independência em relação ao Estado espanhol.

Simon Shuster, o jornalista da Time que fez uma grande entrevista a Zelensky publicada no número (de 7 de Dezembro de 2022) que anunciou a sua escolha como “Pessoa do Ano,” relata:

Os serviços de segurança ucranianos estão a caçar activamente agentes russos. «Eles vivem entre nós», disse-me Zelensky. «Em apartamentos, em caves, entre os civis, e nós temos de os desmascarar, porque isso é um grande risco».

Os jornalistas do New York Times que reportaram alguns factos que ilustram a iniciativa do governo ucraniano de organizar o assassinato dos habitantes russófonos e russófilos de Donbass, do sudeste da Ucrânia e de outras regiões do país, limitaram-se, no fundo, a levantar uma ponta do véu. O Daily Mail, um diário londrino, na sua edição de 5 de Outubro de 2022, é bem mais explícito do que o New York Times acerca da sorte que Zelensky e o seu governo reservam para as populações russófonas e russófilas, se alguma vez vierem a ficar de novo sob o jugo do Estado ucraniano.  

Kiev já abriu investigações sobre 1.309 suspeitos de traição e organizou 450 processos judiciais contra colaboracionistas acusados de trair a sua própria nação e os seus vizinhos. Outros estão a ser perseguidos e abatidos por combatentes da resistência [entenda-se, por membros dos serviços especiais do SBU, N.E.]Uma lista transmitida a este jornal por uma fonte do governo de Kiev identifica 29 dessas mortes por retaliação, e mais 13 tentativas de assassinato que deixaram feridos alguns dos alvos.

«Foi declarada uma caça aos colaboracionistas e a sua vida não está protegida pela lei», disse Anton Gerashchenko, conselheiro do Ministério do Interior [em Portugal seria o Ministério da Administração Interna da Ucrânia; no Brasil seria o Ministério da Justiça e Segurança Pública]. «Os nossos serviços secretos estão a eliminá-los, matando-os como porcos» [realce, por meio de letra grossa, acrescentado ao original, N.E.[96].

Kherson, 13 Novembro 2022. Alegados colaboracionistas amarrados pelo SBU a postes para gáudio da população pró-Zelensky. Este espectáculo infame é semelhante aos que a Inquisição fazia no Terreiro do Paço, em Lisboa, para queimar vivas as suas vítimas — um espectáculo que José Saramago tão bem descreveu no seu romance Memorial do Convento. Foto: Libkos, AP.



4.3.6. Listas negras dos inimigos a abater

O governo de Zelensky não se limita a perseguir e matar cidadãos russófonos e russófilos que preferem ser russos a ser ucranianos e que têm oito anos de boas razões para justificar essa preferência. Tal como o governo de Poroshenko seu antecessor, governo de Zelensky estendeu também essa sua sanha persecutória e assassina a todos aqueles cidadãos nacionais e estrangeiros que denunciam os embustes, as mentiras, as malfeitorias e o belicismo do regime ucraniano e, em especial, os do actual governo e da maioria parlamentar que o apoia.

Essa linha de actuação expressa-se através de duas organizações: uma chamada Centro Myrotvorets (que significa “pacificador” em ucraniano) e outra chamada Centro Ucraniano de Luta contra a Desinformação.

O Centro Myrotvorets exprime-se através de um sítio www [https://myrotvorets.center/] baseado em Kiev, com um nome de domínio internet registado nos EUA, em Langley (onde está sediada a CIA americana). Não se conhecem ao certo quantos profissionais trabalham no Centro Myrotvorets e quem lhes paga, mas é voz corrente na Ucrânia que este centro é mantido pelo SBU ucraniano, com a ajuda da CIA.

Este centro, que nasceu em 2014, depois do golpe de Estado que derrubou o presidente eleito Viktor Yanukovych, publica, desde 2014, uma “lista negra, acompanhada muitas vezes de informações pessoais (foto, morada, número de telefone, endereço electrónico, número de conta bancária, etc.) de pessoas que são consideradas pelos autores desse sítio como «inimigos da Ucrânia», ou, como afirmam, «pessoas cujas acções têm sinais de crimes contra a segurança nacional da Ucrânia, a paz, a segurança humana, e o direito internacional».

Este é um autêntico “Ministério da Verdade” saído direitinho da ficção literária (o romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell) para a realidade.

A lista negra do Centro Mirotvorets acumulou cerca de 200 mil nomes (!) ao longo dos anos. Da lista fazem parte os nomes de muitos jornalistas de muitos países que cobriram, num momento ou outro das suas carreiras, a guerra entre as tropas ucranianas e as milícias de autodefesa das repúblicas populares de Donetsk e Lugansk, mas que o fizeram a partir dos territórios destas últimas e que, por isso, foram considerados como tendo colaborado com “terroristas”. Da lista constam também os nomes de cerca de 300 crianças (!), como, por exemplo, o de Faina Savenkova — uma rapariga de 13 anos, da república popular de Lugansk (Donbass), que começou a escrever em russo (o seu idioma nativo) peças de teatro, contos e novelas inspiradas, em grande medida, na sua experiência aterradora de crescer sob o bombardeamento constante da sua terra natal pelas tropas ucranianas. Podemos vê-la a fazer um apelo de viva-voz à ONU seguindo esta hiperligação:

 [https://www.youtube.com/watch?v=_z8IvJg9K1I]

Muitos dos “inimigos” da lista negra do Myrotvorets já foram assassinados ou “desapareceram” misteriosamente ou morreram num “acidente”, geralmente suspeito, ou morreram de causas naturais. Quando isso ocorre, a palavra ucraniana ЛИКВИДИРОВАН (= “liquidado”) é carimbada sobre a fotografia da pessoa em causa em grandes letras maiúsculas, como aconteceu com o jornalista italiano Andrea Rocchelli ou com a jornalista russa Daria Dugina, ambos assassinados, esta última pelo SBU ucraniano [97].

Ficha de Andrea Rocchelli no sítio electrónico do Centro Mirotvorets, com o carimbo a vermelho de “liquidado”.

Ficha de Daria Dugina no sítio electrónico do Centro Mirotvorets, com o carimbo a vermelho de “liquidado”.

Em Março de 2021, foi criado, por decreto presidencial, o Centro Ucraniano de Luta contra a Desinformação [https://cpd.gov.ua/] ‒ CULD, para abreviar ‒ um órgão especializado do Conselho Nacional de Segurança e Defesa da Ucrânia. Um aspecto específico do CULD é o de ser parcial ou totalmente financiado por um Fundo chamado Civil Research and Development Fund (CRDF Global Ukraine), uma alegada ONG sem fins lucrativos autorizada pelo Congresso dos EUA para promover «a colaboração científica e técnica internacional» e apoiada pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros (State Department) dos EUA.

O CULD publicou, em meados de Julho de 2022, uma lista negra intitulada “Locutores que promovem narrativas consonantes com a propaganda russa”. A lista contém os nomes de 72 jornalistas, activistas, militares, políticos, professores universitários e pessoas de outras ocupações de 22 países que foram rotulados de «propagandistas russos» e «terroristas da informação» passíveis de serem julgados como «criminosos de guerra» pelo governo ucraniano por terem a audácia de falar de forma crítica, mas factual, sobre   as guerras em curso na Ucrânia.

Dessa lista negra fazem parte pessoas profissional e politicamente tão diversas como o senador americano Rand Paul do partido republicano, a ex-deputada americana e ex-candidata presidencial do partido democrata Tulsi Gabbard; o professor universitário e politólogo John Mearsheimer; o cantor e compositor Roger Waters, co-fundador da banda Pink Floyd; os jornalistas Chris Hedges, Glenn Greenwald, Eva Bartlett, Tucker Carlson; o ex-major dos fuzileiros navais do EUA e ex-inspector-chefe de armamento da ONU Scott Ritter; o professor universário e economista Jeffrey Sachs; o estratega e autor militar coronel Douglas Macgregor, do exército dos EUA; o ex-chefe da Divisão de Direito Criminal do Exército dos EUA e ex-senador estadual, coronel Richard Black;  o ex-agente da CIA e activista antiguerra Ray McGovern, co-fundador do Veteran Intelligence Professionals for Sanity (VIPS); o coronel do estado-maior suíço e ex-membro do Serviço de Informações Estratégicas da Suíça  Jacques Baud; a eurodeputada  irlandesa Clare Daly.

Em 28 de Março de 2022, o CULD afixou um documento que define o “Terrorismo da Informação”, como «um crime contra humanidade cometido por meio de instrumentos que afectam a consciência». A sua proposta é espantosa: estabelecer o precedente legal de que qualquer cidadão que exerça o seu direito à liberdade de expressão e de pensamento sem reconhecer as baias e os tabus estabelecidos pela oligarquia financeira do “Ocidente alargado”, pelo seu “Big Brother” (o governo dos EUA) e pelas suas instituições de alcance global, deve ser considerado como um “terrorista” (da informação) e pode, como tal, ser processado e julgado como um “criminoso de guerra”.

Criminoso de guerra? As penas por crimes de guerra variam de país para país. Mas, por exemplo, o intitulado 18 do Código dos EUA §2441 estipula:

Seja quem for que cometa um crime de guerra, dentro ou fora dos Estados Unidos, em qualquer das circunstâncias descritas na alínea (b), deve ser multado sob esta alínea ou preso a título perpétuo ou por qualquer número de anos, ou ambos, e, se do crime resultar a morte para a vítima, será também sujeito à pena de morte.

Não é preciso sequer imaginar um qualquer pseudotribunal que julgue como “criminosos de guerra” cidadãos que se extricaram das malhas apertadas do conformismo e da ignorância autocultivada por exercerem o direito à liberdade de pensamento e de expressão ‒ em particular, os que denunciam e luram contra as medidas liberticidas e antidemocráticas do governo Zelensky e da sua maioria parlamentar ‒ e que os condene à pena de morte sob a acusação de serem “terroristas da informação”.  Há um meio mais expedito de realizar esse desiderato.

Descrever os críticos como terroristas e criminosos de guerra encoraja fanáticos a enveredarem pela acção directa para lhes fazer mal. Uma lista negra pode facilmente tornar-se uma lista de alvos a abater, mas o governo ucraniano é indiferente, na melhor das hipóteses, ao perigo que tem fomentado [98].

Precisamos de compreender plenamente o objectivo das listas negras que tenho vindo a descrever e a função que desempenham os seus fazedores.  

O Centro Mirotvorets e o seu irmão júnior, o CDUL, existem exclusivamente para intimidar, caluniar, perseguir, amordaçar e, se necessário for, assassinar aquelas pessoas, muito diversas que, a nível internacional fazem uma ou mais das seguintes coisas:

(i) explicar que a invasão da Ucrânia pela Rússia não foi um acontecimento inesperado, imprevisível e não-provocado, mas, bem pelo contrário, que tem causas contribuintes perfeitamente identificáveis (e que, por serem obra humana cientemente realizada, seriam, por conseguinte, removíveis, se tivesse sido essa a vontade dos seus artífices), cuja eficiência se foi fortalecendo no decurso dos últimos 20 anos;

(ii) argumentar que a Ucrânia não tem a capacidade de vencer militarmente a Rússia, mesmo que o quisesse (ou queira) fazer; que a Rússia tem a capacidade de vencer militarmente a Ucrânia por forma a impor a sua neutralidade futura e o seu respeito pela vontade democraticamente expressa das populações russófonas e russófilas de Donbass e do sudeste da Ucrânia, mas não tem a capacidade de ocupar e conquistar o restante território (80%) da Ucrânia, ainda que o quisesse (ou queira) fazer; nem isso, de resto,  corresponderia aos seus interesses de longo prazo; pelo que são fantasiosas e contraproducentes todas as iniciativas militares e todas as suputações políticas que partam desses pressupostos errados;

(iii) discutir as possibilidades e os meios para se alcançar um fim rápido para o conflito armado Ucrânia-Rússia, utilizando a diplomacia e a via negocial, em vez do apoio militar e financeiro continuado e maciço à Ucrânia e em vez das sanções económicas e sabotagens continuadas e maciças contra a Rússia, por pensarem que as iniciativas nestes dois últimos sentidos levam a uma escalada de ambos os lados que pode culminar numa guerra nuclear global e, concomitantemente, no fim da espécie humana;

(iv) promover a automobilização da população trabalhadora para impor um fim às guerras em curso na Ucrânia e prevenir guerra futuras na Europa, com base numa plataforma de solidariedade internacional independente dos poderes estabelecidos e que contenha, por conseguinte, entre outras coisas, a luta a) pelo direito de autodeterminação dos povos, incluindo o direito de secessão; b) pela neutralidade da Ucrânia e de todos os países europeus (incluindo a Rússia);  c) pela retirada de todas as tropas americanas da Europa; d) pela destruição mútua e mutuamente verificada de todos os arsenais nucleares; e) pela saída dos países europeus da OTAN e f) pela dissolução desta organização belicista.

Quem quer que pense, fale, escreva e actue de uma (ou mais do que uma) destas quatro maneiras é apodado de “propagandista do Kremlin”, “terrorista da informação”, “agente putinesco” e deveria (se tudo dependesse do Centro Mirotvorets e do CDUL) enfrentar sanções e julgamento internacional como criminoso de guerra.  

A este propósito, a reacção de John Mearsheimer à notícia da sua inclusão na lista negra do CDUL é interessante a mais de um título, porque ela abrange o ponto (i) supramencionado, um dos temas cuja discussão mais enfurece os apoiantes do regime de Zelensky.

Quando eu era um rapazinho, a minha mãe ensinou-me que quando outros não conseguem vencer os nossos argumentos com factos e lógica, eles caluniam-nos. É isso que se está a passar aqui.

Defendo que é claro, a partir das provas disponíveis, que a Rússia invadiu a Ucrânia porque os Estados Unidos e os seus aliados europeus estavam determinados a fazer da Ucrânia um baluarte ocidental na fronteira da Rússia — o que Moscovo via como uma ameaça existencial [para a Rússia]. Ucranianos de todas as convicções rejeitam o meu argumento e, em vez disso, culpam Vladimir Putin, que se diz que tem estado empenhado em conquistar a Ucrânia e em torná-la parte de uma Rússia maior [do que a actual].

Mas não há provas no registo público para apoiar essa afirmação, o que cria problemas reais tanto para Kiev como para o Ocidente. Então como é que eles lidam comigo? A resposta, evidentemente, é rotular-me de propagandista russo, o que não sou [99]

4.3.7. Ataque à liberdade de religião

Nem mesmo a liberdade de religião (que inclui a liberdade de culto) está a salvo do assédio e da repressão do governo de Zelensky. Foi o que Igreja Ortodoxa Ucraniana tem vindo a descobrir desde 2019 e que tomou dimensões avassaladoras no Inverno de 2022.  

Em 2 de Dezembro de 2022, Zelensky anunciou que tinha pedido aos deputados do seu partido, Servente do Povo, uma lei destinada a proibir todas as religiões com laços à Rússia, alegando que a medida era necessária para «garantir a independência espiritual da Ucrânia» (!!) [100]

A proibição teria, porém, necessariamente, um impacto especial sobre os milhões de ucranianos que se identificam como membros da Igreja Ortodoxa Ucraniana [101] ‒ um ramo autónomo do Patriarcado de Moscovo desde 1657‒ visto que é a religião maioritária dos ucranianos.  

Para escapar à proibição, cuja ameaça já se desenhava no horizonte, a Igreja Ortodoxa Ucraniana declarou a sua separação do Patriarcado de Moscovo e o seu estatuto independente em Maio de 2022, embora mantendo a comunhão religiosa com ele. Mas isso de nada lhe valeu. É que a Igreja Ortodoxa Ucraniana, além de ser uma instituição social que o governo de Zelensky e o seu partido Servente do Povo não controlam ‒ e que é, por conseguinte, perigosa aos seus olhos ‒ é também proprietária de um património imobiliário e artístico valiosíssimo cobiçado por aquela pequena parte do clero que adoptou a ideologia ultranacionalista de Stepan Bandera e que sobrepõe a suas convicções nacionalistas às suas convicções ecuménicas cristãs em troca da benesses do poder de Estado estabelecido.

Para além de recorrer aos seus deputados do Servente do Povo para aprovar uma lei destinada a proibir as actividades da Igreja Ortodoxa Ucraniana, Zelensky também promulgou um decreto do Conselho de Segurança que impõe sanções pessoais contra representantes de grupos religiosos russos e que terão como alvo todo o clero da Igreja Ortodoxa Ucraniana.

Na sua declaração sobre o assunto, Zelensky disse que «nós [entenda-se, o seu governo e a maioria parlamentar que o apoia, N.E.] nunca permitiremos que alguém construa um império dentro da alma Ucraniana» e «enfraqueça a Ucrânia a partir de dentro», nem que «manipule» os cidadãos ucranianos em favor da «agressão russa». Este extremoso pastor de almas afirmou também, na mesma ocasião: «Nós asseguraremos a completa independência para o nosso Estado, em particular a independência espiritual» [102]. Em suma, Zelensky arroga-se o direito de estabelecer quais as religiões que os cidadãos ucranianos estão autorizados a perfilhar. A Igreja Ortodoxa Ucraniana não está nesse rol, porque ele quer cortar de vez e pela raíz os laços multisseculares de convivência que se desenvolveram entre a Ucrânia e a Rússia através, entre outras vertentes culturais, da sua unidade religiosa.

O argumento de Zelensky contra a Igreja Ortodoxa Ucraniana é absolutamente falacioso [103]. É verdade que a Igreja Ortodoxa Ucraniana estava hierarquicamente subordinada, até Maio de 2022, como já foi referido, ao Patriarcado de Moscovo, o órgão eclesiástico de cúpula que rege também a Igreja Ortodoxa Russa e a Igreja Ortodoxa Bielorrussa. Mas isto é uma consequência da formação histórica da Igreja Ortodoxa eslava. A Igreja Ortodoxa eslava data da época da cristianização do Rus — o Estado eslavo que se formou no século IX, com base nas populações que viviam nas regiões que hoje fazem parte da Ucrânia, da Bielorrússia, da Rússia, de uma pequena parte do nordeste da Eslováquia e de uma faixa do leste da Polónia, e que atingiu o seu auge no século XI. Acresce que o hoje conhecemos como Ucrânia, Bielorrússia e Rússia continuaram a ser, durante séculos, mesmo depois da conquista Mongol e a desagregação do Rus de Kiev, territórios e populações constituintes de um único Estado (o Canato da Horda Dourada, seguido da Rússia Czarista, seguido da União Soviética), e não Estados independentes, como são hoje em resultado da implosão e fragmentação da União Soviética — um processo recente (1991). E durante todo esse tempo a Igreja Ortodoxa que resultou da cristianização do Rus manteve-se unida enquanto instituição religiosa.

A distribuição actual dos territórios canónicos das Igrejas Ortodoxas (e são várias a nível mundial) não segue necessariamente os contornos das fronteiras legais dos Estados nacionais, uma vez que as fronteiras são frequentemente alteradas como resultado de acontecimentos políticos, enquanto nas Igrejas Ortodoxas as mudanças não são tão frequentes e drásticas. Por exemplo, a complexa estrutura da Igreja Ortodoxa Russa (cujo órgão de cúpula é o patriarcado de Moscovo) inclui seis níveis de autogoverno fora do território russo:

Igrejas autónomas: Igreja Ortodoxa Japonesa, Igreja Ortodoxa Chinesa (esta igreja deixou de existir no final da década de 1960), Igreja Ortodoxa Ucraniana (depois de Maio de 2022):

Igreja autónoma com direitos de ampla autonomia: Igreja Ortodoxa Ucraniana (antes de Maio de 2022);

Igrejas autogovernadas: Igreja Ortodoxa da Moldávia, Igreja Ortodoxa da Letónia, Igreja Ortodoxa da Estónia e Igreja Ortodoxa Russa fora da Rússia;

Exarcados: Igreja Ortodoxa Bielorrussa, Exarcado Patriarcal para o Sudeste Asiático, Exarcado Patriarcal para a Europa Ocidental e Exarcado Patriarcal para África;

Distritos Metropolitanos: Distrito Metropolitano do Cazaquistão e Distrito Metropolitano da Ásia Central;

Arquidioceses com Estatuto Especial: Arquidiocese das Paróquias da Europa Ocidental de Tradição Russa.

A Igreja Ortodoxa Ucraniana sempre teve uma ampla autonomia administrativa, e nunca houve qualquer tipo de imposição política do Patriarcado de Moscovo aos fiéis ucranianos. Não há qualquer prova para corroborar a afirmação de Zelensky de que a Rússia estaria a construir uma teia “imperial” na Igreja Ortodoxa Ucraniana para «enfraquecer a Ucrânia a partir de dentro». Estas tiradas são apenas tentativas de disfarçar o facto indiscutível de que o regime de Zelensky está a promover uma perseguição contra a religião maioritária do seu próprio povo.

Na realidade, nada disto é uma novidade completa. Desde o golpe de Estado de 2014 que derrubou o presidente eleito Viktor Yanukovych e, sobretudo, desde 2019, com a subida ao poder de Zelensky e do seu partido, que a Igreja Ortodoxa Ucraniana (IOU) está na mira dos ataques do regime ucraniano. A situação agravou-se em 2019, quando uma nova Igreja Ortodoxa Ucraniana (chamemos-lhe IOU-bis para a distinguirmos da IOU) foi formada, com o apoio do presidente Petro Poroshenko, a partir de uma fusão de duas cisões separatistas minoritárias da IOU; fusão essa que foi, seguidamente, declarada autocefálica (independente) pelo Patriarcado de Constantinopla. A IOU-bis foi aceite pela Igreja Ortodoxa da Grécia e por outras igrejas ortodoxas nacionais, enquanto outras igrejas no mundo ortodoxo permaneceram neutras relativamente a este conflito.

A partir dessa data, o governo de Zelensky, tal como o tinha feito o governo de Poroshenko, passou a apoiar a IOU-bis, considerando-a uma espécie de “igreja nacional ucraniana”, em detrimento da tradicional Igreja Ortodoxa Ucraniana (IOU). Isto, apesar da IOU-bis só ter conseguido trazer para o seu lado 387 das 12.000 paróquias da IOU [104]. 

Em Outubro, o SBU prendeu 37 padres da Igreja Ortodoxa Ucraniano com a acusação de ajudarem a Rússia desde a invasão, canalizando informação para as forças russas. O SBU, porém, não disse que informações seriam essas que esses padres teriam dado e que seriam tão valiosas para as tropas russas e onde teriam esses padres obtido essas informações. Em Novembro, o SBU fez rusgas em mais de 350 edifícios e deteve para interrogatórios mais de 850 pessoas. As rusgas centraram-se no complexo religioso Kiev-Pechersk Lavra do século XI, também conhecido como Mosteiro das Grutas de Kiev, e noutros locais de culto da IOU, alegando que o fazia por suspeitar que abrigassem sabotadores russos. 

Complexo religioso de Kiev-Pechersk Lavra, também conhecido como Mosteiro das Grutas de Kiev. O recinto tem uma superfície de mais de 20 hectares e está rodeado por muralhas. O complexo, que começou a ser construído em 1051, abriga mais de uma centena de edifícios, entre os quais numerosas igrejas. Foi classificado como Património da Humanidade pela UNESCO em 1990. Tem o estatuto de museu nacional e de santuário histórico da Igreja Ortodoxa Ucraniana. É também a residência oficial do seu chefe máximo, Onufrius, Metropolita de Kiev e Toda a Ucrânia. Fonte da foto: Wikipédia.

Mas o SBU não disse quantos sabotadores russos tinha descoberto nas rusgas. Podemos concluir, com grande segurança, que não encontraram nenhum, porque, se o tivesse feito, tê-lo-ia anunciado triunfal- mente e com grande alarido.

22 de Novembro 2022. Agentes do SBU e da Guarda Nacional ucraniana vigiam uma das entradas do complexo religioso de Kiev-Pechersk Lavra/Mosteiro das Grutas, no decurso de uma das rusgas que efectuaram nesse complexo. Foto: Valentyn Ogirenko. Reuters.  


A Igreja Ortodoxa Ucraniana qualificou as acusações de colaboração entre o seu clero e a Rússia de «não comprovadas e sem fundamento» e não foi desmentida. Nem podia ser, porque a Igreja Ortodoxa Ucraniana opôs-se publicamente à invasão da Ucrânia pelas tropas russas e distanciou-se da jurisdição do Patriarcado de Moscovo em Maio de 2022, como já tive ocasião de assinalar. 

22 de Novembro 2022. Agentes do SBU e da Guarda Nacional ucraniana interpelam visitantes do Mosteiro das Grutas/complexo religioso de Kiev-Pechersk Lavra e verificam a sua documentação como se fôssem suspeitos de algum crime — quiçá o de quererem cumprir as suas habituais rotinas religiosas. Foto: Valentyn Ogirenko. Reuters

Até finais de 2022, a jurisdição sobre o local tinha sido dividida entre um museu público, denominado Reserva Histórico-Cultural Nacional de Kiev-Pechersk, e a Igreja Ortodoxa Ucraniana (IOU) como local do mosteiro principal dessa Igreja e residência do seu chefe máximo, o primaz Onúfrio, Metropolita de Kiev e de toda a Ucrânia.

Em Janeiro de 2023, o governo de Zelensky ucraniano pôs fim ao arrendamento da Catedral da Dormição e da Igreja do Refeitório (também conhecida como Igreja de Trapezna) pela IOU, devolvendo essas propriedades ao controlo directo do Estado. Anunciou também que a IOU-bis e o seu metropolita, Epifânio, tinham sido autorizados a celebrar uma missa de Natal na Catedral da Dormição, em 7 de Janeiro de 2023, Natal Ortodoxo pelo Antigo Calendário. Ainda em Janeiro de 2023, Zelensky retirou a cidadania ucraniana a 13 padres da IOU [105].

Perante todos estes ataques, mesmo o New York Times, cujas simpatias por Zelensky, pelo seu governo e a pela sua maioria parlamentar são públicas e notórias teve de reconhecer o que não pode ser negado:

Se a Ucrânia ilegalizar um grupo religioso, ficaria entre dezenas de países que já o fizeram, mas a maioria deles são Estados autoritários que estão muito longe do tipo de democracia liberal que a Ucrânia diz ser. A lista inclui a Rússia, que baniu as Testemunhas de Jeová, entre outros, como extremistas /…/

As igrejas ortodoxas de ambos os países [Rússia e Ucrânia] compartilham os mesmos rituais religiosos, seguem o mesmo credo e rastreiam as suas origens até ao mesmo evento em 988, no Rus de Kiev, o Estado eslavo oriental que tanto a Rússia como a Ucrânia consideram a raiz dos seus países modernos. Nesse ano, o Grande Príncipe Volodymyr ‒ Vladimir para os russos ‒ de Kiev, um pagão, converteu-se ao cristianismo ortodoxo [106].

5. Zelensky, herói e espelho mágico do “Ocidente alargado”

O jornal Financial Times escolheu Volodymir Zelensksy a Figura Internacional do Ano de 2022 por Zelensky se «ter tornado num porta-estandarte da democracia liberal».

5.1. Zelensky é um porta-estandarte? Seja. Mas de qual estandarte?

Já em 22 de Abril de 2022, numa coluna de opinião intitulada “Por que é que admiramos Zelensky?”, Bret Stephens ‒ galardoado com o prémio Pulitzer do comentário político em 2013 ‒ afirmara no New York Times:

Admiramos Zelensky porque ele restaurou a ideia do mundo livre no seu devido lugar. O mundo livre não é uma expressão cultural, como a de “Ocidente”; ou um conceito de segurança, como o de OTAN; ou uma descrição económica, como a de “mundo desenvolvido”. A adesão ao mundo livre pertence a qualquer país que subscreva a noção de que o poder do Estado existe, antes de mais nada, para proteger os direitos do indivíduo. E a responsabilidade do mundo livre é ajudar e defender qualquer dos seus membros ameaçados pela invasão e tirania. Tal como acontece com a Ucrânia, assim, eventualmente, irá acontecer com os demais membros. /…/

Admiramos Zelensky porque ele mantém a esperança de que as nossas próprias democracias perturbadas possam ainda eleger dirigentes que possam inspirar, enobrecer e até salvar-nos. Talvez o possamos fazer quando a hora não for tão tardia como agora para o povo da Ucrânia e o seu indómito dirigente.

Pergunto-me de que pessoa, de que país e de que mundo os redactores do Financial Times e o referido colunista do New York Times estão a falar.

Julgo ter ficado claro, ao longo das secções anteriores, que Volodymyr Zelensky e o regime político que vigora na Ucrânia não se enquadram de modo nenhum nas noções de “democracia” e de “mundo livre”. Zelensky começou por presidir a um regime de oligarquia electiva iliberal que se transformou, gradualmente, depois do dia 24 de Fevereiro de 2022, num regime de oligarquia electiva liberticida. Zelensky é hoje o porta-estandarte desse regime que nada tem de inspirador, de admirável, de nobre ou de enobrecedor — salvo, talvez, para os pseudo-amigos da democracia e da liberdade.

Para justificar a sua escolha de Zelensky como Pessoa do Ano de 2022, o Financial Times afirmou também que Zelensky «corporiza a resiliência do seu povo». A Time, para justificar a mesma escolha, afirmou em 7 de Dezembro de 2022:

Quer a batalha pela Ucrânia nos encha de esperança ou de medo, Volodymyr Zelensky galvanizou o mundo de uma forma que não víamos há décadas /.../ Num mundo que tinha vindo a ser definido pela sua divisão, houve uma reunião em torno desta causa, em torno deste país que alguns fora dele talvez não fôssem capazes de apontar num mapa.

No mesmo dia, comentando a escolha, pela Time, de Zelensky como Pessoa do Ano,  Matthew Mpoke Bigg escreveu, aprovadoramente, no New York Times:

O dirigente ucraniano, que veio personificar a resistência da nação desde que a Rússia lançou a sua invasão em larga escala em Fevereiro, caracterizou a guerra como uma luta de um povo amante da paz que procura a libertação da tirania.

Na mesma linha, Rui Tavares Guedes, diretor executivo da Visão, escreveu:

Zelensky é a figura do ano porque demonstrou que é possível resistir e derrotar o autoritarismo. O exemplo de resistência de Zelensky foi decisivo para esse recuo do autoritarismo, como até se viu na forma como, devido à situação na Ucrânia, os partidos de extrema-direita na Europa foram obrigados a ‘adocicar’ o seu discurso e imagem.

Por sua vez, Filipe Luís, editor-executivo da mesma revista, afirmou:

As circunstâncias adversas podem revelar o melhor das pessoas. Zelensky revelou-se e tornou-se uma figura inspiradora, não apenas para o seu povo, mas, sobretudo, para a comunidade Ocidental. Foram os governos que foram atrás das opiniões públicas no apoio à Ucrânia, e isso tem muito a ver com a postura e o exemplo do presidente ucraniano. O que também tem a ver com a resistência democrática noutras paragens.


13 de Setembro de 2022.  Volodymyr Zelensky faz uma viagem de surpresa à cidade de Izyum, na região de Kharkov, para uma sessão fotográfica após a recaptura da cidade às forças russas. Durante a visita, um soldado da guarda de Zelensky (o que está de costas) foi fotografado com uma insígnia nazi cosida no coleteFonte da foto. The Grayzone.


                          



Em cima, a insígnia SS-Totenkopf [=Cabeça de Morto] que era muito popular entre as tropas SS e as unidades blindadas da Wehrmacht da Alemanha nazi. Em baixo, a insígnia Operador Crânio (a Cabeça de Morto com um capacete) usada pelo guarda-costas de Zelensky na foto anterior. O desenho da chave (branca sobre fundo preto) na parte superior direita do capacete é uma referência clara à Leibstandarte SS Adolf Hitler — a guarda pessoal de Hitler. Esta insígnia é vendida na Ucrânia por uma firma chamada R31CH (uma alusão clara ao 3º. REICH de Hitler) [107].

                                                             


Pergunto-me, outra vez, de que pessoa, de que país, de que povo e de que mundo estão estes jornalistas a falar. Se as causas que contribuíram para as guerras na Ucrânia não forem identificadas com lucidez e suficiente profundidade analítica ‒ e, por conseguinte, sem omitir nem deturpar nenhum facto pertinente (como procurei fazê-lo noutra ocasião [108]) ‒ e se Zelensky e o seu regime não forem retratados com verdade (como foi feito nas secções 2, 3 e 4 deste artigo), é impossível actuar eficazmente para pôr um termo a essas guerras e construir uma solução de paz duradoura na Europa.

— Se Zelensky foi a figura internacional do ano 2022 para os jornalistas do Financial Times, da Time e da Visão  ‒ e talvez também do Diário de Notícias e da RTP-1 (“talvez” porque, salvo melhor informação, estes últimos nunca explicitaram os motivos da sua escolha) ‒ não foi, de certeza, por ele ter demonstrado que é possível “resistir e derrotar o autoritarismo de uma forma que não víamos há décadas”, mas por se ter revelado, como vimos, um epítome do autoritarismo de uma forma que não víamos há décadas — a do tirano eleito. Por isso, só se pode concluir que é isso que galvaniza esses jornalistas e que galvaniza o mundo mitomediático onde habitam e onde gostariam que fixássemos residência permanente.

— Os partidos que são habitualmente qualificados, na Europa, como sendo de extrema-direita ‒ como, por exemplo, o partido Chega de André Ventura, em Portugal; o partido Vox de Santiago Abascal, em Espanha; o partido Irmãos de Itália de Giorgia Meloni, na Itália; e o partido Congregação Nacional de Marine Le Pen, em França ‒ não foram obrigados a “adocicar” o seu discurso e a sua imagem para apoiarem o envio de armas, munições, informações militares, apoio logístico e dinheiro a Zelensky e ao seu regime oligárquico liberticida. Fizeram-no com toda a facilidade, porque lhes bastou colocarem-se ao lado dos partidos de quase todas as outras correntes políticas que disputam a representação das oligarquias financeiras do “Ocidente alargado” ‒ social-democracia (ao estilo do PS português, do SPD alemão ou do Partido Trabalhista inglês), democracia cristã, social-liberais, neoliberais, conservadores (ao estilo britânico, mas não ao estilo americano), neoconservadores, verdes, “democratas” e republicanos dos EUA, etc. ‒ que tomaram a dianteira desse apoio. São os partidos de extrema-direita que parecem agora “adocicados” em contraste com a política xenófoba, cancelatória, belicista, antilaboral, antissindical e antiliberdades de Zelensky e do seu regime autoritarista que descrevi nas secções anteriores

5.2. O papel que Zelensky rejeitou e o papel que aceitou desempenhar

Zelensky poderia ter evitado a invasão da Ucrânia pelas tropas russas. Para que tal acontecesse, bastaria que:

1) tivesse cumprido os Acordos de Minsk, que o seu antecessor, Poroshenko, celebrou, em 2014 e 2015, com os representantes das populações russófonas sublevadas de Donetsk e Luhansk, mas que Poroshenko nunca cumpriu;

2) tivesse feito aprovar no parlamento ucraniano a revogação da emenda constitucional de 7 de Fevereiro de 2019 que consagrou o objectivo de adesão da Ucrânia à OTAN;

3) tivesse declarado a neutralidade militar da Ucrânia, tornando-a um país militarmente neutro, como são a Suíça, a Áustria, a Irlanda, a Sérvia e Malta — e como foram também, durante os últimos 190 anos ou durante os últimos 74 anos e até há poucos meses, a Suécia e a Finlândia, respectivamente.  

Zelensky tinha os meios de o fazer porque, como vimos, foi eleito por uma grande maioria de votos (73,2 %) e o seu partido, Servente do Povo, dispunha de uma maioria absoluta de deputados no parlamento ucraniano.

Mas não é tudo. Apesar de não querido evitar a guerra com a Rússia e ter, inclusive, feito tudo, deliberada ou inadvertidamente, para provocá-la por falta de discernimento político e de coragem política, Zelensky poderia ter-se redimido.

— Poderia ter evitado, logo nos seus primeiros dias, a continuação e a escalada da guerra com a Rússia (com os concomitantes efeitos de mortandade, destruição material, êxodo populacional e descalabro social que acarretaram e continuam a acarretar) se tivesse não só proposto ‒ como algumas fontes de informação, incluindo o próprio Zelensky, relataram ter sido o caso em, pelo menos, duas ocasiões, como vimos ‒ mas mantido firmemente estes três pontos em cima da mesa de negociações com a Rússia, sem ceder a pressões e chantagens dos seus aliados banderistas e ocidentais.

― Mesmo agora, quase um ano volvido depois do início da guerra com a Rússia, Zeklensky poderia pôr termo à guerra que está a devastar o seu povo e o seu país, propondo um cessar-fogo imediato e a abertura de negociações imediatas com a Rússia com base nesses três pontos [109].  

Se Zelensky tivesse feito qualquer destas coisas teria merecido, de facto, ser eleito como a “figura internacional do ano de 2022” — e pelas melhores razões.

Mas Zelensky preferiu optar, como vimos, por uma política destinada a preparar e provocar, com a indispensável ajuda dos EUA e da OTAN, «uma grande guerra com a Rússia que tenha como recompensa a entrada da Ucrânia na OTAN» (Oleksiy Arestovych ipsi dixit).


24 de Abril de 2022. À esquerda de Zelensky está Lloyd Austin, ministro da Defesa dos EUA. À direita está Anthony Bliken, ministro dos Negócios Estrangeiros dos EUA. Fonte da foto: U.S. Department of Defense.

O resultado está à vista: mais de 7.100 civis ucranianos mortos e 11.547 feridos (fonte: ONU, 30-01-2023); centenas de milhares de soldados ucranianos mortos, desaparecidos em combate, feridos ou feitos prisioneiros; mais de 14 milhões de ucranianos refugiados noutros países ou deslocados na própria Ucrânia; um país reduzido a escombros; um aparelho produtivo esfacelado; uma sociedade em pantanas.

Apesar disso, Zelensky não desiste de continuar a trilhar esse caminho de horrores e desolação, sacrificando o seu povo numa guerra suicidária. É essa a verdadeira razão da grande admiração que suscita em Boris Johnson, Nancy Pellosi, Ursula von der Leyen, Anthony Blinken, Lloyd Austin, Emmanuel Macron, Olaf Scholz, Mario Draghi, Josep Borrell, António Costa, que fizeram todos a sua peregrinação a Kiev para lhe prestar homenagem, e em tantos outros que gostariam também de os imitar. É essa a razão pela qual o Financial Times e a Time o consideram um herói e o escolheram como figura internacional do ano de 2022.

O papel que o chamado “Ocidente alargado” [entenda-se, o colectivo formado pelas elites dirigentes da OTAN, UE, EEE, EFTA, G7 + Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia, com os EUA à cabeça] ofereceu a Zelensky, e que ele aceitou e tem desempenhado com grande mestria, é muito semelhante à função do espelho mágico no conto Branca de Neve e os Sete Anões, dos irmãos Grimm, antes da Branca de Neve ter atingido a puberdade e de se ter tornado a mais bela das mulheres, desencadeando a inveja e a fúria da rainha sua madrasta, também ela muito bela, mas extremamente vaidosa.

De cada vez que o “Ocidente alargado” pergunta a Zelensky: «Espelho meu, espelho meu, há alguém no mundo mais forte do que eu?». Ele responde: «Tu és o mais forte. Mas há um país muito grande que está cada vez mais forte e que aspira a ser pelo menos tão forte quanto tu: é a Rússia. Temos de a levar muito a sério, porque tem um amigo poderoso: a China. Porém, se me deres muito mais armas e armas melhores, eu enfraqueço a Rússia e impeço que alguma vez ela venha a ser tão forte como tu. Slava Ukraini!».

Em suma, para se conseguir abreviar as provações e mitigar as perdas e os sofrimentos do povo ucraniano na guerra em curso com a Rússia, não se pode, de maneira nenhuma, apoiar o regime liberticida de Zelensky, cujos únicos títulos de glória são ter feito tudo para provocar a Rússia a desencadeá-la e estar disposto a fazer tudo para continuá-la até ao último soldado ucraniano.

O caminho para paz   e para as liberdades, direitos e benfeitorias que dão conteúdo concreto e sentido prático à paz  não é esse. Não sei se entre as pessoas que me leram até aqui havia quem, antes de o fazer, não soubesse qual seria esse caminho. Mas se havia alguma que se encontrava nessa situação, espero que agora o tenha ficado a saber. Foi essa a motivação que me levou a escrever este longo artigo.

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P.S. Marcelo Rebelo de Sousa condecora Volodymir Zelensky

Em 15 de Fevereiro de 2023, Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República Portuguesa, fez publicar esta nota no seu sítio electrónico oficial de informação:

Presidente da República atribui a Ordem da Liberdade ao Presidente Zelensky.

O Presidente da República tencionava anunciar no dia 24 deste mês, data em que se completa um ano sobre a agressão da Rússia contra a Ucrânia, a condecoração do Presidente Zelensky.

Tendo em conta a iniciativa parlamentar sobre esta matéria, anuncia desde já que decidiu atribuir ao Presidente da Ucrânia o Grande-Colar da Ordem da Liberdade.

No mesmo sítio oficial de informação, na rubrica “ordens honoríficas portuguesas”, sub-rubrica “ordens nacionais”, encontra-se a seguinte informação sobre a Ordem da Liberdade:

A Ordem da Liberdade assinalou a Revolução dos Cravos e está associada às causas da luta pela Liberdade e à Defesa dos Direitos Humanos. A Ordem da Liberdade destina-se a distinguir serviços relevantes prestados em defesa dos valores da Civilização, em prol da dignificação da Pessoa Humana e à causa da Liberdade.

O Grande-Colar da Ordem da Liberdade é o mais alto grau da Ordem e é concedido pelo Presidente da República a Chefes de Estado estrangeiros. O Grande-Colar pode ainda ser concedido pelo Presidente da República a antigos Chefes de Estado e a pessoas cujos feitos, de natureza extraordinária e especial relevância para Portugal, os tornem merecedores dessa distinção.

No artigo publicado mais acima, demonstrei, com base num grande acervo de factos disponíveis em fontes abertas, que o presidente Zelensky é um LIBERTICIDA consumado e inveterado (cf. secção 4 e 5 do artigo), além de um corrupto e nepotista patenteado (cf. secção 2 do artigo).

E é esse homem que Marcelo Rebelo de Sousa condecorou com a Ordem da Liberdade!


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Notas e Referências Bibliográficas 

[1] Milmilionário é um neologismo da minha autoria para significar alguém que possua uma fortuna igual ou superior a mil milhões de dólares americanos, euros ou libras esterlinas. Equivalente a billionaire (Inglês) e milliardaire (Francês). Os brasileiros, que utilizam (tal como os americanos) a escala curta, dizem bilionários. Para os portugueses, que utilizam tal como os franceses e demais europeus (salvo os britânicos desde a década de 1970, data a parti da qual se alinharam com os americanos) a escala longa, um bilionário é alguém que possui uma fortuna igual ou equivalente a um bilião (= um milhão de milhões) de dólares americanos, euros ou libras esterlinas.

[2] «Há democracia sempre que as magistraturas sejam dominadas por uma maioria de cidadãos livres e pobres; há oligarquia sempre que a magistraturas forem dominadas por uma minoria de cidadãos ricos e bem-nascidos» (Aristóteles, Política. Edições Vega, 1998, p.283). O termo magistratura que consta desta definição não tem o sentido que lhe é contemporaneamente atribuído pelos juristas, a saber: «Magistratura é a carreira de Estado que tem a atribuição constitucional de administrar Justiça no exercício do Poder Judiciário». Bem pelo contrário. Por magistraturano sentido aristotélico, original, do termo ‒ deve entender-se o exercício regulado de todo e qualquer cargo público em qualquer dos ramos do poder político: legislativo, judiciário, governativo/executivo. Numa democracia, nenhuma magistratura constitui “uma carreira de Estado” e, com raras excepções, o seu exercício, sempre de curta duração, é atribuído por sorteio ou por turnos rotativos entre o conjunto dos cidadãos. 

]3] O designatum (ou referente conceptual ou significatário) é a entidade ‒ real ou fictícia; real-concreta (e.g., estrela, montanha, vírus, organismo, artefacto) ou real-abstracta (e.g., órbita planetária, átomo, gene, capital financeiro, sociedade) ‒, o acontecimento (real ou fictício) ou o processo (real ou fictício) no fito discursivo de um enunciador que é designada/designado pelo significado de uma palavra, de um sintagma nominal (ou verbal) ou de uma frase. O designatum (ou referente conceptual) não deve ser confundido com o denotatum (ou referente real). Muitas palavras, sintagmas ou frases não tem denotatum. Por exemplo, “pedra filosofal,” “flogisto,” “moeda fiduciária,” “Minotauro,” “unicórnio,” “o Deus das Moscas,” “o Conde Drácula,” “Sauron,” “O dia de São Nunca à tarde,” “O vestido de noiva da imperatriz Sissi era cor de burro quando foge”. O significado de muitas palavras, sintagmas e frases tem tanto um designatum como também um denotatum. Nesses casos, a distinção entre os dois conceitos foi bem ilustrada por A.H. Gardiner com este exemplo simples:

Se eu pedir uma fatia de bolo [a alguém], a coisa à qual faço referência é, em primeiro lugar, a fatia de bolo tal como eu a percebo [i.e., o designatum, N.E.] e só secundariamente a própria fatia de bolo [i.e., o denotatum, N.E.]. /…/ Eu peço uma fatia de bolo à minha mulher. A minha mulher recebe de mim a fatia de bolo como uma imagem mental [--> designatum] e entrega-me a fatia de bolo como uma realidade [--> denotatum] (Alan Henderson Gardiner, The Theory of Speech and Language. Oxford at the Clarendon Press. 1951 [1932], pp.142-143). 

[4] Um regime político [Gr. politeia] é uma ordenação de magistraturas numa comunidade de cidadãos [Gr. koinonia politon] que estabelece a sua repartição respectiva, sobretudo das magistraturas supremas, e qual a finalidade da comunidade para cada caso (cf. Aristóteles, op.cit., pp. 207, 273, 274).

[5] Branko Milanovic, Capitalism, Alone ‒ The Future of the System That Rules the World. Belknap Press: An imprint of Harvard University Press (2019). Milanovic estabelece uma distinção entre duas versões principais do sistema capitalista globalizado e hipercomercializado que rege actualmente o mundo inteiro, a que deu o nome de “capitalismo liberal” e “capitalismo político”, epitomizadas pelos EUA e pela China, respectivamente. A distinção é válida e útil, mas a terminologia que Milanovic escolheu para a lexicalizar é muito deficiente e enganadora. “Liberal” não se opõe a “político,” porque “liberal” é uma modalidade do “político”. Uma terminologia melhor seria, por exemplo, capitalismo impermisto vs. capitalismo permisto.

[6] Andrew Cockburn, “Undelivered Goods.” Harpers’ Magazine. August 13, 205.

[7] Esta proibição de entrar nos EUA é extensiva à mulher, à filha e ao filho de Kolomoysky. Cf. Anthony Blinken, “Public Designation of Oligarch and Former Ukrainian Public Official Ihor Kolomoysky Due to Involvement in Significant Corruption. United States Department of State, March 5, 2021.  

[8] Jeremy Kuzmarov, “How corrupt is Ukrainian President Volodymyr Zelensky?”. CovertAction Magazine, July 20, 2022.

[9] Pedro González, “Au service de la corruption et des corrompus.” IM—1776. 22 Juillet 2022 (https://im 1776.com/2022/05/27/servant-of-the-corrupt/;https://vk.com/@machouche-au-service-de-la-corruption-et-des-corrompus).

[10] Pedro González, art.cit.

[11] Sobre os “homenzinhos verdes,” ver José Catarino Soares, Quem anexou a Crimeia: foi a Rússia ou a Ucrânia?, em especial as secções 4.2 [“Um argumento esfarrapado”] e 4.3 [“A caraminhola da #agressão russa na Crimeia#”]. Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue 22 de Agosto de 2022.

[12] Betsy Swan,Billionaire Ukrainian Oligarch Ihor Kolomoisky Under Investigation by FBI”. The Daily Beast. April 8, 2022.

[13] “Kolomoyskyi’s assets to be nationalized in Crimea – Sergey Aksyonov”. Archived 8 March 2016 at the Wayback Machine, CEE INSIGHT (5 September 2014).

[14] David Barret & Davidbarret, “Ukrainian oligarchs clash in court over $2bn business deal amid claims of murder and bribery.” The Telegraph, 4 December 2015.

[15] Vijai Maheswari, “The comedian and the oligarch”. Politico. April 17, 2019.

[16] Em Julho de 2022, o sistema mediático dominante de comunicação social na Ucrânia e no chamado Ocidente alargado entrou em frenesim ao anunciar que Zelensky teria emitido um decreto presidencial que retirava a nacionalidade ucraniana ao seu amigo e patrocinador Kolomoysky e a mais nove outros plutocratas (ver, por exemplo, “Rumor has it did Zelensky strip Ukrainian oligarch Ihor Kolomoisky of his citizenship?”. Meduza, 28 July 2023). Todavia, o referido decreto, salvo melhor informação, nunca foi publicado, o que não quer dizer que não exista, porque na Ucrânia tudo é possível, incluindo fazer leis secretas. «As autoridades ucranianas têm ainda de confirmar ou negar definitivamente a autenticidade do documento digitalizado [que foi publicado como uma calculada fuga de informação, N.E.]. Representantes do gabinete de Zelensky falaram, no entanto, evasivamente, do facto de os decretos presidenciais relativos à privação da cidadania serem “classificados”, uma vez que contêm informações pessoais sensíveis. Isto significa que se Zelensky emitisse realmente um tal decreto, este não seria oficialmente tornado público» (loc.cit. Meduza).

[17] “Kolomoisky reveals Zelensky’s nomination details.” UAwire, May 4, 2019.

[18] Nat South, “Just a handful, not relevant, yet…”. The Saker, March 27, 2022.

[19] O melhor estudioso do assunto concluiu: «Os julgamentos e as investigações não revelaram qualquer prova de que Yanukovych ou os seus ministros e comandantes da polícia tivessem ordenado a matança dos manifestantes de Maidan. § Existem vários indícios de obstrução das investigações do morticínio de Maidan e dos julgamentos pelos governos pró-Maidan e pelas organizações de extrema-direita, bem como o encobrimento de muitas das principais provas do morticínio. § A investigação negou a presença de quaisquer atiradores furtivos nos edifícios controlados pelas forças pró-Maidan, apesar das provas esmagadoras em contrário. A investigação e o julgamento do morticínio de Maidan foram obstruídos, as acusações contra os polícias da unidade Berkut e, posteriormente, contra dois membros da unidade Omega [das tropas internas] foram forjadas, e muitas das provas destruídas para encobrir o envolvimento dos mandantes e atiradores furtivos neste morticínio. § Nem uma única pessoa foi condenada ou presa pela matança de Maidan de manifestantes e de agentes da polícia em 18-20 de Fevereiro de 2014, após quase oito anos de investigações e seis anos de julgamentos, apesar deste caso de violência política ser um dos casos mais bem documentados de homicídio em massa da história e uma das violações mais significativas dos direitos humanos na Ucrânia independente. Ninguém foi acusado de tentativa de assassinato de quase metade dos manifestantes feridos em 20 de Fevereiro de 2014Ivan Katchanovski, “The Maidan Massacre in Ukraine: Revelations from Trials and Investigation”. Conference Paper, in SSRN Electronic Journal. August 2021 (pp.53-54).

[20] Sam Sokal, Kiev regional police head accused of neo-Nazi ties.” Jerusalem Post, November 12, 2014

[21] Roman Olearchyk & Ben Hall, “Serious intent underpins Ukraine’s comic candidate.” Financial Times, April 7, 2019.

[22] Jeremy Kuzmarov, “How corrupt is Ukrainian President Volodymyr Zelensky?”. CovertAction Magazine, July 20, 2022.

[23] Roman Olearchyk & Ben Hall, art.cit.

[24] Iryna Solonenko, “The Mystery of Volodymyr Zelenskiy.” DGAP, German Council on Foreign Relations. April 19, 2019.

[25] Jeremy Kuzmarov, art.cit.

[26] A Transparência Internacional que se autodefine como sendo «uma pessoa coletiva de direito privado, independente e sem fins lucrativos»  produz o Índice de Percepção da Corrupção (IPC), o principal indicador mundial de corrupção no “sector público” (entenda-se, na administração pública, no chamado sector empresarial do Estado e nas instituições do poder político: governativo, legislativo e judiciário). Produzido desde 1995, o IPC avalia 180 países e territórios. Os avaliadores são “especialistas” [??] e “homens de negócios” (sic— e aqui reside a maior limitação do IPC. Entre os doadores da Transparência Internacional está o milmilionário George Soros. Sabemos que homens de negócios como Soros têm uma visão muito peculiar do que é corrupção. O IPC avalia os países atribuindo-lhe uma posição ordinal, numa tabela ordenada de 1 a 180, e atribui-lhes notas, numa escala de 0 a 100 pontos. Quanto maior for o número da posição ordinal, maior é a percepção de corrupção. Quanto maior for a nota, maior é a percepção de integridade do país. Em 2021, a Ucrânia ocupava a posição ordinal 122ª. e teve 32 pontos de nota, sendo assim um dos países percebidos como mais corruptos do mundo, tal como a Rússia (posição ordinal 136ª. e 29 pontos de nota). É dificil entender em que é que a Ucrânia é menos corrupta do que Rússia, mas passsemos adiante. A título de comparação, acrescente-se que a Dinamarca, a Finlândia e Nova Zelândia ocupavam, ex-aequo, a posição ordinal 1ª. e tiveram, cada um, 88 pontos de nota, sendo assim os países percebidos como menos corruptos (ou mais íntegros) do mundo. Portugal ocupava nesse ano a posição ordinal 32ª.

[27] Matt Durot. “President Zelesnky is not a billionaire: So how much is he worth?”. Forbes. April 20, 2022.

[28] “Zelensky apanhado nos Pandora Papers com contas offshore.” Correio da Manhã, 6 de Agosto de 2022.

[29] Elena Loginova, “Pandora Papers Reveal Offshore Holdings of Ukrainian President and his Inner Circle.” OCCRP/Slidstvo.Info, 3 October 2021.

[30] Remeto os leitores interessados para a referência indicada na nota 28.

[31] Elena Loginova, art.cit.

[32] “Zelensky confirmed the presence of offshore companies”. RBC. 17 Outubro 2021. Essas declarações de Zelensky podem ser vistas em https://www.youtube.com/watch?v=BsMHv3ujEv8&t=67s.

[33] “Volodymyr Zelensky – Campaign Platform in English.” Geohistory, 19 July 2022. 

[34] Iryna Solonenko, art.cit.

[35] “Poll: Ukrainian public split over EU, Customs Union options.” Kyiv Post, 26 November 2013-

[36] “Azarov: Ukraine could cooperate with Customs Union and EU.” Kyiv Post, 17 December 2012. Mykola Azorov foi primeiro-ministro da Ucrânia de 2010 a 2014, durante a presidência de Viktor Yanukovych.

[37] “Barroso reminds Ukraine that Customs Union and free trade with EU are incompatible.” Ukrinform, 25 February 2013.

[38] Mesmo governantes e autores para quem a OTAN e a UE são uma prova de que vivemos, na Europa, no melhor dos mundos possíveis, reconhecem os pontos de vista diametralmente opostos que a Rússia e a UE adoptaram sobre o posicionamento que gostariam que a Ucrânia tivesse relativamente a elas e o carácter nocivo (para os interesses da Ucrânia) e contraproducente (para os interesses da UE) do ponto de vista da UE. A este propósito, ver, por exemplo, Frederico Santopinto, “Du libre-échange à la crise ukranienne — l’UE face à ses erreurs”. GRIP, Bruxelles, 14 avril 2014.

[39] Para uma análise pormenorizada deste golpe de Estado, ver José Catarino Soares, Quatro proposições falsas, em especial as secções 2, 3, 4 e 5. Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue 24 de Setembro 2022.

[40] “Volodymyr Zelensky – Campaign Platform in English.” Geohistory, 19 July 2022.  

[41] Alexander Rubinstein e Max Blumenthal, “How Ukraine’s Jewish president Zelensky made peace with neo-Nazi paramilitaries on front lines of war with Russia.” The Gray Zone, March 4, 2022. Como não sei ucraniano, foi este artigo e, em particular, a passagem citada no corpo principal do presente artigo, que me levou a afirmar, confiadamente, no meu artigo A guerra na Ucrânia [4ª. parte]. A luta contra a guerra (Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue 13 de Julho de 2022), o seguinte:

«Em Maio de 2019, Zelensky foi eleito com um programa apostado, entre outras coisas, em acabar com as hostilidades armadas permanentes contra a população russófona dos “oblasts” de Lugansk e Donetsk no Donbass e a fazer cumprir o acordo de Minsk 2, em particular as eleições para os órgãos de autogoverno dessas duas regiões através da fórmula Steinmeier, concebida pelo então ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, hoje presidente da República da Alemanha, Walter Steinmeier. Esta foi, aliás, uma das razões do seu êxito eleitoral».

Na altura em que escrevi estas linhas (Maio de 2022), ainda não tinha descoberto e lido uma tradução do programa eleitoral de Zelensky que referi nas notas 33 e 40, supra. Isso só aconteceu recentemente, quando eu pesquisava as informações necessárias à redacção do presente artigo.

[42] Vladimir Zelensky. Part 1 of 3. “Visiting Dmitry Gordon” (2018) [https://www.youtube.com/watch? v=P8OBR9yjgFA]; Vladimir Zelensky. Part 2 of 3. “Visiting Dmitry Gordon” (2018) [https://www.youtube.com/ watch?v=fwuOfFlLn88]; Vladimir Zelensky. 3/3. “Visiting Dmitry Gordon” (2018) [https://www.youtube.com/ watch?v=VPE2hv8qbBc]

[43] OstroV, News Agency (https://www.ostro.info) e Ukrainska Pravda (https://www.pravda.com.ua/).

[44] A minha tradução desta entrevista foi feita a partir de duas fontes distintas: Vladyslav Bulatchik, “Presidential election: Volodymyr Zelensky about war and peace” (OstroV, January 25, 2019) e “Zelenskyi on the war in Donbas: Although he is ready to negotiate with the bald devil” (Ukrainska Pravda, 26 December 2018). Os artigos referenciados, principalmente o primeiro, estão escritos num Inglês atroz, muito possivelmente resultante da tradução automática do Google a partir do Ucraniano. Por isso, tive de tomar algumas liberdades na minha tradução do Inglês para Português, aproveitando o que de melhor possuíam esses artigos, de maneira a que, aqui e ali, tanto o texto de partida como texto de chegada fizessem sentido. 

[45] “Volodymyr Zelenskyy: It is beneficial for us to dissolve the Rada, but we will think and act according to the law.” RBC-Ukraine, April 18, 2019.

[46] Ver, por exemplo, Christian Miller, “Zelensky’s first year: he promised sweeping changes. How’s he doing?”. Radio FreeEurope/Radio Liberty, April 25, 2020; Steven Pifer, “Zelenskiy’s first year: New beginning or false dawn?”, Atlantic Council. Ukraine Alert, May 18, 2020; Steven Pifer, “We’ve seen this movie before”, Kyiv Post, July 21, 2020, republicado como “Ukraine’s Zelenskiy ran on a reform platform — Is he delivering?” Brookings. July 22, 2020; Mykhailo Minakov, “Just Like All the Others: The End of the Zelensky.” Kennan Institute. November 2, 2021.

[47] Para uma curta introdução a este assunto, ver Adrien Nonjon, “Os dois rostos da extrema-direita ucraniana.” Esquerda net. 22 Fevereiro 2022. Texto publicado originalmente em The Conversation a 8 de Junho de 2021. Para uma análise mais aprofundada do assunto, ver Grezgorz Rossoliński-Liebe, “The Fascist Kernel of Ukrainian Genocidal Nationalism.” The Carl Beck Papers in Russian an Eastern European Studies, Number 2402, 2015.

[48] A fonte destes números é Grezgorz Rossoliński-Liebe, “The Fascist Kernel of Ukrainian Genocidal Nationalism” (The Carl Beck Papers. In Russian an Eastern European Studies, Number 2402, 2015).

[49] “Stepan Bandera.” Wikipedia. Edição em Inglês.

[50] Refiro-me a Grezgorz Rossoliński-Liebe, “The Fascist Kernel of Ukrainian Genocidal Nationalism.” (The Carl Beck Papers (in Russian an Eastern European Studies, Number 2402, 2015) e Stepan Bandera: The Life and Afterlife of a Ukrainian Nationalist: Fascism, Genocide, and Cult (Stuttgart: Ibidem Verlag, 2014). Deste autor, ver também: “Holocaust, Fascism, and Ukrainian History: Does It Make Sense to Rethink the History of Ukrainian Perpetrators in the European Context?” (The American Association for Polish-Jewish Studies, sem data, mas possivelmente publicado em 2014 ou 2015); “Holocaust Amnesia: The Ukrainian Diaspora and the Genocide of the Jews” (German Yearbook of Contemporary History, Volume 1, 2016); “Survivor Testimonies and the Coming to Terms with the Holocaust in Volhynia and Eastern Galicia: The Case of the Ukrainian Nationalists” (East European Politics and Societies, Volume 34, Issue 1, February 2020).

[51] As fontes que utilizei para escrever esta subsecção foram as seguintes:  Jacques Baud, Opération Z. Paris: Max Milo. 2202; Michael Colborne, O Movimento Azov. Alma dos Livros. 2022; Valery Engel, “Zelensky Struggles To Contain Ukraine’s Neo-Nazi Problem”. November 30, 2019. Centre for Analysis of the Radical Right; Michael Colborne, Kyiv, “Ukraine: a new hub for international neo-Nazi concerts”. October 3, 2019, Centre for Analysis of the Radical Right; Ricardo Cabral Fernandes, “Ucrânia, o campo de treino militar para a extrema-direita mundial.” Público, 21 de Junho de 2020; Adrien Nonjon, “Les deux visages de l’extrême droite ukrainienne.” The Conversation, June 8, 2021; Alexander Rubinstein & Max Blumenthal, “How Ukraine’s Jewish President Made Peace with Neo-Nazis On The Front Against Russia”. The Grayzone, March 6, 2022; Ted Snider,“Partnering with neo-Nazis in Ukraine: an inconvenient history”. Antiwar.com. March 31, 2022; Adrien Nonjon, “Guerre en Ukraine: qu’est-ce que le régiment Azov, ce bataillon ultra-nationaliste devenu symbole du martyre de Marioupol?” The Conversation, May 24, 2022.

[52] Mark Benetts, “Ukraine’s National Militia: «We’re not neo-Nazis, we just want to make our country better»!”. The Guardian, 13 Março de 2018.

[53] O OHCHR [Office of the High Commissioner for Human Rights da ONU] estima o número total de baixas relacionadas com o conflito na Ucrânia, entre 14 de abril de 2014 e 31 de Dezembro 2021, em 51.000-54.000: 14.200-14.400 mortos (pelo menos 3.404 civis, 4.400 elementos das tropas ucranianas e 6.500 «membros de grupos armados» [entenda-se, membros das milícias populares de autodefesa das repúblicas populares de Donetsk (RPD) e de Luhansk (RPL)], e 37.000-39.000 feridos (7.000-9.000 civis, 13.800-14.200 elementos das tropas ucranianas, e 15.800-16.200 membros das milícias da RPD e da RPL). Cf. “Conflict-related civilian casualties in Ukraine,” United Nations Human Rights Monitoring Mission In Ukraine, Alto-Comissariado dos Direitos Humanos, 31 de Dezembro de 2021 (actualizado em 27 de Janeiro de 2022

[54] Oksana Grytsenko, “I’m not a loser’: Zelensky clashes with veterans over Donbas disengagement (VIDEO)”. Kyiv Post. October 28, 2019.

[55] Alexander Rubinstein & Max Blumenthal, “How Ukraine’s Jewish President, Volodymyr Zelensky, Made Peace with Neo-Nazi Paramilitaries on Front Lines of War with Russia.” The Gray Zone, March 4, 2022.

[56] Oksana Grytsenko, art.cit.

[57] Rubinstein & Blumenthal, art.cit. Há, aparentemente, uma imprecisão na citação. A partir de 2020, a ala paramilitar de rua do Movimento Azov dá pelo nome de Centúria. Antes dessa data, dava pelo nome de Milícia Nacional. Corpo Nacional é o nome do partido político que serve de fachada civil legal do Movimento Azov nas suas diversas componentes, incluindo a Centúria e o Regimento Azov. Colhi estas informações, que presumo que sejam fidedignas, no livro O Movimento Azov, de Michael Colborne, (AlmaLivros. 2022). Mas não o posso afiançar, porque me dei conta que este livro contém também erros e imprecisões noutras matérias.

[58] Sam Sokol, “Ukrainian PM, minister attended neo-Nazi concert in Kyiv.” The Times of Israel. 27 October, 2019.

[59] Valery Engel, “Zelensky Struggles to Contain Ukraine’s Neo-Nazi Problem”. Centre for Analysis of the Radical Right. November 30, 2019.

[60] Alyona Getmanchuk, “Russia as aggressor, NATO as objective: Ukraine’s new National Security Strategy.” Atlantic Council. September 30, 2020; Taras Kuzio, “Russo-Ukrainian War: Time for Zelenskyy to turn from populism to pragmatism.” Atlantic Council. October 12, 2020; Taras Kuzio, “The Long and Arduous Road: Ukraine Updates Its National Security Strategy.” Rusi. 16 October 2020; Maciej Zaniewicz. “Ukraine’s New Military Security Strategy.” PISM Bulletin n. º 91 (1787), 5 May 2021.

[61] Traduzi um excerto dessa entrevista de Arestovych num artigo anterior desta série (Assassinatos de Estado, fantasmagorias ideológicas, patranhas mediáticas e moralismo farisaico. Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue 5 de Dezembro de 2022). Ver nomeadamente a sua secção 6.1.  

[62] O decreto presidencial nº. 117/2021 aprova a “Estratégia para desocupação e reintegração do território temporariamente ocupado da República Autónoma da Crimeia e da cidade de Sebastopol” (sic) proposta pelo Conselho Geral de Segurança da Ucrânia. É uma prova cabal das fantasias belicistas do ultranacionalismo banderista — a ideologia oficial do poder político e do aparelho de Estado da Ucrânia desde o golpe de Estado de Fevereiro de 2014. Como qualquer fantasia belicista, esta também necessita, para se legitimar, de criar uma cortina de fumo sobre os factos. Na ocorrência, isso é feito através do mantra mentiroso da “anexação da Crimeia pela Rússia”, que é repetido incansavelmente pelos governos dos países do G7, da UE e da OTAN, e que o sistema mediático dominante da comunicação social desses países se encarregou de amplificar sem qualquer exame crítico da sua veracidade. Este mantra, cuja simplicidade lhe dá um ar inofensivo, constitui, não obstante, uma das tentativas mais ousadas e pérfidas de falsificar a história.

A Crimeia, historicamente, foi sempre parte integrante da Rússia desde 1783, quer durante o regime czarista, quer durante a vigência da União Soviética (US). Na US, a Crimeia foi, primeiro, uma república soviética autónoma (de Outubro de 1921 a Junho de 1945) e, em seguida (de 1945 a 1991), um oblast [uma região] da república soviética russa — exceptuando um curto período de 37 anos, durante os quais foi ilegalmente transferida por Nikita Khrushchev (secretário-geral do partido comunista da US) da tutela administrativa da Rússia soviética para a tutela administrativa da Ucrânia soviética. Do mesmo modo, e com maioria de razão, Sebastopol foi sempre, historicamente, parte integrante da Rússia, quer durante o regime czarista, quer durante a vigência da US. “Por maioria de razão” porque Sebastol é uma cidade russa da Crimeia, fundada em 1784 pelo príncipe Grigori Potemkine no cumprimento de ordens da czarina Catarina II. Na era soviética, depois da 2ª. guerra mundial, Sebastopol torna-se a principal base naval da frota soviética no Mar Negro. Por essa razão, recebeu um estatuto político-administrativo especial: era uma “cidade fechada” que, desde 1945, não dependia do oblast da Crimeia, mas ficou sob a alçada directa do Kremlin, na República soviética da Rússia, sendo ambas (Crimeia e Rússia soviéticas) parte integrante da União Soviética. A decisão de Khrushchev de 1954 de transferir aa tutela administrativa da Crimeia para a Ucrânia soviética não afectou o estatuto especial de Sebastopol, que permaneceu inalterável.

A Crimeia rejeitou sempre e desde o primeiro dia (em 1991) a sua anexação pela Ucrânia pós-soviética e a população da Crimeia (incluindo Sebastopol) manifestou sempre, inequivocamente, de modo democrático (via referendo por sufrágio universal), a sua vontade de independência em relação à Ucrânia (referendo de 20 de Janeiro de 1991) e de integração, com autonomia, seja no âmbito de uma União Soviética renovada e reconfigurada (referendo de 17 de Março de 1991), seja, quando essa possibilidade se desvaneceu, no âmbito da Federação Russa (referendo de 16 de Março de 2014). Refutei todos os argumentos em que se baseia mantra mentiroso da anexação da Crimeia pela Rússia e passei em revista todos os factos supramencionados num artigo intitulado, Quem anexou a Crimeia: foi a Rússia ou a Ucrânia? (Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue 22 de Agosto de 2022).

[63] “Dmitry Yarosh, Conselheiro do Comandante-em-Chefe dos Exércitos Ucranianos.” Voltairenet.org, 22 de Fevereiro de 2022.

[64] «O Estado-Maior General das Forças Armadas da Ucrânia não revela os pormenores da cooperação com o antigo dirigente do “Sector Direita,” comandante do “Exército de Voluntários Ucranianos” e ex- deputado Dmytro Yarosh. /.../ Devido à extinção do instituto de conselheiros em assuntos públicos nas Forças Armadas e à criação, em vez disso, de grupos de peritos públicos, o Pravda da Ucrânia indagou sobre a missão atribuída à participação de Yarosh nas actividades do Estado-Maior General. Este recusou-se a responder-nos, invocando a confidencialidade das informações solicitadas». The General Staff does not admit the role of Yarosh. He inspected his volunteer army.” Ukrainian Pravda, December 13, 2021.

[65] Lilia Ragutskaya “Yarosh: if Zelensky betrays Ukraine, he will lose not his position, but his life”. Obozrevatel, 27 May 2021. Internet Archive Wayback Machine [https://incident.obozrevatel.com/crime/dmitrij-yarosh-esli-zelenskij-predast-ukrainu-poteryaet-ne-dolzhnost-a-zhizn.htm]

[66] Ivan Stepanov, “Poltava oil and gas as a motive for the assassination attempt on the chief of police of the Odessa market.” Tema, July 18, 2008.

[67] “Specialist on fake ‘coup d’état’. Who and why Zelensky made the head of the Ukrainian counterintelligence.” Strana.news. November 30, 2021.

[68] “Volodymyr Zelenskyy: It is beneficial for us to dissolve the Rada, but we will think and act according to the law.” RBC-Ukraine, April 18, 2019.

[69] Anton Troianovski, “«A Threat From the Russian State»: Ukrainians Alarmed as Troops Mass on Their Doorstep.” New York Times, April 20, 2021.

[70] «The leadership of Ukraine is open to negotiations with Russia and the sides are now discussing the format of the talks, according to Serhiy Nykyforov, spokesman for President Volodymyr Zelensky. We accepted the proposition of the Russian president (to negotiate),” wrote Nykyforov. “In these very hours the sides are discussing the place and time of the negotiations”». Olga Rudenko, “Ukraine ready to negotiate with Russia.” The Kyiv Independent, February 25, 2022.

[71] Maïa de la Baume & Jacopo Barigazi, “EU agrees to give €500M in arms, aid to Ukrainian military in ‘watershed’ move”. Politico, 27 February 2022.

[72]Zelensky says Ukraine prepared to discuss neutrality in peace talks”. BBC News. 28 March 2022.

[73] A citação resulta da junção, ipsis verbis, de declarações de Lloyd Austin feitas no mesmo dia, mas reportadas, no todo ou em parte, por órgãos mediáticos de comunicação social diferentes: [A] e [C] “United States believes Ukraine can win war against Russia with «right equipment».” Anews, 25 April, 2022 [https://www.anews. com.tr/world/2022/04/25/united-states-believes-ukraine-can-win-war-against-russia-with-right-equipment];[B] Lloyd Austin, Twitter, April 25, 2022; [C] Missy Ryan & Annabelle Timsit, “U.S. wants Russian military ‘weakened’ from Ukraine invasion, Austin says.” The Washington Post, April 25, 2022.

[74] Jonathan Masters & Will Merrow, “How Much Aid Has the U.S. Sent Ukraine? Here Are Six Charts,” Council On Foreign Relations, December 16, 2022; Mark F. Cancian, “Aid to Ukraine Explained in Six Charts.” CSIS, November 18, 2022. A primeira fonte indica 48 mil milhões de dólares em 2022; a segunda fonte indica 68 mil milhões de dólares durante o mesmo período.  

[75] “The EU has become the largest donor of aid to Ukraine since the beginning of the war — Borrell. European Truth, January 18, 2023.

[76] Scott Ritter, “2023: Outlook for Ukraine.” Consortium News. January 11, 2023.

[77] Jean-Marie Henckaerts e Louise Doswald-Beck, Direito Internacional Humanitário Consuetudinário. Volume 1. Normas. Comité Internacional da Cruz Vermelha. 2007), p.381-2.

[78] Jean-Marie Henckaerts e Louise Doswald-Beck, op.cit., p.3

[79] Susan Raghavan, “Russia has killed civilians in Ukraine. Kyiv’s defense tactics add to the danger.” Washington Post.  March 22, 2022.

[80] Grosso modo, porque a lei nº. 44/86, que regula o artigo 19º. da Constituição portuguesa (Suspensão do exercício de direitos  por motivo de estado de sítio ou de estado de emergência), determina, na sua alínea d), que as medidas de suspensão de emissões de rádio e televisão «não podem englobar qualquer forma de censura prévia» e, na sua alínea e), que «as reuniões dos órgãos estatutários dos partidos políticos, sindicatos e associações profissionais não serão em caso algum proibidas, dissolvidas ou submetidas a autorização prévia». A diferença entre a lei marcial ucraniana e a lei portuguesa que regula o estado de sítio resulta da diferença que separa um regime de oligarquia electiva iliberal (Ucrânia) ‒ em processo de transformação acelerada para uma oligarquia electiva liberticida, culminando numa tirania electiva ‒ de um regime de oligarquia electiva liberal (Portugal).

[81] “Zelenskiy Defends Decision to Block TV Channels Controlled by Russia-Linked Magnate.” RFE/RL, February 4, 2001. Os canais de televisão que foram forçados a encerrar eram propriedade de um deputado do partido de oposição Plataforma de Oposição — pela Vida. Não consegui, no entanto, determinar ao certo a identidade desse deputado. Algumas das fontes que consultei (incluindo fontes ucranianas) dizem tratar-se de Taras Kozak. Outras fontes (incluindo fontes ucranianas) dizem tratar-se de Viktor Medvedchuk, um advogado que acumulou uma grande fortuna nos sectores da energia, recursos naturais e radiotelevisão. Em 11 de Maio de 2021, o Procurador-Geral da Ucrânia acusou Medvedchuk de traição e tentativa de pilhagem de recursos nacionais na Crimeia (que tinha sido anexada pela Ucrânia em 1991, mas que se libertou desse jugo em 2014). Medvedchuk foi condenado a prisão domiciliária em 13 de Maio de 2021, tendo-se evadido em 28 de Fevereiro de 2022, quatro dias após a invasão russa da Ucrânia em 2022. Foi capturado e preso em 12 de Abril de 2022 pelo Serviço de Segurança da Ucrânia (SBU).  Em 21 de Setembro de 2022, Medvedchuk (juntamente com 55 prisioneiros de guerra russos) foi trocado por 215 prisioneiros de guerra ucranianos capturados na batalha de Mariupol. Em 10 de Janeiro de 2023, Medvedchuk foi despojado da sua cidadania ucraniana, juntamente com três outros deputados. Em 13 de Janeiro de 2023, 320 membros do Parlamento votaram para lhe retirar o seu mandato de deputado. Convém acrescentar que a sanha persecutória contra este homem nada tem a ver com o facto de ser um plutocrata, um oligarca multimilionário. Poroshenko e Zelensksy também são plutocratas, oligarcas que acumularam enormes fortunas por meios tudo menos angélicos e, no entanto, nada de semelhante lhes aconteceu ‒ pelo menos, por enquanto ‒ nem mesmo quando Zelensky perseguiu Poroshenko e o tentou meter na prisão. A perseguição movida contra Medvedchuk pelo governo de Zelensky parece ter sido motivada pelas posições políticas de Medvedchuk (favoráveis a um entendimento com a Rússia) e pelo facto de ele se dar bem com Putin — a Némesis actual do ultranacionalismo banderista. Seja como for, o facto principal a salientar é este: o espantoso país, chamado Ucrânia, onde todas estas medidas arbitrárias e de uma insidiosa violência kafkiana são tomadas com a maior naturalidade, é o mesmo país que o chamado “Ocidente alargado” insiste em qualificar de “democracia liberal” e “Estado de direito democrático”!

[82] Zelensky signs media law criticized by journalist groups as authoritarian.” The Kyiv Independent, December 30, 2022.

[83] Hugo Bachega, “Ukraine defence minister: We are a de facto member of Nato alliance”. BBC News, 13 January 2023.

[84] Lucas Leiroz, “Alexey Arestovich's resignation exposes Kiev regime's internal problems”. Infobrics.org. January 18, 2023.

[85] Examinarei num próximo artigo desta série (que será dedicado a esclarecer a natureza das guerras na Ucrânia) a alegação de Arestovich, que reputo falsa, de que as tropas russas visam destruir a “nação ucraniana” e não as tropas ucranianas.

[86] Um grande número de politólogos e, sobretudo, de constitucionalistas, deturpou completamente o significado de ditadura e ditador. A ditadura era uma magistratura colegial da república romana (com precedentes nas repúblicas latinas), constitucionalmente prevista para surgir em situações de crise ‒ situações extraordinárias bem definidas ‒, conseguir enfrentá-las com êxito e extinguir-se com a solução das mesmas. Há provas concludentes que esta magistratura existiu durante 295 anos (497-202 a.C.), até ser ficticiamente ressuscitada, 120 anos depois — isto é, instituída com o mesmo nome, mas com um conteúdo de sinal contrário, por Lúcio Cornélio Sula (82 a.C.) e Júlio César (49 a.C.). Os ditadores romanos não actuavam à margem da constituição para a aniquilar, mas dentro da constituição para a salvar de perigos iminentes que a ameaçavam de aniquilamento. Os seus poderes eram, por isso, limitados e bem definidos, não ilimitados e indefinidos (Mark B. Wilson, The Needed Man: The Evolution, Abandonment, and Resurrection of the Roman Dictatorship. City University of New York [CUNY], 2017). A ideia moderna que associa ditadura a poder irrestrito e brutal de um só homem vem de Sula, que fez da ditadura uma tirania absoluta em 82. a.C. (cf. Jeffrey Easton, A New Perspective on the Early Roman Dictatorship, 501-300 B.C. University of Kansas, 2010). Júlio Cesar, com menos brutalidade do que Sula, mas idêntico apego ao poder absoluto, contribuiu também para a moderna deturpação do conceito de ditadura.

[87] Tirania electiva é um regime político onde o poder de Estado é exercido de uma forma tirânica por um único governante, o qual, porém, se alcandorou a essa posição dominante suprema por via eleitoral, pelo consentimento do povo. O termo tirania electiva é de Aristóteles, que nos informa que era um tipo de monarquia não hereditária que existia entre os antigos helenos, que davam a esses governantes o nome de “aisimnetas” (cf. Aristóteles, Política. Vega, 1988, p.247).   

[88] “The court banned OPZZ.” Ukrainian Pravda, June 20, 2022.

[89] Volodymyr Ishchenko, “Why did Ukraine suspend 11 ‘pro-Russia’ parties?” Aljazeera, 21 March 2022.

[90] Appel de Oleg Vernyk, président du syndicat indépendant ukrainien «Zahist Pratsi».”International Socialist League, 22 Juillet, 2022 ; “Ukraine: attack on dismissal rights pushed under cover of martial law.” European Public Service Union, 30 May 2022; “La loi 5371 en Ukraine supprime le droit du travail.” A gauche, le quotidien. 24 Août 2022; Vitaly Dudin, “New labour code is a threat to Ukrainian workers’ rights.” ukrainesolidaritycampaign.org, 5 July 2022.

[91] “Ukraine’s anti-worker law comes into effect Law”. Open Democracy, 25 August 2022.

[92] Serhiy Guz, “Ukrainian government threatens confiscation of trade union property.” Open Democracy, 8 November 2022,

[93] “Major Attack on Workers Employment Rights Passed in Ukraine.” ukrainesolidaritycampaign.org, 20 July 2022.

[94] Ian Birrell, “«We’re hunting them down and shooting them like pigs»: How the Ukrainians are taking brutal revenge on the collaborators who've betrayed their neighbours ‒ and country ‒ to the Russians”. Daily Mail, 5 October 2022.

[95] Sobre o assassinato de Daria Dugina, ver José Catarino Soares, Qual é a morada dos assassinos de Darya Dugina e o que é que isso tem a ver com as guerras na Ucrânia? Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue 5 de Novembro de 2022; Assassinatos de Estado, fantasmagorias ideológicas, patranhas mediáticas e moralismo farisaico. Tertúlia Orwelliana. Arquivo de Blogue 5 de Dezembro de 2022.

[96] Citado em Finn Mcredmon, “Ukraine Government issues blacklist of ‘«Russian propagandists»”. Unherd, 25 July 2022.

[97] «Realizou-se hoje uma reunião do NSDC (Conselho de Defesa da Segurança Nacional)», disse Zelensky. «Uma reunião em que examinámos numerosos factos dos laços de certos círculos religiosos na Ucrânia com o Estado agressor». «É necessário criar tais condições em que quaisquer figuras dependentes do país agressor não serão capazes de manipular os ucranianos e enfraquecer a Ucrânia a partir de dentro,» continuou referindo-se à Rússia, que invadiu a Ucrânia em finais de Fevereiro. «O NSDC instruiu o governo a submeter ao Verkhovna Rada (Parlamento da Ucrânia) um projecto de lei sobre a impossibilidade das actividades das organizações religiosas filiadas nos centros de influência da Federação Russa na Ucrâniaacrescentou Zelensky. «Asseguraremos, em particular, a independência espiritual. Nunca permitiremos que ninguém construa um império dentro da alma ucraniana» (“We will guarantee spiritual independence to Ukraine — address by President Volodymyr Zelenskyy”. President of Ukraine. Official Website. 1 December 2022). Ver também Zelenskiy Says More Measures Coming After Decree Banning Religious Organizations With Links To Russia.RFE/RL’s Ukrainian Service. 2 December 2022; “This is not all: Zelensky said that Ukraine will continue measures for “spiritual Independence.” RFE/RL’s Ukrainian Service, 3 December 2022.

[98] Ted Galen Carpenter, “False Democracy”. The American Conservative. January 9, 2023.

[99] Jayson Casper, “Will Ukraine’s Threatened Ban on Russia-Linked Churches Violate Religious Freedom?”. Christianity Today, December 21, 2022.

[100] Lucas Leiroz, “Ukrainian neo-Nazi regime bans Russian Orthodox Church”. Infobrics. December 5, 2022.

[101] Jayson Casper, art.cit.

[102] “Media: Zelensky revokes Ukrainian citizenship of 13 Russian-affiliated clerics.” The Kyiv Independent, January 7, 2023.

[103] Lucas Leiroz, art. cit.

[104] Jayson Casper, art.cit.; “Zelensky takes further steps against Ukrainian Orthodox Church.” CNE.news 14-12-2022

[105] “Zelensky strips 13 pro-Russia priests of citizenship.” Ukrinform, January 2023.

[106] Marc Santora, “Zelensky Proposes Barring Orthodox Church That Answers to Moscow Ukraine’s president.” New York Times, December 2, 2022.

[107] Alexander Rubinstein, “Zelensky quietly deletes photo of his bodyguard’s pro-Hitler patch”. The Grayzone, September 15, 2022.

[108] Ver José Catarino Soares, A Guerra na Ucrânia (artigo em 4 partes). Tertúlia Orwelliana. Arquivo do Blogue 7 de Maio 2022, (1ª. parte); 21 de Maio 2022 (2ª. parte); 28 de Maio 2022 (3ª. parte), 13 de Julho 2022 (4ª. parte) .

[109] Obviamente, o conteúdo dos acordos de Minsk, no que respeita às soluções institucionais susceptíveis de corresponder aos anseios de autonomia político-administrativo e cultural das populações russófonas e russófilas de Donbass e do sudeste da Ucrânia, já foi ultrapassado pela própria evolução da guerra. Mesmo assim, a sua manutenção na proposta de negociações a apresentar pelo governo da Ucrânia seria uma prova da sua boa-fé e da sua vontade de chegar a um acordo negociado com a Rússia.