Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

07 agosto, 2024

Temas 2,3 e 4


Os Jogos Olímpicos de Paris 2024

sob o signo do niilismo neoliberal: 

(I) a usurpação do olimpismo 

José Catarino Soares

 

Este artigo tem cinco ou seis partes (ainda não sei bem). A primeira parte, que começa mais abaixo, trata da usurpação do olimpismo pelos Jogos Olímpicos de Paris 2024 (JOP 2024), um processo que se desenvolve há 40 anos. As partes seguintes tratam de duas trapaças dos JOP 2024 (houve mais, mas não entram no âmbito desta série de artigos) que têm a ver com  o pugilismo feminino e a cerimónia de abertura desses Jogos. 

Como qualquer trapaça, para ter êxito, necessita de muita lábia, dei à espécie de lábia que foi empregue nas grandiosas trapaças dos JOP 2024 o nome de “niilismo neoliberal” — um termo que será devidamente elucidado na última parte (a quinta ou a sexta) do artigo.

1. Jogos Olímpicos da Grécia antiga vs. Jogos Olímpicos de Paris 2024

Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 pouco se assemelham, para além do nome, com os Jogos Olímpicos da Grécia antiga (séculos VIII a.C.-IV d.C.) — uma celebração da excelência atlética masculina realizada em Olímpia, no Peloponeso, que mais tarde evoluiu para uma competição atlética pacífica quadripolar (Olímpia, Nemeia, Delfos, Corinto) entre os atletas de cidades gregas do Peloponeso, da Grécia continental e insular, da Itália, do Norte de África e da Ásia Menor, denominada Jogos Pan-Helénicos (do século VI a.C. em diante) pelos seus participantes e organizadores.


A principal diferença dos Jogos Olímpicos da Grécia antiga relativamente aos Jogos Olímpicos de Paris 2024 é esta: durante a sua realização, de quatro em quatro anos, era declarada uma “trégua sagrada” (gr. ekecheiria, que significava “depor as armas”) que proibia a guerra entre as cidades gregas e que tinha o propósito de proteger os espectadores, atletas, treinadores e juízes/árbitros das provas atléticas durante o período inteiro que começava pela sua vinda aos Jogos Olímpicos, continuava com a sua estadia durante o desenrolar das provas e terminava com o seu regresso a casa.

A segunda diferença importante é que os Jogos Olímpicos da Grécia antiga estavam reservados quase exclusivamente a atletas do sexo masculino. Acresce, como terceira diferença, que ninguém tinha dúvidas no que respeita a distinguir um adulto do sexo masculino de um adulto do sexo feminino. (Este é um assunto ao qual regressaremos na 4.ª parte deste artigo).

A quarta diferença é que esses jogos eram exclusivamente constituídos por modalidades atléticas individuais, não por um misto de modalidades individuais e de equipa.  

As principais semelhanças entre os Jogos Olímpicos da Grécia antiga e os Jogos Olímpicos de Paris 2024 são duas:

— 1) a preparação dos atletas em competição (muito prolongada e exigente, em ambos os casos)

— 2) a motivação dos atletas em competição (competir pela glória atlética e por recompensas com alto valor monetário ou de grande prestígio, em ambos os casos).

No entanto, não deixa de ser digno de nota a extrema modéstia relativamente aos padrões dos Jogos Olímpicos do século em curso da recompensa mais cobiçada pelos atletas gregos: uma simples coroa de folhas (de oliveira, de loureiro, de pinheiro ou de aipo selvagem) e uma fita de lã vermelha (a “taenia”, que era amarrada à cabeça) para os vencedores (uma distinção reservada apenas para os primeiros lugares), além de uma folha de palmeira que podiam segurar na mão [1].


2. Jogos Olímpicos da era Coubertin vs. Jogos Olímpicos de Paris 2024

Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 também têm poucas semelhanças com a recriação do ideal olímpico grego por William Penny Brookes, Evángelos Záppas e, sobretudo, no final do século XIX, por Pierre de Fredy (barão de Coubertin), a que este deu o nome de “olimpismo”. O olimpismo é um esforço concertado de «promoção da paz universal» através de um campeonato reunindo «todos os desportos e todas as nações» (P. de Coubertin, Discurso de 25 de Novembro de 1892; Carta Olímpica XXI, 17 de Maio de 1921).

Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 estão a uma distância astronómica deste ideal [2]

Em 21 de Novembro de 2023, Tony Estanguet, presidente do Comité de Organização dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, apresentou, perante a Assembleia Geral da ONU, uma resolução intitulada “Por um mundo melhor e mais pacífico através do desporto e do ideal olímpico”, para defender o princípio da “trégua sagrada” de todas guerras que lavram por esse mundo fora durante a realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Paris 2024 — concretamente a partir do sétimo dia anterior ao início dos Jogos Olímpicos de Paris (26 de Julho a 11 de Agosto de 2024) e até ao sétimo dia seguinte ao final dos Jogos Paraolímpicos (28 de Agosto a 8 de Setembro) [3]. Essa iniciativa veio na sequência da resolução aprovada pela 77.ª sessão da Assembleia Geral da Nações Unidas de 1 de Dezembro de 2022, reconhecendo e apoiando a neutralidade política do Movimento Olímpico  nomeadamente a neutralidade política dos seus três principais constituintes (o Comité Olímpico Internacional, as Federações Desportivas Internacionais e os Comités Olímpicos Nacionais)  e a autonomia do desporto.

2024. Torre Eiffel, Paris. Em primeiro plano, vemos os aros interligados e de várias cores que são o símbolo inventado por Pierre de Coubertin para identificar os Jogos Olímpicos da era Moderna. Foto: Shutterstock


Seria pois natural que o Comité Olímpico Internacional (COI) actuasse em conformidade com essas duas resoluções. Mas o que o COI fez para satisfazer as exigências do então presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky [4],  e da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, entre outros  foi outra coisa, bem diferente: proibir os atletas da Rússia e da Bielorrússia de participarem nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, com a alegação de que os governos desses países estão envolvidos numa guerra na Ucrânia. A única maneira de os atletas desses dois países serem admitidos nos JOP 2024 seria, estipulou, (i) renegarem a sua nacionalidade, ou (ii) declararem publicamente a sua oposição ao governo do seu país na questão da guerra e (iii) não terem contratos com as Forças Armadas dos seus países [5]. Os atletas que preencham estas condições são rotulados, na Novilíngua do Comité Olímpico Internacional, “atletas individuais neutros”.

Thomas Bach, presidente do COI, cumprimenta Volodymyr Zelensky em Quieve. Foto: Comité Olímpico da Ucrânia.


Mas tal proibição viola ostensiva e grosseiramente os parágrafos 5.º e 6.º do capítulo 2 da Carta Olímpica [missão e papel do Comité Olímpico Internacional], que estipulam que este organismo deve «actuar para o reforço do movimento olímpico, proteger a sua independência, manter e promover a sua neutralidade política e preservar a autonomia do desporto», assim como «opor-se a qualquer forma de discriminação que afecte o Movimento olímpico». [realce por meio de traço grosso acrescentado ao original]

Esta violação grosseira da Carta Olímpica foi feita sem qualquer oposição ou protesto (mas corrijam-me se eu estiver mal informado) do secretário-geral da ONU, da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), da Amnistia Internacional, da Human Rights Watch, da Federação Internacional dos Direitos Humanos, da EuroMedRights, da Coligação Informal para a Defesa do Estado de Direito [Netherlands Helsinki Committee], e de tantas outras entidades que se proclamam intransigentes defensoras da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nomeadamente no que respeita aos artigos seguintes:

«Artigo 1.º ‒ Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

Artigo 2.º ‒ Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.

Artigo 30.º ‒ Nenhuma disposição da presente Declaração poder ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer acto destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecido» [realce por meio de traço grosso acrescentado ao original].

Deste modo, foram ilegalmente afastados da competição nos Jogos Olímpicos de Paris 2024 atletas que não cometeram nenhuma infracção desportiva. E que atletas!

«Entre 1994 e 2020 os atletas russos conquistaram 426 medalhas, 149 das quais de ouro, números que apenas são ultrapassados por competidores dos Estados Unidos [que têm uma população duas vezes maior do que a da Rússia, n.e.]. Um número relevante de troféus olímpicos será assim distribuído este ano por desportistas que, em circunstâncias normais, não os conquistariam. Isto significa viciação, corrupção competitiva» [6]. [n.e.= nota editorial]

Esta é Viyaleta Bardzilouskaya, atleta da Bielorrússia, que conquistou a medalha de prata da ginástica de trampolins nos Jogos Olímpicos de Paris 2024 (JOP 2024). Mas como o Comité Olímpico Nacional da Bielorrússia aceitou, ainda que a contragosto, que esta sua atleta concorresse como “atleta individual neutra”, Viyaleta compareceu no pódio sem a bandeira do seu país natal, por ter sido banido dos JOP 2024. Mais: se alguém for procurar o seu nome no quadro das medalhas presente no sítio electrónico oficial dos JOP 2024, não encontrará qualquer referência a Viyaleta Bardzilouskaya nem aos “atletas individuais neutros” medalhados. Foram duas vezes “apagados” (em inglês woke: “cancelled”) pelo Comité Olímpico Internacional: uma como cidadãos naturais de um país, outra como atletas vencedores.

A melhor prova de que o Comité Olímpico Internacional (COI) é uma correia de transmissão de poderes ocultos reside no facto de não se preocupar sequer em disfarçar a sua falta de escrúpulos e de coerência. O seu presidente, Thomas Bach, está bem ciente da hipocrisia dos governos que o compeliram a excluir a Rússia e a Bielorrússia dos Jogos Olímpicos de Paris 2024.

«É deplorável ver que os governos não querem respeitar a vontade da maioria das partes interessadas no movimento olímpico ou a autonomia do desporto, e é deplorável ver que esses governos não abordam a questão dos dois pesos e duas medidas. Não vimos um único comentário sobre a sua atitude relativamente à participação de atletas de países envolvidos em mais de 70 guerras e conflitos armados em todo o mundo» [7]

O exemplo mais flagrante dessa duplicidade de critérios do COI e dos governos que lhe impõem a sua vontade é a participação nos Jogos Olímpicos de Paris 2024 dos atletas de Israel, apesar de o governo de Israel levar a cabo acções de guerra, genocídio e purga étnica contra o povo palestiniano desde há 75 anos, como sucede presentemente em Gaza e na Cisjordânia há 7 meses consecutivos com uma violência inaudita.

3. Os Jogos Olímpicos na era neoliberal

A esta duplicidade de critérios nos planos ético, político e estatutário, acresce a corrupção comercial. Desde os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, que o COI decidiu comercializar os símbolos dos Jogos Olímpicos: (i) o Símbolo Olímpico dos cinco aros interligados e de várias cores que representam os cinco continentes; (ii) a Bandeira Olímpica (com o símbolo olímpico sobre fundo branco); (iii) o Lema Olímpico  Citius-Altius-Fortius” [“mais rápido, mais alto, mais forte”]  que Pierre de Coubertin pediu de empréstimo ao frade dominicano Henri Didon, seu amigo, para o converter no lema dos Jogos Olímpicos; (iv) o Hino Olímpico, composto por Spyridon Samaras, e (v) a Tocha olímpica, que foram, todos eles, transformados em marcas registadas. 

Na verdade, toda a organização dos Jogos Olímpicos foi comercializada: os Jogos são financiados por cidades anfitriãs e pelos governos dos respectivos países, pelo que o COI não incorre em nenhum custo, mas controla todos os direitos relativos aos jogos e os lucros dos símbolos olímpicos. O COI tem os direitos de transmissão televisiva dos Jogos e os direitos de marketing e merchandising (p.ex., uma percentagem de todas as receitas de publicidade e patrocínio dos jogos e na venda de bilhetes para os seus eventos e de objectos de recordação dos Jogos Olímpicos).

O COI tem também um enorme poder negocial no planeamento urbano e na construção de estádios e de outras instalações e equipamentos desportivos necessários à realização dos Jogos; na restauração, hotelaria e alojamento local (“Aldeia Olímpica”) dos atletas, treinadores e outros membros das delegações nacionais; nos meios de transporte e viagens turísticas suscitadas pela realização dos Jogos, etc. E tudo isto começou em grande nos Jogos Olímpicos de 1984.  «Em Los Angeles tudo estava à venda» [8].  

Concomitantemente, a partir de 1988, o desporto amador, tão prezado por Pierre de Coubertin como garante do olimpismo, foi relegado definitivamente para um lugar residual.

«No entanto, o facto mais significativo, que demonstra a introdução do profissionalismo nos Jogos, são os patrocínios concedidos a atletas individuais. Estes patrocínios representam enormes somas de dinheiro, especialmente quando o atleta não só ganha como também estabelece um recorde mundial. Os patrocínios aos atletas introduziram uma concorrência desleal nos Jogos, de tal forma que o conceito olímpico da lisura desportiva foi posto em causa, e representam a forma mais extrema de comercialização dos Jogos Olímpicos. /…/

É um fenómeno em constante evolução para finalmente assumir o carácter de uma grande festa, com os inevitáveis confrontos políticos, os enormes custos e os escândalos envolvendo atletas dopados. A introdução do profissionalismo nos Jogos, a partir da década de 1980, e a inversão da ideologia do amadorismo, a perturbação das ideologias, o desenvolvimento de percepções nacionalistas, a sobrevalorização da vitória e o desprezo pela simples participação e, de um modo geral, o enfraquecimento dos valores do espírito olímpico são, potencialmente, os maiores riscos que os Jogos Olímpicos enfrentam.

No entanto, o maior risco é a “venda” dos próprios atletas a empresas comerciais e a exploração comercial dos seus desempenhos. A história mostra que, desde a introdução do profissionalismo nos Jogos e a subsequente entrada de empresas comerciais no desporto, o número de atletas que utilizam substâncias controladas se multiplicou, com as conhecidas consequências para a sua saúde, bem como a contínua erosão dos ideais olímpicos» [9].

Daí que não seja de modo nenhum surpreendente que este processo de ultracomercialização neoliberal dos Jogos Olímpicos e dos atletas que neles participam, que se desenvolve há 40 anos, tenha atingido um ponto alto nos Jogos Olímpicos de Paris 2024. Deles se pode dizer que são

«um megafestival desportivo internacional viciado sob os pontos de vista competitivo e ético muito antes de iniciado; um acontecimento gigantesco com laivos de feira popular e de certame comercial financiado e patrocinado pela rentável ostentação do poder transnacional (e sem controlo) de velhos e novos-ricos para quem todo o mundo é seu» [10].

Uma das manifestações mais evidentes da ultracomercialização dos Jogos Olímpicos é a presença ubíqua das grandes “marcas” comerciais (entenda-se, das grandes empresas transnacionais) da comida rápida, dos refrigerantes, das bebidas energéticas, do vestuário e calçado desportivo, etc.: Coca-Cola, MacDonald, Red Bull, Adidas, Puma, Nike, etc.


Segundo uma reportagem da revista Forbes, que contactou os Ministérios do Desporto e as delegações nacionais dos 206 países e territórios presentes em Paris, 33 confirmaram que os atletas olímpicos recebem um prémio monetário caso conquistem uma medalha (de ouro, prata ou bronze) durante a competição [11].

Dentro deste grupo, 15 países oferecem um prémio superior a 100 mil dólares americanos [91,2 mil euros]. Neste particular, o primeiro lugar da classificação vai para Hong-Kong, que compete independentemente da China e que oferece 768 mil dólares [700,7 mil euros] ao vencedor de uma medalha de ouro. Destarte, a esgrimista Vivian Kong, que conquistou a terceira medalha de ouro na história olímpica de Hong-Kong no Jogos Olímpico de Paris 2024, vai embolsar bem mais de meio milhão de euros. Contudo, a medalha de prata conquistada por um atleta de Hong-Kong também é recompensada com 346,7 mil euros, uma quantia acima da que qualquer outro país oferece pela medalha de ouro.

Israel ocupa o 2.º lugar dos países que atribui prémios monetários com valores mais altos aos seus atletas olímpicos medalhados, com o campeão olímpico a receber 251 mil euros pela medalha de ouro. Segue-se a Sérvia, que atribui 200 mil euros ao atleta que ganhe uma medalha de ouro.

A investigação da Forbes revelou também que nem todas as recompensas olímpicas se cingem a prémios em dinheiro. A Polónia, além de um prémio monetário de 74,8 mil euros, oferece a cada atleta medalhado um quadro de artistas polacos “talentosos e respeitados”, um diamante de investimento e um vale de férias para duas pessoas, oferecido por uma agência de viagens. Os treinadores dos atletas medalhados obtêm os mesmos prémios que os seus pupilos. Adicionalmente, no ano em que se comemora o 100.º aniversário da sua primeira presença do comité polaco nos Jogos Olímpicos, o país vai ainda oferecer um apartamento com dois quartos em Varsóvia para os vencedores nos desportos individuais, ao passo que os vencedores nas modalidades coletivas receberão um apartamento com um quarto.

Não são só os Comités Olímpicos Nacionais, ou os governos que os patrocinam, que oferecem prémios e outras recompensas de alto valor monetário ou monetizável. As federações desportivas internacionais também o fazem. Por exemplo, a Federação Internacional de Pugilismo (IBA no acrónimo inglês) oferece um prémio de 100 mil dólares americanos (cerca de 91 mil euros) ao vencedor de uma medalha de ouro, a ser distribuído pelo pugilista (50 mil dólares), pela federação do respectivo país (25 mil dólares) e pelo treinador do atleta (25 mil dólares).

Por último, mas não menos importante, cabe referir o patrocínio das grandes marcas comerciais a atletas e equipas nacionais participantes nos jogos. Por exemplo, a Adidas lançou estojos para as equipas olímpicas que patrocina: Alemanha, Reino-Unido, Polónia, Bahrein, Cuba, Hungria e Turquia. Os seus estojos incluem vestuário especialmente concebido para os atletas que competem em cadeira de rodas.

«A Adidas e as suas congéneres também estão interessadas em gerar um burburinho em torno dos Jogos junto da Geração Z e dos consumidores adolescentes, um grupo demográfico fundamental para o futuro destas empresas. /…/

“O que está em causa é o esbatimento das linhas entre o que é moda e o que é desempenho, e o facto de as pessoas se identificarem com os atletas como criadores de gostos nesse espaço”, contextualiza Abbie Zvejnieks, analista de vestuário desportivo e de retalho na Piper Sandler, em Nova Iorque» [12].

No dia 19 de Abril de 2024, na Arena Adidas de Paris, a Adidas lançou novas sapatilhas para 41 modalidades olímpicas dos JOP 2024, com a participação de atletas patrocinados, incluindo a medalhista de ouro de escalada, a atleta eslovena Janja Garnbret (na foto), que também faz publicidade e é patrocinada pela Red Bull, como se vê pelo boné.  Foto: Sara Meysonnier/Reuters.

4. A cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024

Todos os aspectos dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 referidos nas três secções anteriores (russofobia, otanização [= alinhamento pelas posições e decisões da OTAN] do COI, ultracomercialização das provas desportivas e dos atletas, corrupção competitiva) se reflectiram de maneira espectacular na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024.

Já foi dita muita coisa díspar sobre essa cerimónia. O veredicto de António Guerreiro parece-me resumir bem o que aconteceu.

«A abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 foi certamente a mais grandiosa manifestação Kitsch da história dos espectáculos públicos» [13].

Aqui pretendo salientar a convergência ideológica entre a usurpação neoliberal do olimpismo levada a cabo pelo Comité Olímpico Internacional, presidido por Thomas Bach, e, em particular, pelo Comité de Organização dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, presidido por Tony Estanguet, e a opção kitsch [14] do director artístico da sua cerimónia de abertura, Thomas Jolly, seleccionado pelo dito Comité de Organização. Mas esse é um assunto que ficará para a quinta parte deste artigo a publicar oportunamente.

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P.S. [20-08-2024]. Alterei ligeiramente o primeiro e o último parágrafo deste texto de modo a reflectir a extensão que tomou, entretanto, o artigo subordinado ao título principal (antes do algarismo romano) e que me levou a dividi-lo em cinco (ou seis) partes. Inicialmente, julguei que teria duas. 

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Notas e Referências

[1] Os vencedores dos Jogos Olímpicos da Grécia antiga recebiam com frequência, nas suas cidades-natais, brindes com um grande valor monetário — como, por exemplo, ânforas cheias de azeite, trípodes (grandes vasos com três pés) de bronze, escudos de bronze, taças de prata, refeições grátis para o resto da vida, pensões vitalícias ou mesmo prémios em dinheiro vivo. No entanto, nem todas as recompensas consistiam em benefícios materiais. Algumas consistiam simplesmente em brindes honoríficos, como, por exemplo, lugares especiais nos espectáculos de teatro ou uma entrada festiva e cerimonial na cidade-natal. Alguns atletas extraordinários eram, além disso, homenageados com estátuas, poemas ou inscrições lapidares.

[2] A este propósito, pode argumentar-se, como o faz Marc Perelman («Sportifs russes et biélorusses aux JO 2024: ‘Les Jeux Olympiques ont toujours été politiques’». Le Figaro, 14.04.2023) que o mesmo vale dizer relativamente ao COI da era de Pierre de Coubertin. Concedido. Contraponho, porém, que a distância entre o ideal olímpico de Coubertin e a realidade dos Jogos Olímpicos realizados sob a sua égide não era, como é hoje, “astronómica”.  

[3] Recordemos que o Comité Olímpico Internacional (COI) tem, desde 2009, o estatuto de observador permanente na Assembleia Geral da ONU — o que lhe confere o direito de se envolver diretamente na Agenda da ONU, participar nas reuniões da Assembleia Geral da ONU e tomar a palavra nessa assembleia.

[4] Actualmente, Volodymyr Zelensky usurpa o cargo de Presidente da Ucrânia. O seu mandato de cinco anos terminou em 21 de Maio de 2024 e não há nenhuma disposição na Constituição da Ucrânia que permita prolongá-lo. Por conseguinte, a sua legitimidade constitucional é, actualmente, nula. Acresce que o senhor Zelensky não marcou eleições presidenciais nos prazos previstos e não dá mostras sequer de o querer fazer tão cedo. Estes factos são totalmente silenciados pelo sistema mediático dominante de comunicação social do chamado “Ocidente alargado”. Imaginem, agora, o banzé que esse mesmo sistema mediático faria se Vladimir Putin procedesse da mesma forma na Rússia…

[5]  A este propósito, Marc Perelman (op.cit.) perguntou, na altura, com pertinência: «Quem é que vai verificar todas estas condições? Quem é que pode acreditar em tais compromissos?» 

[6] José Goulão, “Requiem pelo Olimpismo”. Abril Abril, 29 Julho 2024.

[7]  «Le CIO juge « déplorables » les pressions occidentales dans le dossier russe, dit son président». La Croix, 30.03. 2023; «Le CIO juge « déplorables » les pressions occidentales». La Presse, 30.03.2023.

[8] A. Tomlinson,“The commercialization of the Olympics: Cities, corporations and the Olympic commodity”. In: Kevin Young and Kevin Wamsley, (eds.). Global Olympics: Historical and Sociological Studies of the Panagiota Papanikolaou Modem Games. Oxford: Elsevier. 2006.

[9] Panagiota Papanikolaou, “The Spirit of the Olympics vs. Commercial Success: A Critical Examination of the Strategic Position of the Olympic Movement”. International Journal of Humanities and Social Science. Vol. 2 No. 23; December 2012.

[10] José Goulão, op.cit.

[11] “These Countries Pay Olympians Six-Figure Bonuses for Winning Gold”. Forbes. July 27, 2024.  

[12] Helen Reid, “In Olympics launch, Adidas seeks to broaden sport appeal”. Reuters. April 18, 2024.

[13] António Guerreiro, “As Olimpíadas e as suas Máscaras”. Público, 02.08.2024; Estátua de Sal, 03.08.2024.

[14] Há várias definições de kitsch. As que prefiro, uma breve e uma longa, são as (i) de João Pais Machado e (ii) Fritz Karpfen, respectivamente.  (i) «O Kitsch é uma arte da corrupção, da trapaça, da mentira, do faz-de-conta» (J. Pais Machado, “Kitsch”. In Cardoso, J. L., Magalhães, P., Pais, J.M. (org), Portugal social de A a Z: temas em aberto. Lisboa: Impresa Publishing, 2013). (ii) O kitsch são «futilidades baratas e desprovidas de gosto, enfeitadas com atributos artísticos; presunção ridícula com chavões diletantes /…/; coisa que não quer dizer nada e nada exige ao pensamento; adorno no convívio pacato do burguês à mesa do café; /…/ bluff que quer fazer bluff ao coração e faz verter lágrimas como uma cebola; /…/ em suma, pechisbeque que especula com a alegria infantil por aquilo que brilha» (F. Karpfen, Kitsch: Um estudo sobre a degenerescência da arte. tradução e introdução de João Tiago Proença. Lisboa: Antígona, 2017). O livro de Karpfen foi publicado originalmente em 1925.

 

20 julho, 2024

 Temas 2, 3, 4

A melhor prenda para os belicistas 

otanianos da nossa praça

José Catarino Soares

 

1. Introdução

O artigo de Jeffrey Sachs, “A NATO quer a guerra [https://estatuadesal.com/2024/07/18/a-nato-quer-a-guerra/], que recomendo vivamente, está muito bem escrito e é factualmente impecável. Por isso, ninguém conseguirá refutar nenhum dos seus argumentos.

11 Julho 2024. Cimeira Comemorativa dos 75 anos da OTAN (/NATO). Washington D.C.

Mas não é por isso que o artigo de Jeffrey Sachs é importante. Apesar de bem escrito e não faltar à verdade, o seu artigo não contém nenhuma novidade e nenhuma originalidade. Todos os factos que evoca e todos os argumentos que desenvolve foram já evocados e desenvolvidos por muitos outros autores.

A importância do artigo de Jeffrey Sachs reside no facto de o seu autor ser inatacável pela legião daqueles e daquelas a quem o seu artigo fará ranger os dentes de raiva contida ou proferir um chorrilho de impropérios. E porquê?

Porque a mensagem de Jeffrey Sachs não pode ser neutralizada e descartada do modo habitual: insinuando que o seu autor é ou acusando o seu autor de ser um agente de Putin, ou um “comunista” saudoso da União Soviética, ou um “esquerdista” desaustinado, ou um “populista” manhoso, ou um político de “extrema-direita” ao estilo de Viktor Orban, ou um inimigo jurado dos valores e princípios do “Ocidente e da “Europa, o seu jardim” (Joseph Borrell ipse dixit). Exacto: nenhuma dessas cavilosas insinuações ou acusações se aplica a Jeffrey Sachs.

2. Quem é Jeffrey Sachs

Jeffrey Sachs é um senhor que chegou a professor catedrático de economia na universidade de Harvard (EUA) com apenas 28 anos e que, já em 1990, com apenas 35 anos, o Los Angeles Times considerava como sendo «o Indiana Jones da economia» [1]. Em 1993, com apenas 38 anos, o The New York Times foi ainda mais longe, ao considerá-lo como sendo «provavelmente o economista mais importante do mundo neste momento» [2].

E porquê? Porque o doutor Jeffrey Sachs, que é actualmente e desde há muitos anos professor catedrático de economia na universidade de Columbia (Nova Iorque), foi o inventor da “terapia de choque” em economia, uma invenção não inteiramente original (uma vez que foi inspirada pelas medidas do economista alemão Ludwig Erhard [futuro Chanceler da Alemanha Federal] em 1948, nas zonas da Alemanha sob o controlo dos EUA e do Reino Unido), mas que o tornou mundialmente famoso. 

3. O Indiana Jones da economia

Foi na Bolívia, em 1985 primeiro como conselheiro do golpista militar Hugo Banzer, em seguida como conselheiro económico do seu sucessor, o presidente Paz Estenssoro, e do seu ministro do planeamento (e futuro presidente da república), Gonzalo Sánchez de Lozada que Sachs aplicou, pela primeira vez, a sua terapia de choque para jugular a hiperinflação. Os custos sociais foram imensos. A terapia de choque de Sachs-Lozada transferiu os custos da estabilização para as classes trabalhadoras.

«Em 1986, o poder de compra do boliviano médio baixou 70%.... O desemprego atingiu 20-25% e quase todos os benefícios sociais para os trabalhadores foram eliminados» [3]. 

A peça central dessa terapia de choque foi também a mais odiada da história do país:  o Decreto Supremo 21060, que praticamente ilegalizou as greves e encerrou as minas, despedindo a grande maioria dos mineiros e “recolocando” mais de 20.000 deles em zonas tropicais.

Quando Jeffrey Sachs se candidatou à presidência do Banco Mundial, em 2012, dois dos seus críticos salientaram um aspecto ignorado do seu programa anti-inflacionista boliviano, denominado PAE [Programa de Ajustamento Estrutural], a saber:

«a ligação clara entre o PAE na Bolívia e o crescimento explosivo da coca e da cocaína na década de 1980. Milhares de mineiros, camponeses e operários fabris que perderam os seus meios de subsistência devido à “estabilização” fugiram para a fronteira agrícola para semear coca, a única cultura que tinha um mercado garantido. O governo permitiu implicitamente o branqueamento do dinheiro da droga através da oferta de certificados de depósito em dólares americanos no banco central, sem perguntas. O afluxo de dinheiro proveniente do tráfico de droga, talvez a melhor expressão do que o capitalismo pode fazer num mercado não regulamentado, foi responsável por uma parte substancial do crescimento económico pelo qual Sachs pretende reclamar autoria» [4].

Em 1989, Sachs rumou para a Polónia, para aconselhar o governo do primeiro-ministro Tadeusz Mazowiecki e, em particular, o seu ministro das finanças, Leszek Balcerowicz. Missão? Ajudá-los a aplicar uma terapia de choque capaz de desmantelar o aparelho produtivo nacionalizado da Polónia e construir sobre os seus destroços um aparelho produtivo privatizado.

Em 1990-1991, Sachs foi convidado a colaborar, em Moscovo, com Grigorii Yavlinsky e os demais membros da equipa económica de Gorbachev. Mas Gorbachev foi derrubado em Agosto de 1991, Boris Yeltsin monopolizou o poder, a União Soviética foi dissolvida e dos seus escombros nasceram a Federação Russa e mais 14 Estados (incluindo a Ucrânia).

No entanto, a situação de Jeffrey Sachs não se alterou grandemente. Em Novembro de 1991, Sachs começou a trabalhar, informalmente, com a equipa do primeiro-ministro Yegor Gaidar, quando ele ainda estava a ponderar o que fazer e depois, formalmente, como conselheiro económico do governo russo, em Dezembro de 1991, a convite do presidente Yeltsin. Sachs manteve-se precisamente dois anos e um mês nesse cargo, tendo-se demitido em Janeiro de 1994. A missão de Jeffrey Sachs na Rússia foi idêntica à que tinha sido a sua na Polónia (e na Eslovénia e na Estónia, onde também foi conselheiro económico): converter o aparelho produtivo nacionalizado da Rússia num aparelho produtivo privatizado. Isso foi conseguido, mas pagando um altíssimo preço.

O produto interno bruto da Rússia pós-soviética foi reduzido para metade; a pobreza decuplicou; os serviços de saúde foram devastados; milhões de trabalhadores deixaram de receber os seus salários durante meses (que foram desviados pelo governo para diminuir o défice orçamental); as pensões de reforma diminuíram e deixaram de ser pagas a tempo e horas; a inflação subiu para 2500%; as taxas de mortalidade dos trabalhadores incluindo, em primeiro lugar, as taxas de suicídio aumentaram 75% (de 800 adultos em idade activa por cada 100.000 habitantes em 1989 para 1.400 em 1994) e a esperança de vida dos homens russos caiu de 67 anos em 1989 para 60 anos duas décadas mais tarde. Por último, mas mais importante do que tudo o mais, foi criada num abrir e fechar de olhos uma pequeníssima classe de supercapitalistas que se apoderaram de 65% das empresas ao preço da chuva incluindo as que controlavam as maiores fontes de riqueza da Rússia através de vários esquemas mafiosos. 

Um desses esquemas consistiu na compra maciça, por algumas dezenas de grandes tubarões enriquecidos em negócios no mercado negro e com acesso ilimitado ao crédito bancário, de milhões de vales comprovativos da propriedade individual de uma fatia do erário público (no valor nominal de 10 mil rublos) que tinham sido distribuídos gratuitamente pelo governo a cada um dos cidadãos e que foram imediatamente vendidos por estes para fazer face à carestia de vida, às dificuldades causadas pelos salários e pensões em atraso e/ou à perda de poder de compra dessas fontes de rendimento.  

Estas medidas mergulharam imediatamente a Rússia numa crise profundíssima que persistiu durante o resto da década, tornando-se a mais longa depressão económica do século XX e a pior catástrofe humanitária desde a Segunda Guerra Mundial.

4. Provavelmente o economista mais importante do mundo

O próprio Sachs reconheceu este desastre:

«Não há dúvida de que, depois de Gaidar ter sido expulso do cargo de primeiro-ministro, no final de 1992, o nível de corrupção aumentou tremendamente depois de a maioria dos reformadores ter saído do governo no final de 1993 e de os recursos do petróleo e do gás terem começado a ser distribuídos pelos comparsas do governo [de Yeltsin e Chubais]. De certa forma, abriram-se as comportas para a corrupção maciça. Muito doloroso e, no final, não tão fácil de reconstituir». É que, como Sachs salientou, «a Rússia tinha muito para roubar. E esta é uma combinação rara, porque há muitos sítios corruptos que não têm assim tanto para roubar, mas a Rússia tinha esta combinação extraordinária de enormes reservas de recursos naturais, que estavam nas mãos do Estado. Portanto, tinha todos estes elementos. Havia o petróleo, o gás natural, o níquel, o crómio, os diamantes, o ouro. Estavam nas mãos do Estado para serem surripiados, por assim dizer»

«Assim, o que aconteceu foi que em 1994, e ainda mais em 1995 e 1996, alguns dos depósitos de recursos naturais mais valiosos que tinham sido colocados nessas formas empresariais foram simplesmente dados, na sua essência, a essas pessoas a que agora chamamos oligarcas, que se tornaram multimilionários da noite para o dia. Não é assim tão fácil tornar-se multimilionário de um dia para o outro, excepto, talvez, através de uma empresa “ponto com”, o que não era o caso. Tinham uma forma diferente de se tornarem multimilionários de um dia para o outro, que era estarem no círculo interno do Kremlin e conseguirem apoderar-se de uma destas empresas [públicas] de recursos naturai[5].

O doutor Jeffrey Sachs não assume qualquer responsabilidade por este desenlace da sua “terapia económica de choque. Prefere invocar em sua defesa dois argumentos: (i) os russos (leia-se: o corrupto Yeltsin e o seu governo, chefiado pelo corrupto Anatoli Chubais) não teriam seguido os seus conselhos, e (ii) os EUA e o Ocidente não teriam disponibilizado o grande pacote de ajuda financeira que ele insistia ser necessário.

«Podíamos [entenda-se: os EUA e o Ocidente] ter feito muito mais [para ajudar a Rússia a construir uma economia privatizada]. Optámos por não o fazer. Contribuímos, pelo nosso lado, para este processo doloroso» [5].

Mas esta sua versão dos acontecimentos não resiste ao escrutínio [6].

5. VIP entre os VIP

Seja como for, Jeffrey Sachs nunca mais parou desde então. Foi conselheiro no FMI, no Banco Mundial, na OCDE, na Organização Mundial de Saúde e no Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas. Tem aconselhado vários Secretários-Gerais da ONU (incluindo António Guterres) relativamente aos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Foi o fundador e é o estratego-principal da Millennium Promise. É o presidente do Instituto da Terra, sediado na universidade de Columbia, e da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.

Nos últimos 15 anos, o doutor Jeffrey Sachs tem procurado reposicionar-se como um economista social-democrata, preocupado com a pobreza em África, as alterações climáticas e o desenvolvimento sustentável. Uma prova disso foi a sua candidatura (sem êxito) à presidência do Banco Mundial em 2012, em nome dos mais pobres.

Nova Iorque. Outubro de 2005. O cantor Bono, da banda de rock U2, apresenta o novo livro de Jeffrey Sachs, “O Fim da Pobreza”.

Uma outra são os seus livros mais recentes — por exemplo, Building the new American economy: smart, fair, and sustainable (2017) e A new foreign policy: beyond American exceptionalism (2018). São posições que lhe granjearam muita popularidade, mesmo fora do estreito mundo dos economistas e governantes, e que o propulsionaram para o estrelato.

Nova Iorque. 13 de Setembro de 2005. Jeffrey Sachs e actriz Angelina Jolie são entrevistados a respeito do seu diário conjunto sobre o Millenium Promise, um projeto de erradicação da pobreza em 14 aldeias de 10 países da África Subsaariana.

As críticas de Sachs às gigantescas desigualdades económicas entre os mais ricos (1,1% da população mundial) e os mais pobres (52,5%); à indiferença do grande capital (simbolizado por Wall Street) perante a pobreza de mil e cem milhões de seres humanos; ao belicismo americano e da OTAN (/NATO) são, naturalmente, bem-vindas. Mas convém não esquecer o passado do nosso Indiana Jones da economia. Talvez o melhor resumo da última encarnação de Jeffrey Sachs tenha sido aquele que um seu colega economista, David Ellerman, fez já há alguns anos: «Espero que ele consiga o que quer, mas que não receba nenhum louvor por isso».

6. A melhor prenda

Em suma, um homem com o currículo de Jeffrey Sachs está acima de toda e qualquer suspeita de poder ser um agente de forças tenebrosas ao serviço de Vladimir Putin. Muito pelo contrário: este homem é, como vimos, um ícone vivo do “Ocidente alargado”.

Por conseguinte, se este homem afirma, com base em factos incontestáveis, que “A NATO [/OTAN] quer a guerra” ninguém, no “Ocidente alargado”, poderá gritar “Vade retro Satana!” [Afasta-te, Satanás!] para evitar tomar conhecimento daquilo que ele diz.

Estes são alguns dos soldados envolvidos no Steadfast Defender 2024 – o maior exercício militar da OTAN (/NATO) desde o fim da Guerra Fria – cujo objectivo declarado era “deter a Rússia”, um eufemismo para “combater a Rússia”. O megaexercício, que decorreu de Janeiro a Maio deste ano, envolveu 90 mil militares dos 32 Estados-membros da OTAN (NATO) e ocorreu em toda a região oriental da Europa.

Assim sendo, o artigo “A NATO quer a guerra” de Jeffrey Sachs é a melhor prenda que podemos oferecer a todos os belicistas otanianos da nossa praça, em particular os que pontificam nos canais de televisão com maior audiência. Para que saibam que nós sabemos que eles sabem que a OTAN (/NATO) quer a guerra.

Estou a pensar, por exemplo, em militares como Marco Serronha, Isidro de Morais Pereira, Filipe Arnaud Moreira, João Ferreira Borges, João Fonseca Ribeiro, e em civis como Nuno Rogeiro, José Milhazes, Victor Ângelo, Helena Ferro Gouveia, Germano de Almeida, Diana Soller, Sónia Sénica, José Pacheco Pereira, Ana Isabel Xavier, Azeredo Lopes, Seixas da Costa. Há outros, mas estes são os mais ardorosos ou os mais falinhas-mansas, consoante o caso.

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Notas e Referências

[1] James Risen, “Cowboy of Poland’s Economy: Ah, to be 35, American and Solidarity’s most influential adviser. Jeffrey Sachs and his critics alike agree it’s downright scary.” Los Angeles Times, February 9, 1990.

[2] Peter Passed, “Dr. Jeffrey Sachs, Shock Therapist”. The New York Times, June 27, 1993.

[3] Kenneth D. Lehman, Bolivia and the United States. University of Georgia Press, 1999.

[4] Benjamin Kohl e Linda Farthing, “Bolivia: Sachs Versus the Facts”. Upside Down World, March 19, 2012.

[5] Jeffrey Sachs, “Commanding Heights”, PBS, 15-06-2000.

[6] Ver Janine R. Wedel, “The Harvard Boys Do Russia,” The Nation, 1 June 1998; Anne Williamson, “Russia’s Fiscal Whistleblower.” Mother Jones, June 16, 1998; Janine R. Wedel, Collision and Collusion: The Strange Case of Western Aid to Eastern Europe, 1989-1998. St. Martin’s Press, 1998; Anne Williamson, “The Rape of Russia”. Testimony Before the Committee on Banking and Financial Services of the United States House of Representatives. September 21, 1999, que pode ser lido aqui:

https://softpanorama.org/Skeptics/Pseudoscience/Harvard_mafia/testimony_of_anne_williamson_before_the_house_banking_committee.shtml