Temas 2, 3, 4
A melhor prenda para os belicistas
otanianos da nossa praça
José Catarino Soares
1.
Introdução
O artigo de Jeffrey Sachs, “A NATO quer a guerra” [https://estatuadesal.com/2024/07/18/a-nato-quer-a-guerra/], que recomendo vivamente, está muito bem escrito e é factualmente impecável. Por isso, ninguém conseguirá refutar nenhum dos seus argumentos.
11 Julho 2024. Cimeira Comemorativa dos 75 anos da OTAN (/NATO). Washington D.C. |
Mas não é por isso que o artigo de Jeffrey Sachs é
importante. Apesar de bem escrito e não faltar à verdade, o seu artigo não contém nenhuma novidade e
nenhuma originalidade. Todos os factos que evoca e todos os argumentos que
desenvolve foram já evocados e desenvolvidos por muitos outros autores.
A importância do artigo de Jeffrey Sachs reside no facto
de o seu autor ser inatacável pela legião daqueles e daquelas a quem o seu artigo
fará ranger os dentes de raiva contida ou proferir um chorrilho de impropérios.
E porquê?
Porque a mensagem de Jeffrey Sachs não pode ser neutralizada e descartada do modo habitual: insinuando que o seu autor é ⎼ ou acusando o seu autor de ser ⎼ um agente de Putin, ou um “comunista” saudoso da União Soviética, ou um “esquerdista” desaustinado, ou um “populista” manhoso, ou um político de “extrema-direita” ao estilo de Viktor Orban, ou um inimigo jurado dos valores e princípios do “Ocidente” e da “Europa, o seu jardim” (Joseph Borrell ipse dixit). Exacto: nenhuma dessas cavilosas insinuações ou acusações se aplica a Jeffrey Sachs.
2.
Quem é Jeffrey Sachs
Jeffrey Sachs é um senhor que chegou a professor
catedrático de economia na universidade de Harvard (EUA) com apenas 28 anos e
que, já em 1990, com apenas 35 anos, o Los Angeles Times considerava
como sendo «o Indiana Jones da economia» [1].
Em 1993, com apenas 38 anos, o The New York Times foi ainda mais longe, ao
considerá-lo como sendo «provavelmente o economista
mais importante do mundo neste momento» [2].
E porquê? Porque o doutor Jeffrey Sachs, que é
actualmente e desde há muitos anos professor catedrático de economia na
universidade de Columbia (Nova Iorque), foi o inventor da “terapia de choque” em economia, uma invenção não
inteiramente original (uma vez que foi inspirada pelas medidas do economista
alemão Ludwig Erhard [futuro Chanceler da Alemanha Federal] em 1948, nas zonas
da Alemanha sob o controlo dos EUA e do Reino Unido), mas que o tornou
mundialmente famoso.
3.
O Indiana Jones da economia
Foi na Bolívia, em 1985 ⎼ primeiro como
conselheiro do golpista militar Hugo Banzer, em seguida como conselheiro
económico do seu sucessor, o presidente Paz Estenssoro, e do seu ministro do
planeamento (e futuro presidente da república), Gonzalo Sánchez de Lozada ⎼ que Sachs aplicou, pela primeira vez, a sua terapia de
choque para jugular a hiperinflação. Os custos sociais foram imensos. A terapia
de choque de Sachs-Lozada transferiu os custos da estabilização para as classes
trabalhadoras.
«Em 1986, o poder de compra do
boliviano médio baixou 70%.... O desemprego atingiu 20-25% e quase todos os
benefícios sociais para os trabalhadores foram eliminados» [3].
A peça central dessa terapia de choque foi também a mais
odiada da história do país: o Decreto
Supremo 21060, que praticamente ilegalizou as greves e encerrou as minas, despedindo
a grande maioria dos mineiros e “recolocando” mais de 20.000 deles em zonas
tropicais.
Quando Jeffrey Sachs se candidatou à presidência do Banco
Mundial, em 2012, dois dos seus críticos salientaram um aspecto ignorado do seu
programa anti-inflacionista boliviano, denominado PAE [Programa de Ajustamento
Estrutural], a saber:
«a ligação clara entre o PAE na
Bolívia e o crescimento explosivo da coca e da cocaína na década de
1980. Milhares de mineiros, camponeses e operários fabris que perderam os seus
meios de subsistência devido à “estabilização” fugiram para a fronteira
agrícola para semear coca, a única cultura que tinha um mercado garantido. O
governo permitiu implicitamente o branqueamento do dinheiro da droga através da
oferta de certificados de depósito em dólares americanos no banco central, sem
perguntas. O afluxo de dinheiro proveniente do tráfico de droga, talvez a
melhor expressão do que o capitalismo pode fazer num mercado não regulamentado,
foi responsável por uma parte substancial do crescimento económico pelo qual
Sachs pretende reclamar autoria» [4].
Em 1989, Sachs rumou para a Polónia, para aconselhar o governo
do primeiro-ministro Tadeusz Mazowiecki e, em particular, o seu ministro das
finanças, Leszek Balcerowicz. Missão? Ajudá-los a aplicar uma terapia de choque
capaz de desmantelar o aparelho produtivo nacionalizado da Polónia e construir
sobre os seus destroços um aparelho produtivo privatizado.
Em 1990-1991, Sachs foi convidado a colaborar, em
Moscovo, com Grigorii Yavlinsky e os demais membros da equipa económica de
Gorbachev. Mas Gorbachev foi derrubado em Agosto de 1991, Boris Yeltsin
monopolizou o poder, a União Soviética foi dissolvida e dos seus escombros
nasceram a Federação Russa e mais 14 Estados (incluindo a Ucrânia).
No entanto, a situação de Jeffrey Sachs não se alterou
grandemente. Em Novembro de 1991, Sachs começou a trabalhar, informalmente, com
a equipa do primeiro-ministro Yegor Gaidar, quando ele ainda estava a ponderar
o que fazer e depois, formalmente, como conselheiro económico do governo russo,
em Dezembro de 1991, a convite do presidente Yeltsin. Sachs manteve-se precisamente
dois anos e um mês nesse cargo, tendo-se demitido em Janeiro de 1994. A missão
de Jeffrey Sachs na Rússia foi idêntica à que tinha sido a sua na Polónia (e na
Eslovénia e na Estónia, onde também foi conselheiro económico): converter o
aparelho produtivo nacionalizado da Rússia num aparelho produtivo privatizado.
Isso foi conseguido, mas pagando um altíssimo preço.
O produto interno bruto da Rússia pós-soviética foi
reduzido para metade; a pobreza decuplicou; os serviços de saúde foram
devastados; milhões de trabalhadores deixaram de receber os seus salários
durante meses (que foram desviados pelo governo para diminuir o défice
orçamental); as pensões de reforma diminuíram e deixaram de ser pagas a tempo e
horas; a inflação subiu para 2500%; as taxas de mortalidade dos trabalhadores ⎼ incluindo, em primeiro lugar, as taxas de suicídio ⎼ aumentaram 75% (de 800 adultos em idade activa por cada
100.000 habitantes em 1989 para 1.400 em 1994) e a esperança de vida dos homens
russos caiu de 67 anos em 1989 para 60 anos duas décadas mais tarde. Por
último, mas mais importante do que tudo o mais, foi criada num abrir e fechar
de olhos uma pequeníssima classe de supercapitalistas que se apoderaram de 65%
das empresas ao preço da chuva ⎼ incluindo as que
controlavam as maiores fontes de riqueza da Rússia ⎼ através de vários esquemas mafiosos.
Um desses esquemas consistiu na compra maciça, por algumas
dezenas de grandes tubarões enriquecidos em negócios no mercado negro e com
acesso ilimitado ao crédito bancário, de milhões de vales comprovativos da
propriedade individual de uma fatia do erário público (no valor nominal de 10
mil rublos) que tinham sido distribuídos gratuitamente pelo governo a cada um dos
cidadãos e que foram imediatamente vendidos por estes para fazer face à carestia
de vida, às dificuldades causadas pelos salários e pensões em atraso e/ou à
perda de poder de compra dessas fontes de rendimento.
Estas medidas mergulharam imediatamente a Rússia numa crise profundíssima que persistiu durante o resto da década, tornando-se a mais longa depressão económica do século XX e a pior catástrofe humanitária desde a Segunda Guerra Mundial.
4.
Provavelmente o economista mais importante do mundo
O próprio Sachs reconheceu este desastre:
«Não há dúvida de que, depois de
Gaidar ter sido expulso do cargo de primeiro-ministro, no final de 1992, o
nível de corrupção aumentou tremendamente depois de a maioria dos reformadores
ter saído do governo no final de 1993 e de os recursos do petróleo e do gás
terem começado a ser distribuídos pelos comparsas do governo [de Yeltsin
e Chubais]. De certa forma, abriram-se as comportas
para a corrupção maciça. Muito doloroso e, no final, não tão fácil de
reconstituir». É que, como Sachs salientou, «a
Rússia tinha muito para roubar. E esta é uma combinação rara, porque há muitos
sítios corruptos que não têm assim tanto para roubar, mas a Rússia tinha esta
combinação extraordinária de enormes reservas de recursos naturais, que estavam
nas mãos do Estado. Portanto, tinha todos estes elementos. Havia o petróleo, o
gás natural, o níquel, o crómio, os diamantes, o ouro. Estavam nas mãos do
Estado para serem surripiados, por assim dizer»
«Assim, o que aconteceu foi que
em 1994, e ainda mais em 1995 e 1996, alguns dos depósitos de recursos naturais
mais valiosos que tinham sido colocados nessas formas empresariais foram
simplesmente dados, na sua essência, a essas pessoas a que agora chamamos
oligarcas, que se tornaram multimilionários da noite para o dia. Não é assim
tão fácil tornar-se multimilionário de um dia para o outro, excepto, talvez,
através de uma empresa “ponto com”, o que não era o caso. Tinham uma forma
diferente de se tornarem multimilionários de um dia para o outro, que era
estarem no círculo interno do Kremlin e conseguirem apoderar-se de uma destas
empresas [públicas] de recursos naturais»
[5].
O doutor Jeffrey Sachs não assume qualquer responsabilidade
por este desenlace da sua “terapia económica de choque”. Prefere invocar
em sua defesa dois argumentos: (i) os russos (leia-se: o corrupto Yeltsin
e o seu governo, chefiado pelo corrupto Anatoli Chubais) não teriam seguido os
seus conselhos, e (ii) os EUA e o Ocidente não teriam disponibilizado o
grande pacote de ajuda financeira que ele insistia ser necessário.
«Podíamos [entenda-se: os
EUA e o Ocidente] ter feito muito mais [para
ajudar a Rússia a construir uma economia privatizada]. Optámos
por não o fazer. Contribuímos, pelo nosso lado, para este processo doloroso»
[5].
Mas esta sua versão dos acontecimentos não resiste ao
escrutínio [6].
5.
VIP entre os VIP
Seja como for, Jeffrey Sachs nunca mais parou desde então.
Foi conselheiro no FMI, no Banco Mundial, na OCDE, na Organização Mundial de
Saúde e no Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas. Tem aconselhado vários
Secretários-Gerais da ONU (incluindo António Guterres) relativamente aos Objectivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS). Foi o fundador e é o estratego-principal da Millennium
Promise. É o presidente do Instituto da Terra, sediado na universidade de
Columbia, e da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável das Nações
Unidas.
Nos últimos 15 anos, o doutor Jeffrey Sachs tem procurado reposicionar-se como um economista social-democrata, preocupado com a pobreza em África, as alterações climáticas e o desenvolvimento sustentável. Uma prova disso foi a sua candidatura (sem êxito) à presidência do Banco Mundial em 2012, em nome dos mais pobres.
Nova Iorque. Outubro de 2005. O cantor Bono, da banda de rock U2, apresenta o novo livro de Jeffrey Sachs, “O Fim da Pobreza”. |
Uma outra são os seus livros mais recentes — por exemplo, Building the new American economy: smart, fair, and sustainable (2017) e A new foreign policy: beyond American exceptionalism (2018). São posições que lhe granjearam muita popularidade, mesmo fora do estreito mundo dos economistas e governantes, e que o propulsionaram para o estrelato.
As críticas de Sachs às gigantescas desigualdades
económicas entre os mais ricos (1,1% da população mundial) e os mais pobres
(52,5%); à indiferença do grande capital (simbolizado por Wall Street) perante
a pobreza de mil e cem milhões de seres humanos; ao belicismo americano e da
OTAN (/NATO) são, naturalmente, bem-vindas. Mas convém não esquecer o passado
do nosso Indiana Jones da economia. Talvez o melhor resumo da última encarnação
de Jeffrey Sachs tenha sido aquele que um seu colega economista, David Ellerman,
fez já há alguns anos: «Espero que ele consiga o que
quer, mas que não receba nenhum louvor por isso».
6.
A melhor prenda
Em suma, um homem com o currículo de Jeffrey Sachs está
acima de toda e qualquer suspeita de poder ser um agente de forças tenebrosas
ao serviço de Vladimir Putin. Muito pelo contrário: este homem é, como vimos,
um ícone vivo do “Ocidente alargado”.
Por conseguinte, se este homem afirma, com base em factos incontestáveis, que “A NATO [/OTAN] quer a guerra” ninguém, no “Ocidente alargado”, poderá gritar “Vade retro Satana!” [Afasta-te, Satanás!] para evitar tomar conhecimento daquilo que ele diz.
Assim sendo, o artigo “A NATO
quer a guerra” de Jeffrey Sachs é a melhor prenda que podemos oferecer a
todos os belicistas otanianos da nossa praça, em particular os que
pontificam nos canais de televisão com maior audiência. Para que saibam
que nós sabemos que eles sabem que a OTAN (/NATO) quer a guerra.
Estou a pensar, por exemplo, em militares como Marco Serronha,
Isidro de Morais Pereira, Filipe Arnaud Moreira, João Ferreira Borges, João
Fonseca Ribeiro, e em civis como Nuno Rogeiro, José Milhazes, Victor Ângelo,
Helena Ferro Gouveia, Germano de Almeida, Diana Soller, Sónia Sénica, José Pacheco Pereira, Ana
Isabel Xavier, Azeredo Lopes, Seixas da Costa. Há outros, mas estes são os mais
ardorosos ou os mais falinhas-mansas, consoante o caso.
……………………………………………………………………………….
Notas
e Referências
[1] James
Risen, “Cowboy of Poland’s Economy: Ah, to be 35, American and Solidarity’s
most influential adviser. Jeffrey Sachs and his critics alike agree it’s
downright scary.” Los Angeles Times, February 9, 1990.
[2]
Peter Passed, “Dr. Jeffrey Sachs, Shock Therapist”. The New York Times, June
27, 1993.
[3] Kenneth D.
Lehman, Bolivia
and the United States. University of Georgia Press, 1999.
[4] Benjamin
Kohl e Linda Farthing, “Bolivia: Sachs Versus the Facts”. Upside Down World,
March 19, 2012.
[5] Jeffrey
Sachs, “Commanding Heights”, PBS, 15-06-2000.
[6] Ver Janine R. Wedel, “The Harvard Boys Do Russia,” The Nation, 1 June 1998; Anne Williamson, “Russia’s Fiscal Whistleblower.” Mother Jones, June 16, 1998; Janine R. Wedel, Collision and Collusion: The Strange Case of Western Aid to Eastern Europe, 1989-1998. St. Martin’s Press, 1998; Anne Williamson, “The Rape of Russia”. Testimony Before the Committee on Banking and Financial Services of the United States House of Representatives. September 21, 1999, que pode ser lido aqui:
O melhor atestado de "autorizados manipuladores de opinião a favor do Ocidente" que se poderia fazer a avençados defensores de causas perdidas para o sistema político dominante.
ResponderEliminarA essa pequena lista de ilustres seguidistas da sã doutrina belicista do seu patrono, os EUA, devemos acrescentar a comentadeira escritora de ar fofinho Inês Pedrosa, coparticipante no Apaga a Luz. E sim, a luz está mesmo apagada.
ResponderEliminarÉ um programa que nunca vejo. Daí a omissão.
ResponderEliminar