Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

20 julho, 2024

 Temas 2, 3, 4

A melhor prenda para os belicistas 

otanianos da nossa praça

José Catarino Soares

 

1. Introdução

O artigo de Jeffrey Sachs, “A NATO quer a guerra [https://estatuadesal.com/2024/07/18/a-nato-quer-a-guerra/], que recomendo vivamente, está muito bem escrito e é factualmente impecável. Por isso, ninguém conseguirá refutar nenhum dos seus argumentos.

11 Julho 2024. Cimeira Comemorativa dos 75 anos da OTAN (/NATO). Washington D.C.

Mas não é por isso que o artigo de Jeffrey Sachs é importante. Apesar de bem escrito e não faltar à verdade, o seu artigo não contém nenhuma novidade e nenhuma originalidade. Todos os factos que evoca e todos os argumentos que desenvolve foram já evocados e desenvolvidos por muitos outros autores.

A importância do artigo de Jeffrey Sachs reside no facto de o seu autor ser inatacável pela legião daqueles e daquelas a quem o seu artigo fará ranger os dentes de raiva contida ou proferir um chorrilho de impropérios. E porquê?

Porque a mensagem de Jeffrey Sachs não pode ser neutralizada e descartada do modo habitual: insinuando que o seu autor é ou acusando o seu autor de ser um agente de Putin, ou um “comunista” saudoso da União Soviética, ou um “esquerdista” desaustinado, ou um “populista” manhoso, ou um político de “extrema-direita” ao estilo de Viktor Orban, ou um inimigo jurado dos valores e princípios do “Ocidente e da “Europa, o seu jardim” (Joseph Borrell ipse dixit). Exacto: nenhuma dessas cavilosas insinuações ou acusações se aplica a Jeffrey Sachs.

2. Quem é Jeffrey Sachs

Jeffrey Sachs é um senhor que chegou a professor catedrático de economia na universidade de Harvard (EUA) com apenas 28 anos e que, já em 1990, com apenas 35 anos, o Los Angeles Times considerava como sendo «o Indiana Jones da economia» [1]. Em 1993, com apenas 38 anos, o The New York Times foi ainda mais longe, ao considerá-lo como sendo «provavelmente o economista mais importante do mundo neste momento» [2].

E porquê? Porque o doutor Jeffrey Sachs, que é actualmente e desde há muitos anos professor catedrático de economia na universidade de Columbia (Nova Iorque), foi o inventor da “terapia de choque” em economia, uma invenção não inteiramente original (uma vez que foi inspirada pelas medidas do economista alemão Ludwig Erhard [futuro Chanceler da Alemanha Federal] em 1948, nas zonas da Alemanha sob o controlo dos EUA e do Reino Unido), mas que o tornou mundialmente famoso. 

3. O Indiana Jones da economia

Foi na Bolívia, em 1985 primeiro como conselheiro do golpista militar Hugo Banzer, em seguida como conselheiro económico do seu sucessor, o presidente Paz Estenssoro, e do seu ministro do planeamento (e futuro presidente da república), Gonzalo Sánchez de Lozada que Sachs aplicou, pela primeira vez, a sua terapia de choque para jugular a hiperinflação. Os custos sociais foram imensos. A terapia de choque de Sachs-Lozada transferiu os custos da estabilização para as classes trabalhadoras.

«Em 1986, o poder de compra do boliviano médio baixou 70%.... O desemprego atingiu 20-25% e quase todos os benefícios sociais para os trabalhadores foram eliminados» [3]. 

A peça central dessa terapia de choque foi também a mais odiada da história do país:  o Decreto Supremo 21060, que praticamente ilegalizou as greves e encerrou as minas, despedindo a grande maioria dos mineiros e “recolocando” mais de 20.000 deles em zonas tropicais.

Quando Jeffrey Sachs se candidatou à presidência do Banco Mundial, em 2012, dois dos seus críticos salientaram um aspecto ignorado do seu programa anti-inflacionista boliviano, denominado PAE [Programa de Ajustamento Estrutural], a saber:

«a ligação clara entre o PAE na Bolívia e o crescimento explosivo da coca e da cocaína na década de 1980. Milhares de mineiros, camponeses e operários fabris que perderam os seus meios de subsistência devido à “estabilização” fugiram para a fronteira agrícola para semear coca, a única cultura que tinha um mercado garantido. O governo permitiu implicitamente o branqueamento do dinheiro da droga através da oferta de certificados de depósito em dólares americanos no banco central, sem perguntas. O afluxo de dinheiro proveniente do tráfico de droga, talvez a melhor expressão do que o capitalismo pode fazer num mercado não regulamentado, foi responsável por uma parte substancial do crescimento económico pelo qual Sachs pretende reclamar autoria» [4].

Em 1989, Sachs rumou para a Polónia, para aconselhar o governo do primeiro-ministro Tadeusz Mazowiecki e, em particular, o seu ministro das finanças, Leszek Balcerowicz. Missão? Ajudá-los a aplicar uma terapia de choque capaz de desmantelar o aparelho produtivo nacionalizado da Polónia e construir sobre os seus destroços um aparelho produtivo privatizado.

Em 1990-1991, Sachs foi convidado a colaborar, em Moscovo, com Grigorii Yavlinsky e os demais membros da equipa económica de Gorbachev. Mas Gorbachev foi derrubado em Agosto de 1991, Boris Yeltsin monopolizou o poder, a União Soviética foi dissolvida e dos seus escombros nasceram a Federação Russa e mais 14 Estados (incluindo a Ucrânia).

No entanto, a situação de Jeffrey Sachs não se alterou grandemente. Em Novembro de 1991, Sachs começou a trabalhar, informalmente, com a equipa do primeiro-ministro Yegor Gaidar, quando ele ainda estava a ponderar o que fazer e depois, formalmente, como conselheiro económico do governo russo, em Dezembro de 1991, a convite do presidente Yeltsin. Sachs manteve-se precisamente dois anos e um mês nesse cargo, tendo-se demitido em Janeiro de 1994. A missão de Jeffrey Sachs na Rússia foi idêntica à que tinha sido a sua na Polónia (e na Eslovénia e na Estónia, onde também foi conselheiro económico): converter o aparelho produtivo nacionalizado da Rússia num aparelho produtivo privatizado. Isso foi conseguido, mas pagando um altíssimo preço.

O produto interno bruto da Rússia pós-soviética foi reduzido para metade; a pobreza decuplicou; os serviços de saúde foram devastados; milhões de trabalhadores deixaram de receber os seus salários durante meses (que foram desviados pelo governo para diminuir o défice orçamental); as pensões de reforma diminuíram e deixaram de ser pagas a tempo e horas; a inflação subiu para 2500%; as taxas de mortalidade dos trabalhadores incluindo, em primeiro lugar, as taxas de suicídio aumentaram 75% (de 800 adultos em idade activa por cada 100.000 habitantes em 1989 para 1.400 em 1994) e a esperança de vida dos homens russos caiu de 67 anos em 1989 para 60 anos duas décadas mais tarde. Por último, mas mais importante do que tudo o mais, foi criada num abrir e fechar de olhos uma pequeníssima classe de supercapitalistas que se apoderaram de 65% das empresas ao preço da chuva incluindo as que controlavam as maiores fontes de riqueza da Rússia através de vários esquemas mafiosos. 

Um desses esquemas consistiu na compra maciça, por algumas dezenas de grandes tubarões enriquecidos em negócios no mercado negro e com acesso ilimitado ao crédito bancário, de milhões de vales comprovativos da propriedade individual de uma fatia do erário público (no valor nominal de 10 mil rublos) que tinham sido distribuídos gratuitamente pelo governo a cada um dos cidadãos e que foram imediatamente vendidos por estes para fazer face à carestia de vida, às dificuldades causadas pelos salários e pensões em atraso e/ou à perda de poder de compra dessas fontes de rendimento.  

Estas medidas mergulharam imediatamente a Rússia numa crise profundíssima que persistiu durante o resto da década, tornando-se a mais longa depressão económica do século XX e a pior catástrofe humanitária desde a Segunda Guerra Mundial.

4. Provavelmente o economista mais importante do mundo

O próprio Sachs reconheceu este desastre:

«Não há dúvida de que, depois de Gaidar ter sido expulso do cargo de primeiro-ministro, no final de 1992, o nível de corrupção aumentou tremendamente depois de a maioria dos reformadores ter saído do governo no final de 1993 e de os recursos do petróleo e do gás terem começado a ser distribuídos pelos comparsas do governo [de Yeltsin e Chubais]. De certa forma, abriram-se as comportas para a corrupção maciça. Muito doloroso e, no final, não tão fácil de reconstituir». É que, como Sachs salientou, «a Rússia tinha muito para roubar. E esta é uma combinação rara, porque há muitos sítios corruptos que não têm assim tanto para roubar, mas a Rússia tinha esta combinação extraordinária de enormes reservas de recursos naturais, que estavam nas mãos do Estado. Portanto, tinha todos estes elementos. Havia o petróleo, o gás natural, o níquel, o crómio, os diamantes, o ouro. Estavam nas mãos do Estado para serem surripiados, por assim dizer»

«Assim, o que aconteceu foi que em 1994, e ainda mais em 1995 e 1996, alguns dos depósitos de recursos naturais mais valiosos que tinham sido colocados nessas formas empresariais foram simplesmente dados, na sua essência, a essas pessoas a que agora chamamos oligarcas, que se tornaram multimilionários da noite para o dia. Não é assim tão fácil tornar-se multimilionário de um dia para o outro, excepto, talvez, através de uma empresa “ponto com”, o que não era o caso. Tinham uma forma diferente de se tornarem multimilionários de um dia para o outro, que era estarem no círculo interno do Kremlin e conseguirem apoderar-se de uma destas empresas [públicas] de recursos naturai[5].

O doutor Jeffrey Sachs não assume qualquer responsabilidade por este desenlace da sua “terapia económica de choque. Prefere invocar em sua defesa dois argumentos: (i) os russos (leia-se: o corrupto Yeltsin e o seu governo, chefiado pelo corrupto Anatoli Chubais) não teriam seguido os seus conselhos, e (ii) os EUA e o Ocidente não teriam disponibilizado o grande pacote de ajuda financeira que ele insistia ser necessário.

«Podíamos [entenda-se: os EUA e o Ocidente] ter feito muito mais [para ajudar a Rússia a construir uma economia privatizada]. Optámos por não o fazer. Contribuímos, pelo nosso lado, para este processo doloroso» [5].

Mas esta sua versão dos acontecimentos não resiste ao escrutínio [6].

5. VIP entre os VIP

Seja como for, Jeffrey Sachs nunca mais parou desde então. Foi conselheiro no FMI, no Banco Mundial, na OCDE, na Organização Mundial de Saúde e no Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas. Tem aconselhado vários Secretários-Gerais da ONU (incluindo António Guterres) relativamente aos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Foi o fundador e é o estratego-principal da Millennium Promise. É o presidente do Instituto da Terra, sediado na universidade de Columbia, e da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas.

Nos últimos 15 anos, o doutor Jeffrey Sachs tem procurado reposicionar-se como um economista social-democrata, preocupado com a pobreza em África, as alterações climáticas e o desenvolvimento sustentável. Uma prova disso foi a sua candidatura (sem êxito) à presidência do Banco Mundial em 2012, em nome dos mais pobres.

Nova Iorque. Outubro de 2005. O cantor Bono, da banda de rock U2, apresenta o novo livro de Jeffrey Sachs, “O Fim da Pobreza”.

Uma outra são os seus livros mais recentes — por exemplo, Building the new American economy: smart, fair, and sustainable (2017) e A new foreign policy: beyond American exceptionalism (2018). São posições que lhe granjearam muita popularidade, mesmo fora do estreito mundo dos economistas e governantes, e que o propulsionaram para o estrelato.

Nova Iorque. 13 de Setembro de 2005. Jeffrey Sachs e actriz Angelina Jolie são entrevistados a respeito do seu diário conjunto sobre o Millenium Promise, um projeto de erradicação da pobreza em 14 aldeias de 10 países da África Subsaariana.

As críticas de Sachs às gigantescas desigualdades económicas entre os mais ricos (1,1% da população mundial) e os mais pobres (52,5%); à indiferença do grande capital (simbolizado por Wall Street) perante a pobreza de mil e cem milhões de seres humanos; ao belicismo americano e da OTAN (/NATO) são, naturalmente, bem-vindas. Mas convém não esquecer o passado do nosso Indiana Jones da economia. Talvez o melhor resumo da última encarnação de Jeffrey Sachs tenha sido aquele que um seu colega economista, David Ellerman, fez já há alguns anos: «Espero que ele consiga o que quer, mas que não receba nenhum louvor por isso».

6. A melhor prenda

Em suma, um homem com o currículo de Jeffrey Sachs está acima de toda e qualquer suspeita de poder ser um agente de forças tenebrosas ao serviço de Vladimir Putin. Muito pelo contrário: este homem é, como vimos, um ícone vivo do “Ocidente alargado”.

Por conseguinte, se este homem afirma, com base em factos incontestáveis, que “A NATO [/OTAN] quer a guerra” ninguém, no “Ocidente alargado”, poderá gritar “Vade retro Satana!” [Afasta-te, Satanás!] para evitar tomar conhecimento daquilo que ele diz.

Estes são alguns dos soldados envolvidos no Steadfast Defender 2024 – o maior exercício militar da OTAN (/NATO) desde o fim da Guerra Fria – cujo objectivo declarado era “deter a Rússia”, um eufemismo para “combater a Rússia”. O megaexercício, que decorreu de Janeiro a Maio deste ano, envolveu 90 mil militares dos 32 Estados-membros da OTAN (NATO) e ocorreu em toda a região oriental da Europa.

Assim sendo, o artigo “A NATO quer a guerra” de Jeffrey Sachs é a melhor prenda que podemos oferecer a todos os belicistas otanianos da nossa praça, em particular os que pontificam nos canais de televisão com maior audiência. Para que saibam que nós sabemos que eles sabem que a OTAN (/NATO) quer a guerra.

Estou a pensar, por exemplo, em militares como Marco Serronha, Isidro de Morais Pereira, Filipe Arnaud Moreira, João Ferreira Borges, João Fonseca Ribeiro, e em civis como Nuno Rogeiro, José Milhazes, Victor Ângelo, Helena Ferro Gouveia, Germano de Almeida, Diana Soller, Sónia Sénica, José Pacheco Pereira, Ana Isabel Xavier, Azeredo Lopes, Seixas da Costa. Há outros, mas estes são os mais ardorosos ou os mais falinhas-mansas, consoante o caso.

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Notas e Referências

[1] James Risen, “Cowboy of Poland’s Economy: Ah, to be 35, American and Solidarity’s most influential adviser. Jeffrey Sachs and his critics alike agree it’s downright scary.” Los Angeles Times, February 9, 1990.

[2] Peter Passed, “Dr. Jeffrey Sachs, Shock Therapist”. The New York Times, June 27, 1993.

[3] Kenneth D. Lehman, Bolivia and the United States. University of Georgia Press, 1999.

[4] Benjamin Kohl e Linda Farthing, “Bolivia: Sachs Versus the Facts”. Upside Down World, March 19, 2012.

[5] Jeffrey Sachs, “Commanding Heights”, PBS, 15-06-2000.

[6] Ver Janine R. Wedel, “The Harvard Boys Do Russia,” The Nation, 1 June 1998; Anne Williamson, “Russia’s Fiscal Whistleblower.” Mother Jones, June 16, 1998; Janine R. Wedel, Collision and Collusion: The Strange Case of Western Aid to Eastern Europe, 1989-1998. St. Martin’s Press, 1998; Anne Williamson, “The Rape of Russia”. Testimony Before the Committee on Banking and Financial Services of the United States House of Representatives. September 21, 1999, que pode ser lido aqui:

https://softpanorama.org/Skeptics/Pseudoscience/Harvard_mafia/testimony_of_anne_williamson_before_the_house_banking_committee.shtml

 

3 comentários:

  1. O melhor atestado de "autorizados manipuladores de opinião a favor do Ocidente" que se poderia fazer a avençados defensores de causas perdidas para o sistema político dominante.

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  2. A essa pequena lista de ilustres seguidistas da sã doutrina belicista do seu patrono, os EUA, devemos acrescentar a comentadeira escritora de ar fofinho Inês Pedrosa, coparticipante no Apaga a Luz. E sim, a luz está mesmo apagada.

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Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana