Temas 1, 2, 3
Indulgências para pecados
imaginários, remorsos fictícios e ressentimentos melífluos
no Dia de Portugal, de
Camões e das Comunidades Portuguesas
José Catarino Soares
Na
cidade algarvia de Lagos, a convite do Presidente da República Portuguesa,
Marcelo Rebelo de Sousa, a romancista e conselheira de Estado Lídia Jorge
proferiu um longo discurso no dia 10 de Junho [de 2025] — “Dia de Portugal, de
Camões e das Comunidades Portuguesas”.
Lídia Jorge discursando em Lagos, no dia 10 de Junho de 2025 |
O
seu discurso pode ser lido na íntegra aqui:
https://visao.pt/atualidade/
politica/2025-06-10-o-discurso-de-lidia-jorge-na-integra-a-mensagem-do-10-de-junho-que-sera-recordada/.
1. A primeira parte do
discurso de Lídia Jorge
Até
sensivelmente à primeira metade do seu discurso (de 15 páginas), a oradora vai
discorrendo sobre Camões e sobre o tempo que ao poeta coube em sorte viver.
Retrato de Luís Vaz de Camões (1577) por Fernão Gomes |
A dado passo, porém, Lídia Jorge formula a seguinte tese: tal como Portugal entrou num novo e sombrio ciclo na sequência do desastre que representou a batalha de Alcácer Quibir (1578) e que Camões assinalou numa das últimas estrofes do Canto X de Os Lusíadas, também o mundo contemporâneo entrou num novo e sombrio ciclo.
«O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que
a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos
como a terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se
mais uma vez se tratasse de um berloque [de pôr ao pescoço, n.e.]
E os cidadãos são apenas público, que assiste a espectáculos em
ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil
designação de seguidores. E os seus ídolos são fantasmas. Nos dias que correm,
trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global.
Porque nós, agora, somos outros».
E como escolheu a oradora desenvolver esta interessante tese? Recuando no tempo, até a um dia de calor tórrido em Agosto 1444, quando desembarcaram em Lagos 235 indivíduos raptados e escravizados nas costas da Mauritânia e como foram repartidos pelos seus proprietários escravistas (um deles o infante D. Henrique).
Lagos. Núcleo Museológico Rota da Escravatura, inaugurado em 2005, e instalado no antigo edifício da Vedoria, edificado no século XVII, e que desempenhou também as funções de Alfândega, Casa da Guarda e Prisão Militar. Este edifício foi construído perto do rossio onde, em 1444, se fez venda dos primeiros escravos chegados a Lagos, referenciado como Terreiro da Porta da Vila (medieval) nas fontes coevas. |
Não
consigo imaginar uma maneira mais abstrusa de desenvolver a tese de que um novo
tempo está a acontecer à escala global. Mas o defeito poderá ser meu, que não
entendo o alcance nem a pertinência do paralelismo com o que sucedeu em Lagos em
1444.
2. A segunda parte do
discurso de Lídia Jorge
Seja
como for, é a partir desse momento do seu discurso que Lídia Jorge se permite
fazer toda uma série de entorses a factos da história de Portugal e da
humanidade para sustentar um postulado (P)
muito curioso [1], mas já enunciado frequentemente noutros fóruns nos últimos
anos [2]:
a de que
(P) ― os portugueses contemporâneos têm de expiar
colectivamente os “pecados” (reais e
imaginários), incluindo os crimes mais nefandos, cometidos pelos seus antepassados,
para ganharem o reino dos céus na Terra.
Segundo a artista portuguesa Graça Quilomba, a residir em Berlim, a maneira de pôr em prática este postulado consiste em transformá-lo num processo,
«um processo
psicológico que passa de negação a culpa, de culpa a vergonha, de vergonha a
reconhecimento e de reconhecimento a reparação. Quando estou em Portugal sinto
que estamos completamente na negação» [3].
Não
preciso de analisar o modo como Lídia Jorge articula uma variante deste postulado
na segunda parte do seu discurso, porque o historiador (e também romancista)
João Pedro Marques já o fez com a sua habitual competência, sobriedade e
clareza, num texto intitulado Considerações sobre um discurso de Lídia Jorge,
publicado no seu blogue, Céu Enganador.
O texto de João Pedro Marques ⎼ que pode ser lido aqui [https://ceuenganador.webnode.pt/] ⎼ é uma breve mas incisiva lição de história contra a ignorância atrevida sobre os Descobrimentos portugueses e o tráfico transatlântico de escravos do século XVI a meados do século XIX.
E
é também uma crítica acutilante da autoflagelação identitária que faz do
remorso, da mágoa e do ressentimento por pecados imaginários ⎼ como, por exemplo, o “pecado dos Descobrimentos” (?!) referido por Lídia
Jorge ⎼ os elementos progressistas
(!!) indispensáveis da nova e redentora (!!) narrativa identitária do Portugal
do século XXI.
O
que eu me proponho fazer no resto deste artigo é prolongar a sua reflexão
noutras direcções.
Regressemos,
então, ao postulado P.
3. O comércio
das indulgências e os seus questores
Esse postulado é reminiscente do dos “perdoadores” profissionais, os questores de indulgências envolvidos, outrora (séculos XIII-XVI), no comércio das indulgências da Santa Sé.
Os
questores (Lat. quaestores) eram representantes de vários escalões da
hierarquia da Igreja Católica Apostólica Romana, frequentemente membros de
ordens religiosas, que eram enviados para arrecadar fundos para a Igreja
Católica, geralmente em troca de indulgências. As indulgências,
nesse contexto, eram remissões de penas temporais por pecados já perdoados,
oferecidas em troca de doações financeiras.
4. O comércio das indulgências
em versão woke
O
comércio das indulgências não desapareceu nos desvãos da história. Mudou de promotores,
de questores e de clientelas.
O
caso mais notável é o do movimento activista woke [4],
cujas bandeiras ideológicas foram explicitamente integradas nas práticas e nos comportamentos
dos gestores empresariais de topo e dos gestores políticos de topo que têm
vindo a pilotar o processo de globalização transnacional nos últimos 30 anos.
«As grandes empresas tecnológicas e muitas outras empresas
proeminentes têm apoiado os direitos LGBTQ+, apesar do risco de alienarem os seus
accionistas conservadores. Porque é que o fazem? De que forma é que ser amigo
das pessoas LGBTQ+ beneficia as empresas? No seu estudo, Veda Fatmy, John Kihn,
Jukka Sihvonen e Sami Vähämaa concluíram que as políticas empresariais
favoráveis à comunidade LGBTQ+ têm um impacto positivo na avaliação do mercado
de acções e no desempenho financeiro das empresas» [5].
Por
outras palavras, uma das chaves do êxito do movimento woke consistiu na sua capacidade de mostrar aos gestores de
topo das grandes empresas e aos gestores de topo das instituições estatais
(incluindo as que têm o monopólio legal do uso das armas de guerra e o
monopólio legal do uso da violência repressiva contra cidadãos nacionais e
estrangeiros) o muito que podem ganhar se actuarem como beneméritos concessores
de direitos LGBTQ+, émulos, no estádio zero da religião (ver nota [8]), dos
questores do outrora próspero comércio das indulgências.
Um
exemplo dessa actuação é a comemoração pela CIA do Mês
do ORGULHO GAY e LÉSBICO [Ingl. “Gay
and Lesbian Pride Month”] que começou a ser
comemorado, a partir de 1999, em Junho, por força da Proclamação 7203 do presidente
Bill Clinton, e que evoluiu, com o passar dos anos, para o Mês do ORGULHO LGBTQ+.
«Este mês [Junho de 2023, o mês do Orgulho LGBTQ+], estamos orgulhosos não só dos agentes homossexuais que nos ajudaram a dar golpes de Estado e a assassinar chefes de Estado, mas também dos agentes homossexuais que nos ajudaram a fomentar a dissidência e a fazer com que os golpes de Estado parecessem descontentamento orgânico em sociedades com regimes que nos desagradam» (Jessica Burbank, agente da CIA, no X, 7 de Junho de 2023).
5. Reciclagem do
comércio das indulgências
O
movimento woke é originário dos EUA.
Mas bem depressa saltou fronteiras e chegou a outros países dos dois lados do
Atlântico ⎼ incluindo
o Canadá, o Brasil, o Reino Unido, a França (muito fortemente em todos eles) e
até Portugal (muito fracamente, mas com tendência a crescer) ⎼ além de muitos países
que foram, outrora, possessões ultramarinas do Reino Unido, da França, de Portugal,
das Terras Baixas (Holanda), da Bélgica, da Espanha e da Alemanha, com especial
destaque para os países da Comunidade do Caribe (Caricom).
Nesse
movimento migratório, o comércio das indulgências foi reciclado e posto de novo
a circular sob um novo nome: reparações. O movimento woke
exige reparações monetárias (a indivíduos, comunidades e governos de 30 países), no
valor de 107,8 biliões de dólares americanos, a pagar por 10 países (incluindo Portugal, que teria de pagar 20,6 biliões de dólares [=18 biliões de euros], números redondos),[6] além de reparações
não monetárias (como, por exemplo, o cancelamento de dívidas de Estados) e materiais
(como, por exemplo, a devolução de peças museológicas, artefactos e restos
mortais). E exige também uma mudança na narrativa de factos passados e da memória
colectiva.
Que
factos passados? Apenas os factos passados dos últimos 500 anos e apenas os
factos passados relativos aos africanos de pele muito escura e de cabelo encarapinhado
— os “negros” na terminologia woke.
Mas
as reparações são a outra face, a face mais visível, de um objectivo impregnado
de um elemento fortíssimo de niilismo: o objectivo de corrigir o passado. Os
questores das reparações querem fazer justiça, olhando para o passado dos africanos
“negros” nos últimos 500 anos com os olhos do
presente (isto é, com os conceitos e com os juízos morais do presente,
incluindo, em lugar proeminente, os do movimento woke),
corrigindo com os olhos do presente aquilo que está mal no passado.
E
é aqui que a porca torce o rabo.
«A história foi feita pelos homens que viveram cada momento e
que avaliaram os problemas da sua época com os seus conceitos, com os seus
valores, com a sua capacidade de intervenção. É possível, aceitável, corrigir
coisas recentes. Agora, tentar corrigir coisas que aconteceram há 400, 500
anos, e que eram consideradas aceitáveis na altura é uma coisa completamente
absurda. E o movimento woke é isso que quer. Neste caso concreto da
escravatura, quer reparações pagas pelos brancos [*] – e apenas pelos brancos [*], esquecendo que o tráfico transatlântico de escravos foi um
negócio com duas partes, os europeus de um lado e os potentados africanos
do outro lado…Foi um negócio lucrativo para ambas as
partes. E por isso os africanos não queriam largá-lo, tiveram de ser forçados
muitas vezes manu militari, com navios de guerra, porque para eles era
lucrativo.
O movimento woke considera que a culpa é exclusiva dos
brancos [*], ignorando esse aspecto que
referi e ignorando outra coisa igualmente importante: é que a escravidão e o
comércio de escravos a larga distância já existiam em África antes de os
brancos [*] lá chegarem. África já vendia
escravos para o mundo muçulmano desde o séc. VII/VIII d.C. Quando os
portugueses lá chegam, no século XV, já África tinha vendido mais de cinco
milhões de escravos negros para o mundo muçulmano. Os woke ignoram isso
tudo e querem que os brancos [*] assumam a responsabilidade
exclusiva. E querem que paguem indemnizações fortíssimas. Os woke
julgam-se Deus, julgam ter poderes de justiça divina, julgam ter capacidade
para recompensar os justos e castigar os pecadores»
[7].
[*] Apenas
um reparo. “Brancos”, aqui, não é a palavra certa, porque os próceres do
movimento woke não se interessam minimamente pelas responsabilidades na escravidão
e no comércio de escravos “negros” que cabem aos árabes e berberes. Ora, estes
são, na sua grande maioria, “brancos”. Para o
movimento woke a culpa da escravidão
e do comércio de escravos “negros” de longa
distância é exclusivamente dos europeus “brancos” (ou dos seus descendentes norte-americanos e sul-americanos). Os “brancos” não-europeus estão isentos de
culpa, assim como os europeus “não-brancos”.
Mapa das rotas do tráfico transatlântico de escravos africanos “negros” nos séculos XVI -XVIII. Fonte: Caricom |
6. Uma conjectura
sociológica
Regressando
ao que ficou dito na nota [1], coloco-me a questão de saber se a
má-consciência individual e o remorso postiço suscitados pelo discurso da
alegada culpabilidade colectiva dos portugueses contemporâneos pelo tráfico atlântico
e transatlântico de escravos africanos de meados do século XV a meados do
século XIX, poderão ter uma explicação sociológica e não apenas psicológica.
Isto
porque parece óbvio que nem todas as classes e camadas sociais são igualmente
permeáveis a um discurso tão abertamente contra-intuitivo e falacioso — «pois então, se não foste tu, foi o teu pai! [ou foi o teu
avô, ou o teu bisavô, ou o teu trisavô, ou o teu tetravô], o que no fim de contas
vem a dar no mesmo».
Nesse
sentido, conjecturo que o impacto emocional e ideológico que esse tipo de
discurso culpabilizador poderá produzir no grande público seja especialmente
apelativo naqueles sectores dos meso-assalariados CCS em processo acelerado de desreligionização
(entender: de domiciliação no estádio zombi da religião cristã [8]).
O
termo meso-assalariados CCS [um neologismo construído a partir de meso- (do
Gr. mésos), elemento formador de palavras que exprime a ideia de algo
que está num posição “central”, “média”, “intermédia” entre duas coisas, + assalariados,
e onde CCS = com cursos superiores] deve
entender-se, neste contexto, como denominação genérica de uma classe de assalariados
diplomados do ensino superior (politécnico e universitário) e constituída quer por
(i) gestores, supervisores, assessores, consultores, formadores,
provedores, auditores jurídicos, curadores, técnicos, tecnólogos que trabalham nos
escalões intermédios de empresas privadas, empresas públicas e na administração
pública (central, regional e local), quer por (ii) todos aqueles, nos órgãos do
poder político (executivo, legislativo e judiciário), a quem é delegado poder
político para assegurarem a reprodução social do sistema constitucional vigente
(notários, oficiais de justiça, magistrados do ministério público, juízes,
autarcas, deputados, governantes).
Convém
salientar, a este propósito, que os meso-assalariados CCS (que
outros autores apelidam de “nova classe média”
ou “nova pequena-burguesia”, termos que me
parecem ambos inadequados) é a classe social ideologicamente mais instável e
volúvel de todas em virtude das duas funções antagónicas que os seus membros
exercem [a função de supervisão, vigilância e controlo dos processos de
trabalho, que a vincula ao capital, e a função de coordenação e unidade dos
processos de trabalho, que a vincula ao trabalhador colectivo] no processo de
produção e apropriação dos bens e serviços (Guglielmo Carchedi, Frontiers of Political Economy. Verso, 1991).
É
nesta duplicidade antagónica das funções laborais exercidas pelos meso-assalariados CCS, combinada com a ansiedade
e desorientação cultural decorrentes do estádio zombi
da religião, que vejo a brecha por onde se insinuam com êxito os sentimentos de
culpabilidade vergonhosa pelo passado histórico instilados pelos novos
questores de indulgências.
Naturalmente,
será necessário desenvolver um projecto de investigação empírica para testar
esta conjectura. Talvez haja algum(a) doutorando/a em ciências sociais que se atreva a pegar nesta sugestão.
…………………………………………………………………………...................
Notas e Referências
[1] É
inegável que este tipo de mensagem tem um impacto emocional e ideológico muito
forte junto de certos sectores do público, ao criar artificialmente um
sentimento de má-consciência culposa. O historiador João Pedro Marques relatou,
por exemplo, num dos seus artigos, o que ocorreu no Reino Unido, o país onde
esse impacto é mais forte:
«Há várias entidades e cidadãos(ãs) britânicos(as) a pôr a
corda ao pescoço, a vestir o hábito de penitente e a ceder jubilosamente a essa
pressão e chantagem. Em Fevereiro de 2023, uma conhecida pivô e jornalista da
BBC, tornou público que iria doar 100 mil libras para projectos comunitários na
ilha de Granada como forma de reparação pela ligação de remotos familiares seus
à escravatura e a plantações de cana-de-açúcar na ilha. E fez mais: abandonou a
BBC para dedicar o seu tempo a campanhas públicas em favor de reparações pela
escravatura. No seguimento da sua decisão, mais de 100 famílias britânicas com
antepassados envolvidos no sistema escravista comprometeram-se publicamente a
disponibilizar importantes quantias como forma de se purgarem desse pecado e de
ajudarem as antigas colónias britânicas nas Caraíbas» (“Pela porta das
traseiras”. Céu Enganador, 28-12-2023) E em Portugal também temos casos
desses, como, por exemplo, o de Catarina Demony, uma jornalista portuguesa,
correspondente da agência global de notícias Reuters, co-autora do filme Debaixo do
Tapete, estreado em 2023 (v. João Pedro Marques, “A redenção de Catarina
Demony”, Céu Enganador, 1-08.2024) e o de Alfredo de Sousa, co-fundador
dos Celeste/ Mariposa, grupo DJ e editora de música (Joana Gorjão Henriques, «Há
muito mais famílias que tiveram escravos.” Mas não se fala disso». Público,
23 de Setembro de 2017).
[2] Por exemplo, a que encontramos na
“Declaração do Porto: reparar o irreparável”, de 7 de Julho 2023 (in Buala,
https://www.buala.org/pt/mukanda/declaracao-do-porto-reparar-o-irreparavel).
[3] In
Rui Braga, “Justiça racial e colonialismo em Portugal: da negação à reparação”.
Open Democracy, 31 de Agosto 2020. Imagine-se o que significaria a
generalização deste piedoso mandamento a todas as épocas e a todos os
povos-nações do planeta, começando pelos Ingleses, os Alemães e os Americanos! João
Pedro Marques trata o assunto no que se refere tão somente à chamadas
reparações (uma variante contemporânea [e pós-zombi para os seus questores] do comércio de indulgências)
pela escravatura transatlântica em muitos dos seus artigos no Céu Enganador.
Ver, por exemplo, “A conta já chegou. São 20 biliões de dólares”,25-09-2023 “Reparações?
O abuso de uma velha ideia”.17-02-2025¸ “Reparações: do pressuposto falso à ideia
absurda”, “Reparações? O abuso de uma velha ideia”, 17-02-2025; “Tráfico de
escravos: má ou boa consciência”, 08-05-2024; “Reparações nunca! Seriam um nó
cego”, 16-12-2024; “Repitam comigo: o tráfico foi uma parceria”, 22-05-2024.
[4] Pelo
termo woke (Ingl.
literalmente, “acordei” [pretérito perfeito simples <past simple> do verbo
wake]; em
gíria norte-americana, “estar desperto e alerta para as injustiças e as segregações
sociais”) deve entender-se, neste contexto, um
movimento activista com três componentes interligadas: 1) constelação de direitos
LGBTQ+; 2) teoria crítica da raça; 3) cultura do apagamento-censura-e-destruição
[Ingl. cancel culture]. A terceira componente é uma componente niilista. [Niilismo: (do latim nihil: nada) designa uma concepção em que tudo o que existe (coisas, factos, valores, princípios, teorias, mundo) é ou pode ser negado e reduzido a nada por um acto de vontade; em que há uma necessidade de criar o vazio]. A primeira componente possui também um forte elemento niilista, representado
pela letra T [= transexual] da sigla LGBTQ+, porque é evidentemente
impossível, biologicamente, um homem transformar-se (ou ser transformado) em mulher
ou uma mulher transformar-se (ou ser transformada) em homem. Por conseguinte, não
existem nem podem existir pessoas “transsexuais”
e qualificar de “transgéneros” as pessoas que
negam essa impossibilidade e afirmam ter mudado de sexo não altera esse facto. As
demais facetas do movimento woke (luta
contra a desigualdade de direitos e a segregação no acesso ao emprego, à educação
escolar, à saúde e à habitação com base no sexo, na escolha dos parceiros sexuais
e nas características fenotípicas aparentes dos indivíduos impropriamente
apelidadas de “raça”) têm um teor benévolo,
positivo, nos seus intuitos. Mas também elas padecem de algo semelhante, no
plano intelectual, ao “ouvido vertiginoso” pelo
contacto permanente em que se encontram com as facetas ideológicas niilistas. A
este propósito ver, por exemplo, White Fragility:
Why It’s So Hard for White People to Talk About Racism (2018, Beacon
Press), de Robin DiAngelo, vs Woke Racism: How a New Religion Has Betrayed Black
People (2021, Portfolio), de John McWhorter, ou, em Português, Uma gota de
sangue: história do pensamento racial (2009, Contexto), de Demétrio
Magnoli.
[5] Veda Fatmy, John Kihn, Jukka Sihvonen. Sami Vähäma, “Why
do corporations embrace the LGBTQ+ cause? LSE Business
Review, February 23, 2023.
[6]
Estes números são os do relatório, Quantification of Reparation for Transatlantic Chattel Slavery,
Brattle, June 8, 2022.
[7] Entrevista
a João Pedro Marques, “No movimento woke há sentimento de culpa,
ingenuidade e fanatismo”. Sol, 20 de Março de 2024.
[8] Emprego aqui “zombi” no sentido
que lhe deu Emmanuel Todd na sua teoria dos três estádios da religião monoteísta, quer do cristianismo (católico,
ortodoxo e protestante), quer do judaísmo e do islamismo: 1) um estádio activo
da religião, no qual as pessoas são crentes e praticantes; 2) um estádio zombi da religião, na qual as pessoas já não são
crentes e praticantes, mas conservam nos seus hábitos sociais, valores e
comportamentos herdados da religião activa precedente, sem terem consciência
disso; 3) um estádio zero da religião, no qual os hábitos sociais, valores e comportamentos
herdados da religião desapareceram. Conjecturo que neste último caso o espaço
ideológico deixado vago pela religião seja, amiúde (mas não necessariamente,
bem entendido), ocupado por crenças e doutrinas niilistas — entenda-se, baseadas num imperativo
de apagamento-censura-e-destruição de monumentos, memórias, livros, factos, pessoas
e da própria realidade, de criação do vazio.
.....................................................
Post-Scriptum. 22-06-2025
Quem
leia só os comentários de Albarda-mos e Whale Project (no blogue Estátua
de Sal, que fez uma chamada de atenção para este meu artigo) ficará com a
ideia de que artigo que escrevi é sobre o racismo, ou sobre a escravidão e a
escravatura desde os primórdios da civilização, ou sobre a ascensão da
extrema-direita. Mas quem tenha lido o artigo sabe que não é o caso. O artigo é
sobre alguns argumentos falaciosos desenvolvidos por Lídia Jorge no seu
discurso em 10 de Junho de 2025 sobre um alegado “remorso”
dos portugueses contemporâneos pel’ “o pecado dos
Descobrimentos”.
Mais
abrangente e especificamente, o artigo é sobre os argumentos falaciosos
desenvolvidos pelo movimento woke (v.
nota [4]) para justificar a bondade dos 107,8 biliões de
dólares americanos (93,5 biliões de euros) que 31 Estados (caribenhos, norte-, centro-
e sul-americanos, mas curiosamente, nenhum africano) teriam o direito de exigir
a 10 Estados (incluindo Portugal, que teria de pagar 20,6 biliões de dólares
[=18 biliões de euros], números redondos), a título de reparações compensatórias
pelo tráfico transatlântico de escravos entre 1502 e 1888.
Albarda-mos
diz que «não compreende a alusão aos muçulmanos para
enquadrar o esclavagismo externo dos africanos, pois antes sequer do Islão
existir, os pagãos romanos /…/ já lá iam [a África] importar escravos». Pois
é muito fácil de compreender se se der ao trabalho de ler o discurso de Lídia
Jorge em 10 de Junho último e estudar as obras dos historiadores da escravatura
em Portugal — por exemplo, as obras do professor João Pedro Marques («Os sons do silêncio:
O Portugal de Oitocentos e a Abolição dos Escravos [1999]». Imprensa de
Ciências Sociais, Lisboa; «Portugal e a escravatura dos Africanos [2004]». Imprensa
de Ciências Sociais, Lisboa.; «Sá da Bandeira e o Fim da Escravidão: vitória da moral, desforra do
interesse [2008]». Imprensa
de Ciências Sociais, Lisboa; «Escravatura — perguntas e respostas [2017]». Guerra e Paz
Editores. Lisboa).
Lídia
Jorge afirmou no seu discurso:
«Falo com o sentido justo da reposição da verdade e do
remorso, por aqui se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em
larga escala, com pólos de abastecimento nas costas de África, e assim se ter
oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado
e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX. Lagos
expõe a memória desse remorso».
A
afirmação é falsa. Não foram os portugueses que inauguraram “o tráfico negreiro intercontinental em larga escala”.
Quando os navegadores portugueses passaram o Cabo Bojador e chegaram às costas
da Senegâmbia, já os traficantes muçulmanos de escravos haviam comprado e
transportado para o mundo árabe 5,7 milhões de pessoas “negras”. Lembremos que, em meados do século VII d.C., o Islão árabe
se propagou pelo norte da África a partir do Egipto, atravessando o deserto do
Saara e alcançando toda a região do Magrebe. Nesse processo, os berberes foram islamizados
e arabizados. No início do século VIII, os berberes, convertidos ao Islão,
participaram da invasão da Península Ibérica, onde foram apelidados de “mouros” pelos cristãos.
A
objecção de Albarda-mos segundo a qual antes do Islão existir já os
romanos antigos capturavam escravos em África não é pertinente neste contexto. Os
escravos de Roma eram capturados por toda a Europa e na região do Mediterrâneo,
incluindo povos celtas, germânicos, trácios, eslavos, cartagineses — enfim,
gente que na terminologia woke é qualificada de “branca” e, por conseguinte, sem interesse como vítimas da
escravatura susceptíveis de serem arroladas pelo Brattle Group para fins de
reparação compensatória aos seus putativos descendentes. Da época de
Diocleciano (284-305 d.C.) até à conquista árabe do Egipto, só um pequeno
número de escravos da Roma antiga (cerca de um oitavo) vinha de fora destas
regiões, incluindo alguns da África “negra”, subsaariana, via Egipto e Mauritânia
(William L. Westermann, «The Slave Systems of Greek and Roman Antiquity».
Philadelphia: Memoirs of the American Philosophical Society. 1955). Nada que se
compare com o tráfico de escravos africanos em larga escala que os traficantes árabes
e berberes organizaram a partir do século VII e que CONTINUAVA MUITO ACTIVO quando
os navegadores portugueses de outrora chegaram a África.
Albarda-mos acha
que estes factos «não servem de grande álibi». Álibi
para quem? Ele não o diz. Mas só poderá ser, digo eu, para quem tem interesse
em esconder bem escondido dois factos: 1) que o tráfico intercontinental de
escravos africanos “negros” não começou com os Descobrimentos
portugueses, e 2) que «o tráfico transatlântico de
escravos ter sido, quase desde o seu início, uma parceria Luso-Africana (e,
depois, “Euro-Africana)» (João Pedro Marques. “Repitam comigo: o tráfico
[de escravos] foi uma parceria”. In Céu Enganador, 22-05-2024). Ou seja,
foi um hediondo negócio que resultou da conjugação dos interesses dos navegadores,
comerciantes e povoadores portugueses (e, depois, ingleses, holandeses, americanos,
brasileiros, etc.) com os interesses dos escravistas africanos e potentados “negros” da África subsaariana. A natureza e o alcance
desta parceria escravista foram estabelecidos com grande e minucioso acervo de provas
pelo historiador John Thornton, num livro publicado em 1998 e que ficou justamente
célebre: «Africa and Africans in the Making of the Atlantic World, 1400-1680».
Cambridge University Press.
«Mas se os poderosos da Europa controlavam o comércio dos
mares, em África não podiam dominar nem a costa nem a navegação costeira e, nas
Américas, as regiões dominadas estavam rodeadas de povos hostis e, por vezes,
agressivos. Assim, o papel dos [potentados] africanos no desenvolvimento do
Atlântico não seria simplesmente secundário, em qualquer dos lados do
Atlântico. Em África, são os [potentados] africanos que determinam o seu papel comercial
e, na América, foram muitas vezes o grupo mais importante entre os primeiros colonos.
Mesmo quando não desempenhavam um papel político especial, podiam
frequentemente tirar partido da incompletude do domínio europeu. /…/ Não houve conquistas europeias dramáticas em África, e
mesmo os escravos que inundaram o Atlântico Sul e sustentaram a colonização na
América foram mais frequentemente comprados do que capturados. Este estado de
coisas já estava a ser posto em prática pelas expedições de Diogo Gomes em
1456-62 e caracterizaria as relações entre europeus e africanos nos séculos
vindouros» (Thornton, pp. 42-43).
Esta
verdade sobre a natureza desta parceria não é apenas incómoda: é também, em bom
rigor, intolerável para os actuais questores de indulgências (o Brattle Group)
ao serviço dos promotores das reparações monetárias pelo tráfico transatlântico
de escravos africanos dos séculos XV-XIX. Porquê? Porque (i) arrasa a
tese woke de que os escravistas e os
traficantes de escravos africanos do século XV em diante eram exclusivamente
europeus (juntamente com os seus descendentes norte-, centro- e sul-americanos)
e porque (ii) o Brattle Group teria de refazer todos os cálculos das
reparações compensatórias e encontrar os descendentes dos escravistas e
traficantes africanos de escravos a quem também caberia exigi-las, de acordo
com a sua lógica. Só que, desta vez, eles teriam de ser procurados não só na
Europa e nas Américas, mas também em África, nos próprios territórios onde eram
capturados e/ou vendidos em primeira mão os escravos africanos. Grande berbicacho para o Brattle Group (!), imagino.
Quanto
à objecção de Albarda-mos, estamos, portanto, conversados: não tem
pernas para andar. Mas isso não impede o seu autor de achar que ela lhe permite
afirmar que o meu artigo é «particularmente fraco
devido à sua estrutura cronológica mal urdida e aos raciocínios deturpados por
essas deturpações históricas e culturais». Está no seu direito e eu
estou no meu em retribuir-lhe a mesma avaliação relativamente ao seu comentário,
deixando aos leitores a tarefa de pronunciarem o veredicto sobre quem a merece.
Passemos
agora, para finalizar este P.S. que já vai longo (mas que espero que não
seja maçador), ao Whale Project. Este leitor-comentador diz recusar «qualquer discurso desculpabilizante» [dos portugueses
e outros europeus traficantes de escravos, presumo] com o argumento de que «muita gente fez o mesmo [que eles]. Quem esquece o passado está condenado a repeti-lo». Certo.
Mas,
então, temos também de recusar qualquer discurso desculpabilizante dos
africanos subsaarianos traficantes de escravos africanos subsaarianos com o
argumento de que muitos portugueses e outros europeus fizeram igual ou pior. Temos
de recusar ter dois pesos e duas medidas. Temos de tratar todos os traficantes
de escravos africanos --- sejam eles traficantes africanos magrebinos [árabes e berberes],
traficantes europeus, traficantes [norte-, centro- e sul-] americanos,
traficantes caribenhos ou traficantes africanos subsaarianos --- com a mesma
bitola. E temos de relembrar, as vezes que foram necessárias, que, para acabar
com o tráfico de escravos africanos, no século XIX, foi necessário agir não só
contra os traficantes europeus e descendentes de europeus (portugueses, ingleses,
holandeses, americanos, brasileiros, etc.), mas também contra os negreiros
africanos e os potentados “negros” que não queriam
terminar aquele negócio tão lucrativo.
Por último, mas não menos importante nos dias que correm, temos de repudiar o conto do vigário das alegadas reparações monetárias às vítimas desse negócio tenebroso, pela razões apontadas no artigo Indulgências para pecados imaginários, remorsos fictícios e ressentimentos melífluos no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, neste P.S. e no comentário que fiz no blogue Estátua de Sal (reproduzido mais abaixo).
Saúde! Saravá!