Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

18 fevereiro, 2019


temas 1 e 2

ADSE:
notícias forjadas, agitprop e informação fidedigna

José Manuel Catarino Soares


Desde o fim do mês de Dezembro de 2018 que os contribuintes/ beneficiários e os beneficiários da ADSE têm vindo a ser bombardeados por uma série de informações e declarações alarmantes sobre este subsistema de saúde. A grande maioria delas são notícias forjadas — o que os anglófonos designam por fake news e os francófonos por information fallacieuse, ou, de modo muito mais breve mas opacamente, por infox (um híbrido braquissémico de infos [abreviatura de informations] + intox [abreviatura de intoxication]) — uma praga da globalização capitalista.

Foto de Paulete Matos


1. Notícias forjadas

Eis alguns exemplos de notícias forjadas, divulgadas pela comunicação social (p.ex., Lusa,  28-12-2018; Expresso, 6-02-2019, 8-02-2019, 12-02-2019, 13-02-2019, 14-02-2019, etc.):

(A) Dois grandes grupos da hospitalização privada — José de Mello Saúde (rede de hospitais CUF), e Luz Saúde (rede de hospitais Luz), cujo accionista maioritário é a seguradora Fidelidade, do grupo chinês Fosun — declararam a sua intenção de romper as convenções que têm com a ADSE a partir de meados do próximo mês de Abril de 2019. 

(B) Em seguida, três outros grupos da hospitalização privada — a rede de hospitais e clínicas Lusíadas, a rede de hospitais Trofa Saúde e a rede Hospital Particular do Algarve-Saúde — declararam que tinham também a intenção de seguir as pisadas dos seus congéneres, referidos em (A), se, entretanto, a posição da ADSE não se alterasse.

A verdade factual é bem diferente:

(C) Nenhum dos cinco grupos supramencionados fez chegar à direcção da ADSE, até à data (18-02-2019), qualquer comunicação oficial com o teor descrito em (A) e (B).

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ENCARTE 1
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ADSE NÃO É UM PRIVILÉGIO DOS TRABALHADORES E DOS APOSENTADOS DA FUNÇÃO PÚBLICA, COMO POR IGNORÂNCIA OU MÁ FÉ SE AFIRMA

1 - Um dos ataques comuns aos trabalhadores da Função Pública é que eles são uns privilegiados porque têm a ADSE. Este tipo de ataques só pode ter como base a ignorância ou a má fé, como vamos provar.

2 - Em primeiro lugar a ADSE faz parte do Estatuto Laboral dos trabalhadores das Administrações Públicas (Central, Local e Regional) e, como acontece em várias empresas e setores, o empregador tem responsabilidades. Por ex., no caso da banca, esta contribui com cerca de 5% do valor dos salários para o SAMS [Serviços de Assistência Médico-Social]. Na CGD e BdP há uma situação semelhante. Na ADSE isso não acontece.

3 - Contrariamente ao que muitas vezes se diz por má fé ou por ignorância, atualmente o Orçamento do Estado não transfere qualquer importância para a ADSE. Apenas as Autarquias ainda transferem uma pequena importância. São fundamentalmente os descontos feitos nos salários dos trabalhadores e nas pensões dos aposentados que financiam a ADSE. Em 2018, os trabalhadores e os aposentados da Função Pública descontaram para a ADSE 592 milhões €.

4 - Portanto, os trabalhadores e os aposentados da Função Pública pagam impostos como quaisquer portugueses, com os quais é também financiado o SNS. E, para além disso, descontam para a ADSE 3,5% dos seus salários e pensões, e o Orçamento do Estado não transfere nada para a ADSE. Contrariamente ao que acontece com os outros portugueses, pagam duplamente a saúde. Afirmar, como muitos fazem, que são uns privilegiados por terem a ADSE, só por má fé ou ignorância e mais depois de informados e esclarecidos.

Fonte: Eugénio Rosa, ADSE: o que é, qual é a sua situação actual e quais são os seus desafios futuros. www.eugeniorosa.com
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2. Agitação e propaganda

O que esses grupos da hospitalização privada fizeram foi servirem-se dos meios de comunicação social para “plantarem” ou sugerirem notícias forjadas. Essas notícias forjadas foram feitas de modo a que pudessem ser interpretadas de dois modos distintos: como ameaças explícitas ao Conselho Directivo da ADSE de que esses grupos teriam a intenção de romper as convenções que têm com a ADSE a partir de meados de Abril, e como um anúncio aos beneficiários da ADSE de que essa ameaça já se tinha convertido num facto consumado. Foi uma acção de “agitprop” (agitação e propaganda) muito bem concebida e executada. Mais adiante (secção 7), veremos quais são os seus reais motivos e reais objectivos.

3. Repor a verdade factual (1ª parte)

De momento, cabe perguntar: como é que nos podemos certificar da veracidade da informação (C) ?

De três maneiras distintas, mas convergentes: (i) indo ao sítio electrónico da ADSE, onde se pode ler o comunicado que reproduzo mais abaixo, (ii) ouvindo as declarações  da presidente da ADSE, entrevistada na edição da noite da SIC Notícias, em 13 Fevereiro de 2019 (a entrevista pode ser vista na íntegra em https://sicnoticias.pt/pais/2019-02-13-A-entrevista-a-presidente-da-ADSE)​, e ainda (iii) através da informação fornecida pela APRe! [Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados] aos seus associados (para quem, evidentemente, seja sócio desta organização, que tem um representante no Conselho Geral e de Supervisão da ADSE). Todas estas fontes idóneas corroboram o que é afirmado em (C).

                                                        Foto Lusa (arquivo)

Comunicado da ADSE (​06/02/2019​)
A ADSE comunica aos seus beneficiários que a notícia publicada no Expresso sobre a denúncia das convenções dos grandes grupos privados não tem fundamento. Existem prazos contratuais que constam das convenções que têm que ser cumpridos quando se procede à denúncia de uma convenção.

A ADSE não recebeu, formalmente, de nenhum destes grupos a comunicação da denúncia ou resolução das convenções em vigor.

Se esta denúncia vier a acontecer a ADSE acautelará todas as situações de beneficiários que se encontram em tratamento, ou com atos médicos ou cirúrgicos já agendados nestes prestadores.

A ADSE está atenta aos acontecimentos e face ao crescimento significativo da oferta privada de cuidados de saúde em Portugal irá fazer novas convenções com outros prestadores se se vier a concretizar esta ameaça.

4. Mais agitprop

Estes esclarecimentos não puseram termo às manobras de agitação e propaganda em torno da ADSE, como está bem patente nos seguintes excertos do jornal Público:

O líder do PSD [Rui Rio] ​disse nesta quarta-feira que, se o Governo quer destruir a ADSE, que “presta um bom serviço aos funcionários públicos”, segue uma “estratégia suicida”. Mas ressalvou que concordará se a preocupação do executivo for “negociar” para “acabar com os abusos que sempre houve”. Se for isso, “estão a ver bem a questão e devem ir por esse caminho”, disse Rui Rio aos jornalistas, no final de uma reunião com sindicatos de professores.

O PSD já tinha feito saber, na terça-feira, que está disponível para ajudar o PS a alterar a lei que o anterior Governo [o governo Passos Coelho-Portas] mudou em 2014 e que permite que a ADSE exija a regularização de valores cobrados em excesso pelas entidades privadas. Esta regularização está prevista na lei desde 2009 mas o seu âmbito foi alargado em 2014. “Altere-se o que houver a alterar, porquanto se defendam os interesses dos cidadãos. Se a lei não funciona... julgo que o que está aqui a falhar é a capacidade de o Governo fazer a aplicação da lei”, apontou o deputado social-democrata Adão Silva​ (Público, 14-02-2019)​.

Assunção Cristas acusa o Governo das “esquerdas unidas” de estar “interessado em destruir a ADSE” ao “pôr em causa os portugueses que descontam” para este subsistema e ao mesmo tempo “engrossar as filas” do Serviço Nacional de Saúde. Criticando as “esquerdas unidas” de verem “o filme ao contrário”, a líder do CDS alerta que alguns dos funcionários públicos poderão vir a contratar seguros privados e que quem não tem possibilidades de o fazer “vai ficar reduzido ao SNS”, defendendo que o sistema deveria ser aberto a todos os utentes.

A líder dos centristas falava no final de uma reunião com o presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, Óscar Gaspar, no Parlamento, a propósito da intenção de grupos privados de terminarem as convenções com a ADSE (Público, 14-02-2019)

Nestes excertos há várias notícias forjadas:

(D) «O governo quer destruir a ADSE.»

(E) «As “esquerdas unidas” querem destruir a ADSE.»

(F) «O que está a falhar na relação entre a ADSE e os hospitais privados é a capacidade do governo fazer a aplicação da lei.»

5. Repor a verdade factual (2ª parte)

Começemos pela afirmação (D). Não se trata sequer de uma acusação, razão pela qual não é necessário rebatê-la. É apenas uma insinuação. Mas, como insinuação, é destituída de qualquer verossimilhança. O governo actual seria o governo mais estúpido do mundo se tivesse a intenção de destruir a ADSE, pois estaria a adoptar — como reconhece o próprio Rui Rio, o autor da insinuação — uma estratégia suicidária. Mas, mesmo que (por hipotética e extravagante estupidez suicidária) o governo (este ou qualquer outro) quisesse destruir a ADSE, como insinua Rui Rio, não poderia fazê-lo porque o governo (este ou qualquer outro que o venha substituir) não é dono da ADSE. A ADSE pertence exclusivamente aos seus “beneficiários titulares”, ou seja, aqueles beneficiários que são, também, os seus únicos contribuintes, ao descontarem mensalmente 3,5% do seu salário ou da sua pensão de aposentação para a ADSE, consoante sejam trabalhadores no activo ou aposentados.

Passemos a (E). Desta vez, trata-se de uma acusação, mas destituída de qualquer prova, bem ao estilo de quem a faz. O mais interessante, porém, é que se fica na dúvida do que mais devemos admirar em Assunção Cristas: se o seu desembaraço em acusar sem provas, se o seu desplante, tendo em conta que a acusação que faz pode ser virada contra ela própria e, isso feito, corroborada com provas insofismáveis.

Não nos esqueçamos que Assunção Cristas foi ministra do governo Passos Coelho-Paulo Portas das “direitas unidas” (PSD+CDS), o governo anterior ao actual. Ora, encontramos um bom sumário das práticas desse governo relativamente à ADSE no relatório nº8/2016 do Tribunal de Contas, intitulado Auditoria de Seguimento das Recomendações formuladas no Relatório de Auditoria ao Sistema de Protecção Social aos Trabalhadores em Funções Públicas (Relatório n.º 12/2015 – 2ª Secção), que passo a citar: 

2. Verificou-se a apropriação, pelo Governo da República, dos excedentes da ADSE, provenientes do aumento da taxa de desconto para 3,5%, para financiar o Serviço Regional de Saúde da Madeira, tendo assim sido utilizados € 29,8 milhões dos excedentes da ADSE, consignados aos quotizados da ADSE, para financiar necessidades públicas, descapitalizando a ADSE. Foram ainda suportados pela ADSE encargos que devem ser suportados pelo Estado, tal como o faz para os restantes cidadãos.

3. Verificou-se a retenção ilegal dos descontos dos quotizados da ADSE por parte de organismos do Governo Regional da Madeira, e sua utilização indevida para fins de âmbito regional, em prejuízo da sustentabilidade e da solidariedade em que o sistema de proteção da ADSE se baseia.

4. O aumento da taxa de desconto para 3,5% gerou excedentes, financiados pelos próprios quotizados, que foram e continuam a ser utilizados para maquilhar as contas públicas, num contexto de necessidade de atingir as metas acordadas para o défice orçamental.

E é a chefe de um dos partidos que, quando era governo, prejudicou gravemente a ADSE da maneira que nos é descrita pelo Tribunal de Contas neste relatório, que vem agora acusar, sem qualquer prova, as “esquerdas unidas” de quererem  destruir a ADSE!

Resta a afirmação (F). É não só uma acusação feita sem qualquer prova, mas também uma falsa acusação, como veremos de seguida. O que está a falhar na relação da ADSE e dos hospitais privados não é capacidade do governo aplicar a lei, como insinua o deputado Adão Silva. Desde logo, porque não compete ao governo gerir a ADSE e porque a gestão da ADSE não está sequer submetida à direcção do governo. 

Aliás, a ADSE não deveria ser um alvo (mesmo longínquo) de interferência política do governo ou dos deputados da Assembleia da República. Façamos um pequeno aparte para refrescar a memória ao senhor deputado Adão Silva.  

6. Um lembrete

Hoje em dia, a ADSE deveria ser uma associação mutualista de utilidade pública, totalmente independente do poder político — não só, como é óbvio, do poder político não electivo (tribunais e ministério público), mas também, e por maioria de razão, do poder político electivo (Governo da República, Assembleia da República, Presidente da República, autarquias locais) — e integralmente administrada e gerida pelos seus associados titulares. Porquê? Porque a ADSE é, desde 2014, uma associação de adesão voluntária, integralmente financiada pelas quotizações daqueles seus beneficiários — os chamados “titulares”— que são também os seus contribuintes. O governo não mete lá um cêntimo dos impostos pagos pelos portugueses, neles se incluindo os impostos pagos pelos titulares da ADSE.








Por 
Por que é que, então, a ADSE não é uma associação mutualista de utilidade pública? Por duas razões. Primeira, porque todos os partidos com assento parlamentar (repito, todos, sem excepção) não quiseram que assim fosse. Mesmo o PS, que inscreveu no seu programa de governo essa perspectiva, meteu-a rapidamente na gaveta, com a anuência explícita ou tácita de todos os demais partidos parlamentares. Segunda, porque a esmagadora maioria dos titulares (= contribuintes/beneficiários) da ADSE vive completamente alheada da vida interna da associação a que aderiram voluntariamente. A essa grande massa de titulares só uma coisa parece interessar: fruir dos benefícios que lhes são conferidos pelas quotas que pagam. Como garantir a boa gestão, a continuidade dos bons serviços prestados e a sustentabilidade financeira da ADSE é um assunto que não parece interessá-los. Uma prova (a meu ver bem eloquente) desse alheamento e desse desinteresse foram as eleições realizadas para o Conselho Geral e de Supervisão da ADSE em 19 de Setembro de 2017. Votaram apenas cerca de 18.421 beneficiários titulares (2,2%) num universo de 832.827!

Nestas condições, foi fácil ao governo (com a anuência de todos os partidos parlamentares) afastar sem qualquer dificuldade (entenda-se: sem qualquer oposição significativa por parte da esmagadora maioria dos titulares da ADSE) a opção de transformar a ADSE numa associação mutualista de utilidade pública. 

Acresce que muitas pessoas daquela pequena minoria de titulares que se preocupam com a organização da ADSE repudiam esta solução porque a confundem com a transformação da ADSE numa companhia privada de seguros de saúde. Nada mais errado. Uma associação mutualista rege-se exclusivamente pelos princípios da entreajuda e da solidariedade; uma companhia privada de seguros de saúde rege-se exclusivamente pelo princípio do lucro. A ADSE já é hoje, em grande medida, na prática, uma associação mutualista (v. encarte 2), mas não o é completamente, porque estatutariamente não são os seus titulares contribuintes que a gerem democraticamente.  

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ENCARTE 2
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DIFERENÇAS ENTRE A ADSE E UM SEGURO DE SAÚDE

1 - Num seguro de saúde todos pagam uma importância chamada prémio, incluindo os familiares (por ex. os filhos); na ADSE os familiares (325.753 em 2017) e os isentos (53.400 em 2017 com pensão inferior ao SMN [salário mínimo nacional]) não pagam nada, mas têm os mesmos direitos.

2 - Num seguro de saúde, os valores dos prémios em euros aumentam com idade; na ADSE o valor do desconto diminui em euros aquando da aposentação do trabalhador, porque a pensão é inferior ao salário (cerca de 70%) e a taxa de desconto – 3,5% – é sempre a mesma, e nessa altura a despesa com saúde sobe mais devido ao aumento da idade.

3 - Num seguro de saúde, há limite de despesa anual (“plafond”) por beneficiário e, logo que é atingido, o seguro não paga mais nada, expulsa-os para o SNS, como os doentes com cancro; na ADSE isso não acontece, há beneficiários com custos saúde superiores a 100.000€/ano e a sua contribuição para a ADSE não aumenta com isso.

4 - Num seguro de saúde, os copagamentos, o que beneficiário paga quando utiliza um serviço de saúde (ida ao Hospital), são o dobro ou o triplo dos copagamentos na ADSE (ex.: uma consulta no regime convencionado na ADSE o beneficiário paga 3,99€, num seguro paga 15€, ou seja, 3,8 vezes mais).

Fonte: Eugénio Rosa, ADSE: o que é, qual é a sua situação actual e quais são os seus desafios futuros. www.eugeniorosa.com
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Todavia, como era demasiadamente escandaloso que um organismo integralmente financiado pelas quotizações voluntárias dos seus associados titulares continuasse a ser gerido como uma mera direcção-geral, como tinha sido durante décadas, foi preciso desenhar para a ADSE um estatuto  especial. 

Tratava-se de desenhar um estatuto institucional que mantivesse a tutela governamental sobre a ADSE, mas garantindo-lhe simultaneamente uma autonomia de gestão participada que fosse suficiente para deflectir as críticas dos defensores da sua transformação em associação mutualista de utilidade pública.


A criação da ADSE, I. P., vai, também, ao encontro das recomendações do Tribunal de Contas, tendo em conta que a missão e os objetivos da ADSE não se confundem com o exercício de funções que competem ao Estado, considerando necessária a alteração do regime jurídico que regula o esquema de benefícios da ADSE e a responsabilidade financeira da mesma por cuidados prestados aos seus quotizados, atribuindo-lhe um regime jurídico de autonomia administrativa e financeira, e de participação dos quotizados na sua governação, ao nível das decisões estratégicas e de controlo financeiro (do Preâmbulo do decreto-lei nº 7/2017, que criou a ADSE, I.P. [o destaque em letras gordas é meu, J.M.C.S]

Foi assim que a ADSE passou a ser, desde Janeiro de 2017, um instituto público [I.P.] de regime especial e gestão participada e, como tal, um organismo autónomo da administração pública.

A gestão autónoma da ADSE incumbe a um conselho directivo (um presidente e dois vogais) que responde perante um Conselho Geral e de Supervisão onde têm assento, em maioria, representantes dos beneficiários. A interferência dos governos na ADSE é bem real, mas limitada. Faz-se principalmente através da prerrogativa que consiste em nomear o presidente e um dos vogais do Conselho Directivo da ADSE (o outro é eleito pelo Conselho Geral e de Supervisão da ADSE), assim como o seu fiscal único. Por esta via, a ADSE está sujeita a uma dupla tutela: a do ministério da Saúde (a principal, porque tem influência na política de saúde) e a do ministério das Finanças (que é de importância secundária, porque a ADSE teria de ter uma fiscalização apertada das suas contas, qualquer que fosse o seu estatuto jurídico).

Não obstante, a ADSE já não é uma correia de transmissão dos governos. A pilhagem, por um governo, do dinheiro das quotizações dos sócios titulares da ADSE descrita no relatório nº8/2016 do Tribunal de Contas, já não seria possível hoje em dia, três anos volvidos. A estrutura actual da ADSE, em particular a existência do Conselho Geral e de Supervisão, não permite que possam ser cometidos tais crimes e que os seus autores fiquem impunes.

7. O que faz correr os hospitais privados

Regressemos a (F). Ao contrário do que afirma o deputado Adão Silva, é porque a ADSE está a cumprir a lei em defesa dos seus associados, que as sociedades comerciais que possuem os grupos da hospitalização privada mencionados em (A) e (B) se concertaram numa espécie de cartel para melhor lhe resistir. Explico-me.

O acesso dos beneficiários da ADSE aos cuidados de saúde que são oferecidos fora da rede pública do Serviço Nacional de Saúde pode ser feito de duas formas distintas: (a) o regime convencionado, em que o beneficiário faz um pequeno co-pagamento a um prestador privado (consultório, hospital, clínica, laboratório, IPSS, etc.) que tenha celebrado um convénio com a ADSE e esta paga directamente o resto da despesa a esse prestador, e (b) o regime livre, em que beneficiário paga o serviço prestado por inteiro a um prestador não convencionado e pede depois o seu reembolso à ADSE. O regime convencionado é o maior. Em 2017, por exemplo, custou cerca de 390 milhões de euros, contra 150 milhões para o regime livre. Foi no regime convencionado que estalou o conflito com os privados. Em ambos os casos, a prática, durante dezenas de anos, consistia na aplicação de tabelas gerais de custos definidas pela ADSE e nas quais se baseava para garantir os reembolsos aos seus beneficiários no regime livre ou os pagamentos directos aos seus prestadores convencionados.

Em 2009, por reivindicação dos grupos privados que operam na saúde, a ADSE substituiu o modelo das tabelas gerais para os custos relacionados com cirurgias em ambulatório e cirurgias com internamento, passando os privados a definir livremente os preços destes actos cirúrgicos. Ulteriormente, numa base anual, seria realizado um acerto de contas, sendo devolvido o pagamento em excesso quando os preços praticados fossem superiores à média em 10%.

Entre 2011 e 2014 este processo de regularizações decorreu normalmente, tendo os grupos privados devolvido à ADSE cerca de 4,9 milhões de euros.

Para uniformizar as tabelas e as práticas, foi feita uma revisão profunda dos procedimentos em 2014, pelo governo PSD [Passos Coelho]-CDS [Paulo Portas]. Por meio dessa revisão da lei, alargou-se o processo das regularizações aos medicamentos oncológicos e às próteses intraoperatórias. Esta mudança foi aceite sem contestação pelos grupos da hospitalização privada.

Tudo mudou de figura no início de 2018, quando a Associação de Hospitalização Privada interpôs uma providência cautelar contra as regularizações, alegando a sua ilegalidade. Isso aconteceu quando se verificou que os grupos privados deveriam devolver 38 milhões de euros à ADSE por sobrefacturação feita durante os anos de 2015 e 2016. Convém saber que os cinco maiores grupos privados da saúde, já mencionados em (A) e (B), facturaram à ADSE 878 milhões de euros entre 2015 e 2018, 58,3% da despesa total que a ADSE teve com o regime convencionado, segundo um estudo do economista Eugénio Rosa.

A providência cautelar da Associação de Hospitalização Privada não teve provimento. Mais, no final de 2018, a Procuradoria-Geral da República (PGR) emitiu um parecer que reconhecia a legalidade das regularizações. A afirmação da PGR é peremptória: “Os métodos de regularização dos pagamentos, são não só legais, como exigíveis em obediência aos princípios que regem a actuação da ADSE, IP.” Por outras palavras, a regularização dos pagamentos não é só uma obrigação legal para os grupos privados da saúde que acolhem beneficiários da ADSE. É também uma exigência legal para o Conselho Directivo e para o Conselho Geral e de Supervisão da ADSE, que estão obrigados a combater a sobrefacturação para defender os direitos e interesses dos seus beneficiários, em particular dos seus beneficiários/contribuintes, os que sustentam financeiramente todo o sistema da ADSE. 

Alguém acredita que Rui Rio, Assunção Cristas e Adão Silva não estejam perfeitamente cientes de tudo isto? Seria necessário padecer de uma ingenuidade angélica para responder com sinceridade pela afirmativa.

Já agora, anote-se que, contrariamente ao que tem sido propalado, a ADSE não paga com um atraso de quase 300 dias as suas contas aos prestadores convencionados, nem lhes exige que pratiquem preços abaixo do normal. Essas são duas outras notícias forjadas (v. encarte 3).


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ENCARTE 3
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CHAMPALIMAUD QUER MAIS DOENTES DA ADSE: “PREÇOS E PRAZOS SÃO OS NORMAIS”

Fundação Champalimaud garante que prazos de pagamento [da ADSE] são muito mais baixos do que têm dito os hospitais privados.

A Fundação Champalimaud afasta-se completamente das críticas feitas na última semana pelos hospitais privados que anunciaram o fim dos acordos com o subsistema de saúde dos funcionários públicos e familiares.

O vice-presidente da fundação afirma à TSF que a relação com a ADSE é perfeitamente normal, igual à que têm com as empresas de seguros de outros doentes. João Silveira Botelho diz mesmo que não têm qualquer problema com este subsistema de saúde e contraria completamente os prazos de pagamento, de quase 300 dias, que têm sido referidos pelos hospitais que anunciaram o fim dos acordos com a ADSE.

João Silveira Botelho detalha que “há muito tempo que a ADSE tem prazos de pagamento que andam entre os 90 e 120 dias, ou seja, o mesmo que os seguros de saúde”. Em resumo, “os preços são razoáveis e os prazos são os normais”.

Cerca de um quinto dos doentes acompanhados pela Fundação Champalimaud (mais de 40 mil) têm origem na ADSE e o vice-presidente admite que terão sempre interesse em receber cada vez mais beneficiários do subsistema de saúde dos funcionários públicos e seus familiares.

A Fundação Champalimaud é uma fundação privada de interesse público, com investigação científica e médica, mas que também presta cuidados de saúde, sobretudo na área do cancro.

Fonte: TSF, 14 de Fevereiro de 2019
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Como vimos mais acima, nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, quase 60% da despesa total que a ADSE teve com o regime convencionado (em que os prestadores privados têm uma relação contratual com a ADSE estabelecida por convenção) foi para cinco grupos privados, precisamente aqueles que agora ameaçam romper as convenções com a ADSE: Luz Saúde, José de Mello Saúde, Lusíadas, Trofa Saúde e Hospital Privado do Algarve.

A ameaça que estes grupos agora fazem de romperem as convenções que celebraram livremente com a ADSE visa, como se tornou patente, três objectivos: (i) assustar os beneficiários da ADSE, acenando com o bicho-papão da ruptura das convenções com a ADSE, (ii) obter uma anulação, ou pelo menos uma redução substancial, da dívida de 38 milhões de euros que têm para com a ADSE, e (iii) conseguir um aumento substancial dos preços pelos serviços que cobram nas próximas convenções a celebrar com a ADSE.

Já conseguiram alcançar o primeiro objectivo (i). Veremos se  conseguirão alcançar os outros dois, (ii) e (iii), que são verdadeiramente os que lhes interessam. O primeiro é apenas um modo de alcançar os outros dois. No curto prazo talvez o consigam, graças ao elevadíssimo grau de concentração que representam na prestação de serviços convencionados à ADSE e que foram adquirindo ao longo dos anos, o que lhes confere um enorme poder de pressão. Este é tanto maior  quanto maior  é o profundo alheamento em que vivem os titulares da ADSE relativamente à vida interna de uma organização que lhes pertence, mas perante qual se comportam como se pertencesse ao governo, aos partidos políticos e aos sindicatos. Quantos titulares da ADSE terão conhecimento das informações constantes dos encartes que foram inseridos neste texto?

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ENCARTE 4
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SERÁ QUE OS BENEFICIÁRIOS DA ADSE TÊM O DIREITO AO SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE COMO QUAISQUER OUTROS PORTUGUESES?

É uma pergunta que muitos trabalhadores e aposentados da Função Pública me têm colocado e que interessa também esclarecer.

• 1 - Os trabalhadores e os aposentados da Função Pública são portugueses e pagam impostos como quaisquer portugueses, e esses impostos também são utilizados para financiar o SNS. Por estas razões, eles tem direito ao SNS como qualquer outro português. O acesso ao SNS a todos os portugueses é um direito consagrado na Constituição da República, e criar dificuldades a esse acesso aos trabalhadores e aposentados da Função Pública, e também aos seus familiares, com o pretexto de que eles têm a ADSE é uma violação clara da Constituição da República e não deve ser aceite e [deve ser] com firmeza combatido pelos beneficiários.

• 2 - Mas é verdade também, e muitos trabalhadores me têm relatado, que em várias unidades do SNS, se souberem que o utente tem ADSE procuram empurrá-lo para a ADSE. O objetivo é evitar que essa despesa seja suportada pelo orçamento dessa unidade pública de saúde e seja paga pela ADSE. O trabalhador ou aposentado se aceitar isso está a pagar duas vezes o cuidado de saúde: através dos impostos que pagou com os quais é também financiado o SNS, e com os descontos que faz para a ADSE, e também a contribuir para o aumento da despesa da ADSE e das suas dificuldades.

• 3 - O Conselho Geral de Supervisão da ADSE, onde estão os representantes dos beneficiários, solicitou ao anterior ministro da Saúde que mandasse retirar da base de dados do SNS a informação de quem eram os beneficiários da ADSE, para que estes não fossem objeto de discriminação no SNS, e ele prometeu que daria orientações nesse sentido, mas nunca isso foi feito, com a desculpa que era necessário mudar o programa informático e era muito caro.

• 4 - Aconselhamos os beneficiários da ADSE a não darem essa informação no SNS – são dados privados que não são obrigados a dar – e se forem mesmo assim confrontados com uma tentativa de discriminação, devem opor-se com firmeza a ela, pois pagam impostos e é um direito constitucional. 

Fonte: Eugénio Rosa, ADSE: o que é, qual é a sua situação actual e quais são os seus desafios futuros. www.eugeniorosa.com
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8. Sacudir o torpor

A primeira e a mais urgente tarefa na defesa da ADSE é, portanto, a de sacudir o torpor dos seus titulares, para que, uma vez despertos, se possam reapropriar de uma organização que é sua e só sua. Este artigo é uma pequena contribuição para esse fim. Se é titular ou tão-somente beneficiário da ADSE, e se gostou de o ler, divulgue-o a outros titulares e beneficiários.







Uma contribuição bem mais importante é o estudo do economista Eugénio Rosa que citámos abundantemente neste texto.  Eugénio Rosa é actualmente um dos três membros do conselho directivo da ADSE. Foi eleito para essa função pelos representantes dos beneficiários no Conselho Geral e de Supervisão da ADSE.  O seu estudo (ADSE: o que é, qual é a sua situação actual, e quais são os seus desafios futuros), publicado em Fevereiro de 2019 e disponível em www.eugeniorosa.com, é de leitura obrigatória para quem queira ficar bem ciente dos desafios que se colocam à ADSE — e não são poucos nem fáceis, como veremos numa outra oportunidade.  


24 setembro, 2018

Temas 2 e 3


A Humanidade não tem uma língua superior às demais, seja para o que for


Esta semana, no dia 17 de Setembro de 2018, vi e ouvi, no programa Prós e Contras da RTP 1, subordinado ao tema Como vai a Educação em Portugal ?, a intervenção de uma aluna portuguesa do ensino secundário, que disse chamar-se Filipa Maia, ter 18 anos, ser de Coimbra e estar ali em representação dos estudantes portugueses (do ensino secundário, presumo). 

Competências triviais

Esta aluna  referiu várias vezes  os «soft skills, um conceito superimportante  para o mundo do trabalho». Quando lhe pediram para traduzir essa expressão inglesa, para que toda a gente que a escutava pudesse entender, ou entender melhor, o que ela estava a dizer, ficou um pouco atrapalhada, até que alguém lhe soprou: “competências transversais” (em meu entender, “competências triviais” seria uma tradução bem mais adequada).  «Sim, é isso», concordou Filipa Maia, para logo acrescentar com um ar desenvolto: «Mas eu não deveria ter de traduzir, porque quando se fala de soft skills é um conceito que todos deviam conhecer, não é uma tradução». «Ora essa!», objecta Fátima Campos, a autora e moderadora do programa, «estamos em Portugal, tem de ter uma tradução para a frase». Resposta pronta de Filipa Maia: «Estamos em Portugal, mas o mundo do trabalho não é Portugal e em Portugal não nos pedem falar Português, pedem-nos falar Inglês, pelo menos Inglês» (sic!

Nas afirmações desta rapariga, detectei (em estado bruto) os estragos provocados pela mesma perniciosa ideologia que detectei (em estado mais refinado), nos livros do neurobiólogo António Damásio (pelos quais,  à parte esse aspecto, tenho bastante apreço).  Critiquei a versão refinada dessa ideologia num artigo que escrevi em Abril deste ano (2018), que foi publicado na revista A Página da Educação, nº 211, II série, este Verão. Tem por título: A ciência não tem uma língua exclusiva, nem uma língua favorita.

A ideologia feiticista do “Inglês über alles”

Que perniciosa ideologia é essa capaz de unir como almas gémeas uma aluna portuguesa de 18 anos e um veterano cientista português (e americano) de reputação mundial ? Podemos resumi-la em poucas linhas:

Existe uma língua superior a todas as demais: a língua inglesa. Só nessa língua, por exemplo, é possível exprimir conceitos, em especial conceitos científicos. Só nessa língua é possível ter pensamentos elevados. Essa língua é também (e não é coincidência!) a língua dos mercados. Ora, os mercados são, como toda gente inteligente sabe, o alfa e o ómega da economia, do mundo do trabalho, da vida em sociedade, da felicidade terrestre.  Por outras palavras, o Inglês é a língua materna dos dignos descendentes actuais do fabuloso rei Midas (os Bill Gates, Jeffrey Bezos, Warren Buffett, etc.), a língua de tudo o que é lucrativo, de tudo o que tem êxito retumbante, de tudo o que reluz com a cor do ouro e o brilho dos diamantes. É a língua que é capaz de transformar, num abrir e fechar de olhos, pobretanas em milionários, milionários em multimilionários, ilustres desconhecidos em superfamosos,  gente muito feia em gente muito bonita,  banais fanfarrões em temíveis figurões (e.g. Donald Trump). Por isso, se tivermos tido o azar de termos nascido e sido criados num país que não tenha sido parte do Império Britânico. não devemos ficar desanimados.  Devemos aprender a falar e a escrever Inglês, a desenvolver e a exercitar as nossas competências triviais nessa abençoada língua em todas as ocasiões e em todos os lugares, porque isso dá-nos logo um suplemento de alma, uma aura de cosmopolitismo, um toque inconfundível de poder, um cartão de visita para encontrarmos os anjos que nos vão ajudar a enriquecer.  

Embora muito em voga nas faculdades de economia — como a Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, que passou a ser a Nova School of Business and Economics,  e o Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa, que passou a ser a Lisboa School of Economics and Management, e onde, em ambas, apesar de serem estabelecimentos da rede pública, pagos pelo erário público, o ensino passou a ser exclusivamente em Inglês não só nos mestrados e nos doutoramentos, mas também nas licenciaturas (desde o 2º ano), em descarada violação dos artigos 9º, alínea f, e 11º, ponto 3, da Constituição da República Portuguesa — esta é uma ideologia anti-democrática. Não posso desenvolver aqui este aspecto, o mais pernicioso de todos,  desta impante ideologia, ao qual tenciono voltar em melhor oportunidade. De momento, contentar-me-ei em frisar (tal como fiz no artigo de A Página da Educação)  que se trata, também, de uma ideologia completamente falsa. 

Uma ideologia condenada ao declínio

O Inglês é apenas um idioma entre milhares de outros, nem melhor nem pior que os demais. Não tem qualquer propriedade demiúrgica. Há muitas boas razões para aprender a falar e a escrever Inglês, mas não são aquelas que são acarinhadas pela esmagadora maioria dos professores das faculdades de economia e pela quase totalidade dos jornalistas da chamada imprensa económica.  As boas razões que podem ser invocadas para aprender a falar e a escrever bem o Inglêssão semelhantes às que se podem invocar para aprender bem qualquer outro grande idioma (entenda-se, idioma de grande difusão). Bem entendidas, tais razões são semelhantes  às que se podem invocar para aprender bem qualquer pequeno idioma (entenda-se,  idioma de pequena difusão). 

A actual influência (económica, política e cultural)  do Inglês deve-se unicamente ao facto de a revolução industrial e  a economia capitalista moderna terem começado em Inglaterra e dos súbditos de sua Majestade Britânica terem colonizado, antes e durante a Era Vitoriana, imensos territórios por esse mundo fora, sobre os quais conseguiram manter a supremacia até à 2ª guerra mundial  construindo dessa forma um portentoso empreendimento  a que deram o nome de Império Britânico, o maior império que o mundo conheceu até hoje. 


O Império Britânico (territórios a cor-de-rosa) em 1922.


Depois da 2ª guerra mundial, os EUA, uma sua gigantesca ex-colónia, substituiu definitivamente o Império Britânico nesse papel de suprema potência económica e militar à escala planetária, reforçando ainda mais a influência do Inglês por intermédio do seu enormíssimo poderio (Acordos de Bretton Woods, plano Marshall, bolsas Fullbright, Grupo do Banco Mundial, FMI, os filmes de Hollywood e milhares de séries televisivas). 


Hotel Mount Washington, em Bretton Woods, New Hampshire, onde se realizou, em Julho de 1944,  a Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, que originou os Acordos de Bretton Woods. 

Mas essa foi a época (Julho de 1944-Agosto de 1971) [([1])] em que os EUA atingiram o auge do seu poderio. Essa época pertence definitivamente ao passado, pese embora o facto de a sua rançosa nostalgia ter garantido a Donald Trump a sua eleição (To make America great, again) e poder eventualmente garantir a sua reeleição. Nada  é menos certo do que os EUA se poderem manter por muito mais tempo a potência económica e militar suprema à escala mundial. Nada é menos certo do que o Inglês se poder manter por mais meio século como o idioma internacionalmente mais falado.

Seja como for, a  importância cultural do Inglês não se pode sequer comparar à de nenhum dos 5 idiomas que  desempenharam no passado o papel principal como veículos de cultura: o Chinês clássico, o Sânscrito, o Árabe, o Grego e o Latim.  A influência gramatical do Inglês sobre outros grandes idiomas contemporâneos (incluindo o Português) é, felizmente, quase nula. Quanto à influência lexical do Inglês, é bem mais modesta do que se supõe. É, sem dúvida, muitíssimo menor do aquela que o Árabe teve sobre o Persa e o Turco, ou que o Francês teve sobre o Inglês. O que diria Filipa Maia, a rapariga que interveio no “Prós e Contras” num Português estropiado, se soubesse que o Inglês foi buscar ao Francês milhares de “conceitos”  durante a Baixa Idade Média? 

José Manuel Catarino Soares


NOTA
[1] . O governo dos EUA, presidido na altura por Franklin Delano Roosevelt, preparou-se, desde 1944, ainda a 2ª guerra mundial estava longe do fim, para reconstruir, sob a sua égide e hegemonia, o sistema capitalista mundial profundamente devastado pela segunda guerra mundial.  Convocados pelo governo dos EUA, 730 delegados de todos os 44 países aliados encontraram-se, para esse efeito, no Hotel Mount Washington, em Bretton Woods, New Hampshire, para a Conferência monetária e financeira das Nações Unidas. Os delegados deliberaram e finalmente assinaram os Acordos de Bretton Woods (Bretton Woods Agreement) durante as primeiras três semanas de Julho de 1944. O Acordo ou os Acordos de Bretton Woods estabelecia(m), entre outras medidas, a criação do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), uma das instituições que integrariam mais tarde o grupo do Banco Mundial, a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), ambas com sede em Washington D.C., e a convertibilidade do dólar americano em ouro, que passou a ser, assim, moeda de referência mundial. Os Acordos de Bretton Woods duraram até 15 de Agosto de 1971, quando o Presidente Richard Nixon dos EUA decidiu, unilateralmente, acabar com a convertibilidade do dólar em ouro, o que efetivamente levou ao colapso do principal pilar desses Acordos e tornou o dólar numa moeda fiduciária, como todas as outras.