temas 2 e 3
Na câmara
escura de uma escola superior de educação:
uniformização,
controle e vigilância, infantilização, multimediatização
Ana Laura Metelo Valadares
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Luís Souta,
PEDAGOGIA S. 45 narrativas curtas sobre o Ensino Superior na perspectiva
(desconstrutivista) do Prof. S. Edições ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro). 1ª edição, Junho de 2019.
210 páginas. ISBN: 978‑989-8867-64-3. Hiperligação /Products/9789898867643
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Pedagogia
S. constitui um testemunho do quotidiano “académico” de uma escola
superior de educação de um instituto politécnico português da rede pública.
Esse testemunho advém da descrição do dia-a-dia da comunidade escolar que
evoca, por vezes, a descrição etnográfica.
A pertença do autor à comunidade educativa, enquanto
professor, confere à descrição uma dimensão necessariamente subjectiva; ao
descrever a realidade escolar, o autor recorre, quer ao seu profundo
conhecimento dos factores externos que condicionam essa realidade —
nomeadamente, as directivas nacionais e internacionais de política educativa —,
quer à sua longa experiência de vida comunitária escolar. Conhecimento e
experiência permitem-lhe problematizar a realidade observada, dando-nos conta
dos pensamentos e sentimentos que a experiência vivida, anotada e reflectida
nele acordam. Fá-lo revelando um sentido de humor complacente e um sentido
crítico atribulado e benigno, muito atento, dando-nos igualmente conta das suas
interrogações e perplexidades, do seu desencanto, da sua paciência e
perseverança, também da sua esperança.
O autor organiza a sua descrição em torno de práticas
do quotidiano da sua escola e de reflexões, ocasionalmente desabafos, sobre
temas que essas práticas suscitam.
Procura seguir um fio condutor temporal — grosso modo do início ao final de um ano lectivo (fio esse que
revela, por si só, que, pelo menos para os professores, o ano lectivo parece
não ter início, nem fim...). Cito
títulos como “Constituição de Turmas”, “Trabalhos de grupo”, ... mas também “Agarrados ao computador”, “Quando o telemóvel toca”, ou “Andar
ao Engano”, “Paternalismo”, ou ainda
“Bolonha, o Embuste”, “Do CTeSP ao doutoramento”.
O olhar do autor sobre a sua escola, cuja função
reprodutiva das práticas sociais e discursivas envolventes lhe não escapa,
permite ao leitor um segundo olhar sobre a realidade descrita e o seu contexto.
E é desse olhar, no caso o meu, que eu vou dar conta em seguida.
Da leitura sobre as práticas sociais e discursivas da
escola xpto
(como lhe chama o autor) emergem para mim, como traços fundamentais da vida
escolar, a uniformização, o excesso de controles reguladores e de vigilância, a infantilização dos alunos e
a multimediatização. Para efeitos de
análise, utilizarei exemplos para abordar cada um destes traços, retirando-os
do livro e recorrendo muitas vezes às próprias palavras do autor. Não posso
deixar de notar, desde já, que estes traços caracterizam igualmente a sociedade
contemporânea, de que o sistema educativo é uma parcela. E também dizer que
este traços co-ocorrem na interacção educativa, separando-os eu apenas para
efeito de análise.
Uniformização
A uniformização permite o controlo das práticas
educativas e dos seus sujeitos. Ela ocorre por diversas vias: focarei sobretudo
as orientações exógenas e o uso alargado de um registo, ou jargão,
educacional. Mas, de um modo geral, o efeito uniformizador revela-se na
equiparação (e desvalorização) dos graus académicos, na equiparação dos
sub-sistemas do ensino superior (as escolas politécnicas já podem outorgar o
grau de doutor), no nivelamento de notas de alunos e professores (tendem a agregar-se
no topo das escalas de classificação), na crença generalizada em um só modelo
de aprendizagem (o construtivismo colaborativo) e na padronização das
metodologias de ensino, dos métodos de avaliação de alunos, dos métodos e
instrumentos de avaliação das instituições e seus profissionais, etc...
Focarei então em seguida o efeito uniformizador das
orientações exógenas e do jargão educacional.
As orientações exógenas traçam o rumo e os caminhos da
vida académica. Ao referir-se à Declaração de
Bolonha (1999), que virou de sopetão o sistema de ensino superior em
Portugal de pernas para o ar, Luís Souta escreve que “ficar
cada vez mais igual aos outros era na época (como hoje) um objectivo central,
também no domínio educativo”. Para atingir essa igualdade concorrem as
rígidas e pormenorizadas directrizes de desenvolvimento curricular (de
categorias fixas e imutáveis), incluindo as orientações centrais para a
elaboração do calendário escolar e dos horários, bem como os instrumentos de
avaliação. Quase tudo é regulamentado de forma centralizada, não deixando
espaço para a tão propalada autonomia das escolas e a emancipação dos seus
membros.
A uniformização passa igualmente pelo uso generalizado
de um jargão educacional, que anula a pessoa que a usa e que muitos designam, a
meu ver bem, por eduquês. O eduquês é rico em novas designações para
velhos objectos e velhos conceitos (disciplina passa a “unidade curricular”, paralelo de “unidade
empresarial”, aulas a “horas de contacto”);
é também rico em siglas e acrónimos imprescrutáveis, o mais ridículo dos quais
talvez seja a sigla inglesa ECTS (European Credit Transfer System) — dizem os
colegas do Professor S. que uma “unidade
curricular” tem x ECTSes, ou seja, que ela tem x sistemas
de transferência de créditos… De que registo linguístico virão as “transferências” e os “créditos”
?!... Decerto do financês, essa fonte inspiradora de muitos -eses... O jargão
educacional está recheado de empréstimos do inglês e de anglicismos: por
exemplo, e-learning, upgrading, ranking, data-show;
videoclipe, webgrafia,
orientações tutórias. Estas importações
linguísticas em catadupa, acriticamente usadas numa clara demonstração de
submissa aculturação, distanciam a pessoa da sua identidade. O eduquês
apresenta-se como uma variedade linguística “técnica”, reduzindo a língua
natural a um código. O seu uso não emancipa, submete. E sufoca.
Excesso de controles reguladores e de vigilância
A uniformização permite o controle dos membros da
comunidade educativa, que são excessivamente vigiados. E aqui passo a abordar o
segundo traço — o excesso de controles reguladores e de vigilância
— que parece decorrer sobretudo de uma obsessão com a avaliação —
institucional, profissional, académica. Há sede de uma permanente justificação
e prestação de contas formatada externa e internamente, quer para instituições,
quer para professores, quer para alunos (virá de onde, esta sede que reproduz a
papagueada produtividade ?!).
Abordarei duas estratégias de controle, uma relativa
aos docentes — a avaliação do desempenho docente, outra relativa aos alunos,
constituída pelos ubíquos trabalhos de grupo.
Previamente direi, porém, que o ambiente geral da
escola parece ser um ambiente de excesso,
de falta de limites — parece haver
uma necessidade imposta, externa e internamente, de ocupar quase totalmente as horas
do dia (e da noite) de professores e alunos. A esmagadora multiplicidade de
tarefas do professor, a “overdose curricular”
(citando o autor) correspondente a uma carga horária considerada excessiva e a
uma fragmentação disciplinar traduzida em cursos de apenas cadeiras de 45 horas
no 1º ano (algumas das quais, aliás, com designações muito bizarras, como “Carteira de Competências”), as ofertas alternativas que permitem a
dispensa das aulas (“eventos paralelos, a não
perder”), tudo isto indica o medo da pausa e do descanso, do silêncio
reflexivo e da interioridade.
Abordemos então o excesso
de controles reguladores e de vigilância
ilustrado pela avaliação de desempenho dos docentes, que decorre sob a égide da
A3AES (Agência
de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior). Segundo o autor, a A3AES
é “especializada em sugar tempo aos professores”
e (...) “marca a reorientação formativa”.
Luís Souta chama-lhe “esse big brother de avaliação e acreditação que, na sua inflexibilidade
e rigor burocráticos, mantém a espada de Dâmocles, permanentemente, sobre os
politécnicos e as universidades”. O autor dá-nos conta de um complicado
pacote de ficheiros electrónicos que, de uma assentada, se destinava a avaliar
os últimos catorze anos
de actividade profissional dos docentes. No final de um complexo e exaustivo
programa que envolvia, além dos docentes, uma comissão de avaliação da própria
escola, também ela avaliada, constatou-se que, em vez da curva normal esperada,
quase todos os docentes se acantonavam num dos extremos da curva, com a nota de
EXCELENTE.
Alguns outros tiveram só MUITO BOM,
coitados.
Há muitas outras avaliações, de resto, por exemplo a
ficha curricular de cada disciplina a preencher pelo respectivo docente em 3000
caracteres de eduquês...
O outro exemplo que escolhi para ilustrar o excesso de controles reguladores e de vigilância diz respeito aos trabalhos de grupo dos alunos. O
trabalho de grupo parece surgir, sobretudo, como alternativa aos exames, pavor
académico, quer por parte dos professores, quer, sobretudo, dos alunos —
decerto devido à crença generalizada de que os exames não avaliam competências
cognitivas de ordem superior, criando, ainda para mais, ansiedade nos
alunos!
O autor escreve sobre trabalhos realizados à “fatia”, dizendo-nos que cada membro do grupo só
fica a conhecer a sua fatia, ignorando as dos outros colegas do grupo. O
trabalho de grupo acaba assim por ser um declarado embuste.
Os trabalhos, entregues à última hora, são corrigidos
à lufa-lufa, numa “maratona” realizada a
desoras, em casa. Como o autor escreve, sente-se “condenado
a ler, anotar, corrigir e classificar uma catrefada de trabalhos pindéricos”.
De notar que os alunos não chegam a recolher os trabalhos corrigidos e
avaliados...
Há no trabalho de grupo algum grau de ludificação, no
sentido em que é utilizado para enriquecer o contexto e motivar os alunos,
envolvendo-os. A ludificação é, de resto, uma técnica de publicidade para
incentivar o envolvimento do consumidor com o produto ou serviço. A tendência
para a ludificação e sua componente de gratificação imediata parece impor-se na
escola e relaciona-se em parte com o terceiro traço da vida escolar, a infantilização no tratamento dos alunos.
A
infantilização no tratamento dos alunos
A necessidade imposta, externa e internamente, de
ocupar quase totalmente as horas do dia (e da noite) de professores e alunos
parece ter invadido e entranhado a mente e a alma docentes. Os professores
assemelham-se a átomos perdidos uns dos outros, mas cumprindo cada um deles,
obedientemente e até extravasando, os ditames impostos (vem-me à ideia o
conceito de auto-exploração do
filósofo germano-coreano Byung-Chen Han, exposto no seu livro de 2014, Psicopolítica). A atitude dos professores para com
os alunos reveste-se de paternalismo, cabendo naturalmente aos alunos o papel
de filhos (rebeldes).
Parece-me que os alunos se defendem como podem do
excesso escolar, escapando às aulas e tutorias, entrando tarde e saindo cedo,
entrando e saindo a seu bel-prazer durante a aula, pedindo coisas e serviços ao
professor: pausas para café, dispensa das aulas, dilatação dos prazos de
entrega dos trabalhos, informações básicas sobre tudo e nada; refugiando-se nas
violentas praxes, legalmente apadrinhadas pela escola, nas festas (queima das
fitas, cortejos, espectáculos) e nas estadias académico-balneares ERASMUS.
Refugiam-se e evadem-se: usam o computador e o telemóvel em plena aula,
encerrados nas suas comunicações privadas.
Parece não haver regras.
Os comportamentos dos alunos não são separáveis da
natureza das suas interacções com o meio. De facto, os comportamentos de
dependência e associabilidade acima enumerados parecem-me decorrer, em parte,
do tratamento infantil e de desresponsabilização dado aos alunos. Escolho
apenas um exemplo, de peso: o controle
docente para as eleições dos alunos para o Conselho de Representantes
(órgão que confere aos alunos representação institucional) ou para o
Conselho Pedagógico (órgão paritário). Cito o autor: “Um dos professores promotores chegou a confessar que o
que lhe deu mais trabalho foi fazer a lista de discentes (!).” Parece,
pois, haver um atropelo de papéis, um açambarcamento por parte dos professores,
como se só a eles a escola pertencesse. E, ao mesmo tempo, parece existir um
divórcio entre professor e alunos, justamente porque papéis e funções se confundem.
Esse divórcio pode estar relacionado também com o alto grau de mediatização na
escola, último traço por mim identificado, que passo a considerar em seguida.
1850. Um artista desenha com a ajuda de uma câmara escura. |
Multimediatização
As interacções professor/alunos decorrem sobretudo em
sala de aula, a que o autor chama “câmara escura”.
Ficamos a saber que, apesar das ideias e engenho do arquitecto, a comunidade
escolar não deixa entrar a luz solar na sala de aula e que professor e alunos,
em presença real, não comunicam face a face e olhos nos olhos, mas sim através
do ecrã de powerpoint (PP). O PP
tornou-se, e cito, “suporte didáctico por
excelência... (...) cábula oficial e
trabalhosa... (...) que leva mais tempo a montar que o tempo necessário para
estudar a matéria... (...) causando hiatos, graças às atrapalhações técnicas...”.
O autor conta que, numa só sessão de apresentação de trabalhos dos alunos em
sala de aula, viu 180 diapositivos
em PP, trinta por grupo.
A entrada da luz solar é barrada, mas não os
telemóveis e a porta que eles abrem para vídeos, jogos, mensagens, tudo o que
foi digitalizado, tudo o que é difundido. O seu uso parece ser livre, o que não
acontece nas salas de teatro.
Eduardo Lourenço (2018) referiu “o circo romano a domicílio que a televisão universal nos
oferece vinte e quatro horas por dia”. Esse circo romano invade e ocupa
a escola superior.
Conclusão
Após a leitura do livro Pedagogia
S. e a reflexão que me suscitou,
fica-me, da escola descrita, uma impressão de ilusão, do que se nos afigura ser
e não é.
Agradeço ao Luís Souta por me ter ajudado a disciplinar a memória.
Agradeço ao Luís Souta por me ter ajudado a disciplinar a memória.
Almada, 15 de Dezembro de 2019
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