Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

01 janeiro, 2020


temas 2 e 3


Na câmara escura de uma escola superior de educação:
uniformização, controle e vigilância, infantilização, multimediatização

Ana Laura Metelo Valadares

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Luís Souta, PEDAGOGIA S. 45 narrativas curtas sobre o Ensino Superior na perspectiva (desconstrutivista) do Prof. S. Edições ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro). 1ª edição, Junho de 2019. 210 páginas. ISBN: 978‑989-8867-64-3. Hiperligação /Products/9789898867643
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Pedagogia S. constitui um testemunho do quotidiano “académico” de uma escola superior de educação de um instituto politécnico português da rede pública. Esse testemunho advém da descrição do dia-a-dia da comunidade escolar que evoca, por vezes, a descrição etnográfica.

A pertença do autor à comunidade educativa, enquanto professor, confere à descrição uma dimensão necessariamente subjectiva; ao descrever a realidade escolar, o autor recorre, quer ao seu profundo conhecimento dos factores externos que condicionam essa realidade — nomeadamente, as directivas nacionais e internacionais de política educativa —, quer à sua longa experiência de vida comunitária escolar. Conhecimento e experiência permitem-lhe problematizar a realidade observada, dando-nos conta dos pensamentos e sentimentos que a experiência vivida, anotada e reflectida nele acordam. Fá-lo revelando um sentido de humor complacente e um sentido crítico atribulado e benigno, muito atento, dando-nos igualmente conta das suas interrogações e perplexidades, do seu desencanto, da sua paciência e perseverança, também da sua esperança.
 
O autor organiza a sua descrição em torno de práticas do quotidiano da sua escola e de reflexões, ocasionalmente desabafos, sobre temas que essas práticas suscitam.  Procura seguir um fio condutor temporal — grosso modo do início ao final de um ano lectivo (fio esse que revela, por si só, que, pelo menos para os professores, o ano lectivo parece não ter início, nem fim...).  Cito títulos como “Constituição de Turmas”, “Trabalhos de grupo”, ... mas também “Agarrados ao computador”, “Quando o telemóvel toca”, ou “Andar ao Engano”, “Paternalismo”, ou ainda “Bolonha, o Embuste”, “Do CTeSP ao doutoramento”.

O olhar do autor sobre a sua escola, cuja função reprodutiva das práticas sociais e discursivas envolventes lhe não escapa, permite ao leitor um segundo olhar sobre a realidade descrita e o seu contexto. E é desse olhar, no caso o meu, que eu vou dar conta em seguida.

Da leitura sobre as práticas sociais e discursivas da escola xpto (como lhe chama o autor) emergem para mim, como traços fundamentais da vida escolar, a uniformização, o excesso de controles reguladores e de vigilância, a infantilização dos alunos e a multimediatização. Para efeitos de análise, utilizarei exemplos para abordar cada um destes traços, retirando-os do livro e recorrendo muitas vezes às próprias palavras do autor. Não posso deixar de notar, desde já, que estes traços caracterizam igualmente a sociedade contemporânea, de que o sistema educativo é uma parcela. E também dizer que este traços co-ocorrem na interacção educativa, separando-os eu apenas para efeito de análise.

Uniformização

A uniformização permite o controlo das práticas educativas e dos seus sujeitos. Ela ocorre por diversas vias: focarei sobretudo as orientações exógenas e o uso alargado de um registo, ou jargão, educacional. Mas, de um modo geral, o efeito uniformizador revela-se na equiparação (e desvalorização) dos graus académicos, na equiparação dos sub-sistemas do ensino superior (as escolas politécnicas já podem outorgar o grau de doutor), no nivelamento de notas de alunos e professores (tendem a agregar-se no topo das escalas de classificação), na crença generalizada em um só modelo de aprendizagem (o construtivismo colaborativo) e na padronização das metodologias de ensino, dos métodos de avaliação de alunos, dos métodos e instrumentos de avaliação das instituições e seus profissionais, etc...

Focarei então em seguida o efeito uniformizador das orientações exógenas e do jargão educacional.

As orientações exógenas traçam o rumo e os caminhos da vida académica. Ao referir-se à Declaração de Bolonha (1999), que virou de sopetão o sistema de ensino superior em Portugal de pernas para o ar, Luís Souta escreve que “ficar cada vez mais igual aos outros era na época (como hoje) um objectivo central, também no domínio educativo”. Para atingir essa igualdade concorrem as rígidas e pormenorizadas directrizes de desenvolvimento curricular (de categorias fixas e imutáveis), incluindo as orientações centrais para a elaboração do calendário escolar e dos horários, bem como os instrumentos de avaliação. Quase tudo é regulamentado de forma centralizada, não deixando espaço para a tão propalada autonomia das escolas e a emancipação dos seus membros.

Os 48 países (incluindo os 28 da União Europeia) que integram o chamado Espaço Europeu do Ensino Superior, resultado institucional do processo político de uniformização iniciado pela Declaração de Bolonha (1999). Mapa de MacedonianBoy.

A uniformização passa igualmente pelo uso generalizado de um jargão educacional, que anula a pessoa que a usa e que muitos designam, a meu ver bem, por eduquês. O eduquês é rico em novas designações para velhos objectos e velhos conceitos (disciplina passa a “unidade curricular”, paralelo de “unidade empresarial”, aulas a “horas de contacto”); é também rico em siglas e acrónimos imprescrutáveis, o mais ridículo dos quais talvez seja a sigla inglesa ECTS (European Credit Transfer System) — dizem os colegas do Professor S. que uma “unidade curricular” tem x ECTSes, ou seja, que ela tem x sistemas de transferência de créditos… De que registo linguístico virão as “transferências” e os “créditos” ?!... Decerto do financês, essa fonte inspiradora de muitos -eses... O jargão educacional está recheado de empréstimos do inglês e de anglicismos: por exemplo, e-learning, upgrading, ranking, data-show; videoclipe, webgrafia, orientações tutórias. Estas importações linguísticas em catadupa, acriticamente usadas numa clara demonstração de submissa aculturação, distanciam a pessoa da sua identidade. O eduquês apresenta-se como uma variedade linguística “técnica”, reduzindo a língua natural a um código. O seu uso não emancipa, submete. E sufoca.

Excesso de controles reguladores e de vigilância

A uniformização permite o controle dos membros da comunidade educativa, que são excessivamente vigiados. E aqui passo a abordar o segundo traço — o excesso de controles reguladores e de vigilância — que parece decorrer sobretudo de uma obsessão com a avaliação — institucional, profissional, académica. Há sede de uma permanente justificação e prestação de contas formatada externa e internamente, quer para instituições, quer para professores, quer para alunos (virá de onde, esta sede que reproduz a papagueada produtividade ?!).

Abordarei duas estratégias de controle, uma relativa aos docentes — a avaliação do desempenho docente, outra relativa aos alunos, constituída pelos ubíquos trabalhos de grupo.

Previamente direi, porém, que o ambiente geral da escola parece ser um ambiente de excesso, de falta de limites — parece haver uma necessidade imposta, externa e internamente, de ocupar quase totalmente as horas do dia (e da noite) de professores e alunos. A esmagadora multiplicidade de tarefas do professor, a “overdose curricular” (citando o autor) correspondente a uma carga horária considerada excessiva e a uma fragmentação disciplinar traduzida em cursos de apenas cadeiras de 45 horas no 1º ano (algumas das quais, aliás, com designações muito bizarras, como “Carteira de Competências”),  as ofertas alternativas que permitem a dispensa das aulas (“eventos paralelos, a não perder”), tudo isto indica o medo da pausa e do descanso, do silêncio reflexivo e da interioridade.

Abordemos então o excesso de controles reguladores e de vigilância ilustrado pela avaliação de desempenho dos docentes, que decorre sob a égide da A3AES (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior). Segundo o autor, a A3AES é “especializada em sugar tempo aos professores” e (...) “marca a reorientação formativa”. Luís Souta chama-lhe “esse big brother de avaliação e acreditação que, na sua inflexibilidade e rigor burocráticos, mantém a espada de Dâmocles, permanentemente, sobre os politécnicos e as universidades”. O autor dá-nos conta de um complicado pacote de ficheiros electrónicos que, de uma assentada, se destinava a avaliar os últimos catorze anos de actividade profissional dos docentes. No final de um complexo e exaustivo programa que envolvia, além dos docentes, uma comissão de avaliação da própria escola, também ela avaliada, constatou-se que, em vez da curva normal esperada, quase todos os docentes se acantonavam num dos extremos da curva, com a nota de EXCELENTE.  Alguns outros tiveram só MUITO BOM, coitados.

Há muitas outras avaliações, de resto, por exemplo a ficha curricular de cada disciplina a preencher pelo respectivo docente em 3000 caracteres de eduquês...

O outro exemplo que escolhi para ilustrar o excesso de controles reguladores e de vigilância diz respeito aos trabalhos de grupo dos alunos. O trabalho de grupo parece surgir, sobretudo, como alternativa aos exames, pavor académico, quer por parte dos professores, quer, sobretudo, dos alunos — decerto devido à crença generalizada de que os exames não avaliam competências cognitivas de ordem superior, criando, ainda para mais, ansiedade nos alunos! 

O autor escreve sobre trabalhos realizados à “fatia”, dizendo-nos que cada membro do grupo só fica a conhecer a sua fatia, ignorando as dos outros colegas do grupo. O trabalho de grupo acaba assim por ser um declarado embuste.

Os trabalhos, entregues à última hora, são corrigidos à lufa-lufa, numa “maratona” realizada a desoras, em casa. Como o autor escreve, sente-se “condenado a ler, anotar, corrigir e classificar uma catrefada de trabalhos pindéricos”. De notar que os alunos não chegam a recolher os trabalhos corrigidos e avaliados...

Há no trabalho de grupo algum grau de ludificação, no sentido em que é utilizado para enriquecer o contexto e motivar os alunos, envolvendo-os. A ludificação é, de resto, uma técnica de publicidade para incentivar o envolvimento do consumidor com o produto ou serviço. A tendência para a ludificação e sua componente de gratificação imediata parece impor-se na escola e relaciona-se em parte com o terceiro traço da vida escolar, a infantilização no tratamento dos alunos.

A infantilização no tratamento dos alunos

A necessidade imposta, externa e internamente, de ocupar quase totalmente as horas do dia (e da noite) de professores e alunos parece ter invadido e entranhado a mente e a alma docentes. Os professores assemelham-se a átomos perdidos uns dos outros, mas cumprindo cada um deles, obedientemente e até extravasando, os ditames impostos (vem-me à ideia o conceito de auto-exploração do filósofo germano-coreano Byung-Chen Han, exposto no seu livro de 2014, Psicopolítica). A atitude dos professores para com os alunos reveste-se de paternalismo, cabendo naturalmente aos alunos o papel de filhos (rebeldes).

Parece-me que os alunos se defendem como podem do excesso escolar, escapando às aulas e tutorias, entrando tarde e saindo cedo, entrando e saindo a seu bel-prazer durante a aula, pedindo coisas e serviços ao professor: pausas para café, dispensa das aulas, dilatação dos prazos de entrega dos trabalhos, informações básicas sobre tudo e nada; refugiando-se nas violentas praxes, legalmente apadrinhadas pela escola, nas festas (queima das fitas, cortejos, espectáculos) e nas estadias académico-balneares ERASMUS. Refugiam-se e evadem-se: usam o computador e o telemóvel em plena aula, encerrados nas suas comunicações privadas.
Parece não haver regras.

Os comportamentos dos alunos não são separáveis da natureza das suas interacções com o meio. De facto, os comportamentos de dependência e associabilidade acima enumerados parecem-me decorrer, em parte, do tratamento infantil e de desresponsabilização dado aos alunos. Escolho apenas um exemplo, de peso: o controle docente para as eleições dos alunos para o Conselho de Representantes (órgão que confere aos alunos representação institucional) ou para o Conselho Pedagógico (órgão paritário). Cito o autor: “Um dos professores promotores chegou a confessar que o que lhe deu mais trabalho foi fazer a lista de discentes (!).” Parece, pois, haver um atropelo de papéis, um açambarcamento por parte dos professores, como se só a eles a escola pertencesse. E, ao mesmo tempo, parece existir um divórcio entre professor e alunos, justamente porque papéis e funções se confundem. Esse divórcio pode estar relacionado também com o alto grau de mediatização na escola, último traço por mim identificado, que passo a considerar em seguida.

1850. Um artista desenha com a ajuda de uma câmara escura.

Multimediatização

As interacções professor/alunos decorrem sobretudo em sala de aula, a que o autor chama “câmara escura”. Ficamos a saber que, apesar das ideias e engenho do arquitecto, a comunidade escolar não deixa entrar a luz solar na sala de aula e que professor e alunos, em presença real, não comunicam face a face e olhos nos olhos, mas sim através do ecrã de powerpoint (PP). O PP tornou-se, e cito, “suporte didáctico por excelência... (...)  cábula oficial e trabalhosa... (...) que leva mais tempo a montar que o tempo necessário para estudar a matéria... (...) causando hiatos, graças às atrapalhações técnicas...”. O autor conta que, numa só sessão de apresentação de trabalhos dos alunos em sala de aula, viu 180 diapositivos em PP, trinta por grupo.

A entrada da luz solar é barrada, mas não os telemóveis e a porta que eles abrem para vídeos, jogos, mensagens, tudo o que foi digitalizado, tudo o que é difundido. O seu uso parece ser livre, o que não acontece nas salas de teatro.

Eduardo Lourenço (2018) referiu “o circo romano a domicílio que a televisão universal nos oferece vinte e quatro horas por dia”. Esse circo romano invade e ocupa a escola superior.

Conclusão

Após a leitura do livro Pedagogia S. e a reflexão que me suscitou, fica-me, da escola descrita, uma impressão de ilusão, do que se nos afigura ser e não é.

Agradeço ao Luís Souta por me ter ajudado a disciplinar a memória.

Almada, 15 de Dezembro de 2019




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