Esta é a 3ª entrada
do Diário Intermitente da pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 (ver a
sua apresentação nos arquivos deste
blogue, Março de 2020, no fundo da coluna à direita deste texto).
Gostaria de conseguir escrever este diário fazendo jus ao lema que encerra a resposta à seguinte adivinha (que me foi contada pelo meu amigo João Viegas Fernandes): «Qual é a semelhança entre um pára-quedas e a mente humana? É o facto de tanto um como a outra só nos serem úteis, salvando-nos a vida, se estiverem bem abertos».
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Os ventiladores não são uma panaceia para os doentes graves de Covid-19
José Manuel Catarino Soares
No dia 2 de Março de 2020, quando a pandemia provocada pelo novo
coronavírus SARS-CoV-2 se declarou em Portugal, o país tinha disponíveis 1.142
ventiladores no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e mais 250 no sector privado.
Em 27 de Março, o primeiro ministro, António Costa, revelou no
parlamento que tinham sido comprados 535 ventiladores à
China, uma compra que custou a Portugal 9,3 milhões de euros e que permitiria um
reforço de 43,7% do número de ventiladores do SNS.
Em 5 de Abril a Ministra da Saúde, Marta Temido, afirmou: «À data de ontem, comprámos 1.151 ventiladores, recebemos
247 em doação e 140 por empréstimos. O que significa que vamos reforçar a
capacidade em 1.538 aparelhos, dos quais 85% são invasivos, bem mais do que
duplicando a nossa capacidade do início de Março». Fora destas contas
ficam as aquisições já anunciadas pelos municípios e as comunidades
intermunicipais. Em 6 de Abril de 2020, existiam em Portugal 2.726 ventiladores, pelo menos (“Covid-19: Porque são os ventiladores tão vitais”. JPN, 6 de Abril 2020).
Em 27 de Março, o primeiro-ministro tinha também anunciado que Portugal está em condições de avançar para a produção própria de ventiladores [ver apêndice *] — os quais, em seis meses, poderão ser 10 mil.
Em 27 de Março, o primeiro-ministro tinha também anunciado que Portugal está em condições de avançar para a produção própria de ventiladores [ver apêndice *] — os quais, em seis meses, poderão ser 10 mil.
Monitor de um ventilador. Foto de Rui Gaudêncio. |
Notícias
tranquilizadoras ? Sim, mas…
Há muita gente que terá respirado de alívio perante estas notícias: «Estamos salvos, pois haverá um número suficiente de
ventiladores para todas as pessoas que deles precisarem !». Esse
raciocínio tem pernas para andar. No momento em que escrevo estas linhas (25 de
Abril de 2020), o número de doentes com Covid-19 internados em unidades de
cuidados intensivos é de 188. Este número tem vindo a baixar, depois de ter
atingido um pico em 7 de Abril (271), sobretudo nos últimos 8 dias, em que a
redução tem sido mais consistente.
Mas há boas razões para refrear uma confiança ilimitada nos ventiladores
como arma na luta contra a Covid-19.
A
última melhor oportunidade
Os ventiladores são máquinas
altamente invasivas, que implicam a sedação e a intubação do doente com
Covid-19 por períodos, por vezes, muito prolongados.
Ao doente que é sedado, é-lhe administrado um relaxante muscular antes de ser intubado. O tubo é colocado através da boca até à traqueia e depois ligado ao ventilador. Uma vez ligado, o ventilador bombeia ar e oxigénio até aos pulmões, sendo que os médicos podem ajustar a velocidade e a quantidade de oxigénio. Se o doente precisar de ficar ventilado durante muito tempo, os médicos podem recorrer a uma traqueostomia, ou seja, abrir um buraco na garganta para que o tubo chegue directamente à traqueia. Esta opção não traz problemas a longo prazo (porque o buraco fecha) e tem a vantagem de permitir que os doentes fiquem conscientes.
O simples facto de se ter
de recorrer a essas máquinas, significa um prognóstico sombrio para o doente. E
o prognóstico torna-se ainda mais sombrio quanto maior for o número de dias em
que o doente permanece intubado. Quanto mais tempo permanecer ligado ao
ventilador, menor é a sua probabilidade de vir a respirar sem ele. Uma das
razões para isso é que a própria ventilação provoca danos nos pulmões.
Doente intubado com um tubo orotraqueal e ligado a um ventilador. |
Ao doente que é sedado, é-lhe administrado um relaxante muscular antes de ser intubado. O tubo é colocado através da boca até à traqueia e depois ligado ao ventilador. Uma vez ligado, o ventilador bombeia ar e oxigénio até aos pulmões, sendo que os médicos podem ajustar a velocidade e a quantidade de oxigénio. Se o doente precisar de ficar ventilado durante muito tempo, os médicos podem recorrer a uma traqueostomia, ou seja, abrir um buraco na garganta para que o tubo chegue directamente à traqueia. Esta opção não traz problemas a longo prazo (porque o buraco fecha) e tem a vantagem de permitir que os doentes fiquem conscientes.
Não sei qual é a percentagem de doentes que morre e qual é a percentagem de
doentes de Covid-19 que sobrevive depois de terem estado ligados a um
ventilador, em Portugal ou noutros países. Seja como for, julgo ser
indesmentível este juízo que li num artigo sobre o assunto: «os ventiladores são a última melhor oportunidade para os
doentes com Covid-19, mas salvam apenas uma parte deles» (Michael Daily,
“Why All the Ventilators in the World Won’t Solve This”, The Daily Beast,
6 de Abril de 2020). Isto, se pusermos momentaneamente de
parte a Oxigenação por Membrana Extracorpórea
(ECMO, na sigla inglesa) — uma técnica de ventilação invasiva à qual o juízo
precedente se aplica ainda com mais propriedade.
O desafio, por conseguinte, é encontrar (penúltimas) alternativas de
ventilação não-invasiva que evitem o emprego do ventilador. A grande diferença
entre a ventilação invasiva (VI) e a ventilação não-invasiva (VNI) é o facto de, na VNI, não se utilizar uma via aérea artificial, ou seja, não existir
necessidade de recorrer a um tubo orotraqueal ou a uma traqueostomia.
Segundo apurei, já foram encontradas duas técnicas de VNI não invasivas que
parecem promissoras no tratamento da Covid-19. Uma delas é a oxigenoterapia por
Cânulas Nasais de Alto Fluxo (CNAF), que é utilizada, entre outros fins, para
garantir a sobrevivência de bebés prematuros e para tratar doentes com insuficiência
respiratória aguda.
A outra técnica de VNI que se afigura promissora no tratamento intensivo da Covid-19 é a Pressão Positiva Contínua nas Vias Aéreas (PPCVA), utilizada, entre outros fins, no tratamento da apneia do sono, de crianças com bronquiolite e de doentes adultos que apresentem dificuldade respiratória aguda de origem cardíaca ou pulmonar. Convém saber que as ambulâncias de suporte imediato de vida (SIV) do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) passaram a estar equipadas, a partir do dia 1 de Outubro de 2018, com um dispositivo que possibilita efetuar a PPCVA em ambiente pré-hospitalar, possibilitando um prognóstico mais favorável para o doente com dificuldades respiratórias.
Ambas as técnicas, CNAF e PPCVA, têm alguns inconvenientes no tratamento da Covid-19. O principal é a aerossolização das partículas do vírus exaladas pelo doente para a atmosfera. A sua aplicação exige, portanto, a máxima protecção dos profissionais de saúde que lidem com estes doentes e também, presumo, medidas específicas de climatização das unidades de cuidados intensivos.
Mesmo assim, as vantagens destas técnicas parecem superar os inconvenientes.
É o que uma recente reportagem da SIC Notícias ilustra muito bem, no que respeita à PPCVA [premir aqui https://sicnoticias.pt/especiais/coronavirus/2020-04-24-Medicos-tem-tecnica-inovadora-para-recuperar-muito-mais-rapido-doentes-com-Covid-19]. A
parte relativa à PPCVA, designada em inglês por CPAP (continuous positive
airway pressure), começa ao minuto 1 da reportagem, que tem cerca de 5 minutos.
Resumo
e conclusão
Os ventiladores não são uma panaceia no tratamento de doentes graves de Covid-19.
São (tal como a ECMO) uma técnica muito invasiva e (também por isso) um recurso
de fim de linha, como salientou o dr. João Gouveia, médico do hospital de Santa
Maria, presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina Intensiva e coordenador
da Comissão Nacional de Medicina Intensiva para a Covid-19 (“Grande Entrevista”, RTP3, 16 de Abril 2020). A CNAF e a PPCVA são, pelo menos nalguns casos, técnicas alternativas não-invasivas que evitam
chegar a essa extremidade.
Todavia, melhor do que qualquer técnica terapêutica é fazer tudo o que é
possível para não contrair esta terrível doença: lavagem frequente das mãos com
água e sabão; respeito pela distância proxémica de 2 metros nos contactos com
as outras pessoas; etiqueta respiratória (tossir e espirrar para a prega do
braço); usar máscara e viseira (ou óculos) de
protecção individual nos espaços públicos, sobretudo os espaços
fechados e muito povoados — transportes públicos, super- e hipermercados, lojas,
restaurantes, cinemas, escolas, etc.
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APÊNDICE
*«Coronavírus:
cientista português junta especialistas de todo o mundo para desenvolver novos
ventiladores. Project
Open Air já conta com o contributo de mais de 1500 especialistas, a
maioria deles portugueses. Em menos de 48 horas, e com o aumento de casos de
coronavírus, há ideias para combater a escassez de equipamento de auxílio
respiratório prontas a entrar em fase de testes.
As notícias da escalada de gravidade na Europa do novo coronavírus – com especial atenção para o número de mortes em Itália – estavam a preocupar João Nascimento que procurou ajudar na resolução dos problemas impostos pela pandemia. Por “exclusão de partes”, decidiu debruçar-se sobre o problema da falta de ventiladores, que em Itália tem condicionado a acção dos profissionais de saúde. Procurou quem já estivesse a falar do tema e encontrou dois ingleses a tweetar sobre ventiladores open source (código aberto, sem licença comercial). «Limitei-me a ir ao Twitter fazer uma pesquisa para ver quem estava a falar sobre o assunto», confessou o cientista português de 40 anos, formado em Harvard. Criaram então o Project Open Air, um canal de discussão no Slack e, a partir daí, na quarta-feira, o projecto «ganhou vida própria». Em menos de 48 horas, o movimento já junta num chat mais de 1500 especialistas de áreas que vão da Medicina à Computação. Desde a divulgação do projecto no jornal Observador, Portugal tornou-se no país mais representado neste projecto. «A maioria das pessoas já é portuguesa. O nosso canal de managers tinha dez pessoas. Agora somos 20, metade deles portugueses. Tomaram conta daquilo tudo» (Público, 13 de Março 2020).
As notícias da escalada de gravidade na Europa do novo coronavírus – com especial atenção para o número de mortes em Itália – estavam a preocupar João Nascimento que procurou ajudar na resolução dos problemas impostos pela pandemia. Por “exclusão de partes”, decidiu debruçar-se sobre o problema da falta de ventiladores, que em Itália tem condicionado a acção dos profissionais de saúde. Procurou quem já estivesse a falar do tema e encontrou dois ingleses a tweetar sobre ventiladores open source (código aberto, sem licença comercial). «Limitei-me a ir ao Twitter fazer uma pesquisa para ver quem estava a falar sobre o assunto», confessou o cientista português de 40 anos, formado em Harvard. Criaram então o Project Open Air, um canal de discussão no Slack e, a partir daí, na quarta-feira, o projecto «ganhou vida própria». Em menos de 48 horas, o movimento já junta num chat mais de 1500 especialistas de áreas que vão da Medicina à Computação. Desde a divulgação do projecto no jornal Observador, Portugal tornou-se no país mais representado neste projecto. «A maioria das pessoas já é portuguesa. O nosso canal de managers tinha dez pessoas. Agora somos 20, metade deles portugueses. Tomaram conta daquilo tudo» (Público, 13 de Março 2020).
*«Os Politécnicos de
Viseu e Leiria anunciaram este domingo, 22 de Março, que desenvolveram, no
espaço de uma semana e com apoio de uma rede, dois protótipos de ventiladores para tentar dar resposta à escassez
destes equipamentos, face à pandemia da covid-19. As duas instituições,
com a colaboração de uma rede de politécnicos de norte a sul do país e de
empresas, desenvolveram dois protótipos de ventiladores que poderão depois ser
fabricados em série, após um processo de licenciamento, afirmou hoje à agência
Lusa o presidente do Instituto Politécnico de Viseu (IPV), João Monney Paiva.
A ideia surgiu há uma semana e uma equipa de cerca de 15 a 20 pessoas dos dois
politécnicos começou a desenvolver dois protótipos de ventiladores de
emergência — um baseado na operação de um motor eléctrico e outro a funcionar
com base em ar comprimido pneumático —, explicou. Com base num modelo de acesso
livre disponibilizado pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), a
equipa, que contou sempre com o acompanhamento de médicos, terminou neste
sábado, por volta das 23h, os primeiros dois protótipos, estando ainda a ser
desenvolvido um terceiro sistema, referiu João Monney Paiva. «Pensámos
no que seria possível fazer para ajudar as pessoas. Esperemos que nada disto
seja necessário, mas, caso seja, que ajude a não passar por situações de falta
de recursos e de se ter que escolher em que doente se aplicam»,
vincou o presidente do IPV. Agora, a expectativa é que empresas se mostrem
interessadas em avançar com um processo de licenciamento junto do Infarmed e a
disponibilidade de fabricar os ventiladores em série, referiu. «Queremos
sensibilizar o Infarmed para que possibilite uma análise mais expedita e, se
virem que este equipamento é crítico, que façam uma avaliação mais rápida»,
salientou o responsável. Ao mesmo tempo, a equipa disponibilizou um email para empresas e
instituições poderem ajudar no projecto, seja na melhoria dos protótipos, seja
no fornecimento de componentes e equipamentos que serão necessários na sua
produção em série, como por exemplo células de oxigénio, disse. Segundo João
Monney Paiva, está já montada uma rede de politécnicos de Beja, Bragança,
Cávado e Ave, Guarda, Lisboa, Tomar e Viana do Castelo, disponíveis a
colaborar, nomeadamente com máquinas usadas em contexto de aulas ou de
investigação para apoiar na produção dos ventiladores». (Agência
Lusa/Público, 23 de Março 2020)
* «Uma nova
vida para os velhos ventiladores. A plataforma Vent2Life está a identificar e
recuperar ventiladores que não estão a ser utilizados nas mais diversas
instituições do país — públicas ou privadas, coletivas ou individuais, do
ensino à indústria — para equipar unidades de saúde e ajudar no tratamento de
doentes com o novo coronavírus. Esta plataforma, associada ao #ProjectOpenAir, estima que exista a possibilidade de recuperar 200
ventiladores, em diferentes locais do país, sendo que alguns até já foram
identificados e estão a ser analisados por especialistas que foram convidados a
participar no projeto através da Faculdade de Ciências e Tecnologia da NOVA, do
Instituto Superior de Engenharia do Porto e da Ordem dos Engenheiros
Portugueses. A ideia é que, através desta plataforma, seja criada a ligação
entre doadores de equipamentos, especialistas capazes de reabilitar o
equipamento e, por fim, as unidades de saúde que necessita de ventiladores. Ao
mesmo tempo, o Projecto Open Air, que surgiu nos Estados Unidos liderado
pelo investigador português João Nascimento, reúne especialistas de áreas muito
diversas, que vão da computação à medicina, para encontrar soluções rápidas
para esta crise que vivemos - sobretudo para a produção de novos ventiladores,
mas não só ». (Diário de Notícias, 29 de Março 2020)
Como sempre, um excelente trabalho de investigação, informação e explicação ao público de uma matéria sensível e técnica envolta em muita desinformação.
ResponderEliminarMuito esclarecedor. Muito obtigada.
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