Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

12 fevereiro, 2024

 Temas 2 e 3

Uma grande brecha no unanimismo narrativo sobre as guerras na Ucrânia

José Catarino Soares

Sumário: A entrevista feita por Tucker Carlson a Vladimir Putin em 6 de Fevereiro de 2024 produziu ondas de choque no sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado” [1],  que reagiu com fúria indisfarçada ao que considerou ser um desaforo intolerável de um jornalista independente. Explico as razões dessa reacção inusitada no texto que se segue.

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11.º artigo da série

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tantas ideias confusas sobre as guerras na Ucrânia!

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1.Introdução

A primeira emenda da Constituição dos EUA ‒ que é também uma das 10 emendas que constituem a “Declaração dos Direitos” integrada nessa Constituição em 15 de Dezembro de 1791 ‒ garante aos cidadãos desse país a liberdade de expressão e de imprensa (assim como a liberdade de associação, a liberdade de religião e o direito de petição).

Mas onde é que isso já vai! Para o actual sistema mediático dominante da comunicação social (SMDCS, para abreviar) desse país (ou seja, os jornais e revistas de grande circulação; os canais de televisão e as emissoras de rádio de grande audiência; as grandes agências noticiosas globais [Associated Press, Reuters]) ‒ e, na verdade, de todo o chamado “Ocidente alargado” ‒ esse artigo da Constituição americana é um anátema.

A semelhança desse sistema com o “Ministério da Verdade” da “Oceania” (a potência dominante do mundo aneutópico [2] imaginado por George Orwell no seu romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro) é assombrosa. Basta ver a reacção unânime que teve perante a entrevista de Tucker Carlson a Vladimir Putin. O jornal americano Politico (uma das centenas de órgãos mediáticos de comunicação social da multinacional Alex Springer SE, o maior potentado de comunicação social do mundo) publicou , em 9 de Fevereiro de 2024, uma notícia intitulada «Tucker Carlson faces media fury over Putin interview” [“Tucker Carlson enfrenta a fúria dos média por causa da sua entrevista a Putin”]. Nela, uma jornalista relata candidamente o modo como o SMDCS reagiu a essa entrevista: «A reacção tem sido apoplética». Isto, apesar de Tucker Carlson ser um nacionalista americano, conservador e republicano (na acepção americana destes termos). 

 
Kremlin, 6 de Fevereiro de 2024, Tucker Carlson entrevista Vladimir Putin. Foto: Tucker Carlson Network

2. A reacção tem sido apopléctica

Porquê? Por várias razões, que não posso aprofundar aqui para não tornar este texto demasiadamente extenso. Limitar-me-ei a apontar as duas principais e mais evidentes: 1) só nas primeiras 24 horas seguintes à sua publicação, a entrevista foi vista por 150 milhões de pessoas. Nos dias seguintes e com as traduções em várias línguas (incluindo o Chinês-Mandarim), este número subiu para muitas centenas de milhões de pessoas. George Galloway afirmou que se trata da entrevista mais vista de todos os tempos. 2) durante a entrevista, Putin disse várias coisas que essas pessoas puderam ouvir e que, no mínimo, as farão pensar. Por exemplo:

#2.1) que a guerra na Ucrânia não começou em Fevereiro de 2022, mas em Abril de 2014. Quem iniciou e continuou a guerra em Abril de 2014 não foi a Rússia, mas os sucessivos governos ucranianos saídos do golpe de Estado sangrento de Fevereiro de 2014 que derrubou inconstitucionalmente o presidente da Ucrânia livremente eleito, Viktor Yanukóvych. Foram eles que começaram uma guerra sem quartel contra as populações russas, russófonas e russófilas do leste e do sul da Ucrânia que se revoltaram contra a opressão e supressão dos seus direitos e interesses, a começar pelo direito básico de utilizarem a sua língua materna (a língua russa) em todos os contextos do espaço público (escolas, tribunais, hospitais, administração pública. autarquias locais, etc.) e semipúblico (cinemas, lojas, restaurantes, etc.)

#2.2) que os Acordos de Minsk (2014, 2015) ‒ celebrados entre a Ucrânia e as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk do leste da Ucrânia para resolverem, a contento de ambas as partes, o conflito armado que as opunha ‒ nunca foram cumpridos pelos presidentes da Ucrânia (Poroshenko e Zelensky); incumprimento que teve o apoio e a conivência da Alemanha e da França, seus mediadores e garantes por parte da Ucrânia. Por isso, a guerra da Ucrânia contra as populações dessas Repúblicas continuou durante os 7 anos seguintes.

#2.3) que a “Operação Militar Especial” da Rússia, iniciada em 24 de Fevereiro de 2022, teve como objectivos principais (i) defender essas populações dessa agressão e pôr-lhe fim; (ii) garantir-lhes o direito à autodeterminação (incluindo o direito à secessão); (iii) obter da Ucrânia a sua renúncia à intenção reiterada de aderir à OTAN e de instalar armas nucleares no seu território; (iv) e impor à Ucrânia a adopção de um estatuto de neutralidade militar semelhante ao da Áustria.

#2.4) que, em Março-Abril de 2023, a Rússia e a Ucrânia chegaram a um acordo sobre os pontos [2.3 (ii), (iii) e (iv)], mas que esse acordo foi desfeito pela oposição dos EUA, Reino Unido, Alemanha e França, arrastando atrás deles os demais Estados-membros da OTAN(/NATO). Foi Boris Johnson (à época primeiro-ministro do Reino Unido) quem se encarregou de ir a Kiev comunicar a Zelensky essa oposição e garantir a sua adesão ao objectivo de travar uma guerra contra a Rússia até ao último soldado ucraniano.

#2.5) que quem fez explodir os dois gasodutos NordStream 2 e danificou um dos dois gasodutos NordStream 1 ‒ a maior e mais traiçoeira agressão feita contra a Alemanha e os demais países europeus receptores de gás russo barato desde o fim da 2.ª guerra mundial ‒ foram os EUA.

Tudo isto é comprovável e foi comprovado (ver, por exemplo, o livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal [Editora Primeiro Capítulo, 2023], do qual sou autor) e os artigos publicados neste blogue da série “Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!”

O que foi afirmado em #2.2 foi, inclusive, confirmado de viva-voz por Poroshenko (17-6-2022; 21-11-2022), Angela Merkel (1-12-2022; 7-12-2022) e François Hollande (28-12-2022; 24-03-1023) em entrevistas que deram nas datas assinaladas entre parênteses.

O que foi afirmado em #2.3 (iii) e (iv) foi, inclusive, reconhecido de viva-voz pelo secretário-geral da OTAN (/NATO), Jens Stoltenberg, no seu discurso no Parlamento Europeu de 7 de Setembro de 2023. 

O que foi afirmado em #2.4 foi, inclusive, confirmado de viva-voz, em declarações públicas feitas por Naftali Bennett (ex-primeiro-ministro de Israel ) em 4 de Fevereiro de 2023; por Gerhard Schröeder (ex-chanceler da Alemanha) em 21 de Outubro de 2023; por Davyd Arakhamia (chefe do grupo parlamentar do partido “Servente do Povo” [o partido fundado por Zelensky]) em 24 de Novembro de 2023; por Oleksandr Chaliy (embaixador ucraniano) em 5 de Dezembro de 2023; por Oleksiy Arestovich (ex-conselheiro da presidência da República ucraniana) em 15 de Janeiro de 2024. Bennett e Schröeder participaram nas negociações de paz entre a Ucrânia e a Rússia que tiveram lugar em Istambul em Março-Abril de 2022 como mediadores, a pedido da Ucrânia. Os outros três homens mencionados foram, todos eles, membros da delegação de negociadores ucranianos nessas negociações.

O que foi afirmado em # 2.5, foi, inclusive, anunciado prévia e publicamente, de viva-voz, pela secretária de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros dos EUA, Victoria Nuland (em 27 de Janeiro de 2022), e pelo presidente dos EUA, Joe Biden (em 7 de Fevereiro de 2022).

3. Controlo de danos

Daí que, perante a impossibilidade de impedir que Putin, durante a entrevista, desse conhecimento destes factos directamente ao grande público do “Ocidente alargado”, o SMDCS tenha tido uma fúria incontrolável, que lhe provocou uma apoplexia. A única maneira que encontrou para controlar os danos à sua reputação provocados pela entrevista feita por Tucker Carlson a Putin, foi cerrar fileiras e repetir o mesmo mantra: “tudo o que Putin disse é mentira. A OTAN é a única maneira que temos para o impedir de conquistar a Ucrânia e, a seguir, invadir outros países da Europa. Não vejam a entrevista de Tucker Carlson, porque ele é um agente de Putin”.

A senhora Svetlana Chunikhina, vice-presidente da Associação de Psicólogos Políticos, sediada em Quieve, resumiu o pensamento comum a todos os defensores da continuação da guerra até ao último ucraniano:

«O maldito Tucker Carlson serviu muito bem de microfone para o louco maníaco que durante duas horas divagou sobre como gosta de matar ucranianos» (“Decoding Putin’s ‘obsessive ideas’ in the Tucker Carlson interview.” Aljazeera, 9-02-2024).

Para garantir que esta mensagem seja assimilada pelo grande público como uma verdade indiscutível, um “think-tank” americano, o “Renew Democracy Initiative”, descobriu até a receita ideal: poupar-nos a maçada de vermos a entrevista de Putin e tirarmos as nossas próprias conclusões, oferecendo-se ele para fazer isso por nós (“We Watched Tucker’s Putin Interview So You Don’t Have”, February 9, 2024).

4. Extremamente perigoso para quem?

Em suma, perante a grande brecha aberta, pela entrevista de Tucker Carlson a Vladimir Putin, no muro do unanimismo narrativo sobre as guerras na Ucrânia, todos os órgãos do sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado” procuram agora, o melhor que podem, seguir o exemplo de um dos seus maiores, o Sinclair Broadcast Group — um grupo de magnatas americanos que são donos de 294 estações de televisão nos EUA.

Em 2018, este bastião da oligarquia televisiva ordenou aos seus apresentadores que repetissem a mesma mensagem à exaustão: «isto é extremamente perigoso para a nossa democracia» (ver vídeo) — entenda-se, «isto é extremamente perigoso para a nossa oligocracia». Pois é. Nesse ponto estamos de acordo.


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[1] Ocidente alargado é uma expressão cara a Zbigniew Brzezinski (um dos mais cínicos ideólogos da supremacia dos EUA sobre todos os outros países do mundo) que a empregava para designar o conjunto formado pelos EUA e os seus aliados na América do Norte, Europa, Ásia e Australásia. 

[2] Eutopia (do Grego , «bem; bom» + tópos, «lugar»+ -ia, «qualidade») é um lugar onde se desenvolve uma sociedade bem organizada e atractiva em todos os aspectos. Aneutopia (que acrescenta o prefixo grego a(n), «privação, negação, afastamento») é o antónimo de eutopia: um lugar onde se desenvolve uma sociedade mal organizada e repulsiva  em todos os aspectos, 

1 comentário:

  1. Infelizmente, ninguém quer saber da verdade. Quase todos (porque quem se interessa pela verdade faz parte do "todos") querem por algumas razões estranhas, entre elas a preguiça de pensar e o medo de ser diferente das massas, manter o pensamento da maioria. Obrigada por manter um relato histórico dos acontecimentos. A quem interessar ver um excerto de uma conferência de imprensa da Secretária de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros dos EUA, Victoria Nuland, https://www.facebook.com/watch/?v=1089360115236518

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Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana