Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

24 fevereiro, 2024

 Temas 2 e 3

O alarido internacional sobre a morte de

Alexei Navalny: cui bono?

José Catarino Soares

 

1.Introdução

No momento em que escrevo (24-02-2024), o corpo de Alexei Navalny já foi entregue à mãe, Lyudmila Navalnaya, dois dias depois de ser conhecido o resultado da autópsia que o Serviço Prisional russo mandou fazer ao cadáver de Alexei Navalny [1].

«Segundo Lyudmila Navalnaya, as autoridades já apuraram a causa da morte e “todos os documentos legais e médicos estão prontos”, tendo a equipa do opositor do Kremlin (presidência russa) referido que a causa da morte está descrita como “natural”» («Navalny morreu de “causas naturais”, revela certidão de óbito», Jornal de Notícias, 22 de Fevereiro de 2024).

Haverá sempre quem duvide desta conclusão, porque a Rússia é o saco de pancada favorito do “Ocidente alargado” e do seu sistema mediático de comunicação social, por razões fáceis de entender [2].

Mais interessante e importante é o facto de ser já possível responder com propriedade à pergunta obrigatória em todas as investigações de acontecimentos em que haja acusações ou suspeitas (fundadas ou infundadas) de intervenção de mão criminosa:  “cui bono?” [quem beneficia?]. Cui bono com o alarido sobre a morte de Alexei Navalny? 

São dois os principais beneficiários.

2. O primeiro beneficiário

O primeiro beneficiário é a oligarquia dirigente do “Ocidente alargado” (em particular do seu cerne, os EUA e a UE) que montou uma gigantesca campanha de desinformação destinada a (i) apresentar Navalny ‒ um advogado corrupto e neonazi a soldo da CIA e do MI6 [3] ‒ como um mártir da liberdade e da democracia e (ii) denegrir o seu putativo assassino: o presidente russo Vladimir Putin — um “filho da puta maluco” [«crazy son of a bitch»], como lhe chamou esse prodígio de inteligência, eloquência, honestidade, compaixão e boa educação que dá pelo nome de Joe Biden, qualidades bem demonstradas na ex-Jugoslávia, no Iraque, na Ucrânia e em Gaza. 

O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia demonstrou estes dois pontos magistralmente ao fazer a cronologia das reacções dos governos do “Ocidente alargado” que começaram a cair, em catadupa e em uníssono, apenas 15 minutos depois (!!) do comunicado que o Serviço Prisional russo do distrito autónomo de Iamalo-Nénétsie (no Árctico) publicou no seu sítio electrónico anunciando a morte de Navalny. Como se esses governos estivessem todos a seguir atentamente, 24 horas sobre 24, tudo o que diz esse obscuro sítio electrónico e a aguardar ansiosamente pelas palpitantes notícias que ele tem para dar ao mundo acerca dos reclusos sob a sua guarda…

Vale a pena citar na íntegra essa cronologia que encontrei no sítio electrónico da Embaixada da Rússia em França, depois de ter sido alertado para a sua existência por meio de um vídeo de François Asselineau: “À qui profite la mort de Alexei Navalny?”, cuja hiperligação é a seguinte:

https://www.youtube.com/watch?v=yNwsZdE2mow&t=733s

Eis o comunicado da embaixada russa em França:

«A reacção dos dirigentes ocidentais, dos políticos e dos meios de comunicação social à notícia da morte de Alexei Navalny pôs mais uma vez em evidência a sua hipocrisia, o seu cinismo e a sua falta de princípios. O padrão “seja qual for a situação, culpar a Rússia” está em modo de acção. Além disso, está reservado um cenário pronto para cada caso.

Vejamos a cronologia:

Hoje, 16 de fevereiro, por volta das 14h19, uma mensagem sobre a morte de Alexei Navalny na colónia prisional n.º 3 foi publicada no sítio Web do serviço prisional russo no Okrug Autónomo de Yamalo-Nenets.

Apenas 15 minutos depois, surgiu uma avalanche de acusações:

14h35: O Ministro dos Negócios Estrangeiros sueco, Tobias Billström: “Notícias terríveis sobre Navalny. Se a informação sobre a sua morte numa prisão russa se confirmar, será mais um crime monstruoso do regime de Putin”.

14h35: O Ministro dos Negócios Estrangeiros norueguês, Borge Brende: “Profundamente triste com a notícia da morte de Navalny. O governo russo tem uma grande responsabilidade por este facto”.

14h41: O Ministro dos Negócios Estrangeiros da Letónia, Edgars Rinkevics: “Independentemente do que pensem de Navalny enquanto político, ele acaba de ser brutalmente assassinado pelo Kremlin. Isto é um facto e algo que todos deveriam saber sobre a verdadeira natureza do atual regime russo”.

14h50: Jan Lipavsky, Ministro dos Negócios Estrangeiros da República Checa: “A Rússia trata as questões de política externa da mesma forma que trata os seus cidadãos. Tornou-se um Estado cruel que mata aqueles que sonham com um futuro melhor e mais bonito, como Nemtsov e agora Navalny, que foi preso e torturado até à morte”.

14h51: Stéphane Séjourné, Ministro dos Negócios Estrangeiros francês: “Navalny pagou com a vida a sua resistência a um sistema de opressão. A sua morte numa colónia penal recorda-nos a realidade do regime de Vladimir Putin”.

15h02: O Presidente do Conselho Europeu, Charles Michel: “A UE considera o regime russo o único responsável por esta morte trágica”;

15h10: (em conferência de imprensa), Vladimir Zelenski, chefe do regime de Kiev: “É óbvio que ele foi morto por Putin, como milhares de outras pessoas torturadas”.

15h16: (nos meios de comunicação social), 16h50 (nas redes sociais):  Secretário-Geral da OTAN [/NATO], Jens Stoltenberg: “A Rússia tem de apurar todos os factos, responder a questões muito sérias”.

15h20: O Primeiro-ministro holandês, Mark Rutte: “A morte de Navalny ilustra a brutalidade sem precedentes do regime russo”.

15h30: O Presidente da Moldávia, Maia Sandu: “A morte de Navalny numa prisão russa é um lembrete da opressão flagrante do regime contra a dissidência”.

15h35: A Ministra alemã dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock: “Navalny, mais do que qualquer outra pessoa, era o símbolo de uma Rússia livre e democrática. É por isso que ele tinha de morrer”.

15h43:  A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen: “Uma lembrança sombria do que Putin e o seu regime representam”.

15h49: O Primeiro-ministro sueco Ulf Kristersson: “As autoridades russas e o Presidente Putin são pessoalmente responsáveis pelo facto de Navalny já não estar entre nós”.

16h14: O Chanceler alemão Olaf Scholz: “Navalny pagou a sua coragem com a sua vida. Esta terrível notícia mostra mais uma vez como a Rússia mudou e que tipo de regime está no poder em Moscovo”.

16h25: O Ministro dos Negócios Estrangeiros dos EUA, Antony Blinken: “A morte de Navalny numa prisão russa e a obsessão e o medo de um homem apenas realçam a fraqueza e a corrupção no coração do sistema construído por Putin. A Rússia é responsável por isso”.

17h28:  O Presidente francês, Emmanuel Macron: “Na Rússia de hoje, os espíritos livres são colocados no gulag e condenados à morte”.

No espaço de duas horas (a partir das 14h19), os políticos ocidentais e os seus lacaios mediáticos conseguiram ‒ como se tivessem os resultados de um exame médico que ainda não tinha sido realizado ‒ investigar, acusar Moscovo e chegar a um veredicto.

Não há outra explicação senão a de que todas estas reacções foram preparadas com antecedência. Poderíamos ainda acreditar nesta incrível rapidez se o mundo inteiro não tivesse assistido durante muitos meses a uma investigação impotente sobre os ataques ao gasoduto Nord Stream que chegou ao fim sem quaisquer resultados.

Todas estas declarações se caracterizam pela ausência total do mais pequeno indício da necessidade de esperar pelos resultados da peritagem médica e de conduzir uma investigação».

Prosseguindo na mesma senda, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português convidou, no dia 21 de Fevereiro de 2024, o embaixador russo em Lisboa, Mikhail Kamynin, a prestar esclarecimentos sobre a morte de Alexei Navalny — uma decisão também tomada por outras capitais europeias, como Paris, Madrid, Berlim, Estocolmo, Varsóvia, Bruxelas, Haia e Oslo. João Gomes Cravinho, o ministro dos Negócios Estrangeiros português, declarou a este propósito:

«“Infelizmente a resposta do lado russo foi uma resposta perfeitamente insuficiente”, frisou o ministro. Gomes Cravinho foi mais longe e afirmou que “a resposta foi nula” e que o embaixador russo “considera que a grande preocupação internacional não passa de ingerência em assuntos internos”. “Como se a morte do principal opositor de Putin fosse um assunto de importância menor”» (JN, 22-02-2024).

Convém começar por esclarecer que Navalny só foi o “principal opositor de Putin” na imaginação fértil de João Gomes Cravinho. Uma sondagem efectuada pelo Centro Levada de Moscovo, em 14 de Março de 2022 ‒ a última sondagem que foi feita sobre a sua popularidade e notoriedade antes da sua morte ‒ mostrou que 14% dos Russos aprovavam as actividades de Navalny, 60 % desaprovavam-nas e 10% nunca tinham ouvido falar dele [4]. 

Quanto à resposta que o embaixador russo deu foi tudo menos nula:

«A 21 de fevereiro de 2024, o Embaixador da Rússia em Portugal, Mikhail Kamynin, foi convidado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal.

A Subdiretora-Geral de Política Externa, Indira Noronha, informou o chefe da missão diplomática russa sobre a posição crítica bem conhecida do Ocidente coletivo, partilhada plenamente por Lisboa, em relação à recente morte de Aleksei Navalny.

Por sua parte, Mikhail Kamynin deu a conhecer à interlocutora o seu comentário de 16 de fevereiro de 2024. Destacou ainda que se trata de uma questão puramente interna da Rússia, na qual a interferência externa é inaceitável. Assinalou que as circunstâncias e a causa da morte da pessoa em causa estão a ser investigadas de acordo com as normas legislativas e os procedimentos em vigor no nosso país. Indicou uma vez mais que são inadmissíveis quaisquer avaliações ou declarações, sobretudo politizadas, antes de resultados oficiais serem anunciados»  («Sobre o encontro do Embaixador da Rússia no MNE de Portugal». 22 de Fevereiro de 2024. Sítio electrónico da Embaixada da Rússia em Portugal). 

Assim sendo, não admira que o ministro J.G. Cravinho tenha ficado muito desagradado com esta resposta — ele que comparou a morte do general Humberto Delgado, um antifascista assassinado pela PIDE, com a morte na prisão, por causas naturais, de Alexei Navalny, um neonazi que incitava a assassinar os seus compatriotas muçulmanos (!!), Chechenos e de outras etnias da Federação Russa.  

Em suma, o primeiro beneficiário da morte de Navalny foi a oligarquia dirigente da UE e dos EUA que aproveitou esse acontecimento para encenar uma gigantesca campanha de desinformação (reminiscente dos “Dois Minutos de Ódio” no romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell) destinada a diabolizar, uma vez mais, Putin, o seu ódio de estimação, e a servir de pretexto para infligir mais um pacote de sanções à Rússia. São mais de 500 novas sanções por parte dos EUA e 194 sanções por parte da UE.  O pacote de sanções da UE, o 13.º, recebeu até o nome de pacote Navalny” (!), um nome que diz tudo sobre a sua natureza política.  

3. O segundo beneficiário

O segundo beneficiário do alarido internacional sobre a morte de Alexei Navalny é a sua viúva, Yulia Navalnaya. Em 16 de Fevereiro de 2024, no próprio dia da morte do marido (!!), já esta senhora jurava perante a Conferência de Segurança de Munique (?!):

«“Quero que Putin e todos os que o rodeiam... os amigos de Putin, o seu governo [saibam] que eles terão de pagar pelo que fizeram ao nosso país, à minha família e ao meu marido. E esse dia chegará muito em breve, declarou”, acrescentando que “Vladimir Putin deve ser responsabilizado por todos os horrores que estão a fazer ao meu país, ao nosso país, à Rússia» (Hindoustan Times, February 17, 2024).  

16 de Fevereiro de 2024, dia da morte de Alexei Navalny. Com um sorriso nos lábios, a sua viúva posa antes de discursar sobre a morte do marido perante a Conferência de Segurança de Munique, como se fosse um assunto da mais alta importância para a segurança internacional…

Como se esperaria, foi muito aplaudida pela plateia, onde se encontravam Antony Blinken, Kamala Harris e tantos outros altos dignitários do “Ocidente alargado” que apoiaram as suas palavras. Uma vez mais, não podemos deixar de admirar a rapidez de actuação e a impecável sincronização de movimentos deste selecto grupo do jet set internacional.

Na segunda-feira, dia 20 de Fevereiro, a senhora Yulia Navalnaya fez um vídeo em que

«acusou Vladimir Putin de ter matado o seu marido. Navalnaya disse que as autoridades russas estão a esconder o cadáver do opositor porque estão à espera que os vestígios de veneno [Novichok] desapareçam completamente do corpo. Embora não tenha fornecido provas sobre estas acusações, garantiu que a sua equipa publicaria detalhes sobre quem matou o seu marido em breve /…/ Na mensagem em vídeo, a viúva de Navalny disse que, no futuro, a única resposta será continuar a luta do seu marido por uma Rússia livre e próspera, afirmando que os russos “querem viver de forma diferente, mesmo que pareça haver pouca esperança”. “Ao matar Alexei, Putin matou metade de mim, metade do meu coração e metade da minha alma. Mas ainda tenho a outra metade, e ela diz-me que não tenho o direito de desistir. Vou continuar o trabalho de Alexei Navalny, continuar a lutar pelo nosso país”» (Público, 20 de Fevereiro de 2024).

«“A principal coisa que podemos fazer por Alexei e por nós é continuar a lutar, mais ferozmente do que nunca, com toda a raiva, ira e ódio contra aqueles que se atreveram a matar o nosso futuro”, afirmou Yulia Navalnaya, numa mensagem em vídeo que foi divulgada pouco antes de entrar no edifício Europa para reuniões consecutivas com o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, e com o alto representante para a Política Externa e de Segurança da União Europeia, Josep Borrell, e os 27 ministros dos Negócios Estrangeiros do bloco (Público,19 de Fevereiro de 2024)»

19-02-2024. Yulia Navalnaya, a viúva de Alexei Navalny, com Josep Borrell em Bruxelas. Foto: Alessandro di Meo/EPA.


Em resumo, a viúva de Navalny apresenta-se como a continuadora da actividade política do seu marido ‒ um neonazi patenteado [5] ‒ e já foi oficialmente reconhecida nesse papel pela UE e pelos EUA.  

22 de Fevereiro de 2024. Casa Branca. Biden abraça a viúva de Navalny. Foto: Reuters. White House handout.
 

4. A mãe de Navalny

Nesta comédia dos enganos, a única pessoa que verdadeiramente lamenta a morte trágica de Alexei Navalny é a sua mãe, Lyudmila Navalnaya. Esta senhora não acredita nos arroubos sentimentais de Yulia Navalnaya em relação ao seu defunto marido (“ao matar Alexei, Putin matou metade de mim, metade do meu coração e metade da minha alma”).

Num depoimento recente, gravado em 22 de Fevereiro de 2023, a mãe de Navalny disse em substância o seguinte:

 ―A viúva de Navalny não o visitava há 2 anos, apesar de não ter nenhum impedimento legal para entrar e viajar na Rússia;

― Foi ela que o convenceu a voltar para a Rússia [em Janeiro de 2021, sabendo que seria inevitavelmente detido e preso por ter violado repetidamente o estatuto da sua liberdade condicional, n.e.]; [n.e. = nota editorial]

Foi ela que o obrigou a pôr todos os seus bens em nome dela;

― Yulia Navalnya já não era, na prática, casada com Navalny desde a Primavera de 2021 e aparecia em público com outros homens;

― Não teve sequer a decência de fazer uma pausa para observar o luto, mas correu imediatamente a fazer negócio com a morte do marido;

― É estranho vê-la a discursar com um sorriso nos lábios na Conferência de Munique poucas horas depois da morte do marido;

Lyudmila Navalnaya, mãe de Alexei Navalny. Foto: Alexey Navalny YouTube (via Reuters)

― Yulia Navalnya é um ser baixo e mesquinho que Lyudmila Navalnaya despreza e a quem proíbe de utilizar o nome do seu filho.

O depoimento da mãe de Navalny (com legendas em Inglês) pode ser escutado aqui:

https://x.com/MyLordBebo/status/1760689047490724042?s=20

Presumo que o depoimento seja autêntico, mas não tenho os meios de o garantir. ………………………………………………………………………………………………………………...........

Notas e Referências

[1] O Serviço Prisional russo afirmou que ia fazer uma autópsia a Navalny antes de entregar o seu corpo aos seus familiares. Isso seria feito no prazo de 14 dias (“Corpo de Navalny só deve ser entregue à família daqui a 14 dias”. Público. 20 de Fevereiro de 2024).  Navalny morreu em 16 de Fevereiro. Por conseguinte, o corpo foi entregue seis dias antes do prazo. Em 22 de Fevereiro, a mãe de Navalny, depois de já ter visto o corpo do filho na morgue e ter assinado a respectiva certidão de óbito, afirmou estar a sofrer pressões para aceitar que o funeral de Navalny seja privado, sem qualquer cerimónia fúnebre (https://pt.euronews.com/2024/02/22/mae-de-navalny-ja-viu-o-corpo-do-filho-e-denuncia-pressoes-para-aceitar-um-funeral-privado). Julgo que por “cerimónia fúnebre” se deverá entender “cerimónia religiosa”. Se assim for, não creio que as autoridades policiais russas proíbam a realização de um funeral religioso, apesar de temerem, presumo, que o funeral de Navalny se transforme numa espécie de ajuntamento anti-Putin. Mas aguardemos para ver o que realmente se vai passar. 

[2] É sabido que a elite dirigente dos EUA elegeu a Rússia como o seu arqui-inimigo (e Putin como a sua Némesis) a partir do momento em que se convenceu definitivamente que não poderia continuar a metê-la no bolso, como tinha sido capaz de o fazer durante o consulado de Boris Ieltsin. A viragem para essa nova orientação estratégica perante a Rússia ocorreu depois do famoso discurso que o presidente russo, Vladimir Putin, proferiu na Alemanha, em 10 de Fevereiro de 2007, na Conferência de Segurança de Munique. Nesse discurso, Putin denunciou o que chamou de “domínio unipolar dos Estados Unidos” nas relações internacionais e o seu «hiperuso quase incontido da força ‒ a força militar ‒nas relações internacionais, uma força que está a mergulhar o mundo num abismo de conflitos permanentes». E afirmou que, como resultado de tal domínio unipolar e da expansão da OTAN para o leste da Europa, «ninguém se sente seguro! Porque ninguém pode sentir que o direito internacional é como um muro de pedra que os protegerá. É claro que tal política estimula uma corrida armamentista»  e a guerra, acrescento eu. Como Putin continua a ser presidente da Rússia 17 anos depois, o seu nome tornou-se sinónimo de tudo o que a oligarquia dirigente dos EUA encara como um execrável e inaceitável desafio às suas pretensões de chefe supremo da ordem internacional. Daí a sua diabolização e achincalhamento pelo sistema mediático dominante da comunicação social do “Ocidente alargado” e a russofobia cretinizante que grassa em tantos países desse mesmo “Ocidente”.

[3] Cf. José Catarino Soares, «As lágrimas de crocodilo da “Ocidente alargado” por Alexei Navalny.» In Tertúlia Orwelliana [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2024/02/as-lagrimas-de-crocodilo-dos.html] e Estátua de Sal [https://estatuadesal. com/2024/02/20/as-lagrimas-de-crocodilo-dos-dignitarios-do-ocidente-alargado-por-alexei-navalny/]; Carlos Branco, «O estranho caso do dr. e do sr. Navalny». Estátua de Sal [https://estatuadesal.com/2024/02/22/o-estranho-caso-do-dr-e-do-sr-navalny/]

[4] The Case of Alexey Navalny”. Levada Center, 16-03-2022. O Levada Center de Moscovo não pode ser considerado como estando ao serviço da propaganda russa. Muito pelo contrário, é uma agência de sondagens e estudos de opinião incluída no registo público das organizações que o Ministério da Justiça russo considera, à luz de uma lei de 2012, que “actuam como agentes estrangeiros”.

[5] Ver as referências indicadas na nota [3].  

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P.S.(2-03-2024)  O funeral de Navalny


Tal como eu tinha previsto (cf. nota [1], supra), o funeral de Alexei Navalvny teve lugar sem incidentes nem repressão policial. Para grande desgosto de alguns, que ansiavam por cargas policiais e, se possível, derramamento de sangue, há apenas a registar e a lamentar duas detenções [1].

«Apesar do forte dispositivo de segurança, tudo decorreu de forma pacífica. /…/ Havia um receio de que o funeral pudesse ser fortemente reprimido pela polícia russa. No entanto, as forças de segurança mantiveram [-se à] distância dos participantes no funeral» [2].

 A cerimónia religiosa do funeral, realizou-se na igreja do Ícone de Nossa Senhora Apaziguadora da Minha Mágoa, em Maryino, um bairro de Moscovo, no dia 1 de Março de 2024, com a presença dos pais de Navalny, Anataloiy e Lyudmila. Esta é a igreja do bairro onde Navalny viveu antes do seu alegado “envenenamento” com Novichok em 2020, do tratamento médico que as autoridades russas o autorizarem a ter na Alemanha e da detenção no seu regresso à Rússia, em Janeiro de 2021 [3].

Igreja do Ícone de Nossa Senhora Apaziguadora da Minha Mágoa, em Maryino. Moscovo. 1 de Março de 2024. Funeral de Alexei Navalny. Foto: Contributor.

Centenas de apoiantes de Navalny (segundo algumas fontes ocidentais) ou milhares (segundo outras) formaram longas filas junto à igreja em Moscovo antes do seu funeral. Quando o cortejo fúnebre chegou à igreja, a multidão gritou o nome de Navalny. Também se ouviram outras palavras de ordem: “Nunca esqueceremos”, “A Rússia será livre”, “Não à guerra”, “Rússia sem Putin”, “Tu não tinhas medo e nós também não!”.

«Outros, de acordo com a Reuters, chamaram “assassino” ao Presidente russo. Algumas pessoas entoaram “Georyam slava”, que é a frase usada pelos ucranianos para se referirem aos seus heróis que morreram» (Expresso, 1 de Março 2024)

Após uma curta cerimónia na igreja, o caixão do defunto foi levado em cortejo até ao Cemitério de Boriskovskoie, nos arredores da capital, onde foi enterrrado. Os embaixadores de vários países ocidentais, nomeadamente dos Estados Unidos, da Alemanha e da França, estiveram presentes na cerimónia fúnebre de Navalny, mas não a viúva, Yulia, e os filhos, Zakhar e Sash, que vivem fora da Rússia e não regressaram à Rússia para o funeral (cf. «“Não vamos esquecer”. Milhares de pessoas no funeral de Navalny em Moscovo». Euronews com AP, 01-03-2024).

O alto representante de política externa da UE, Josep Borrell (que se imortalizou com a frase “A Europa é um jardim/…/ e a maioria do resto do mundo é uma selva, e a selva pode invadir o jardim. Os jardineiros devem cuidar dele”) escreveu com a sua habitual verve:

«A UE expressa as suas condolências à família e amigos de Alexei Navalny. O embaixador da UE e outros diplomatas estão a prestar as suas homenagens. As crenças de Navalny não desaparecerão, as ideias não podem ser torturadas, envenenadas ou mortas. Navalny continua a ser uma inspiração para muitos, na Rússia e em outros lugares.»

Estamos conversados. Quem quiser saber quais eram as crenças do jardineiro Alexei Navalny a que Borrell se refere e que o inspiram, e quais são as crenças de sua viúva, a jardineira Yulia Navalny, que prometeu continuar a actividade política do seu marido e a quem Borrell prometeu apoiar, pode consultar o artigo As lágrimas de crocodilo dos dignitários do “Ocidente alargado” por Alexei Navalny, neste blogue, aqui:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2024/02/as-lagrimas-de-crocodilo-dos.html

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Notas

[1] Foram detidas duas pessoas em Moscovo durante e após o funeral, segundo a BBC News. Segundo esta mesma fonte, houve também detenções em Ekaterinburg e Novosibirsk. Desconhece-se o motivo dessas detenções. (“Pelo menos duas pessoas detidas no funeral de Navalny”. Renascença, 1 de Março 2024).

[2] João Ruela Ribeiro, «“A Rússia será livre!” Milhares despediram-se de Navalny em desafio ao Kremlin». Público, 1 de Março de 2024.

[3] Quem se interessar por este alegado “envenenamento” de Navalny com Novichok ‒ uma história rocambolesca,  digna do agente 007 dos romances de espionagem de Ian Fleming, mas onde Putin é o mau da fita em vez do Goldfinger ou outro qualquer vilão saído da imaginação do romancista ‒ poderá ler com proveito a sóbria análise desmistificadora do coronel Jacques Baud em L’Affair Navalny: le complotisme au service de la politique étrangère (Éditions Max Milo, Paris, 2021).

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