Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

14 dezembro, 2024

 Temas 2 e 3

 “Rebranding” de um assassino veterano do Estado Islâmico e da Alcaida [al-Qaeda] num impoluto combatente pela liberdade e num estadista tolerante e moderado


José Catarino Soares

 

Está em curso uma das mais vastas e sofisticadas operações de reformulação de marca (Ingl. “rebranding”) iniciada pelos altos-comandos (Ingl. “commanding heights”) do “Ocidente alargado” no século XXI.

A primeira consistiu em transformar um obscuro comediante ucraniano, Volodymyr Zelensky desconhecido do público ocidental, mas famoso no seu país pelas suas actuações provocantes (como, por exemplo, as de tocar piano com o pénis ou saracotear-se vestido de mulher e de sapatos altos) e, mais tarde, por uma telenovela onde fazia o papel de um bem-sucedido candidato presidencial num candidato presidencial vitorioso. Mas esta primeira operação de “rebranding” foi feita apenas com prata da casa: a bem nutrida conta bancária e as seis estações de televisão do magnata mafioso, Ihor Kolomoysky, um dos mais poderosos oligarcas da Ucrânia, à época.

A segunda operação de “rebranding” foi feita com meios e numa escala sem precedentes, já que envolveu o sistema mediático dominante e oligarquizado de comunicação social do “Ocidente alargado” — jornais e revistas mundanas de grande circulação; redes de televisão e emissoras de rádio de grande audiência; agências noticiosas globais [AP, AFP, Reuters, EFE]; agências globais de comunicação estratégica, estatais [e.g., Office of Public Affairs da CIA, Office of Corporate Communications da Defense Intelligence Agency], interestatais [e.g., NATO Communications and Information Organization (NCIO)], criptoestatais [e.g., National Endowment for Democracy] e não-estatais [e.g., Bellingcat, Edelman, Weber Shandwick, Ketchum, FleishmanHillard, Burson].

Tratou-se de transformar, aos olhos do público ocidental, Zelensky, o presidente de um regime banderista, russofóbico e liberticida, saído do golpe de Estado sangrento de 22 de Fevereiro de 2014, em Quieve (e, por conseguinte, um regime ilegal e ilegítimo desde a primeira hora), num novo Churchill em luta pelos valores da liberdade e da democracia.

A terceira operação de “rebranding” é a mais ambiciosa de todas. Trata-se de transformar, aos olhos do público, Abu Mohammed al-Julani (aliás, Ahmed Hussein al-Shara, o seu verdadeiro nome), o indivíduo que aparece na foto abaixo um veterano assassino da Alcaida e do Estado Islâmico, com um cadastro de atrocidades e crimes de guerra de fazer inveja a Netanyahu num impoluto combatente pela liberdade e num estadista tolerante e moderado.


Este cartaz data de 2018 e foi divulgado pelo “Rewards for Justice”, o principal programa de prémios e recompensas de segurança nacional do Departamento de Estado [equivalente a Ministério dos Negócios Estrangeiros] dos EUA.


Convém, por isso, estar preparado para não ser arrastado pela verdadeira enxurrada de notícias fraudulentas (Ingl. “fake news”) desta operação de “rebranding” que entra todos os dias em nossas casas através dos aparelhos de televisão e de rádio, nem ficar sequer enlameado e conspurcado com os seus salpicos.  

Pela parte que me toca, procurarei divulgar aqui e noutros espaços públicos a que tenho acesso informações e análises que nos permitem manter a lucidez e o espírito crítico  perante tanto embuste e perfídia.

..............................................................................................................................

P.S.(1) [15-12-2024] 


A ominosa penitenciária de Sednaya

tem o pedigree da CIA

José Catarino Soares

 

Uma das correntes mais fortes da enxurrada de notícias fraudulentas associadas ao “rebranding” de Abu Mohammed al-Julani e dos seus jihadistas da HTS,  é a que consiste em apresentar o regime derrubado de Bashar al-Assad como o regime mais cruel e sanguinário que existiu ao cimo do planeta, relativamente ao qual até os assassinos e terroristas encartados do Estado Islâmico e da Alcaida, ao estilo de al-Julani, parecem mansos cordeiros, cuja tomada de poder em Damasco deveria, por conseguinte, ser saudada como um “mal menor” ou, até, como uma auspiciosa «nova oportunidade de liberdade e paz para todo o povo sírio» (António Costa, Presidente do Conselho Europeu).

Foi assim que, em 9 de Dezembro de 2024, intoxicados com a sua própria desinformação, centenas de militantes e simpatizantes da organização pró-turca denominada Defesa Civil Síria, mais conhecida como Capacetes Brancos, se precipitaram para a prisão de Sednaya, em Damasco, apetrechados de martelos pneumáticos, brocas, varas metálicas  e retroescavadoras. Objectivo?  Procurar e libertar as dezenas de milhares de presos políticos que acreditavam jazerem nas masmorras secretas subterrâneas de Sednaya. Ao fim de 4 dias de buscas, ficaram muito desapontados, porque não encontraram nada do que esperavam: nem presos nem masmorras secretas subterrâneas.

Mas não havia razões objectivas para o desapontamento. Desde o dia 28 de Novembro de 2024 que a Associação de Detidos e Pessoas Desaparecidas de Sednaya (ADPDS), uma ONG turca, tinha obtido do governo de Bashar al-Assad uma informação oficial sobre o número de presos em Sednaya: (4300), dos quais 230 acusados de terrorismo — os únicos que poderiam ser qualificados de “presos políticos”, se admitirmos que o terrorismo é uma forma legítima de luta política (que não é o meu caso). O director da ADPDS, Diab Serria, também já tinha informado em diversas ocasiões que não havia masmorras subterrâneas secretas em Sednaya e que todos os presos tinham sido soltos na manhã do dia 8 de Dezembro.

……………………………………………………………………………

4300 detainees in Sednaya prison

The Association of Detainees and Missing Persons of Sednaya Prison (ADMSP) obtained an official document indicating that the number of prisoners, as of November 28, 2024, had reached 4300 individuals.

According to the document, which Enab Baladi obtained a copy of through the Association, the daily inspection recorded 4300 prisoners distributed as follows:

  • Military field court: 1231 prisoners, one of whom was referred to the hospital.
  • Terrorism court: 252 prisoners.
  • Judicial court (misdemeanors and criminal charges involving a military party): 2817 prisoners, three of whom were referred to the hospital.
  • Desertion trials: No prisoners.

The statistics recorded on this date indicate no cases of death.

The director of the association, Diab Serriya, confirmed in a video recording that there are no secret basements in Sednaya prison on multiple occasions, and clarified that all detainees were removed from the prison on the morning of Sunday, December 8 (Enab Baladi, 11-12-2024).

…………………………………………………………………………………………….

Tudo em vão. A “nuvem de gafanhotos” (HTS e apaniguados) que, com a ajuda indispensável dos  predadores de grande porte (EUA, Turquia, Israel)caiu sobre a República Árabe Síria para a desapossar definitivamente das suas riquezas (petróleo, gás natural, trigo, etc.) e substituir o seu regime laico por um regime teocrático islamita baseado na Sharia [“lei islâmica”], dirigiu-se à Sednaya como que atraída por um imã irresistível: a mentira de que nela jaziam dezenas de milhares de inimigos de Bashar al-Assad.


O poeta António Aleixo alertou-nos, porém, para uma constante: «P’ra mentira ser segura/e atingir profundidade, / tem de trazer à mistura/qualquer coisa de verdade»

No caso em apreço, a “qualquer coisa de verdade” na ideia de uma  Sednaya a abarrotar de presos políticos sujeitos às piores torturas é, antes de mais, o uso que  fez  do aparelho prisional sírio a CIA, essa bem conhecida e inveterada guardiã dos valores da “liberdade” e “democracia” made in USA. De facto, as cadeias sírias acolheram, no início deste século, muitos prisioneiros (não sabemos ao certo quantos), ali chegados por via da CIA, no quadro da chamada Guerra contra o Terror. 

«Os EUA pediram então ao regime sírio que recebesse levas de presos jihadistas e que ali fossem submetidos a interrogatório e posterior detenção. Nesses anos de guerra e tortura em que Guantánamo, a base aérea de Bagram, Abu Ghraib e outros black sites se tornaram conhecidos pela brutalidade do tratamento conferido a milhares de prisioneiros, a maioria ali chegada sem culpa formada, não me parece que no Ocidente as consciências se questionassem sobre as brutalidades cometidas.

Penitenciária de Sednaya, situada a cerca de 30 km a Norte de Damasco.  

Agora que as portas de Sednaya se abriram, ao invés das dezenas de milhares que ali se dizia vegetarem, o número de presos políticos ‒ ou antes, de terroristas ‒ ali encontrados resume-se a 252. Incomodados pelo fracasso da acção de propaganda, centenas de homens dedicaram os primeiros dias a escavar o solo e as paredes em busca de um mítico dédalo subterrâneo de celas. Não havia celas subterrâneas, pelo que se transformou a visita a Sednaya em motivo para depoimentos de ex-detidos e seus familiares. Com o improviso, muitos destes depoimentos são manifestamente destituídos de credibilidade, como o deste rapazinho de 10 anos que acaba por confessar que não vê o pai…. há 14 anos» [!] (Miguel Castelo Branco, Facebook, 13-12-2024). O vídeo com a mentirola do rapazinho pode ser visto aqui :

https://www.youtube.com/shorts/DDLjzYdan6s

...........................................................................................................................................................

P.S.(2) [17-12-2024] 


A CNN ESCARNECE DE NÓS

José Catarino Soares

 

A CNN pôs uma sua jornalista, Clarissa Ward, a descobrir e a libertar um preso político “esquecido” numa alegada prisão secreta do regime de Bashar al-Assad, na Síria. O vídeo da reportagem de Clarissa Ward  pode ser visto aqui:  https://www.youtube.com/watch?v=K7fTV7tqafk

Ao centro, Adel Gharbal, aliás Salama Mohammad Salama, a olhar para o céu, depois da sua “libertação”. À direita, Clarissa Ward, repórter da CNN.

O homem disse chamar-se Adel Gharbal, ser um civil morador na cidade de Homs e ter sido preso três meses antes, depois de ter estado com o seu telefone sob escuta pela polícia do regime. Durante esse período, declarou ter vegetado na escuridão de uma cela sem janelas nem luz eléctrica.

Mas ninguém diria as provações por que passou, pois apresentava-se vestido com um bom casaco, roupas limpas, as unhas impecavelmente manicuradas e com aspecto saudável. E, espantosamente, não pestanejou sequer ao olhar para o céu depois de ter saído para a luz do dia, aparentando estar cheio de alegria por ter sido “libertado” pela CNN.

As mãos limpas e as unhas bem tratadas de um homem alegadamente preso há 3 meses numa  masmorra sem luz. 
   

Nas imagens, vemos o dito Adel Gharbal escondido debaixo de um cobertor no chão da cela como se estivesse a dormir, apesar dos tiros utilizados para arrombar a fechadura da sua cela uns segundos antes.  Apesar dos alegados maus-tratos infligidos aos detidos nas prisões secretas, Gharbal aparentava, como já foi dito, estar limpo, fisicamente saudável, sem ferimentos visíveis ou sinais de tortura — uma imagem incongruente de alguém alegadamente mantido em confinamento solitário no escuro durante 90 dias.

Na verdade, toda a reportagem da CNN é uma encenação fraudulenta do princípio ao fim.

Segundo o Verify-Sy (uma ONG síria sediada na Turquia que se dedica à verificação de factos e que está associada ao Poynter Institute), o homem filmado na reportagem da CNN mentiu com quase todos os dentes da boca. O seu verdadeiro nome é Salama Mohammad Salama, também conhecido como Abu Hamza. Salama é um primeiro-tenente dos serviços secretos da Força Aérea síria, conhecido pelas suas actividades em Homs, onde terá gerido vários postos de controlo de segurança e onde esteve envolvido em roubos e extorsões.

Segundo os habitantes locais, o seu recente encarceramento pela polícia do regime de Bashar al-Assad ‒ que durou menos de um mês ‒ deveu-se a uma disputa sobre a partilha dos lucros dos fundos extorquidos com um oficial de patente superior. Este facto levou à sua detenção numa das celas de Damasco, onde a CNN o foi desencantar.

Salama Mohammad Salama, com seu uniforme de primeiro-tenente,

no seu gabinete em Homs. Fonte: Verify-Sy.

Em suma, a CNN (e Clarissa Ward [1]escarnece de nós, embora de uma maneira diferente da de António Costa, presidente do Conselho Europeu [2]. Toma-nos por lorpas e papalvos, prontos para engolirmos qualquer patranha ou fraude que nos queira impingir, por mais grosseira e absurda que seja. Terá razão? Eis a questão.  


Notas e Referências


[1] Esta Clarissa Ward é a mesma «actriz de telejornal que em tempos fingiu estar sob fogo directo do Hamas e que passou mais de uma década a propagandear descaradamente os jihadistas que agora executam minorias em Latakia» (Max Blumenthal, X, 12 de Dezembro de 2024).

[2] Ver,  José Catarino Soares, António Costa escarnece de nós”. Estátua de Sal, 13-12-2024 [https://estatuadesal.com/2024/12/13/antonio-costa-escarnece-de-nos/]

Sem comentários:

Enviar um comentário

Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana