Temas 2 e 3
Reviravolta estratégica na guerra em curso na Ucrânia
(da atoarda sobre os soldados norte-coreanos ao míssil
balístico hipersónico Orechnik)
José Catarino Soares
1.
Introdução
O mês de Novembro de 2024 foi muito rico em acontecimentos
relativos à 2.ª guerra na Ucrânia, em curso há mais de 1.000 dias desde o seu início, em 24 de Fevereiro de 2022.
Embora importantes, vou deixar de lado alguns desses
acontecimentos. É o caso, por exemplo, (i) dos avanços das tropas russas
(600 km2) nas 4 zonas russófonas e maioritariamente russófilas que
foram integradas na Rússia, após referendos realizados de 23 a 27 de Setembro de 2022, mas cujo território a Rússia só controla parcialmente até à data; e (ii)
do regresso voluntário de mais de 100 mil habitantes dessas zonas aos
territórios controlados pela Rússia [1]. Refiro-me às repúblicas de Lugansk
e Donetsk, na bacia hidrográfica do Donets conhecida por Donbass, e aos oblasti de Zaporíjia e Quérson.
Vou concentra-me nos acontecimentos mais decisivos, mas de
interpretação menos óbvia: a alegada existência de 11 mil soldados norte-coreanos
no campo de batalha da Ucrânia e o emprego pela Rússia de uma nova arma na
guerra em curso na Ucrânia: o míssil balístico hipersónico de alcance intermédio Orechnik [Port. “avelaneira”].
Procurarei também mostrar que, no intervalo temporal que
medeia entre estes dois acontecimentos (18 de Outubro de 2024-21 de Novembro de
2024), ocorreram outros acontecimentos, os quais, juntamente com eles,
determinaram uma reviravolta estratégica na guerra em curso na Ucrânia.
2.
Uma data funesta
Em 17 de Novembro de 2024, o New York Times (NYT) noticiou
que Joe Biden, o presidente cessante dos EUA, a dois meses de abandonar o
cargo, decidiu “autorizar”, pela primeira
vez em 2 anos e 9 meses de guerra na Ucrânia, as tropas ucranianas a empregarem mísseis americanos ATACMS na profundidade do território da Rússia para,
alegadamente, ajudar a defender as posições que as tropas ucranianas (ainda) ocupam
no oblast russo de Kursk.
Manchete do New York Times em 21 de Novembro de 2024. Em letras gordas pode ler-se: «Biden autoriza a Ucrânia a atacar a Rússia com mísseis americanos de longo alcance». |
Imediatamente depois desta decisão, o governo de Keir Starmer
(Reino Unido) e o governo de Emmanuel Macron (França) seguiram, pressurosa e obedientemente,
na peugada de Biden, “autorizando”, também
eles, para o mesmo efeito, o uso dos mísseis Storm Shadow (britânico) e Scalp
(francês), respectivamente.
O aspecto importante a salientar nesta decisão é o seu
carácter ultra-aventureiro e ultratemerário. Ela faz completamente abstracção de
duas coisas fundamentais: (1) que a Rússia é não só uma potência
nuclear, mas também a maior potência nuclear do planeta; (2) que a sua
doutrina militar prevê expressamente o emprego de todos os meios bélicos
necessários (incluindo as armas nucleares) para rechaçar e neutralizar qualquer
ataque armado ao seu território que seja considerado uma ameaça existencial
para a Rússia.
É o menosprezo deliberado por estas duas realidades que confere
à decisão de Biden, anunciada pelo New York Times, o seu carácter
ultra-aventureiro e ultratemerário ⎼ e, por conseguinte,
estapafúrdio, quando considerado de um ponto de vista exclusivamente racional,
de autopreservação ⎼ e que faz da data em que ela foi anunciada (17 de
Novembro de 2024) uma data funesta.
3.
Budanov puxa os cordelinhos nos bastidores
Mas com que argumento foi tomada esta decisão tão estapafúrdia?
Com um argumento que lhes foi servido por Volodymyr Zelensky, que usurpa actualmente
o cargo de presidente de Ucrânia (o seu mandato terminou em 21 de Maio de 2024).
Zelensky alegou, com base nas “informações” que lhe foram fornecidas pelo ardiloso
e sempre inventivo Kyrylo Budanov (chefe do HUR, os serviços secretos especiais
do Ministério da Defesa da Ucrânia), que haveria 11 mil soldados norte-coreanos no
campo de batalha da Ucrânia, a combater pela Rússia desde 1 de Novembro de 2024
[2].
“Autorizar” e “autorizando” estão entre aspas, porque se trata de
um eufemismo. Quem selecciona e marca os alvos na Rússia a atingir pelos
mísseis ATACMS, Storm Shadow e Scalp e quem programa os seus
lança-mísseis são militares americanos, britânicos e franceses — não militares
ucranianos, que são meros faxinas seus neste particular. Entre outras razões,
isto acontece porque sem o Sistema de
Posicionamento Global [Ingl. “Global Positioning System” ou GPS] militar ⎼ um sistema composto de 24 satélites, cada um dos quais
orbita em torno da Terra duas vezes por dia a uma altitude de 20.200
quilómetros, que é propriedade do Pentágono (o Ministério da Defesa dos EUA) e é
por ele controlado e comandado a partir do Colorado (EUA) ⎼ não seria possível obter a informação necessária à
referenciação e à selecção dos alvos a atingir na Rússia por esses mísseis e ao
seu guiamento até aos alvos [3].
4.
Significado da decisão de Biden
Isto significa, na prática, que, a partir de 17 de
Novembro de 2024, os EUA, o Reino Unido e a França (três potências nucleares)
estão directamente em guerra contra a Rússia (outra potência nuclear
ainda mais poderosa do que qualquer das anteriores).
Este estado de guerra de facto não foi (e
esperemos que não venha nunca a sê-lo) formalmente reconhecido como tal ― ou
seja, declarado de jure por estes três Estados. Não obstante, ele não
deixa de ser um facto bem real, com todos os perigos que comporta de escalada
para uma guerra global, cujo resultado, por conseguinte, seria, nessa
eventualidade, a destruição mútua dos beligerantes, arrastando consigo o resto
da humanidade para o inferno de um apocalipse nuclear.
Na verdade, assiste-se a uma tentativa de camuflar e
minimizar a importância deste facto, dada a sua funesta gravidade, como se pode
constatar por esta passagem do artigo do NYT supramencionado:
«Embora os governantes [da
Casa Branca que fizeram as confidências ao New York Times] tenham afirmado que não esperam que a mudança altere
fundamentalmente o curso da guerra, um dos objectivos da mudança de política,
segundo eles, é enviar uma mensagem aos norte-coreanos de que as suas forças
são vulneráveis e que não devem enviar mais forças. Os governantes disseram
que, embora os ucranianos provavelmente usassem os mísseis primeiro contra as
tropas russas e norte-coreanas que ameaçam as forças ucranianas em Kursk, Biden
poderia autorizá-los a usar as armas em outros lugares».
Mais importante ainda é a circunstância da decisão de
Biden de empregar os ATACMS na profundidade do território da Rússia não ter existência
oficial. É em vão que a procuraríamos onde ela deveria ter sido publicada: no Statements
and Releases da Casa Branca. Tudo foi feito através de confidências de
membros da Casa Branca, feitas sob anonimato, ao New York Times, repercutidas
em seguida por outros jornais ditos de referência.
5.
Desmontagem de uma atoarda
Tudo se resumiria então ⎼ por parte dos EUA, RU
e França ⎼ a enfrentar a alegada nova ameaça representada pelos
soldados norte-coreanos na Ucrânia. Todavia, nunca ninguém apresentou, até
agora, qualquer prova material da existência desses soldados norte-coreanos no
campo de batalha na Ucrânia.
O próprio Evgueny Mouravitch, correspondente russo da RTP
em Moscovo há mais de 3 décadas, antiPutin dos quatro costados, se viu obrigado
a assinalar o carácter fantasmagórico desse putativo exército de
norte-coreanos, que tem todo o ar de ser mais uma atoarda da dupla Zelensky/ Budanov.
Podemos ver e ouvir Mouravitch de viva-voz, aqui:
https://www.facebook.com/share/v/DCSByqDr6r9Un6e2/
Isso, porém, não impediu a CNN Portugal de afiançar num dos seus noticiários, em RODAPÉ (ver aqui: https://www.facebook.com/share/v/9iuVh3dEqPrNAzwW/ ), que os ditos soldados norte-coreanos estariam a combater em Mariupol. Ora, sucede que não há combates há mais de 2 anos (!!) em Mariupol. Mais: a cidade de Mariupol, na república de Donetsk, foi, entretanto, completamente reconstruída pela Rússia e os seus habitantes vivem hoje em paz [ver aqui: MARIUPOL BEFORE AND AFTER COMPILATION 2024 e aqui: HOW MARIUPOL HAS CHANGED OVER THE LAST YEAR
https://www.youtube.com/watch?v=UMf96E7mzA0 ]
Por sua vez, a pivô da CNN Portugal assegura-nos de
viva-voz, durante o mesmo noticiário, que esses soldados estão... no oblast de
Kursk. Ora, acontece que Kursk e Mariupol, distam entre si mais de 1.000 km
(!!). O que levou o major-general Raul Cunha a concluir na sua página de Facebook:
«os norte-coreanos devem ser hipersónicos... vão de
Mariupol a Kursk numa mesma notícia!».
Como Sófia Puschinka nos informou na sua página do Facebook,
tudo é falso nesta notícia da CNN Portugal. Os alegados soldados norte-coreanos
que aparecem nas imagens da CNN Portugal são, de facto, «soldados do Laos que foram receber uniformes à Rússia»,
e os soldados que aparecem nas imagens anteriores, são do «exército Coreano, mas filmado na Coreia do Norte»
(!!). «Norte-coreanos filmados na frente de batalha
nem vê-los… Ah, mas calma, a fonte é
credível, é o SBU [o Serviço de Segurança da Ucrânia], os mesmos que inventaram o Fantasma de Kiev [um
piloto ucraniano que matava pilotos russos a seu bel-prazer] hahahahah». Na verdade, a fonte primeira é, como
vimos, o HUR (um émulo do SBU).
O próprio Pentágono desmentiu, em 25 de Novembro de 2024,
a presença de soldados norte-coreanos no campo de batalha na Ucrânia,
como se pode ver aqui [https://euromaidanpress.com/2024/11/26/pentagon-denies-north-korean-troops-in-ukraine-says-they-are-in-russias-kursk-oblast/].
Repare-se que isto significa que o Pentágono desmentiu a
Casa Branca [4], o que é, no mínimo, curioso; um sinal das lutas internas que
se travam entre diferentes facções da oligarquia dirigente dos EUA, incluindo
as que alguns denominam “Estado Profundo”
(Ingl. Deep State) e outros Blob.
O desmentido é, porém, parcial, porque logo a seguir a porta-voz do Pentágono afirmou
que há soldados norte-coreanos estacionados na Rússia, no oblast de
Kursk, a fazer não se sabe o quê.
Mais uma vez, esta alegação foi feita sem a apresentação
de qualquer prova material da sua veracidade. Assim sendo, não há razão nenhuma
para a tomarmos como verdadeira. Bem pelo contrário, se tivermos em conta
antecedentes como, por exemplo, o das “armas de destruição
maciça” que George W. Bush, Colin Powell, Dick Cheney, José Maria Aznar,
Tony Blair, José Manuel Barroso e tantos outros nos afiançavam existirem na posse
de Sadam Hussein e que, afinal, só existiam nas suas patranhas de mitómanos profissionais
dispostos a tudo para justificar aos olhos do público a invasão do Iraque.
Mas há mais motivos para não acreditar na existência de soldados norte-coreanos a combater na Ucrânia do lado dos russos. O jornalista francês Regis le Sommier acaba de regressar de Kursk, onde esteve em reportagem durante 11 dias do lado russo. 11 mil soldados norte-coreanos equivalem a mais de duas brigadas, uma força muito considerável. Ora, Regis le Sommier, que percorreu todo o oblast de Kursk, não avistou um só soldado norte-coreano! (ver o seu depoimento aqui: https://www.youtube.com/watch?v=P4pdU6U2Pu8, a partir do momento 6m30 segundos, e aqui https://www.youtube.com/watch?v=Y3N-3p-iObA&t=68s, a partir do momento 2h14m18segundos).
6.
Função da alegação sobre os soldados norte-coreanos
Resumindo:
a) — há 11.000 soldados norte-coreanos
a combater no lado russo no campo de batalha da Ucrânia? A resposta é, como
vimos, um rotundo “não”.
b) ― há 11.000
soldados norte-coreanos estacionados em Mariupol ou em Kursk ou em Mariupol e
em Kursk, a fazer não se sabe ao certo o quê? [5] A resposta é, como vimos, um
“não”, quase tão rotundo quanto o da resposta à pergunta a) [6].
Assim sendo, qual é, então, a função desempenhada pela alegação
de que existem actualmente 11 mil ou 10 mil ou 8 mil soldados norte-coreanos (Budanov,
Pentágono e Coreia do Sul rivalizam nas estimativas sobre o número exacto dos soldados invisíveis), os quais,
em breve, seriam mesmo 100 mil soldados (!!), assegurou-nos Zelensky, [7] (presumivelmente
por indicação do ardiloso Budanov, incansável inventor de patranhas) que estariam a combater, ou que estariam a preparar-se para combater, ao lado das tropas russas no campo de
batalha da Ucrânia?
Tudo indica que se trata de uma atoarda, que rapidamente ganhou tracção e respeitabilidade quando se transformou numa notícia fraudulenta (Ingl. fake news) publicada e divulgada pelo sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado”. Tudo indica também que terá sido fabricada com o propósito de:
― (i) dar
um semblante de racionalidade à participação directa dos EUA e dos seus
comparsas (Reino Unido e França) na guerra por procuração da Ucrânia contra a
Rússia, num momento em que as tropas ucranianas estão à beira de uma derrota inevitável
e irremediável [8] e em que a Rússia adquiriu supremacia tecnológica, em
áreas críticas do âmbito militar, sobre os EUA e, por conseguinte, sobre todo e
qualquer outro Estado-membro da OTAN [/NATO] [9].
― (ii)
dificultar ao máximo eventuais esforços que o novo presidente eleito dos
EUA, Donald Trump, vier a fazer (como o prometeu, repetidamente, durante a
campanha eleitoral) para pôr termo ao conflito armado na Ucrânia por meios
diplomáticos;
― (iii) acrescentar mais uma pedra à campanha de
propaganda e agitação para persuadir o grande público e, sobretudo, a
juventude, de que a guerra do “Ocidente alargado”
contra a Rússia (e a China) é inevitável, mais tarde ou mais cedo, e que
devemos começar a prepararmo-nos para ela em todas as dimensões (incluindo a
psicológica).
7.
Propaganda do medo absurdo e da guerra
iminente com a Rússia
Eis três exemplos muito claros deste último propósito.
A) O presidente do
comité militar da OTAN [/NATO], almirante Rob Bauer (natural dos Países-Baixos),
afirmou solenemente, no seu discurso de 20 de Novembro de 2024, que os novos
planos militares da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) necessitam
que os Estados-membros desta aliança militar gastem 3% do PIB (Produto Interno
Bruto), acima do objectivo dos 2% pedidos actualmente aos Estados-membros.
Almirante Rob Bauer discursando na Conferência de Segurança de Berlim, 20-11-2024. |
No seu discurso, o Almirante Bauer pediu aos gestores de
empresa e empresários dos Estados-membros da OTAN que se preparem para um
cenário de guerra e ajustem a sua actividade e as suas linhas de produção de
acordo com isso, para serem mais resistentes à “chantagem” por parte da Rússia
e da China.
B) A declaração (ver
foto) do almirante Gouveia e Melo, chefe do Estado-Maior da Armada portuguesa e
presumível candidato à presidência da República portuguesa, feita no decurso de
uma entrevista ao Diário de Notícias e à TSF, realizada em 15 de
Maio de 2024.
Diário de Notícias, 15.05. 2024. Foto: Paulo Spranger/Global Images. |
C) A brochura de 32 páginas que o governo da Suécia começou a distribuir à população residente no dia 18 de Novembro de 2024, em Sueco, Inglês e outros idiomas. Essa brochura aconselha os cidadãos da Suécia e os residentes estrangeiros nesse país a prepararem-se para a guerra.
«O ministro da Defesa da Suécia, Pål Jonson, deu o alarme no mês passado, dizendo ao POLITICO que “a Rússia é a principal ameaça para a Suécia e constitui uma ameaça para toda a aliança [OTAN/NATO]”. Segundo Jonson, o risco de um ataque russo ao país “não pode ser excluído”» [10].
Capa da brochura (na sua versão em Inglês) sobre a guerra que o governo da Suécia começou a distribuir à população residente no dia 18 de Novembro de 2024. |
Isto acontece numa altura em que os governos de dois outros países nórdicos (Noruega e Finlândia) adoptaram métodos semelhantes para ensinar as pessoas a prepararem-se para um potencial ataque russo (!!) e o governo da Alemanha está a trabalhar num plano para aumentar o número de abrigos subterrâneos fortificados [bunkers] disponíveis para civis, pelos mesmos motivos.
8. Desmistificando a propaganda do medo absurdo e da guerra iminente
O carácter patético desta última medida ressalta da comparação de três números. A Alemanha tem actualmente perto de 84 milhões de habitantes e dispõe de 579 bunkers públicos com capacidade para… 480 mil pessoas [11]. Seria preciso construir 96.500 bunkers (!!) para abrigar toda a população. Se fôssem construídos 579 bunkers por ano seriam necessários mais de 166 anos (!!) para completar a tarefa.
A natureza belicista das declarações e medidas que passámos em revista em A), B), e C), é evidente. A natureza mistificatória da sua premissa ⎼ a de que é a Rússia, e não os EUA e a OTAN (o seu cavalo de Tróia na Europa), que desempenha o papel de principal promotor e fautor de guerras e ameaças de guerra como instrumento privilegiado de intervenção nas relações internacionais ⎼ é facilmente demonstrada por duas comparações simples.
Comparemos, então, (i) o número de guerras e intervenções militares e (ii) o número de bases militares no estrangeiro dos EUA e da Rússia/Federação Russa, respectivamente, e examinemos, para completar o retrato, a evolução numérica da OTAN [/NATO] desde a sua fundação (1949) e o número das suas intervenções militares a partir de 1989, data da queda do muro de Berlim e do fim da “Guerra Fria”.
Os EUA estiveram envolvidos em 250 intervenções
militares desde 1991 até 2022 — ou seja, depois do fim da Guerra Fria e da
implosão da União Soviética (Cf. Barbara
Salazar Torreon & Sofia Plagakis, “Instances of Use of United States Armed
Forces Abroad, 1798-2022”. Congressional Research Service, March 8, 2022). Por
seu lado, a Federação Russa esteve envolvida em 14 intervenções militares de
1991 a 2022 (“ List of wars involving Russia”, Wikipedia. N.B. Este artigo da Wikipedia
aponta 2014 como sendo o começo da intervenção militar da Rússia na Ucrânia,
com base numa alegada anexação da Crimeia pela Rússia. Mas essa alegação é falsa,
como demostrei noutro escrito [v. “Quem anexou a Crimeia: foi a Rússia ou a Ucrânia?” in Tertúlia
Orwelliana, 22 de Agosto de 2022, https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2022/08/falsidades-e-mentiras-1.html]).
Durante o mesmo período (1990-2022), a OTAN (/NATO), alegadamente uma aliança militar “puramente defensiva”, fez 9 intervenções militares ⎼ no Kuwait-Iraque (1990), de novo no Kuwait-Iraque (1991), na Bósnia e Herzegovina (1992), no Kosovo, no Montenegro e na Sérvia (1999), no Afeganistão (2003), no Iraque (2004), na Somália (2009) ⎼ sem que nenhum dos seus Estados-membros tivesse sido atacado! (Benjamin Elisha Sawe, “Major NATO Military Interventions”, WorldAtlas, April 25 2017).
Por outro lado, a OTAN(/NATO),
que foi, alegadamente, construída pelos EUA para conter a “ameaça militar da
União Soviética” à Europa ocidental, alargou-se ainda mais e mais
depressa…depois da dissolução da União Soviética ! Esse alargamento ocorreu em 5 ondas sucessivas (1999, 2004, 2009,
2017, 2020) em direcção às fronteiras da Rússia. Destarte, a OTAN (/NATO) tem
hoje o dobro de Estados-membros (32) do que tinha em 1991 (16) e está colada às
fronteiras terrestres da Rússia através da Noruega, Finlândia, Polónia,
Estónia, Letónia, Lituânia! Com a eventual entrada na OTAN (/NATO) da Ucrânia e
da Geórgia ‒ que foram ambas convidadas pela OTAN a integrar-se nela em 2004 e
cujos governos há muito que expressam essa intenção e se esforçam por
concretizá-la ‒ a Rússia ficaria cercada por Estados-membros da OTAN (/NATO) ao
longo de todas as suas fronteiras terrestres europeias, salvo na fronteira com
a Bielorrússia, que não é membro dessa aliança militar com provas dadas do seu
carácter belicista.
Assembleia Comemorativa dos 75 anos da OTAN/NATO. Foto: Nathan Howard. |
Imagine-se qual seria a reacção
dos EUA se a Rússia pertencesse a uma aliança militar do mesmo carácter com o
Canadá e o México, ou tão somente com Cuba…
Comparemos agora o número de bases militares no estrangeiro dos dois Estados. Existem cerca de 750 bases militares americanas em pelo menos 80 países» (Hope O’Dell, “The US is sending more troops to the Middle East. Where in the world are US military deployed?”. Bluemarble, April 5, 2024). Em contraste, existem 20 bases militares russas em 9 países (“How Many Military Bases Does Russia Have Overseas?” Written by Everett Bledsoe / Fact checked by Brain Bartell. The Soldiers Project, October 1, 2023).
Basta reflectir nestes números para concluir imediatamente que Rob Bauer, Gouveia e Melo, Pöl Jonson e quejandos nos querem atirar areia para os olhos. Se observarmos objectivamente o seu comportamento teremos necessariamente de concluir que agem como propagandistas e agitadores profissionais do medo absurdo e da guerra iminente. E como o medo absurdo (“cuidado com Putin, o homem é louco!”) e a ameaça de uma guerra iminente (“a Rússia prepara-se para invadir os países vizinhos que são membros da OTAN/NATO. Quando isso acontecer temos de ir socorrê-los à luz do artigo 5.º do tratado!”) que propagandeiam são escabrosas invencionices [12], podemos equipará-los aos vulgares vendedores de banha da cobra, dos quais só se distinguem pelo grau superlativo de perfídia e perigosidade.
9.
Uma reviravolta estratégica
Estamos agora em condições de abordar o elemento central que referi na introdução deste artigo: a natureza da reviravolta estratégica que ocorreu em Novembro de 2024 na guerra em curso na Ucrânia.
O momento mais importante dessa reviravolta foi a riposta que o governo russo deu aos primeiros ataques dos mísseis ocidentais de longo alcance na profundidade do território russo que tiveram lugar nos dias 19 e 21 de Novembro, na sequência da “autorização” que lhes foi dada em 17 de novembro de 2024 pelo seu homólogo americano, Joe Biden.
Essa riposta foi feita de duas maneiras, uma
relativamente esperada (em 19 de Novembro) e outra inteiramente inesperada (em
21 de Novembro).
A maneira relativamente esperada consistiu na aprovação
final das alterações à doutrina militar russa (incluindo a sua componente nuclear) que estavam em discussão desde
Setembro de 2024.
A doutrina russa agora estipula três novos princípios:
1.º) um ataque à Rússia por parte de um Estado não-nuclear,
se for apoiado por uma potência nuclear, será tratado como um ataque conjunto de
ambos: do Estado não-nuclear e da potência nuclear apoiante.
2.º) Um grande ataque à Rússia com mísseis convencionais,
drones ou aviões poderá preencher os critérios para uma riposta nuclear,
tal como um ataque à Bielorrússia ou qualquer ameaça crítica à soberania da
Rússia.
3.º) Qualquer agressão contra a Rússia por parte de um
Estado-membro de uma aliança ou coligação [por exemplo, a OTAN/NATO] será vista
pela Rússia como uma agressão de todo o grupo de Estados-membros dessa aliança
ou coligação.
A maneira inteiramente inesperada consistiu no emprego de
um novo míssil balístico hipersónico de alcance intermédio: o Orechnik.
Em 21 de Novembro último, este míssil, segundo vários testemunhos, terá
destruído completamente o colossal complexo industrial de Pivdenmash (v. Andrei
Martyanov, “Testimonies”. November
23, 2024; “More Testimonies”, November 25, 2024, no blogue Reminiscence of
the Future). A Pivdemash (o seu nome ucraniano actual) ou Yuzhmash (o
seu nome russo original) é uma fábrica de mísseis, veículos de lançamento
espacial, foguetes de combustível líquido, satélites, e maquinaria vária,
construída, durante a era soviética, na cidade de Dnipro, no oblast de Dnipropetrovsk.
Segundo uma outra versão, da autoria de Julian Röpcke,
jornalista do tablóide alemão Bild, a Pivdemash não foi destruída porque
o míssil Orechnik que a atingiu em cheio não era portador, por vontade expressa
do Kremlin, de cargas explosivas convencionais. Isto porque o míssil se
destinaria simplesmente a demonstrar que (i) poderia destruir a fábrica
se os seus programadores o tivessem armado com cargas explosivas e que (ii) nada
(dada a sua velocidade hipersónica de mais de 10 Mach) o poderia interceptar,
impedindo-o de atingir esse objectivo (Roman Petrenko, “New ballistic missile
used by Russia to strike Dnipro on 21 November had no explosives and caused no destruction
– Bild”. Ukrainska Pravda, 23
November 2024).
Mesmo que se admita que o míssil não transportava cargas
explosivas, como argumenta Röpcke, não parece que daí se possa concluir que não
terá causado danos avultados na fábrica Pivdemash, porquanto isso equivale a
ignorar a sua tremenda energia cinética no momento do impacto. Seja como for e
à falta de mais e melhor informação, não tenho (de momento, pelo menos) os
meios de apurar qual dos dois relatos ⎼ o de Martyanov ou o de
Röpcke ⎼ é o verdadeiro ou mais verdadeiro. Mas se tivesse de
apostar neste instante, poria as minhas fichas no de Martyanov.
Sobre as características inéditas e extraordinárias do
novo míssil hipersónico Orechnik e sobre o que ele representa
estrategicamente no confronto geopolítico interestatal à escala internacional
(dois vastos assuntos), começarei por citar um excerto de um comentário
esclarecedor e muitíssimo interessante publicado na plataforma X.
«Até agora, quase ninguém no
Ocidente compreende plenamente o sistema de armas Orechnik, recentemente
demonstrado pela Rússia. Fiz as contas à
energia cinética das submunições (usando estimativas de massa) e estudei o que
é publicamente conhecido sobre estas armas até ao momento. A minha conclusão? A OTAN [/NATO] está arrumada.
Os
países do Ocidente não fazem ideia do que os atingiu. O sistema de armas Orechnik da Rússia é o
xeque-mate para a OTAN [/NATO] e para os EUA. Todos os porta-aviões dos EUA podem ser
destruídos em poucos minutos. Todas as
bases militares dos EUA, todos os bunkers subterrâneos, todos os locais
de lançamento de mísseis balísticos intercontinentais, estaleiros navais, etc.,
podem ser destruídos com energia cinética NÃO-NUCLEAR através do Orechnik. Não existem tratados vigentes (que eu saiba)
que proíbam este sistema de armas, que não destrói as infra-estruturas
circundantes nem aglomerações de civis. É uma arma de ataque cirúrgico
devastadora e imparável que, basicamente, lança raios de metal do céu como o
Martelo de Thor ou os cometas de Deus.
Ninguém tem qualquer defesa contra isto, e o alcance destas armas, uma
vez montadas em propulsores intercontinentais, é global.
O Ocidente só pode agora recuar ou então
passar ao nuclear. Provavelmente
escolherá a opção nuclear por desespero, por isso estejamos atentos. A Rússia
acaba de mudar o rumo da guerra e alcançou o domínio global. NINGUÉM na imprensa ocidental faz a mínima
ideia. São demasiado estúpidos, demasiado “wokes” ou demasiado arrogantes para
perceberem o que aconteceu. Isto é como jogar xadrez com Putin e pensar que se
pode ser competitivo, e de repente a rainha de Putin dispara um lança-chamas no
tabuleiro de xadrez e dá cabo de todas as peças do adversário, incendiando-as.
Pensava-se que se estava a jogar “xadrez”, mas Putin estava a jogar um jogo
diferente chamado “lança-chamas”. É tão importante quanto isto» (@HealthRanger, 26 November 2024).
Por outras palavras, com o seu novo míssil balístico
hipersónico de alcance intermédio, o Orechnik, a Rússia não criou apenas uma
nova, inédita e poderosíssima arma da qual detém actualmente (e pelo menos por
alguns meses ou anos) o monopólio absoluto de fabrico e uso. Criou também,
concomitantemente, um novo escalão ou patamar na riposta graduada que tem sido
a sua até agora e que lhe tem permitido evitar uma escalada (na guerra que trava
na Ucrânia contra o regime de Zelensky e os seus apoiantes no “Ocidente
alargado”) que fôsse conducente a uma guerra total de máxima intensidade (uma
guerra nuclear, por conseguinte) — um novo escalão ou patamar sobre cujo acesso
a Rússia detém também, actualmente, o monopólio absoluto. O novo patamar ou
escalão em causa é aquele que se intercala entre o patamar das armas
convencionais mais poderosas e o patamar das armas nucleares [13].
Em resumo, a Rússia tem actualmente, com o Orechnik, os
meios de retaliar a qualquer ataque convencional (por mais poderoso que seja e
seja qual for o seu país europeu de origem) que considere ser uma ameaça à sua
existência enquanto Estado soberano e de o fazer com a maior precisão
concebível, mas sem ter de recorrer para tanto às armas nucleares, cuja
utilização precipitaria a humanidade no vórtice da sua extinção total.
Nenhuma base militar, nenhum centro de comando de nenhum
Estado-membro europeu da OTAN, nenhum silo de mísseis, por mais fundo que esteja o seu bunker, está
ao abrigo do Orechnik (que tem um alcance potencial de 3.500 a 5.500 km), se o
seu governo participar directamente num ataque de grande envergadura à Rússia. E
nenhum Estado-membro da OTAN, incluindo os EUA, tem os meios de interceptar o hipersónico
Orechnik, que se desloca a uma velocidade superior a 10 Mach (12.300 km por hora).
Os tempos de voo do Oreschnik para diferentes capitais da Europa. Fonte:coronel Daniel Davis, Deep Dive |
Todavia, um ataque com o Orechnik não significa
necessariamente um ataque nuclear porque as suas seis ogivas, cada uma das
quais com seis submunições, podem ser preenchidas tanto com cargas explosivas nucleares
como com cargas explosivas convencionais ou cargas destrutivas não explosivas. Mais ainda: sendo praticamente impossível
interceptá-lo, em virtude da sua velocidade vertiginosa, o Orechnik confere aos
seus utilizadores a possibilidade de avisarem com antecedência os civis para
abandonarem a área em redor dos alvos.
Destarte, com uma produção de mísseis (incluindo uma
panóplia de mísseis hipersónicos de vários tipos que é a única potência nuclear
a possuir) dez vezes superior ⎼ segundo declarou Putin
⎼ à do conjunto dos Estados-membros da OTAN/NATO, grandes avanços na capacidade de defesa aérea e na
guerra electrónica (um elemento decisivo no uso militar dos drones), além
de uma capacidade sem rival de produção de munições de todo o tipo (tão importante numa guerra de
atrição), a Rússia alcançou uma vantagem tecnológica e uma maleabilidade operacional
que lhe conferem simultaneamente a
capacidade (i) de se defender eficazmente contra qualquer ataque inimigo, (ii) de evitar
o uso de armamento nuclear, como ultima ratio regum [14] e (iii) de cancelar efectivamente a sentença
de morte que o uso desse armamento representaria para a humanidade no seu
conjunto.
10.
Húbris
Desengane-se, porém, quem pense que esta notícia será acolhida com um suspiro de alívio por todos os inimigos da Rússia. Para muitos deles, essa opção da Rússia é interpretada como um claro sinal de fraqueza, não como um vislumbre da possibilidade material de pôr termo a esta guerra e encetar um processo de negociações conducente a uma paz justa e duradoura.
É o caso, por exemplo, de um tal Jeffrey Lewis, director do
“East Asia Nonproliferation Program at the James Martin Center for
Nonproliferation Studies at the Middlebury Institute of International Studies”
sediado na California. Este senhor foi solicitado pela Reuters, na sua
qualidade de perito militar, a dar a sua opinião sobre o Orechnik. Um dos seus
comentários desdenhosos foi este:
«Se [o Orechnik] fôsse intrinsecamente aterrador, Putin usá-lo-ia
simplesmente. Mas isso não foi suficiente. Ele teve de o usar e depois fazer
uma conferência de imprensa e depois fazer outra conferência de imprensa e
dizer: “Ei, esta coisa é mesmo assustadora, vocês deviam ter medo”» [15].
Os gregos antigos chamavam a esta mistura de sobranceria,
insolência e vistas-curtas húbris ou híbris, sempre má conselheira e sempre
pronta a levar os seus cativos à perdição.
.................................................................................................................................
P.S. [3 de Dezembro 2024, 11h47m].
Afinal, parece que eu tinha razão em apostar as minhas fichas na veracidade do
relato de Andrei Martyanov sobre o que se passou realmente na fábrica Pivdenmash
(ou Yuzhmash) em Dnipro, no dia 21 de Novembro de 2024. A minha interpretação da
natureza da força destruidora do míssil russo Oreshnik que atingiu essa fábrica,
nesse dia, foi independentemente corroborada por Stephen Bryen, um reputado analista
militar americano, insuspeito de qualquer simpatia por Putin ou sequer pela
Rússia.
Stephen Bryen é um ex-subsecretário adjunto da Defesa dos
EUA. É considerado como um dos
principais especialistas em estratégia e tecnologia de segurança militar. Bryen
escreve regularmente para as seguintes publicações: Asia Times, American
Thinker, Epoch Times, Newsweek, Washington Times, entre
outras, e tem o seu próprio blogue, Weapons and Strategy, alojado na plataforma
Substack. Os excertos seguintes foram extraídos de um artigo publicado dia
25 de Novembro de 2024 no seu blogue, com o título Implications of the Oreshnik strike.
A strong warning to the US, NATO
and Ukraine [“Implicações do ataque
do Orechnik. Um forte alerta aos EUA, à OTAN,
e à Ucrânia”].
«Há muita especulação sobre os
danos causados nas instalações da fábrica aeroespacial Yuzhmash, em Dnipro. No
entanto, sabe-se o suficiente para deixar claro que este ataque às instalações
da fábrica teve caraterísticas únicas. Testemunhas oculares que vivem na área
perto da fábrica dizem que não houve fogo quando o ataque ocorreu, mas sentiram
algo como um “terramoto” que “rachou” algumas casas a cerca de um quilómetro de
distância. De igual modo, não se registou qualquer explosão no sentido
convencional. O que é que aconteceu?
As oficinas da Yuzhmash que estão a funcionar
(grande parte do complexo já não está operacional) são subterrâneas. O desafio
para a carga útil do Oreshnik era saber se conseguiria desactivar as operações
subterrâneas.
Embora não tenhamos uma contabilização da
quantidade de material efetivamente destruído, mais uma vez as testemunhas
afirmam que a parte operacional das instalações foi transformada em pó. Isto
sugere que as submunições do Oreshnik [que
talvez fôssem de um material muito duro e denso, como, por exemplo, o carboneto de tungsténio, sugere Bryen neste
vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=j8xKjRpHpuc&list =WL&index=1] embateram
a uma velocidade hipersónica nas oficinas e, simplesmente, pulverizaram-nas. Não foi necessário recorrer
a altos-explosivos para o efeito».
Stephen Bryen também corrobora a interpretação que
apresentei do significado estratégico do Orechnik — um “game-changer” (algo
capaz de virar o jogo), como o qualifica Bryen no mesmo vídeo. No seu artigo diz isto:
«Os russos desenvolveram uma arma de ataque
que utiliza a cinética para destruir instalações altamente protegidas no
subsolo e à superfície. Actualmente, não existe um contra-ataque eficaz ao Orechnik
ou a outros sistemas semelhantes que utilizam veículos planadores hipersónicos.
A única limitação prática é que essas armas são muito caras e só aparecerão em
números relativamente pequenos.
Isto tem implicações significativas para alvos
subterrâneos noutros locais, como certamente os ucranianos compreenderam
imediatamente. De facto, os russos colocaram uma espada de Dâmocles sobre a
cabeça de Zelensky, uma vez que ele actua a partir de um bunker
subterrâneo. Isto sugere que o alvo de Yuzhmash foi bem escolhido para enviar
um aviso aos governantes da Ucrânia.
Também enviou um aviso à OTAN/NATO. Como disse
o Presidente russo, Putin, num discurso difundido à escala nacional, o Orechnik
poderia atingir qualquer alvo na Europa. Assim, todas as bases, centros de
comando e instalações de mísseis da NATO poderiam ser destruídos pelo Oreshnik.
Da mesma forma, os EUA receberam um aviso no
que diz respeito às bases de mísseis e às defesas aéreas americanas. Grande
parte da parte terrestre da tríade nuclear dos EUA é baseada em silos».
Os silos de mísseis balísticos são bunkers especiais.
Ora, o Orechnik veio mostrar que não há silos de mísseis seguros, porque o Orechnik
é, como Stephen Bryen diz no vídeo, um “rebentador de bunkers” (Ing. «Bunker buster»).
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Notas e Referências
[1] Olena Hrazhdan, “Over 100K Ukrainians Return
to Russian-Occupied Donbas as Economic Hardship Grows”. Kyiv Post, November
23, 2024
[2]
Nate Ostiller, “Budanov
says close to 11,000 North Korean troops in Russia, will be ‘ready to fight’ in
Ukraine by Nov. 1”. The Kiev
Independent, October 18, 2024.
[3] Carlos Matos Gomes, “O GPS e a mentira política”. Medium.com
(e também in Estátua de Sal), 6-06-2024.
[4] Há especulações para todos os gostos sobre este assunto. Alguns
aventam que os putativos soldados norte-coreanos estariam a apoiar operações de
combate contra as forças ucranianas no oblast russo de Kursk; outros aventam que estariam a
treinar-se para entrar em combate no Ucrânia, ao lado das tropas russas; outros
ainda aventam que estariam a treinar-se para entrar em combate contra as tropas
da Coreia do Sul numa guerra que terá lugar entre as duas Coreias num futuro
próximo…
[5] Na sua conferência de
imprensa de 17 de Novembro de 2024, o Conselheiro de Segurança Nacional dos
EUA, Jack Sullivan, declarou: «E,
neste contexto [das conversações com Xi Jinping], o Presidente Biden reiterou a sua grande preocupação com o facto de a República
Popular da Coreia do Norte ter enviado um número significativo de tropas para a
Rússia Ocidental para participar na batalha contra a Ucrânia, na guerra contra
a Ucrânia» (On-the-Record Press Gaggle by APNSA Jake Sullivan on President Biden’s Meeting with
President Xi Jinping. Press Briefings. The White House). Na sua
conferência de imprensa de 21 de Novembro de 2024, a secretária de imprensa da
Casa Branca, Karine Jean-Pierre, tinha afirmado de modo igualmente peremptório:
«A Coreia do Norte trouxe milhares de soldados
das suas tropas para a linha da frente [da Ucrânia] e juntou-as a esta guerra» (Press Briefing by Press Secretary Karine Jean-Pierre. The
White House).
[6]
O poeta António Aleixo alertou-nos para uma constante:
«P’ra mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem de trazer à mistura
qualquer coisa de verdade»
No caso em apreço, a “qualquer
coisa de verdade” é o facto de que nada do que foi dito nos parágrafos
anteriores deste artigo exclui, bem entendido, a possibilidade de existirem
militares norte-coreanos na Rússia, seja como observadores interessados na arte
da guerra, seja como instruendos, instrutores e técnicos. É mesmo muito
plausível, por duas razões.
Primeira razão: a Coreia de Norte é “acusada” pelos EUA e
pela Coreia do Sul de ter fornecido à Rússia, desde há mais de 2 anos, uma grande quantidade de armas e munições — nomeadamente,
obuseiros autopropulsionados “Koksan” de 170 milímetros, obuses de artilharia
de 152 milímetros, mísseis balísticos de curto alcance Hwasong-11A, lança-foguetes
múltiplos de 240 milímetros, mísseis antitanque e mísseis terra-ar portáteis (Lara
Jakes, “What Weapons Is North Korea Accused of Supplying to Russia?”, New
York Times, June 17, 2024; Hyung-Jin Kim e Kim Tong-Hyung, ambos da Associated Press,
“North Korea sent more conventional weapons to Russia, South Korea says”, ABC
News, November 20, 2024). “Acusada” está entre aspas porque os EUA e a
Coreia do Sul são ambos grandes fabricantes e vendedores de armas de guerra. É
caso par dizer: «Bem prega Frei Tomás. Faz o que ele
diz, não faças o que ele faz».
Segunda razão: em 18 de Junho de 2024, a Rússia celebrou
com a Coreia do Norte um tratado de segurança e defesa denominado “Tratado de Associação
Estratégica Integral entre a Federação Russa e a República Popular da
Coreia do Norte”, conhecido coloquialmente como “Tratado
Moscovo-Pyongyang”.
Estas duas razões, ou apenas a segunda (para quem duvide
da exactidão ou, até, do fundamento factual da primeira), são suficientes (é
suficiente) para explicar um grande intercâmbio de militares dos dois países em
múltiplos domínios de cooperação militar que não incluem,
necessariamente, o combate armado num campo de batalha real. A cooperação
militar entre os diferentes Estados-membros da OTAN/NATO fornece uma mina de
exemplos concretos de como é que esse intercâmbio pode ocorrer. Basta admitir que
o mesmo pode suceder com outros protagonistas de outras alianças militares — a
Rússia e a Coreia do Norte, por exemplo.
Por último, convém lembrar que não se pode modificar o
passado. Se, algures no futuro e por hipótese meramente especulativa, soldados
norte-coreanos e soldados russos vierem (por razões que não conseguimos hoje vislumbrar)
a combater lado a lado contra tropas ucranianas (seja no território da Rússia,
seja no território da Ucrânia, tal como estavam configurados em 23 de Fevereiro
de 2022), isso de modo nenhum pode ser invocado, retrospectivamente, como
prova de que existiriam actualmente, e desde 1 de Novembro de 2024,
milhares de soldados
norte-coreanos a combater no campo de batalha da guerra entre a
Rússia e a Ucrânia. O futuro, quando se actualiza, acrescenta mais passado ao
passado; não modifica o passado a que se acrescentou.
[7]
“Zelenskyy says North Korea
may send 100k troops to Ukraine, as war reaches 1,000 days”. The Guardian, 19
November 2024
[8]
O carácter inevitável e irremediável da derrota militar
da Ucrânia foi brilhantemente fundamentado, com factos e argumentos pertinentes,
pelo coronel suíço Jacques Baud, no seu último livro, L’Art de la Guerre Russe — Comment
l’Occident a conduit l’Ukraine à l’échec (Max Milo. Paris 2024).
[9] A supremacia tecnológica da Rússia -- no plano dos
mísseis hipersónicos [Kalibr, Sarmat, Khinzal, Zircon, Avangard, Orechnik], da
produção de munições, da defesa aérea e da guerra electrónica -- sobre os EUA e a
OTAN no continente europeu, é uma noção inteiramente à contra-corrente da
crença na omnipotência do complexo militar-industrial [Ingl. Military-Industrial-Complex,
ou MIC] dos EUA e na omnisciência do seu complexo militar-industrial-congressional-espionático--mediático-académico-consultorial
[Ingl. Military-Industrial-Congressional-Intelligence-Media-Academia-Think-Tank,
ou MICIMATT] que acabará, creio, por se
impor como tal nos próximos meses aos olhos dos analistas independentes do
MICIMATT e quejandos. Dos peritos e consultores do MICIMATT e dos seus émulos no
resto do “Ocidente alargado”, assim como, com
maioria de razão, dos comentadores que enxameiam as estações de televisão não
há nada a esperar (salvo raras excepções): continuarão a remodelar e a retocar interminavelmente
a sua narrativa otaniana, até ao último soldado ucraniano. Voltarei a este
assunto nas secções 9 e 10 deste artigo.
[10]
“Sweden boosts defense
spending to handle a «wartime situation»”. Politico, October 15, 2024.
[11] “Alemanha prepara bunkers para tempo de guerra”. Correio da Manhã,
26 de Novembro de 2024.
[12] No livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o
fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal (Editora
Primeiro Capítulo, Lisboa, 2023), explanei longamente (nota 10, pp.153-157) as
razões pelas quais a Rússia não quer (até porque não precisa), e não teria
capacidade (mesmo que quisesse) de conquistar qualquer país vizinho da Europa,
incluindo a Ucrânia. No capítulo 1 do mesmo livro, explico as causas
contribuintes da 1.ª guerra na Ucrânia (2 de Maio de 2014-24 de Fevereiro de
2022) que opôs o Estado ucraniano às República populares de Lugansk e Donetsk —
as duas expressões mais avançadas da sublevação da população russa, russófona e,
na sua maioria, russófila do Sudeste e Sul da Ucrânia contra o golpe de Estado de
Maidan, em Quieve, no dia 22 de Fevereiro de 2014 (um golpe que derrubou inconstitucionalmente
Victor Yanukovitch, o presidente livremente eleito) e contra o regime russófobo
e liberticida que os golpistas instituíram na sequência desse golpe de Estado.
No capítulo 2 explico as causas contribuintes da 2.ª guerra na Ucrânia, que
opõe a Rússia à Ucrânia, um conflito a que não são de modo nenhum alheias as
opções políticas e geopolíticas do regime vigente na Ucrânia resultante do
golpe de Estado de Maidana e dos seus aliados (EUA, UE, OTAN).
[13] Esta linha de raciocínio militar, que faço minha, não foi desenvolvida por mim (não sou militar nem tenho conhecimento miliares suficientes para ter podido desenvolvê-la motu proprio). É da autoria do coronel Hervé Carresse (ver, p.ex., aqui: https://www.youtube.com/watch?v=4f_Hl1LLjPM&t=1584s, a partir do momento 26m10s), um analista militar francês muito sólido e arguto. Carresse é um dos poucos analistas militares (cerca de uma quinzena, contando nacionais e estrangeiros) que me habituei a escutar com atenção desde o início da segunda guerra na Ucrânia — a que começou em 24 de Fevereiro de 2022. Acabo de ver (30 de Novembro de 2024) um vídeo de Pepe Escobar onde este desenvolve uma linha de raciocínio semelhante (cf. Pepe Café, Oreshnik: o jogo inteiro muda a 3 km/s, https://www.youtube.com/watch?v=zy4Kv0gyFJ8 ).
[14]
Ultima ratio regum [Port.
“O último argumento do rei”), expressão latina que Luís XIV, rei de França,
mandou gravar no cano dos seus canhões.
[15]
Gerry Doyle, Tom Balmforth
& Mariano Zafra, “Enter «Oreshnik»”. Reuters, November 28, 2024.
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