Temas 1 e 2
Emmanuel Macron, António
Costa
e os
Acordos de Minsk
José Catarino Soares
Emmanuel Macron (à
esquerda) e António Costa (à direita) no Palácio do Eliseu. Foto: EPA |
Na
sua alocução de 5 de Março de 2025, Emmanuel Macron, presidente de França, afirmou
⎼ entre outras enormidades
cuja análise e refutação terão de ficar para outra oportunidade [1] ⎼ o seguinte:
«Não podemos esquecer que a Rússia começou a invadir a Ucrânia em 2014, que negociámos então um cessar-fogo em Minsk e que a mesma Rússia não respeitou esse cessar-fogo e que não fomos capazes de o manter por falta de garantias sólidas. Hoje, não podemos continuar a acreditar na palavra da Rússia».
Em
20 de Março de 2025, em entrevista à Antena 1, António Costa, presidente do
Conselho Europeu, afirmou na mesma veia:
«A Rússia não cumpriu o que foi acordado em Budapeste [1994], não cumpriu o que foi acordado em Minsk I [2014], nem em Minsk II [2015]. Vamos ver se cumpre o que for agora acordado».
Estas
declarações obrigam-nos a reexaminar [2] os Acordos de Minsk e a repor
a verdade dos factos que lhes são atinentes.
1. Mentiras e refutações
No
meu livro, Dissipando a Névoa Artificial da Guerra — um roteiro para o fim das
guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal
(Editora Primeiro Capítulo, Agosto 2023), mostrei, com base em factos
iniludíveis e bem documentados, que os EUA (sozinhos e com o apoio da
OTAN/NATO) violaram sistematicamente, ao longo de 25 anos, o que foi acordado,
em 1994, no Memorando de Budapeste sobre Garantias de Segurança (ver,
nomeadamente, pp.75-77 do livro supramencionado) e que a Ucrânia fez o mesmo,
através dos presidentes Petro Poroshenko e Volodymyr Zelensky (ver,
nomeadamente páginas 29-35, ibidem).
Mostrei
também que os Acordos de Minsk foram violados sistematicamente pelos presidentes
Poroshenko e Zelensky, com a cumplicidade activa da Alemanha (representada à
época pela chanceler Angela Merkel) e da França (representada à época pelo presidente
François Hollande), seus garantes por parte da Ucrânia (ver pp.19-21, ibidem) —
e também, acrescento agora, com a cumplicidade passiva de Emmanuel Macron (como
veremos mais adiante).
Petro Poroshenko, Angela Merkel e François Hollande deram-se mesmo ao luxo de se gabarem de o terem feito (v. pp.20-21, ibidem). Revelaram, já depois do começo da 2.ª guerra na Ucrânia (24 de Fevereiro de 2022),
#
― que nunca houve qualquer intenção de cumprir os Acordos de Minsk por parte da
Ucrânia, da França e da Alemanha;
#
― que esses acordos foram assinados (Ucrânia) e avalizados (França e Alemanha) por
estes três Estados exclusivamente porque a Ucrânia estava nessa altura a
ser derrotada militarmente pelos autonomistas da República Popular de Lugansk
(RPL) e da República Popular de Donetsk (RPD), na região da Donbass (sudeste da
Ucrânia);
#
―
e que a sua assinatura visou exclusivamente ganhar tempo para a Ucrânia poder lamber as feridas, rearmar-se
e refortalecer-se, de modo a poder “solucionar”
à bruta o problema nacional-autonomista dos oblasti
da Donbass e dos oblasti do
sul da Ucrânia (habitados, todos eles, por uma população maioritariamente russa
e/ou russófona e russófila): uma “solução” ao
estilo de Netanyahu, destruindo a ferro e fogo a RPD e a RPL e afogando em
sangue as reivindicações nacionais-autonomistas da sua população, e não por
meio de qualquer acordo ou compromisso diplomático.
2. Mais mentiras e
refutações
Mas
Macron vai ainda mais longe na sua alocução de 5 de Março de 2025. Não se
limita a afirmar mentirosamente que a Rússia não respeitou os Acordos de Minsk ⎼ acordos de Paz com
vastas implicações na revisão da Constituição da Ucrânia, mas que Macron reduz capciosamente
a um acordo de cessar-fogo ⎼ sabendo
perfeitamente que essa acusação se aplica exclusivamente à Ucrânia. Afirma
também que a Rússia «começou a invadir a Ucrânia em 2014».
Dispomos, felizmente, de preciosos
testemunhos, inclusive ucranianos, que deitam por terra essa afirmação de
Macron que ele, aliás, copiou de uma resolução no mesmo sentido do Parlamento Europeu,
aprovada em Setembro de 2014. O coronel Jacques Baud ⎼ ex-membro dos Serviços de Informações de Segurança da
Suíça, que estava, em 2014, a trabalhar na OTAN (/NATO) no quadro da intervenção
muito revelante que o seu país teve na construção dos Acordos de Minsk ⎼ relata:
«É evidentemente falso [que a Rússia tenha invadido a Ucrânia em 2014]: as alegações
vêm dos serviços de informações de segurança polacos, mas nunca foram confirmados pelos
observadores da OSCE [Organização de Segurança e
Cooperação Europeia]. Como é frequentemente o caso, o Parlamento Europeu
acusa, e chega mesmo a decretar sanções, sem quaisquer factos para sustentar as
suas acusações. Lá se vai o Estado de direito!
A 29 de Janeiro de 2015, o General Viktor Mouzhenko, chefe do Estado-Maior General ucraniano, reconheceu que não havia tropas russas em solo ucraniano e que só tinham sido observados combatentes russos individuais [simpatizantes da causa nacional-autonomista da população russa, russófona e russófila da Donbass, que se vieram alistar como voluntários nas milícias de autodefesa da RPD e da RPL, n.e.]. A sua afirmação foi confirmada em Outubro de 2015 pelo General Vasyl Hrytsak, chefe do Serviço de Segurança (SBU), que declarou que desde o início dos combates na Ucrânia oriental, apenas 56 militares russos tinham sido observados» [3].
Outra alegação frequente é a de que
o governo russo teria abastecido os rebeldes autonomistas da RPD e da RPL com
armamento de vários tipos. Mas também aqui a falsidade desta alegação foi
revelada pelo coronel Jacques Baud.
«Eu era, na altura, chefe da
unidade de proliferação de armas ligeiras da OTAN, e estava a vigiar o
surgimento de novas armas nas fileiras dos rebeldes para determinar se a Rússia
as estaria a fornecer. De facto, os rebeldes tinham na sua posse algumas armas
que nunca fizeram parte do arsenal do exército ucraniano. Isso foi o suficiente
para alimentar a acusação de intervenção russa.... Salvo que as armas em
questão tinham, de facto, feito parte do arsenal do Serviço de
Segurança Ucraniano [conhecido pela sigla SBU, n.e.] cujos
agentes tinham passado para o lado dos rebeldes!
Quanto ao armamento pesado, constatei que as peças de armamento observadas podiam ser sistematicamente associadas ao desaparecimento de uma unidade do exército ucraniano. Portanto, não havia nada que confirmasse o apoio logístico da Rússia nessa fase» [4].
Outra fonte das falsas alegações de
Macron é Petro Poroshenko, o primeiro presidente da Ucrânia eleito depois do
golpe de Estado sangrento de 2014. Em Junho de 2015, numa entrevista ao Corriero
della Sera, Poroshenko afirmou que a Rússia tinha enviado 200 mil
soldados para a Ucrânia. Mais tarde, em Setembro, perante a Assembleia Geral da
ONU em Nova Iorque, afirmou:
«Somos forçados a combater as tropas treinadas e armadas da Federação Russa. Armas pesadas e equipamento militar estão concentrados nos territórios ocupados em tais quantidades que os exércitos da maioria dos Estados membros da ONU só em sonhos os poderiam possuir».
São ambas mentiras descaradas, como
bem sabem aqueles que, no terreno, estavam a par da situação pelas funções que
desempenhavam, como era o caso do coronel Jacques Baud.
«Na realidade, não foi observado absolutamente nada. Além disso, se existissem 75 formações militares russas na Ucrânia, como foi declarado na Assembleia Parlamentar da OTAN em Istambul, em 19 de Novembro de 2016, teriam de ter sido observadas 464 colunas logísticas para apoiar operacionalmente essas unidades e bases para as tropas. Ora, os satélites de observação americanos não detectaram nada…. Em 2018, Alexander Hug, chefe adjunto da missão de monitorização da OSCE, admitiu à revista Foreign Policy que a OSCE não tinha feito quaisquer observações confirmando a presença de tropas russas na Ucrânia» [5].
3. Dois aldrabões
patenteados
A língua portuguesa oferece-nos um grande leque de sinónimos ou quase sinónimos para qualificar um mentiroso inveterado (alguém useiro e vezeiro em afirmar algo que é falso, ciente de que é falso), ou alguém useiro e vezeiro em fazer algo para enganar outrem: aldrabão, intrujão, embusteiro, enganador, farsante, impostor, mendaz, patranheiro, trampolineiro, trapaceiro, loroteiro, batoteiro.
Donde
se conclui que Emmanuel Macron e António Costa são dois aldrabões patenteados —
e não apenas num só sentido, mas nos dois sentidos do termo “patenteado”
(1. Algo que se tornou patente. 2. Algo que tem patente registada). Isto,
porque
«só um perfeito idiota acreditará que António Costa não sabe que quem mais se empenhou na assinatura e depois no cumprimento dos Acordos de Minsk (1 e 2) foi a Rússia e [que ele também não sabe] o que sobre os Acordos de Minsk disseram, depois da invasão russa, François Hollande (presidente da França naquela época) e Angela Merkel (então chanceler da Alemanha), quando ainda acreditavam que a Rússia ia ser derrotada, militar e economicamente, enquanto o Diabo esfrega um olho» [6].
Assim
sendo, sobre António Costa se pode acrescentar, a este propósito, que «é um mentiroso que nos toma a todos por estúpidos» [7] e
conjecturar ⎼ atendendo
aos seus antecedentes políticos (ministro, presidente de uma câmara municipal, primeiro-ministro
de um pequeno país europeu), à natureza do cargo institucional que actualmente
exerce (presidente do Conselho Europeu)
e
à extrema gravidade das mentiras em causa ⎼
que estaremos, porventura, perante
«um pobre coitado deslumbrado com os corredores de Bruxelas e a ilusória importância que acredita ser-lhe atribuída pela gente importante com quem partilha salgadinhos e canapés» [8].
Mas
Emmanuel Macron não lhe fica atrás, bem pelo contrário, porque dele se pode
dizer que, além de mentiroso patenteado, é um ignorantão — um ignorante que se
dá ares de sabichão [9].
4. A chamada telefónica de Macron a Putin em
20.02.2022
Porquê?
Porque o senhor Macron não leu sequer, leu mal ou tresleu os Acordos de Minsk,
como ficou patente ⎼ mas
passou despercebido à grande maioria dos observadores ⎼ na última conversa que
teve com Putin antes das tropas russas terem invadido a Ucrânia em 24 de
Fevereiro de 2022.
Foi
uma conversa telefónica [10], cujo conteúdo confidencial Macron teve o
desplante de revelar publicamente sem o consentimento da outra parte,
(cometendo assim uma violação da etiqueta diplomática), julgando que ela dava
lustro às suas pretensões de “grande estadista”,
mas que acabou por ser um tiro que lhe saiu pela culatra, porquanto
(1)
o desqualificou completamente como interlocutor confiável aos olhos de Putin e
da diplomacia russa [11];
(2) e
nos ofereceu uma prova tangível de que Macron (2.a) ou não leu, (2.b)
ou leu apenas na diagonal, ou então (2.c) tresleu os Acordos de Minsk —
ou seja, leu-os do princípio ao fim mas não conseguiu entender o seu conteúdo.
Pela minha parte, inclino-me para a terceira hipótese (2.c).
Vou
citar seguidamente o trecho mais importante, relativamente ao ponto (2),
dessa conversa telefónica entre os dois presidentes, que ocorreu em 20 de
Fevereiro de 2022 [12].
Antes,
porém, cumpre advertir os leitores de duas coisas. 1.ª) As indicações de
emotividade entre colchetes no início de algumas falas pertencem à transcrição
e tradução francesa original. 2.ª) Como não sei Russo, sou forçado a tomar como
boa a tradução francesa das intervenções de Putin, embora duvide muito dela num
ponto: a forma de tratamento por “tu” que ele
terá empregado para tratar o seu interlocutor francês, a qual não se coaduna de
todo com o estilo formal de conduta do presidente russo [13].
7 de Fevereiro de 2022. Encontro de Macron com
Putin em Moscovo. O sistema mediático dominante de comunicação social do
“Ocidente alargado” rejubilou com a mesa de 6 metros de comprimento que separava
os dois homens, vendo nela uma maquiavélica medida do diabólico Putin para
humilhar o inofensivo Macron. Mas foi apenas uma medida profiláctica destinada
a proteger a saúde do presidente russo sem ter de bater com a porta na cara ao
presidente francês, no seguimento da recusa de Macron de se submeter a um teste
russo à Covid-19 administrado pelo Kremlin. |
«Emmanuel
Macron:
Desde a nossa última conversa [em 7 de Fevereiro de 2022], as tensões continuaram a aumentar e conheces o meu
empenhamento e a minha determinação em prosseguir o diálogo. Gostaria que, em
primeiro lugar, me desses a tua leitura da situação e, talvez de uma forma
bastante direta, como ambos fazemos, me dissesses quais são as tuas intenções.
Depois disso, gostaria de ver se há acções úteis que possam ser tomadas e de te
fazer algumas propostas.
Vladimir
Putin:
O que é que eu posso dizer? Podes ver por ti próprio o que se está
a passar. Tu e o chanceler Scholz disseram-me que Zelensky estava pronto para
avançar, que tinha preparado um projecto de lei para aplicar os Acordos de
Minsk... Na realidade, o nosso caro colega Zelensky não está a fazer nada. Está
a mentir-vos. Não sei se ouviram a sua declaração de ontem, em que dizia que a
Ucrânia devia ter acesso a armas nucleares.
Ouvi também os teus comentários na conferência de imprensa em Quieve,
a 8 de Fevereiro. Disseste que os Acordos de Minsk tinham de ser revistos, e
passo a citar, “para que possam ser aplicados”.
Emmanuel
Macron:
Vladimir, antes de mais, eu nunca disse que os Acordos de Minsk
tinham de ser revistos. Nunca disse isso em Berlim, Quieve ou Paris. Disse que
tinham de ser aplicados, que as coisas tinham de ser respeitadas, e não tenho a
mesma interpretação do que se passou nos últimos dias que tu tens.
Vladimir
Putin:
Ouve, Emmanuel, não compreendo o teu problema com os
“separatistas”. Pelo menos, eles fizeram tudo o que era necessário, por
insistência nossa, para encetar um diálogo construtivo com as autoridades
ucranianas.
Emmanuel
Macron:
Relativamente ao que disseste, Vladimir, gostaria de fazer uma
série de comentários: em primeiro lugar, tens toda a razão quando dizes
[aqui Macron tenta pôr na boca de Putin coisas que Putin não disse n.e.] que os Acordos de Minsk são um diálogo [da
Ucrânia] convosco.
Nesse contexto, não está previsto que a base de discussão seja um texto
apresentado pelos separatistas. Portanto, quando o vosso negociador tenta
forçar os ucranianos a discutir com base em roteiros apresentados pelos
separatistas, não está a respeitar os Acordos de Minsk. Não são os
separatistas que vão fazer propostas sobre as leis ucranianas! [realce
por meio de traço grosso acrescentado ao original, n.e.]
Vladimir
Putin:
É claro que temos uma visão completamente diferente da situação. Durante
a nossa última reunião, recordei-te e até li os artigos
9, 11 e 12 dos Acordos de Minsk. [Putin refere-se aqui aos artigos 9, 11, e 12 do Acordo de
Minsk II, também conhecido por Resolução 2202 (2015), aprovada por unanimidade
pelo Conselho de Segurança da ONU na sua sessão n.º 7384 no dia 17 de Fevereiro
de 2015, n.e.]) [n.e.= nota editorial]
Emmanuel
Macron:
Tenho-os mesmo à minha frente! Está claramente escrito que o
governo da Ucrânia ⎼ parágrafo 9, etc. ⎼
propõe, e que o faz em consulta e acordo com os representantes de certos
distritos das regiões de Donetsk e Lugansk, no âmbito do grupo de contacto
tripartido. É exactamente isso que estamos a propor fazer. Por isso, não sei
onde é que o teu jurista aprendeu Direito! Eu limito-me a olhar para os
textos e a tentar aplicá-los! E não sei que jurista pode dizer-te que,
num país soberano, as leis são propostas por grupos separatistas e não pelas
autoridades democraticamente eleitas. [realce por meio de
traço grosso, aqui e na fala anterior, acrescentado ao original, n.e.]
Vladimir
Putin:
[em
tom firme e irritado] Este não é um governo democraticamente
eleito. Chegaram ao poder através de um golpe de Estado, houve pessoas que
foram queimadas vivas, foi um banho de sangue e o Zelensky é um dos
responsáveis.
Ouve-me com atenção: o princípio do diálogo é ter em conta os
interesses da outra parte. Os separatistas, como tu lhes chamas, transmitiram
as suas propostas aos ucranianos, mas não obtiveram qualquer resposta. Onde é
que está o diálogo?
Emmanuel
Macron:
Mas não obtiveram porque, como acabei de te dizer, estamo-nos
nas tintas para as propostas dos separatistas! O que lhes pedimos é que
respondam aos textos ucranianos, e é assim que deve ser feito, porque é a lei!
O que acabaste de dizer põe até em dúvida, de certa forma, a tua vontade de
respeitar os Acordos de Minsk, se achas que estás perante autoridades não legítimas
e terroristas. [realce por meio de traço grosso acrescentado
ao original, n.e.]
Vladimir
Putin:
[ainda
muito irritado] Ouve-me com atenção. Estás a ouvir-me?
Repito, os separatistas, como lhes chamas, reagiram às propostas das
autoridades ucranianas. Reagiram, mas as ditas autoridades não lhes deram
seguimento.
Emmanuel
Macron:
Muito bem: com base na resposta deles aos textos ucranianos, o que
proponho é que exijamos que todas as partes se reúnam no âmbito do grupo de
contacto para continuarem a fazer progressos. Amanhã podemos pedir que esse
trabalho seja efectuado e exigir a todas as partes envolvidas que não haja uma
política de cadeiras vazias. No entanto, nos últimos dois dias, os separatistas
recusaram-se a participar nesta discussão. Vou exigir isto a Zelensky. Estamos
de acordo? Se estivermos de acordo, eu avanço com esse acordo e exijo uma
reunião amanhã.
Vladimir
Putin:
Para que fique claro, assim que desligarmos, vou estudar essas
propostas. Mas, desde o início, devíamos ter exercido pressão sobre os
ucranianos, mas ninguém o quis fazer.
Emmanuel
Macron:
Mas sim, estou a fazer tudo o que posso para os pressionar, como
bem sabes.
Vladimir
Putin:
Eu sei, mas infelizmente não está a resultar».
5. Um verbo-de-encher
e um ignorantão
A
importância dos Acordos de Minsk é por demais evidente [14].
O seu cumprimento pela Ucrânia, a Alemanha e a França (os seus garantes por
parte da Ucrânia) e o seu respeito pelos EUA teriam posto fim à primeira guerra
na Ucrânia (a que começou em 2 de Maio de 2014 entre a Ucrânia, de um lado, e a
RPD e a RPL do outro) e teriam evitado a eclosão da segunda guerra na Ucrânia
(a que começou em 24 de Fevereiro de 2022 entre a Rússia, a RPD e a RPL de um
lado, e a Ucrânia, do outro, esta última quase imediatamente secundada pelo “Ocidente alargado” [com especial destaque para os
EUA, a UE, o RU e a OTAN/NATO] que a tem apoiado em tudo menos tropas
regulares).
Contrariamente
ao que se esforça por aparentar há mais de três anos através de uma frenética
actividade mediática de declarações tonitruantes, viagens inopinadas, ameaças
veladas, cimeiras atabalhoadas, Macron nunca contribuiu em nada para a paz na
Ucrânia e na Europa, muito pelo contrário. Foi sempre e continua a ser um
verbo-de-encher, como ficou bem patente, mais uma vez, nessa conversa
telefónica de 20 de Fevereiro de 2022, em que mostrou também ser um ignorantão.
Quando
Macron afirma peremptoriamente «estar-se nas tintas para
as propostas dos separatistas» (ou seja, para as propostas dos
representantes da RPD e da RPL) e que os Acordos de Minsk foram celebrados
entre a Rússia e a Ucrânia (e não entre a Ucrânia e a RPD + RPL) exibe a sua
arrogância e a sua ignorância atrevida em todo o seu esplendor.
Mapa do território da RPD e da RPL (a vermelho) entre 11 de Fevereiro de 2015 e 24 de Fevereiro de 2022, nos oblasti de Donetsk e Luhansk (as zonas limítrofes a amarelo). |
Porque
qualquer pessoa que leia os artigos 9, 11 e 12 do Acordo de Minsk II ⎼ os artigos que Vladimir
Putin recomendou que Emmanuel Macron lesse ou relesse ⎼ verificará que eles
dizem exactamente o contrário do que Macron afirma.
― «Artigo 9. Restabelecimento do controlo total da fronteira do Estado ucraniano pelo governo da Ucrânia na área do conflito, que deverá começar no dia a seguir às eleições locais e terminar após a resolução política global (eleições locais em certas zonas das regiões de Donetsk e Lugansk com base na legislação ucraniana e na reforma constitucional) a ser finalizada até ao final de 2015, desde que o artigo 11 tenha sido implementado em consulta com, e mediante acordo com, os representantes de certas zonas das regiões de Donetsk e Lugansk, no âmbito de o Grupo de Contacto Trilateral».
— «Artigo 11. A
elaboração de uma reforma constitucional na Ucrânia e a entrada em vigor, até
ao final de 2015, de uma nova constituição, cujo elemento essencial será a
descentralização, tendo em conta as especificidades de certas zonas das regiões
de Donetsk e Lugansk, a definir de acordo com os seus representantes, e a adopção, antes do final de 2015, de
legislação permanente relativa ao estatuto especial de certas áreas das regiões
de Donetsk e Lugansk, em conformidade com as medidas enunciadas na nota
abaixo».
— «Artigo 12. Com base na lei relativa às modalidades temporárias do exercício da autonomia local em certas zonas das regiões de Donetsk e Lugansk, as questões relacionadas com as eleições locais serão objecto de uma discussão e de um acordo com os representantes de certas zonas das regiões de Donetsk e Luhansk no quadro do Grupo de Contacto Trilateral. As eleições serão realizadas no respeito das normas pertinentes da OSCE e monitorizadas pelo Gabinete das instituições democráticas e dos direitos humanos da OSCE». [destaques a traço grosso e a traço grosso + cor de laranja acrescentados ao original, n.e.]
A
expressão “certas zonas das regiões de Donetsk e
Luhansk” é um eufemismo para designar a República Popular de Donetsk (RPD)
e a República Popular de Lugansk (RPL).
A
expressão “os representantes de certas zonas das
regiões de Luhansk e Donetsk”, é um eufemismo para designar os
representantes da RPL e da RPD — que eram, na ocorrência, A.V. Zakhartchenko
[primeiro-ministro da República Popular de Donetsk] e I. V. Plotnitski
[presidente da República Popular de Lugansk].
O
“Grupo de Contacto Trilateral” mencionado nos artigos
9 e 12 do Acordo de Minsk II era constituído por Heidi Tagliavini, [Embaixadora
da Suíça, representante da OSCE], L.D. Kuchma [ex-Presidente da Ucrânia] e Mikhaïl
Y. Zourabov [Embaixador da Rússia na Ucrânia].
Como
mostram os artigos citados (entre outros), e, ao contrário do que Macron nos
quer fazer crer nas suas intervenções durante a conversa com Putin, os acordos
de Minsk não foram celebrados para vincular o governo da Rússia a respeitar a
integridade territorial da Ucrânia, mas para vincular o governo da Ucrânia a
respeitar os direitos autonómicos dos seus cidadãos russos e/ou russófonos e
russófilos da região da Donbass.
Ao
contrário do que Macron nos quer fazer crer, os rebeldes russos, russófonos e russófilos
da RPD e da RPL não eram, inicialmente [15], “separatistas”, como Macron e o seu antecessor,
François Hollande, lhes chamam.
Em
Maio de 2014, a população de algumas áreas dos oblasti
de Donetsk e Lugansk, revoltada e sublevada contra o golpe de Estado sangrento
de Maidan (Quieve), em 22 de Fevereiro de 2022, que derrubou inconstitucionalmente
o presidente livremente eleito, Viktor Yanukovitch, e contra a supressão dos
direitos linguísticos e culturais da população russófona pelo governo saído do
golpe de Estado, decidiu realizar referendos para expressar livre e
democraticamente a sua vontade soberana.
Esses
referendos destinavam-se a sufragar a Lei de
Autodeterminação da República Popular de Donetsk (que foi aprovada por
89% dos cidadãos residentes nas áreas sublevadas desse oblast) e a Lei de
Autodeterminação da República Popular de Lugansk (aprovada por 96% dos
cidadãos residentes nas áreas sublevadas desse oblast).
O
sistema mediático dominante dos órgãos de comunicação social do “Ocidente alargado” refere-se a esses referendos como
tendo sido referendos de “independência”. Mas
isso não é exacto: foram referendos de “autodeterminação”
ou “autonomia” (самостоятельность,
em Russo). E foi essa mesma autodeterminação ou autonomia local que foi
consagrada nos Acordos de Minsk, em particular nos artigos 9, 11 e 12, do
Acordo de Minsk II.
Esse
desiderato implicava, como referem esses artigos, uma profunda reforma
constitucional da Ucrânia ⎼ na
prática, uma nova Constituição da Ucrânia ⎼ e
legislação permanente que garantissem o estatuto especial autonómico da RPL e da
RPD no quadro de uma Ucrânia descentralizada e, possivelmente, federalizada. Falar
de “separatistas” e “repúblicas
separatistas” no quadro dos Acordos de Minsk, é pura e desavergonhada desinformação
destinada a enganar a opinião pública.
Tal
como se afirma nos Acordos de Minsk, não se tratava de “separar” as Repúblicas de Donetsk e Luhansk (ou Lugansk, em Russo)
da Ucrânia, que são aí definidas como “partes do
território da Ucrânia.” Por conseguinte, a aplicação desses acordos
baseava-se, exclusivamente, em negociações entre o governo de Quieve e os representantes
da RPD e da RPL [os tais “representantes de certas zonas
das regiões de Donetsk e Luhansk” (artigos 9.º, 11.º e 12.º)] no quadro
do grupo de contacto tripartido.
Ora,
o que nos diz Macron? “Que se estava nas tintas”
(!!) para as propostas que os representantes da RPD e da RPL apresentaram para
negociação nesse quadro e que, como vimos, estes não tinham sequer qualquer direito
de apresentar as suas propostas (!!) para negociação das formas institucionais
capazes de garantir a sua autonomia.
E
como se isto ainda fosse pouco para mostrar a sua profunda e bacoca arrogância,
Macron resolveu também exibir a sua profunda e atrevida ignorância da letra e
do espírito dos Acordos de Minsk, invectivando Putin e escarnecendo das suas
competências jurídicas. E logo Putin, que é formado em direito e ´que é conhecido
pelo seu apego à doutrina jurídica e pelo seu grande traquejo em direito constitucional!
É como se ⎼
mal comparado (mas não me ocorre de momento um símile melhor) ⎼ um sacristão tão tacanho
quanto atrevido decidisse ensinar o Padre-Nosso em Latim ao vigário de Roma…
6. Mentiras que custaram
muitas vítimas inocentes
Em
conclusão: Emmanuel Macron, presidente da República Francesa, e António Costa, presidente
do Conselho Europeu, poderão ser pessoas encantadoras para os seus familiares e amigos mais próximos.
Porém, para o comum dos cidadãos de França e dos demais países membros da UE (entre
os quais Portugal) estes dois homens representam graves perigos públicos
relativamente aos quais todo o cuidado é pouco. O caso não é para menos: as
suas mentiras sobre os Acordos de Minsk já custaram centenas de milhares de
mortos e estropiados e milhões de vidas desfeitas na Ucrânia e na Rússia.
………………………………………………………………………….
Notas e Referências
[1] Tais
como, «Neste preciso momento, a Rússia tornou-se uma
ameaça para a França e para a Europa nos próximos anos».
[2] Digo
“reexaminar” porque examinei esses Acordos em dois artigos anteriores publicados
neste blogue: As guerras na Ucrânia eram evitáveis: os acordos de Minsk (2014-2015) e as
propostas de tratado da Rússia (2021) , em 4 de Agosto de 2022 [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2022/08/tanta-omissaodeliberada-tanta-mentira. html] e Quatro
proposições falsas, em 24 de Setembro de 2022 [https://tertulia orwelliana.blogspot.com/2022/09/falsidades-e-mentirassobre-as-guerras.html].
[3]
Jacques Baud, Poutine: Maître du jeu? Paris. Éditions Max Milo. 2022. As
declarações do general Viktor Muzhenko foram feitas, no dia 29 de Janeiro de
2015, à estação de televisão ucraniana Canal 5, entretanto proibida e
encerrada por Zelensky em 2022. Durante muitos anos estiveram disponíveis no YouTube
(“No Russian Troops in Ukraine says Kiev General”, YouTube, 1 de
Fevereiro 2015 [https://www.youtube. com/watch?v=T0x0 mnrq9j4].
Ainda podem ser encontradas em
https://life.ru/p/149116.
Outras fontes que deram essa notícia são as seguintes: (i) “Ukrainian
Government: “No Russian Troops Are Fighting Against Us,” January 30, 2015 [http://www.washington sblog.com/2015/01/ukrainian-government-russian-troops-fighting-us.html];
(ii) “Ukraine chief of staff ‘thwarts Western allegations’ by admitting
no combat with Russian troops.” January 30, 2015 [https://www.rt.com/news/228043-ukraine-conflict-army-russia/];
(iii) Eric Zuesse, “Ukraine Government: «No Russian troops are fighting
against us».” Foreign Policy in Focus (FPIP), February 3, 2015. Sobre as
declarações do SBU, ver (i) “Only 56 Russians Fought in Ukraine — says Ukraine’s
State Security (SBU)” (YouTube, 7 Fevereiro 2016); (ii) Interfax.
Ukraine, “SBU says 56 Russians in military actions against Ukraine since
conflict began.” Kyiv Post. October 10, 2015.
[4]
Jacques Baud, ibidem.
[5]
Jacques Baud,
ibidem. As declarações do general Alexander Hug foram feitas numa entrevista
com Amy Mackinnon, “Counting the Dead in Europe’s Forgotten War,” Foreign
Policy, October 25, 2018.
[6] Joaquim
Camacho, Comentário a “A União Europeia é o reino da incoerência”, in Estátua
de Sal. Março 22, 2025 às 5:50 am.
[7] Joaquim Camacho, ibidem.
[8] Joaquim Camacho, ibidem.
[9] O
filósofo Karl Popper recomendava que, numa refutação, o refutador (a) se
concentrasse nas proposições asseveradas e nos argumentos esgrimidos pelo
visado pela refutação. Foi o que aqui fiz, como sempre faço. Popper recomendava
também que (b) se evitassem os ataques ad hominem.
Esta
dupla recomendação vale igualmente para uma discussão racional, de natureza,
filosófica, científica ou outra (militar, desportiva, jurídica, artística,
etc.). Os discussantes devem concentrar-se nas proposições e argumentos uns dos
outros e abster-se de ataques ad hominem.
Convém,
porém, esclarecer que as duas regras, (a) e (b), assentam no
pressuposto que todas as partes estejam de boa-fé e, sobretudo, que não mintam.
Ora, na política ⎼
o campo onde se afrontam directamente poderosíssimos interesses materiais antagónicos
e programas de acção conflituantes ⎼
este pressuposto é amiúde violado, sobretudo, pelas oligarquias vigentes e os
seus diversos comissários, procuradores, gestores, gurus, propagandistas,
activistas e cães de fila. Torna-se, por isso, impossível nesses casos (a menos
que se aceite a procrastinação e a hipocrisia), limitar-se a cumprir a regra (a)
e abster-se de chamar sacripantas aos sacripantas, em nome do cumprimento da
regra (b). O imperativo ético é, nesses casos, considerar inaplicável a
regra (b) de Popper, sobretudo quando as mentiras dos sacripantas
acarretam ou acarretaram a morte, o estropiamento, o desenraizamento e a
degradação abrupta das condições de vida de milhões de pessoas, como ocorreu
no caso dos Acordos de Minsk.
[10] Macron
autorizou unilateralmente que a chamada telefónica que fez a Putin em 20 de
Fevereiro de 2022 fosse captada pela equipa do documentário Un Président,
l’Europe et la Guerre [Um Presidente, a Europa e a Guerra] que conta os
bastidores diplomáticos de seis meses de actividade do presidente Macron no
Palácio do Eliseu. O documentário foi realizado por Guy Lagache e transmitido,
no dia 30 de Junho de 2022, no canal de televisão francês France 2.
[11] «A etiqueta diplomática não permite a fuga unilateral de
gravações», observou o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei
Lavrov durante uma viagem ao Vietname, feita pouco depois da divulgação
unilateral da conversa telefónica entre Macron e Putin. Lavrov acrescentou que
a Rússia não tinha nenhuma razão para se envergonhar relativamente ao conteúdo
da conversa entre os dois presidentes. «Conduzimos
sempre as negociações de forma a não termos nada de que tenhamos de nos
envergonhar. Dizemos sempre o que pensamos, estamos prontos a responder pelas
nossas palavras e a explicar a nossa posição», afirmou. Pelo seu lado, a
agência pública russa Ria Novosti ⎼
equivalente à Agência Lusa em Portugal ⎼ já
tinha feito uma referência discreta ao documentário de Guy Lagache em 30 de Junho,
no próprio dia da divulgação do documentário de Guy Lagache. No Twitter,
a agência noticiosa russa denunciou o facto de «há
muito tempo que os franceses deixaram de respeitar as regras diplomáticas das
negociações».
[12] O
trecho que traduzi foi extraído da transcrição verbatim (com tradução
para francês das falas do presidente russo) de toda a conversa de 9 minutos que
foi publicada pelo jornal suíço Le Temps com a AFP, em 25 de Junho de
2022.
[13] É
sabido que os idiomas românicos (incluindo o Francês e o Português) e os
idiomas eslavos (incluindo o Russo e o Polaco) distinguem claramente a forma de
tratamento por “tu” e a forma de tratamento por
“vós” ou “você”
ou “o senhor/a senhora”. É também sabido que Macron
faz gala em tutear os seus pares do mesmo sexo — Putin, Trump, Scholz, etc. Nem
o próprio papa Francisco escapou a ser tuteado pelo impagável Macron! (Ana Michelot, ‘Le pape François, Donald Trump…
Emmanuel Macron a le tutoiement facile, et ce n’est pas anodin !’’Gala, 1
Mars 2025). Porquê ? Segundo dois semiólogos (Mariette
Darrigand et Élodie Mielczareck), que estudaram as suas interacções verbais com
outros chefe de Estado, «o tratamento por tu pode dar
uma ilusão de cumplicidade, uma maneira de dizer: “Estamos entre
dirigentes, falemos francamente”». O tratamento por “tu”, é também «uma maneira do
chefe de Estado se impor perante os seus interlocutores e se colocar em pé de
igualdade com eles». Quando
Macron, por exemplo, trata por “tu” o Papa
Francisco, como o fez em 2018, ou com Putin em 2017, «é
uma forma de impor um equilíbrio de poder, de se impor como um par, transgredindo
deliberadamente as normas do protocolo e, ao fazê-lo, transmitir os valores do
“novo mundo”, minando o velho». Mas convém que se saiba que Macron é um
perfeito hipócrita, já que não admite que os cidadãos franceses o tratem por “tu” (Olivier Doneau, “Emmanuel Mácron, le ministre
auquel ON ne dit pas «tu»”. Marianne, 6/06/2016).
Em
resumo, na sua imensa vaidade narcísica Macron julga-se autorizado a infringir tanto
as regras elementares da cortesia dialogal, como as regras da etiqueta diplomática,
desde que saiba que os seus interlocutores ocupam cargos institucionais semelhantes
ao seu, mas não admite a reciprocidade de tuteamento com os seus concidadãos. Por
tudo isto, conjecturo que o tradutor francês terá decidido pôr o presidente
russo a tratar por “tu” o presidente francês,
para que este último não ficasse isolado no seu comportamento de falsa familiaridade
com o seu interlocutor.
[14] Os
acordos de Minsk I e Minsk II foram traduzidos e publicados na íntegra nos
anexos 3 e 4 do meu artigo, “As guerras na Ucrânia
eram evitáveis: os Acordos de Minsk (2015) e as propostas de Tratado da Rússia
(2021)”. (In Tertúlia Orwelliana, Arquivo do Blogue. 4 de
Agosto de 2022 [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2022/08/tanta-omissaodeliberada-tanta-mentira.html]).
[15] Na
verdade, foi o incumprimento reiterado dos Acordos de Minsk por parte da Ucrânia,
com a concomitante guerra continuada que as suas tropas travaram ao longo de
oito anos contra a RPD e a RPL e o cortejo de vítimas que ela provocou [*] que
transformou a aspiração autonomista da população russa, russófona e russófila
dessas duas repúblicas numa aspiração separatista.
[*] «Em 31 de Dezembro de 2021,
quando essa guerra já ia no seu sétimo ano consecutivo, o número das suas
vítimas já andava entre as 51.000 e 54.000. O número de mortos andava entre os
14.200 e 14.400, dos quais 3.404 civis, 6.500 membros das milícias populares de
autodefesa da RPD e da RPL, 4.400 elementos das tropas ucranianas. O número de
feridos andava entre os 37.000 e 39.000, dos quais 7.000-9.000 civis, 15.800 -16.200
membros das milícias da RPD e da RPL, 13.800-14.200 elementos das tropas
ucranianas» (José Catarino Soares, op. cit., pp.21-22). Fonte
primária: Alto-Comissariado do Direitos Humanos, ONU.
Eis um excelente esclarecimento e desmonte das mentiras, tudo muito bem alicerçado em factos objectivos. Gostaria de ir um pouco mais longe e referir dois pontos que me parecem cruciais. O primeiro é: constatadas as mentiras, importa perguntar porque mentem tão descaradamente os lídertes europeus? Se a sua causa fosse legítima e justa, se tivessem a certeza da ética das suas posições, não precisavam de mentir. Mas eles precisam mesmo de mentir, pois têm plena consciencia de estarem do lado errado da história, querendo continuar a tentar enganar os povos europeus e fingindo que ainda têm alguma credibilidade. E daqui passamos ao 2º ponto, as consequências. E aqui temos de ir bem mais longe. O texto de Catarino torna muito claro que as elites europeias sempre quiseram a guerra e sempre torpedearam as tentativas de paz até hoje e tudo indica que o vão continuar a fazer. A farsa dos acordos de Minsk e tudo o que se seguiu significam que o que sempre quiseram foi a guerra, com o mais total desprezo pelas suas terríveis consequências. Ainda agora, a totalidade dos seus discursos só fala de guerra e nunca de paz, apesar das teatrais cimeiras com o nome errado. Com a antiquada mentalidade da Guerra Fria, continuam a encarar a Rússia como o inimigo perpétuo, o inimigo de estimação, sem nunca se interrogarem a quem serve essa demonização ou o porquê de tanta agressividade anti-russa. É evidente que tal estado de coisas só beneficia a postura imperial de Washington e prejudica seriamente todos os interesses dos povos europeus. Logo, esses líderes estão a levar a Europa para um grave conflito que é a total negação dos interesses dos cidadãos e procura apenas beneficiar o antigo amigo que agora virou o mais intenso e implacável inimigo. Se é Trump que afirma repetidamente ir invadir o Canadá, a Gronelândia, Panamá e México, esses ainda afirmam que o inimigo é Putin que não ameaça invadir ninguém (a não ser que devidamente provocado)
ResponderEliminar“a tarefa central do momento é mostrar que o inimigo de Macron e quejandos só existe nas suas pobres cabeças”
ResponderEliminar- «...nessa altura a ser derrotada militarmente pelos autonomistas da República Popular de Lugansk (RPL) e da República Popular de Donetsk (RPD), na região da Donbass (sudeste da Ucrânia)» - Quem treinou, armou, acrescentou e sustentou esses autonomistas»?
- Em algum momento pós- Minsk, teve a Ucrânia acesso ao controlo das suas fronteiras com a Rússia para que pudesse cumprir-se o que que aí se tenha acordado que haveria de implementar nas regiões acima?
Não é a primeira vez ⎼ nem será, presumo, a última ⎼ que aparecem aqui comentários que são assinados por duas pessoas distintas e com opiniões muito diferentes uma da outra, mas que correm o risco de passarem por ser uma só, porque usam o mesmo nome. Uma delas assina “jose” (com minúscula inicial e sem acento na vogal final) e a outra assina “Jose” (com maiúscula inicial e sem acento na vogal).
ResponderEliminarGostaria de lhes sugerir que se diferenciassem mais no nome que usam — por exemplo, acrescentando outro nome ou outra letra ao nome que usam (e.g. “Jose Z”, vs “jose X), para evitar confusões. E que nos lembrassem o nome que usavam, da primeira vez que usassem o novo. Por exemplo, Jose Z (ex-Jose) vs, jose X (ex-jose).
Respondo à duas perguntas de Jose pela ordem inversa:
ResponderEliminar1) A Ucrânia só poderia recuperar (pacificamente) o controlo total da sua fronteira com a Rússia na Donbass no dia a seguir às eleições locais para os órgãos de autogoverno da RPL e da RPD. Por sua vez, estas eleições só poderiam realizar-se depois de finalizada a reforma da Constituição da Ucrânia que consagrasse a autonomia política-administrativa-cultural dessas duas regiões (com prazo máximo de realização marcado até ao final de 2015) e depois de ser aprovada legislação permanente sobre as eleições para esses órgãos de autogoverno em conformidade com as disposições da Constituição reformada. É o que está escrito, muito claramente nos artigos 9.º, 11.º e 12.º do Acordo de Minsk II, citados no meu artigo. A Ucrânia nunca realizou essas tarefas legislativas, nem com Poroshenko nem com Zelensky, porque não quis. Pelo contrário, intensificou a guerra contra a RPD e a RPL, com os resultados que se conhecem. Por isso, nunca conseguiu recuperar o controlo dessa fronteira.
Nem conseguirá, porque “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, /Muda-se o ser, muda-se a confiança;/Todo o mundo é composto de mudança, /Tomando sempre novas qualidades (Luís de Camões). Hoje ⎼ depois de onze anos de guerra sem quartel que a Ucrânia lhe moveu (mesmo depois da Rússia vir em seu auxílio nos últimos três desses onze anos) ⎼ a população de Lugansk, Donetsk, Querson e Zaporijia (que é, na sua grande maioria russa, russófona e russófila) perdeu todas as suas ilusões autonomistas e tornou-se separatista. Aprendeu à sua custa que a sua “autonomia” no quadro da Ucrânia seria idêntica à da Cisjordânia ou, pior ainda, à da faixa de Gaza relativamente a Israel ⎼ ou seja, fictícia ou nula ⎼ e que só a sua integração na Federação Russa a poderá proteger das humilhações do apartheid ucrano-banderista e dos tormentos da guerra. Uma prova disso são as centenas de milhares de habitantes desses oblasti que fugiram ou foram obrigadas a abandonar as suas casas no início da 2.ª guerra na Ucrânia (a que começou em 24 de Fevereiro de 2022), que estão desde há um ano a regressar à suas terras de origem, agora integradas na Federação Russa. Este é um facto reconhecido pela própria imprensa ucraniana (v. por exemplo, “150,000 Ukrainian IDPs have returned to occupied regions, MP says”. The Kyiv Independent, November 24, 2024; “As government cuts support, some internally displaced Ukrainians return home — to Russian occupation”, The Kyiv Independent, January 4, 2025).
2) Já respondi à primeira questão (“Quem treinou, armou, acrescentou e sustentou os autonomistas da RPL da RPD?”) no artigo, evocando o testemunho do coronel Jacques Baud. Foram as Forças Armadas Ucranianas (FAU, para abreviar) e o Serviço de Segurança da Ucrânia (conhecido pela sigla SBU).
ResponderEliminarEsta afirmação pode parecer um paradoxo, mas não é, se tivermos em conta
três factos. 1.º) À época, os conscritos que integravam as FAU e a grande maioria dos membros da SBU eram recrutados e treinados a nível regional e local. 2º) A grande maioria dos homens que constituíam as unidades das FAU e da SBU nos oblasti de Luhansk e Donetsk (como nos demais oblasti do sudeste e sul da Ucrânia), eram, por conseguinte, russos, russófonos e russófilos. 3.º Não surpreende, por isso, que, à primeira ocasião, muitos tenham desertado, com armas, munições e bagagens (incluindo carros de combate, vulgo tanques de guerra) para o campo dos autonomistas, fornecendo grande parte dos efectivos das milícias de autodefesa da RPD e da RPL.
Uma reportagem recente do jornal El País nos oblasti integrados na Rússia dá conta desse processo. «Dias antes de a Rússia lançar a sua invasão total da Ucrânia em 2022, as autoridades [ucranianas] de Luhansk e Donetsk ordenaram que os homens entre os 18 e os 55 anos se alistassem. Milhares foram imediatamente enviados para a guerra em Donbass e Mariupol. Morskoy [o indivíduo que o repórter do El País está a entrevistar, n.e.] não foi convocado devido a um problema ocular. Embora seja a favor do recrutamento, Morskoy não concorda com a forma como foi efectuado: “É preciso, pelo menos, um mês para nos prepararmos, para aprendermos a disparar”, diz. “Apanharam as pessoas nos mercados. Fomos mobilizados pela força, mas o nosso Putin deu-lhes [aos criminosos] um inferno. Ele lixou-os bem por causa disso e foi o fim da história”» (Javier G. Cuesta, “RUSSIA'S WAR IN UKRAINE. Mariupol and Donetsk after a thousand days of war: «We want peace and quiet»”, El País. Nov 25, 2024). [n.e.= nota editorial]
Corrijo, em 1) * às duas perguntas; * às suas terras de origem
ResponderEliminarHonrado pela referência, um abraço.
ResponderEliminarHonrado pela leitura. Retribuo o abraço.
EliminarPercebi.
ResponderEliminarA Rússia não teve nada a ver com a revolta e a luta nos bocados a vermelho no mapa de Donetsk e Luhansk.
Ao Estado da Ucrânia competia esperar os resultados de eleições que teriam lugar numa parte do seu território ao qual não teria acesso.
Então como agora falar em cessar fogo era exercício retórico.
Este é um tempo em que se combina a autocracia russa e a grunharia americana...
ResponderEliminarMudam-se os tempos mudam-se as vontades... virão mudanças.