Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

12 setembro, 2019


Temas 2 e 3


“Hackers”, “crackers” e “whistleblowers”


José Manuel Catarino Soares


Clara Ferreira Alves (CFA, para abreviar) define-se como «uma sujeita que vende opiniões.» 

«Como toda a gente sabe, eu vendo opiniões. Há quem as dê, quem as registe, quem as tome como quem toma um remédio ou um elixir. Eu vendo» (CFA, Estado de Guerra, 2012). 

A opinião sobre J. Assange de uma sujeita e de um sujeito que vendem opiniões

Em 12 de Abril de 2019, CFA vendeu à SIC-Notícias a sua opinião sobre Julian Assange e sobre a sua prisão:

Assange começou por ser um hacker cotadíssimo, cometendo vários crimes enquanto hacker. Depois passou a ser guru de um movimento internacional, voltando a cometer mais crimes, até passar a ser o chefe dos trolls do sr. Putin e com uma manobra obviamente encomendada e paga por Moscovo, a divulgação dos mails da sra. Clinton, destruiu qualquer hipótese de ela ser eleita e elegeu o sr. Trump, que lhe deve estar grato,  porque esse factor, entre outros factores, foi fundamental para eleger Donald Trump. O sr. Assange, em minha opinião, hoje é um lunático que está convencido que é [???? palavras ininteligíveis]. Foi apanhado. Só tenho dúvidas que ele deva ser extraditado. Mas, enfim, as leis são para se cumprir.

Mas não é um dia negro para a liberdade? pergunta o moderador do programa Eixo do Mal.

É um dia negro, responde CFA, porque ele próprio [Assange] está a ver sair o fumo por debaixo da porta. Os Estados Unidos, seja quem for que esteja na Casa Branca, nunca desistem de ir atrás dos seus inimigos. Basta ver a história da Alcaida e do sr. Bin Laden. O sr. Assange vai dormir mal a partir de agora. Não vai ter a sorte de Chelsea Manning.

Ouçamos agora Paulo Portas (PP, para abreviar), um sujeito que também vende opiniões, como diria CFA, mas numa estação de televisão concorrente. Em 14 de Abril de 2019, PP disse o seguinte sobre Julian Assange na TVI:

Falemos com franqueza: este senhor é mais herói ou mais vilão? Eu nunca achei que ele fosse herói (…) Há uma coisa que me escapa: por que é que roubar uma loja é um crime e roubar documentos não é um crime e passa às vezes por ser uma proeza?  (…) Depois, como ele [Assange] é muito narcisista, transformou-se, como é normal nas pessoas muito narcisistas, num manipulador. Ele foi muito acolhido pela esquerda ocidental quando fez a divulgação de documentos do departamento de Estado e de segredos de Estado sobre a questão do Afeganistão e do Iraque, mas depois o feitiço virou-se contra o feiticeiro, porque ele é um dos principais responsáveis pelo desastre da campanha de Hillary Clinton. Ele fez sair 30.000 emails roubados ao Partido Democrata e eu diria o mesmo verbo, roubar, porque é isso que é, vamos lá ser claros, se acontecesse com o Partido Republicano. A acusação americana [que agora lhe é feita] é de conspiração para ser um hacker ou ajudar um hacker, e o que é mais curioso é que ele, que pretende ser um herói da liberdade de expressão no mundo inteiro, é hoje em dia, tal como Snowden, muito protegido. Por quem? Por Putin. Que cada um tire as lições que quiser…

Com certeza, vamos então a isso. Mas, primeiro que tudo, convém restabelecer os factos que CFA e PP omitem ou truncam.

Um rapto e um sequestro inéditos

Em 11 de Abril último, o australiano Julian Assange, fundador e director da WikiLeaks, foi arrebatado da Embaixada do Equador em Londres por agentes à paisana de uma polícia secreta britânica, sequestrado numa carrinha e levado para parte incerta sob o olhar complacente de alguns bobbies fardados. Assange vivia há 7 anos nessa embaixada, onde tinha sido acolhido como refugiado político em 19 de Junho de 2012, temendo ser deportado para a Suécia e, a partir desse país, ser entregue ao Departamento de Justiça e ao FBI americanos, que investigavam a WikiLeaks.

Inicialmente, as autoridades governamentais do Reino Unido afirmaram que o motivo deste rapto e sequestro seria o facto de Assange ter desobedecido, há 7 anos, às condições da sua fiança, quando, em vez de aguardar em prisão domiciliária a decisão de um tribunal britânico sobre um pedido de extradição feito pelas autoridades judiciais suecas, optou por entrar na embaixada equatoriana para receber asilo político. Porém, em Maio de 2017, as autoridades judiciais suecas arquivaram definitivamente o seu processo contra Assange e revogaram o pedido de extradição por terem reconhecido a inconsistência das queixas de teor sexual que lhes tinham dado origem. A justificação oficial britânica para o rapto e sequestro era, pois, patentemente falsa. Menos de uma hora depois, a Polícia Metropolitana de Londres emitiu um comunicado reconhecendo que Assange foi preso a pedido do governo americano, que fez um pedido de extradição para os Estados Unidos, onde ele é acusado de «conspirar para violar um computador ao ter concordado em quebrar a senha de um computador do governo americano

A acusação refere-se à revelação pela WikiLeaks, transmitida a 6 grandes jornais ‒ de Espanha (El País), França (Le Monde), Alemanha (Der Spiegel), Reino Unido (The Guardian), EUA (The New York Times) e México (La Jornada) ‒ de 250 mil telegramas do Departamento de Estado dos EUA, ocorrida em 2010. Chelsea Manning (na altura Bradley Manning), uma analista de informação do Exército dos EUA, foi acusada de ser a fonte da entrega dos documentos à WikiLeaks, assim como de documentos referentes às guerras do Iraque e do Afeganistão que atestam torturas e muitos crimes de guerra cometidos contra civis pelas tropas americanas, como o vídeo “Collateral Murder.” Por esta conduta, Manning foi condenada, num julgamento secreto, a 35 anos de prisão por um tribunal militar. Cumpriu 7 anos de prisão antes da sua pena lhe ter sido comutada pelo ex-presidente Obama. Saiu em liberdade em 17 de Janeiro de 2017, mas foi de novo presa em 8 de Março último e confinada a uma cela solitária por negar-se a testemunhar contra Assange no mesmo caso.

Os inimigos da liberdade de expressão e de informação só têm a força das armas do seu lado

As revelações que deram fama mundial à WikiLeaks, a Julian Assange e a Chelsea Manning, granjearam-lhes também, como se vê, poderosos inimigos, entre os quais, os governos dos EUA (desde 2007), os governos do Reino Unido (desde 2010) e o actual governo do Equador.

Assange sempre afirmou que temia ser extraditado para os EUA se fosse extraditado para a Suécia, razão pela qual pediu asilo político na embaixada do Equador. Foi acusado, por isso, de ser paranóico e de se dar ares de mártir da liberdade de expressão. A acusação e o pedido de extradição do governo Trump mostram, porém, que fez uma avaliação certeira dos perigos que o ameaçam. Se for extraditado para os EUA, arrisca-se a ser falsamente acusado de mais “crimes”, além daquele que lhe é imputado actualmente, à luz do Espionage Act de 1917, os quais lhe poderiam valer a prisão perpétua e, no pior dos casos, a pena de morte. Isso não impediu um juíz britânico, um tal Michael Snow, de declarar numa audiência preliminar com Assange que teve lugar uns dias depois do seu rapto e sequestro: «o comportamento do sr. Assange é o de um narcisista que não consegue ir além dos seus próprios interesses egoístas

O juíz Michael Snow talvez não saiba, por nunca ter lido o parecer nº 54/2015 do GTDA, mas comportamentos como o seu são um motivo de vergonha e embaraço para o escol da sua profissão, por ilustrarem bem a prepotência pseudolegal com que o governo, as polícias e os tribunais britânicos têm tratado Julian Assange nos últimos 9 anos.

O Grupo de Trabalho da ONU Contra Detenções Arbitrárias (GTDA, para abreviar) é constituído por eminentes especialistas em Direito Internacional de várias nacionalidades que são independentes de qualquer governo e que trabalham pro bono no âmbito do Conselho dos Direitos Humanos da ONU, sem receber qualquer salário.

Em Dezembro de 2015, o GTDA, divulgou o seu parecer nº 54/2015. Nele se reprova o comportamento dos governos da Suécia e do Reino Unido por violarem reiteradamente os artigos 7, 13, 14, 18, 19, 20 e 21 da Declaração Universal dos Direitos do Homem; os artigos 12, 18, 19, 21, 22, 25, 26 e 27 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; o artigo 6 da Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e Liberdades fundamentais; e a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, ao condenarem Julian Assange a uma (i) detenção arbitrária, primeiro, em Dezembro de 2010, quando o mantiveram preso e isolado durante 10 dias, entre 7 e 10 de Dezembro de 2010; (ii) em seguida, quando o condenaram a prisão domiciliária durante 550 dias; (iii) e, finalmente, ao manterem uma vigilância apertada, durante anos a fio, em torno da embaixada londrina do Equador, com a ameaça constante de prender e extraditar Assange se este se atrevesse a pôr um pé fora dela. Esta actuação configura uma violação reiterada dos direitos de asilado político de Assange e uma privação arbitrária da sua liberdade, concluiu o GTDA. O parecer do GTDA foi enviado aos governos da Suécia e do Reino Unido em 22 de Janeiro de 2016.

O rapto de Assange dentro da embaixada ‒ dentro do território ‒ do Equador em Londres e o seu sequestro subsequente na prisão Belmarsh de alta segurança só foi possível com a colaboração empenhada do actual presidente do Equador, Lenin Moreno Garcés, actualmente a ser investigado pela Assembleia Nacional e pela procuradora geral do Equador pelo seu alegado envolvimento num escândalo de corrupção de grandes dimensões (Christian Zurita Ron e Fernando Villavicencio, “El laberinto offshore del circulo presidencial.” La Fuente, 19-02-2019). Moreno começou por revogar o asilo político de Assange que estava em vigor desde 2012. Pouco depois, o governo equatoriano também revogou a cidadania que havia sido concedida a Assange em 2017. A revogação ocorreu 5 dias antes de uma visita de Moreno a Washington por 6 dias e 15 dias antes de uma visita oficial que estava agendada do Relator da ONU sobre Tortura à embaixada do Equador em Londres para verificar as condições de saúde de Assange, que era mantido em isolamento dentro da embaixada pelo governo equatoriano há um ano, sem assistência médica, sem internet, sem comunicação e com visitas reduzidas.

Bangladesh, Abril de 2019. Um manifestante exibe um cartaz com uma modificação do primeiro verso do poema de Martin Niemöller. © Reuters, Mohammad Ponir Hossain.

O anterior presidente do Equador, Rafael Correa, cujo governo concedeu asilo político a Julian Assange, observou que Lenin Moreno, o seu ex-vice-presidente e o seu sucessor (a partir de 2017),

tentou, de todas as maneiras, que Assange saísse da embaixada, torturando-o física e psicologicamente, tentando quebrá-lo como ser humano. E agora permitiu que a polícia britânica entrasse na embaixada, o que é uma violação grosseira da soberania de um país. É algo absolutamente inédito na história mundial.

É legal que um país retire um asilo político já concedido?

Não, não, não, de maneira nenhuma. O princípio do asilo garante que o Estado que dá asilo não pode jamais entregar o asilado a quem o persegue. E além disso, para retirar uma cidadania, é preciso que haja uma investigação que prove que houve fraude. Assange cumpriu com todos os requisitos, reside há mais de 5 anos em território equatoriano – que é a embaixada. E vai contra decisões do Grupo [de Trabalho] das Nações Unidas contra Detenções Arbitrárias, e também contra toda a ética e contra a nossa Constituição. (Pública, Agência de Jornalismo Investigativo, 11-04-2019)

Em 21 de Dezembro de 2018, o GDTA já tinha emitido uma declaração onde afirmava:

É tempo do sr. Assange, que já pagou um alto preço por exercer pacificamente os seus direitos à liberdade de opinião, de expressão e de informação e por promover o direito à verdade no interesse do público, recupere a sua liberdade.

Bem dito. Examinemos então os epítetos com que CFA e PP mimosearam Assange. 

Metáforas gastas

Algumas metáforas hoje correntes foram de tal modo deformadas que já nada têm que ver com o seu significado original, mas sem que as pessoas que as empregam tenham consciência desse facto.

George Orwell, o autor desta frase, achava que o emprego dessas metáforas era um dos muitos ultrajes à língua inglesa que tornavam a moderna prosa inglesa feia, imprecisa e desleixada. Creio que ele aprovaria as palavras que escolhi como exemplos de metáforas gastas: hacker, cracker e whistleblower, que não existiam no seu tempo.

Whistleblowers são pessoas que, no seu posto de trabalho, se deparam com qualquer coisa que elas acreditam estar errada ou ser prejudicial e que, perante a indiferença ou a hostilidade reiterada dos seus superiores hierárquicos, contraposta à importância que dão ao caso, decidem levá-lo ao conhecimento do público, dentro ou fora (ou dentro e fora) da organização onde trabalham, correndo os riscos inerentes a esse gesto.

Pessoas dessa índole existem há muito tempo, mas só recentemente lhes foi dado esse nome em Inglês. A expressão whistle blowers foi usada com o significado banal que essas duas palavras veiculam (“apitos” ou “assobios” e “sopradores”) antes de se juntarem numa só e adquirirem o sentido figurado que agora têm. Esse salto semântico deve-se à ubiquidade de “assobiar” ou “apitar” no mundo anglófono. Diz-se dos falcoeiros que eles whistle down the wind quando deixam os seus falcões amestrados voar livremente à procura de uma presa. Diz-se dos marinheiros à cata de um vento que tire o seu veleiro da imobilidade forçada que eles bem gostariam de chamar com um simples assobio, whistle for it. E há muitas outras expressões com “assobios” e “apitos”:  as clean as a whistle, dog-whistle politics, whistle in a graveyard, etc. Os antepassados próximos dos whistleblowers contemporâneos foram os agentes da polícia inglesa que sopravam (e sopram) com toda força nos seus apitos para dar o alerta sobre qualquer coisa que acreditem constituir um sério motivo de preocupação

Hackers são pessoas que têm uma habilidade especial para construir coisas novas a partir de coisas velhas, desmontando-as e tornando-as a montar de uma forma inovadora, ou para descobrir defeitos e virtudes ocultas em máquinas e maquinetas de toda a espécie. Incluem-se neste conceito, a partir dos anos 1960, as pessoas que concebem, elaboram  e modificam programas informáticos, computadores e redes de computadores, quer desenvolvendo funcionalidades novas, quer adaptando as antigas a novos usos.

Os hackers foram responsáveis por muitas inovações na informática, incluindo a linguagem de programação C (Dennis Ritchie), o sistema operacional Unix (Dennis Ritchie, Ken Thompson), o editor de texto emacs e a licença de uso livre de software GNU (Richard Stallman), o sistema GNU/Linux (Linus Torvalds), o motor de busca/indexador Google (Larry Page e Sergey Brin), os sistemas de criptografia de chave pública (como o RSA de Ron Rivest, Adi Shamir e Leonard Hadleman). Os hackers também revelaram muitas fragilidades em sistemas de criptografia e segurança em eleições por voto digital (Rop Gonggrijp), em cartões de cidadão com microprocessador incorporado, nos discos Blue-Ray, no bloqueio de telemóveis, etc.

Não há espaço para documentar aqui o caminho tortuoso que levou do verbo hack (cortar com um cutelo, um facão ou um machado) ao nome substantivo hacker1 (talhador, cortador) e ao nome substantivo hacker2 (no sentido figurado descrito mais acima). O que é importante sublinhar é que os hackers não são malfeitores. Para isso, existe outro termo, cracker, proposto pelos próprios hackers.

Como devemos então traduzir estas metáforas que perderam quase todo o (escasso) poder evocativo e que são usadas, na língua original, por pessoas como Paulo Portas e Clara Ferreira Alves apenas porque lhes permitem exibir um conhecimento fictício do Inglês, amalgamarem conceitos distintos, caluniarem pessoas que detestam e confundirem o público nas suas charlas televisivas? Sugiro alertador, como em Espanhol, ou lançador de alertas em Francês (lanceur d’alertes) ou divulgador de revelações de interesse público para whistleblower; engenhocas informático para hacker, e arrombador informático, vândalo informático e gatuno informático (conforme o caso) para cracker.

É fácil rebater os caluniadores

Julian Assange não é um herói nem um vilão. É um engenhocas informático que se tornou um jornalista divulgador de revelações de interesse público quando criou a WikiLeaks em 2006. A WikiLeaks não é um movimento internacional de arrombadores, vândalos e gatunos informáticos. É uma gigantesca biblioteca virtual dos documentos (mais de 10 milhões) mais perseguidos do mundo. «Damos asilo a esses documentos, analisamo-los, publicitamo-los e arranjamos mais» (J.Assange, entrevista, Spiegel On Line, 20-07-2015). Pela sua meritória actividade, J. Assange e a WikiLeaks já ganharam os seguintes prémios de jornalismo:

   Economist New Media Award (2008)
   Amnesty New Media Award (2009)
  TIME Magazine Person of the Year, People’s Choice (highest global vote) (2010)
  Sam Adams Award for Integrity (2010)
  National Union of Journalists Journalist of the Year (2011)
   Sydney Peace Foundation Gold Medal (2011)
  Martha Gellhorn Prize for Journalism (2011)
  Blanquerna Award for Best Communicator (2011)
  Walkley Award for Most Outstanding Contribution to Journalism (2011)
  Voltaire Award for Free Speech (2011)
  International Piero Passetti Journalism Prize of the National Union of Italian    Journalists (2011)
  Jose Couso Press Freedom Award (2011)
  Privacy International Hero of Privacy (2012)
  Global Exchange Human Rights People’s Choice Award (2013)
  Yoko Ono Lennon Courage Award for the Arts (2013)
  Brazillian Press Association Human Rights Award (2013)
  Kazakstan Union of Journalists Top Prize (2014)
GUE/NGL Award for Journalists, Whistleblowers and Defenders of the Right to Information (2019)

assim como uma nomeação para o United Nations Mandela Prize (2015) e nomeações em cinco anos consecutivos (2011-2016) para o Prémio Nobel da Paz.

Este não é o currículo de um “lunático”, de um “narcisista”, de um “guru” ou de um “ladrão de documentos”, como afirmam caluniosamente CFA e PP. Assange não ganhou estes prémios por “roubar documentos” (como afirma PP), ou por “cometer crimes” como hacker (como afirma CFA). Ganhou-os por divulgar publicamente revelações, nunca desmentidas, sobre toda a espécie de crimes e abusos de poder cometidos por gente tão poderosa quanto pérfida.

As revelações que a WikiLeaks fez sobre a actuação de Hillary Clinton em 2016 e 2018 são um bom exemplo. Ficámos a saber que esta senhora (i) trabalhou para influenciar  as primárias do partido republicano de modo a favorecer a nomeação de Donald Trump (que ela considerava ser o candidato republicano mais fácil de derrotar); (ii)  torpedeou a campanha de Bernie Sanders, seu rival no partido democrata; (iii) fez discursos em privado aos banqueiros de Wall Street, prometendo-lhe zelar pelos seus interesses se fosse eleita; (iv) aceitou milhões de dólares como donativo das monarquias do Catar e da Arábia Saudita à sua fundação, sabendo que são dos maiores financiadoras do jihadismo e, em particular, do chamado Estado Islâmico; (v) autorizou  a maior venda de armas de sempre ao regime totalitário da Arábia Saudita (80.000 milhões de dólares), armas que estão a ser usadas na guerra contra o Iémen (que já fez mais de 60.000 mortos e provocou uma crise humanitária); (vi) conseguiu convencer os seus colegas de governo e, sobretudo, o seu chefe (Barak Obama) a bombardear a Líbia e a destruir o regime de Kadafhi (o que deixou a Líbia num caos e fez cerca de 40.000 mortos) por estar convencida que isso ajudaria a estabelecer a sua reputação como futura candidata à presidência dos EUA.

Que CFA e PP lamentem que estas revelações tenham vindo a público fala por si. E não surpreende, por isso, que ambos escondam que a WikiLeaks já publicou mais de 660.000 ficheiros secretos sobre a Rússia, incluindo o Kremlin e Putin, revelando mais sobre as maquinações do poder de Estado nesse país do que toda a imprensa anglo-americana.

É toda a diferença que separa o jornalismo parceiro da verdade e do escrutínio, do jornalismo parceiro da mentira e da censura, aquele género de jornalismo que o australiano John Pilger, uma lenda viva do jornalismo, apodou de jornalismo Vichy — uma alcunha alusiva ao regime do marechal Pétain que governou uma parte da França, durante a 2ª guerra mundial, com a protecção dos exércitos de ocupação da Alemanha nazi.

...................................................................................................................................

N.B. Este texto foi originalmente publicado (com algumas modificações alheias à vontade do autor) em A Página da Educação, série II nº 213, 2019. 

14 abril, 2019

TEMA 2

Julian Assange corre perigo

                       

José Manuel Catarino Soares


Fico contente por ter a oportunidade e o privilégio de dar eco, reproduzindo-o neste blogue, a um texto de cariz orwelliano do jornalista John Pilger, uma lenda viva do jornalismo contemporâneo. O texto de Pilger  (O prisioneiro diz não ao Irmão Mais Velho, na minha tradução) foi escrito há pouco mais de um mês em defesa de Julian Assange, seu compatriota, colega de profissão e fundador-editor da Wikileaks.


O governo dos EUA quer castigar Julian Assange por este jornalista ter divulgado muitos crimes praticados por políticos corruptos, pelas forças militares e pelos serviços secretos desse país. Pretende extraditá-lo do Reino Unido, para o poder encarcerar e amordaçar até ao fim dos seus dianuma prisão americana de alta segurança, ou, se possível for, condená-lo à morte.

O texto de Pilger não só conserva toda a sua actualidade, como ganhou também uma nova acuidade com o recente e brutal ataque combinado de três governos (o governo do Equador, o governo dos EUA e o governo do Reino Unido) contra a liberdade e a segurança de Julian Assange, e, através dele, contra a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa de todos nós, cidadãos — um ataque que beneficiou do silêncio cúmplice do governo do seu país natal: o governo australiano.

Julian Assange foi expulso da Embaixada do Equador em Londres no passado dia 11 de Abril de 2019, onde tinha vivido nos últimos 7 anos como refugiado político, e arrastado à força para uma carrinha por agentes da polícia à paisana (de que polícia[s] não sabemos) do Reino Unido. Está actualmente preso nos calabouços da Polícia Metropolitana de Londres, onde enfrenta um pedido de extradição feito pelos EUA, que o acusam falsamente de crimes que podem valer-lhe a prisão perpétua ou até, no pior dos casos, a pena de morte. 

Os seus direitos de refugiado político foram brutalmente espezinhados pelos governos do Equador e do Reino Unido. A recuperação da sua liberdade, a sua segurança e a sua própria vida estão em grande perigo, se não criarmos uma poderosa corrente internacional de solidariedade para o proteger. Voltarei a este assunto, nas páginas deste blogue, tão breve quanto possível, para o demonstrar.

De imediato, convém que todos saibam quem é, de facto, Julian Assange, para que cada um(a) saiba combater a maciça campanha de difamação que já começou a ser feita contra ele, para o desacreditar e isolar aos olhos da opinião pública. O texto de John Pilger (embora só acessível a quem conheça o idioma inglês) é um bom começo para conseguirmos criar esse contra-movimento libertador.  Outro passo, mais simples e imediato, é subscrever a petição que se encontra aqui (pressione neste link Não extraditem o Julian Assange !).
.........................................................................................................................................
THE PRISONER SAYS NO TO BIG BROTHER
 John Pilger

4 March 2019
       Imagem © George Burchett 2019

John Pilger, que é australiano,  invoca George Orwell ao apelar os seus compatriotas a mobilizarem-se pela liberdade «de um distinto Australiano, o fundador e editor da WikiLeaks, Julian Assange», e por «um jornalismo genuíno de uma espécie que agora é considerada exótica». O Irmão Mais Velho [Big Brother] é a misteriosa personagem do romance 1984 de George Orwell que encarna o poder de Estado na sua máxima potência e a quem todos devem total e acéfala obediência. 

**********************************************************************

Whenever I visit Julian Assange [na embaixada do Equador em Londres], we meet in a room he knows too well. There is a bare table and pictures of Ecuador on the walls. There is a bookcase where the books never change. The curtains are always drawn and there is no natural light. The air is still and fetid.

This is Room 101.

Before I enter Room 101, I must surrender my passport and phone. My pockets and possessions are examined. The food I bring is inspected.

The man who guards Room 101 sits in what looks like an old-fashioned telephone box. He watches a screen, watching Julian. There are others unseen, agents of the state, watching and listening.

Cameras are everywhere in Room 101. To avoid them, Julian manoeuvres us both into a corner, side by side, flat up against the wall. This is how we catch up: whispering and writing to each other on a notepad, which he shields from the cameras. Sometimes we laugh.

I have my designated time slot. When that expires, the door in Room 101 bursts open and the guard says, «Time is up!» On New Year’s Eve, I was allowed an extra 30 minutes and the man in the phone box wished me a happy new year, but not Julian.


John Pilger em 2017


Of course, Room 101 is the room in George Orwell’s prophetic novel, 1984, where the thought police watched and tormented their prisoners, and worse, until people surrendered their humanity and principles and obeyed Big Brother.

Julian Assange will never obey Big Brother. His resilience and courage are astonishing, even though his physical health struggles to keep up.

Julian is a distinguished Australian, who has changed the way many people think about duplicitous governments. For this, he is a political refugee subjected to what the United Nations calls «arbitrary detention».

The UN says he has the right of free passage to freedom, but this is denied. He has the right to medical treatment without fear of arrest, but this is denied. He has the right to compensation, but this is denied.

As founder and editor of WikiLeaks, his crime has been to make sense of dark times. WikiLeaks has an impeccable record of accuracy and authenticity which no newspaper, no TV channel, no radio station, no BBC, no New York Times, no Washington Post, no Guardian can equal. Indeed, it shames them.

That explains why he is being punished.

For example:

Last week, the International Court of Justice ruled that the British Government had no legal powers over the Chagos Islanders, who in the 1960s and 70s, were expelled in secret from their homeland on Diego Garcia in the Indian Ocean and sent into exile and poverty. Countless children died, many of them, from sadness. It was an epic crime few knew about.

For almost 50 years, the British have denied the islanders’ the right to return to their homeland, which they had given to the Americans for a major military base.

In 2009, the British Foreign Office concocted a «marine reserve» around the Chagos archipelago.

This touching concern for the environment was exposed as a fraud when WikiLeaks published a secret cable from the British Government reassuring the Americans that «the former inhabitants would find it difficult, if not impossible, to pursue their claim for resettlement on the islands if the entire Chagos Archipelago were a marine reserve

The truth of the conspiracy clearly influenced the momentous decision of the International Court of Justice.

WikiLeaks has also revealed how the United States spies on its allies; how the CIA can watch you through your iPhone; how Presidential candidate Hillary Clinton took vast sums of money from Wall Street for secret speeches that reassured the bankers that if she was elected, she would be their friend.

In 2016, WikiLeaks revealed a direct connection between [Hillary] Clinton and organised jihadism in the Middle East: terrorists, in other words. One email disclosed that when [Hillary] Clinton was US Secretary of State, she knew that Saudi Arabia and Qatar were funding Islamic State, yet she accepted huge donations for her foundation from both governments.

She then approved the world’s biggest ever arms sale to her Saudi benefactors: arms that are currently being used against the stricken people of Yemen.

That explains why he is being punished.

WikiLeaks has also published more than 800,000 secret files from Russia, including the Kremlin, telling us more about the machinations of power in that country than the specious hysterics of the Russiagate pantomime in Washington.

This is real journalism journalism of a kind now considered exotic: the antithesis of Vichy journalism, which speaks for the enemy of the people and takes its sobriquet from the Vichy government that occupied France on behalf of the Nazis.

Vichy journalism is censorship by omission, such as the untold scandal of the collusion between Australian governments and the United States to deny Julian Assange his rights as an Australian citizen and to silence him.

In 2010, Prime Minister Julia Gillard went as far as ordering the Australian Federal Police to investigate and hopefully prosecute Assange and WikiLeaks — until she was informed by the AFP that no crime had been committed.

Last weekend, the Sydney Morning Herald published a lavish supplement promoting a celebration of “Me Too” at the Sydney Opera House on 10 March. Among the leading participants is the recently retired Minister of Foreign Affairs, Julie Bishop.

Bishop has been on show in the local media lately, lauded as a loss to politics: an “icon”, someone called her, to be admired.

The elevation to celebrity feminism of one so politically primitive as Bishop tells us how much so-called identity politics have subverted an essential, objective truth: that what matters, above all, is not your gender but the class you serve.

Before she entered politics, Julie Bishop was a lawyer who served the notorious asbestos miner James Hardie which fought claims by men and their families dying horribly with asbestosis.

Lawyer Peter Gordon recalls Bishop «rhetorically asking the court why workers should be entitled to jump court queues just because they were dying

Bishop says she «acted on instructions... professionally and ethically.»

Perhaps she was merely “acting on instructions” when she flew to London and Washington last year with her ministerial chief of staff, who had indicated that the Australian Foreign Minister would raise Julian's case and hopefully begin the diplomatic process of bringing him home.

Julian’s father had written a moving letter to the then Prime Minister Malcolm Turnbull, asking the government to intervene diplomatically to free his son. He told Turnbull that he was worried Julian might not leave the embassy alive.

Julie Bishop had every opportunity in the UK and the US to present a diplomatic solution that would bring Julian home. But this required the courage of one proud to represent a sovereign, independent state, not a vassal.

Instead, she made no attempt to contradict the British Foreign Secretary, Jeremy Hunt, when he said outrageously that Julian «faced serious charges». What charges? There were no charges.

Australia’s Foreign Minister abandoned her duty to speak up for an Australian citizen, prosecuted with nothing, charged with nothing, guilty of nothing.

Will those feminists who fawn over this false icon at the Opera House next Sunday be reminded of her role in colluding with foreign forces to punish an Australian journalist, one whose work has revealed that rapacious militarism has smashed the lives of millions of ordinary women in many countries: in Iraq alone, the US-led invasion of that country, in which Australia participated, left 700,000 widows.

So what can be done? An Australian government that was prepared to act in response to a public campaign to rescue the refugee football player, Hakeem al-Araibi, from torture and persecution in Bahrain, is capable of bringing Julian Assange home.

Yet the refusal by the Department of Foreign Affairs in Canberra to honour the United Nations' declaration that Julian is the victim of «arbitrary detention» and has a fundamental right to his freedom is a shameful breach of the spirit of international law.

Why has the Australian government made no serious attempt to free Assange? Why did Julie Bishop bow to the wishes of two foreign powers? Why is this democracy traduced by its servile relationships, and integrated with lawless foreign power?

The persecution of Julian Assange is the conquest of us all: of our independence, our self respect, our intellect, our compassion, our politics, our culture.

So stop scrolling. Organise. Occupy. Insist. Persist. Make a noise. Take direct action. Be brave and stay brave. Defy the thought police.

War is not peace, freedom is not slavery, ignorance is not strength. If Julian can stand up to Big Brother, so can you: so can all of us.
………………………………………………………………………………..................
John Pilger fez este discurso num encontro ao ar livre em prol de Julian Assange, realizado  em Sydney, na Austrália, e organizado pelo Socialist Equality Party.  John Pilger pode ser lido no twitter @johnpilger e no seu blogue  http://johnpilger.com.
.............................................................................................................

Foto de Peter Rae/EPA. Uma das muitas manifestações de protesto contra a prisão de Julian Assange que se realizaram em várias cidades do mundo.


P.S. (17-04-2019)

Campanha Escreva a Julien Assange (Write to Julian Assange 
 https://writejulian.com)

Julian Assange está actualmente nos calabouços de uma prisão de Londres de sua Majestade Britânica.
Por favor, escreva-lhe uma carta com uma CURTA mensagem pessoal, dando-lhe ânimo para que possa resistir às provações que enfrenta e informe-o, se for caso disso, do que você fez em prol da sua não-extradição e libertação.
Não se esqueça de pôr o seu nome e morada no remetente. O destinatário é o seguinte:

Mr. Julian Assange
DOB: 3/07/1971 HMP Belmarsh
Western Way
London SE28 0EB
UK

Vamos submergir a prisão de Belmarsh com cartas de apoio a Julian Assange!





01 abril, 2019


Temas 2 e 3

“Schäuble arrependido”
tem ar de ser uma notícia forjada
Será? Verifiquemos

José Manuel Catarino Soares

Os jornais e os jornalistas queixam-se amiúde da WWW e das “redes sociais” que nela se tecem e destecem, acusando-as de serem fontes inesgotáveis de notícias forjadas (Ingl. “fake news”). A WWW e as “redes sociais” têm, porém, as costas muito largas, porque servem de veículo tanto para a difusão de notícias importantes e opiniões válidas, mas dessabidas ou censuradas pela imprensa tradicional e pelos demais meios tradicionais de comunicação social (radiodifusão, radiotelevisão, telex) como para a difusão de notícias forjadas e de milhões de terabytes de lixo opinativo. O problema não está, portanto, na WWW e nas “redes sociais”, mas em quem as utiliza, no modo como as utiliza e nos propósitos visados pela sua utilização.  

Seja como for, a imprensa tradicional também é, amiúde, a fonte de notícias forjadas. O modo como foi relatado uma recente entrevista de Wolfgang Schäuble é um bom exemplo disso.

Schäuble é actualmente presidente do parlamento alemão (Bundestag). Anteriormente, foi ministro das finanças da Alemanha,  de 2005 a 2017, nos governos da senhora Angela Merkel. O seu desempenho dessa função valeu-lhe o cognome de “Tesoureiro da Europa”, justificado pelo facto de nenhuma medida financeira do Eurogrupo de algum relevo poder ser aprovada sem a sua benção. Foi entrevistado em 22 de Março pelo Financial Times. Eis alguns ecos dessa entrevista na imprensa portuguesa.

O ex-ministro alemão Schäuble e a austeridade: «Penso que podíamos ter feito as coisas de forma diferente.» Foto: Getty Images

Foto e legenda publicadas pelo Observador, 23 Março de 2019
………………………………………………………………………………..................

Numa entrevista ao Financial Times, e a propósito da austeridade, o antigo ministro alemão afirmou que «se poderia ter feito as coisas de forma diferente.» (Jornal Económico, 24 Março de 2019)
………………………………………………………………………………...................

Schäuble e a austeridade: «Hoje, penso que podíamos ter feito as coisas de forma diferente.» (Buzztimes, 25 Março de 2019)
………………………………………………………………………………...................

O que aconteceu foi que o então ministro das Finanças da Alemanha se tornou num homem odiado no sul da Europa, em particular na Grécia. «Fico triste com isso, porque tive um papel nisso», admite. Mas sem admitir erros — «eu sou um teimoso!» — apenas confessando refletir retrospetivamente sobre o que fez: «Penso sobre como poderíamos ter feito diferente.» (Diário de Notícias, 23 Março de 2019)
………………………………………………………………………………...................

Eis o que Schäuble realmente disse em entrevista ao jornalista Guy Chazan do Financial Times, de 22 de Março de 2019, intitulada “I’m pretty stubborn” [Sou muito casmurro]:

But what of the accusation that he didn’t care enough about the suffering of the southern Europeans? Austerity divided the EU and spawned a real animus against Schäuble. I ask him how that makes him feel now. «Well I’m sad, because I played a part in all of that», he says, wistfully. «And I think about how we could have done it differently

Tradução: Mas o que dizer da acusação que ele não se preocupou suficientemente com o sofrimento dos Europeus do Sul? A austeridade dividiu a União Europeia e gerou uma animosidade real contra Schäuble. Perguntei-lhe como é que isso o fazia sentir agora. «Bem, estou triste, porque desempenhei um papel em tudo isso», diz ele, melancolicamente. «E penso sobre se poderíamos ter feito de modo diferente
……………………………………………………………………………….................

Moral da história. O único jornal português dos quatro citados que relatou com fidelidade o essencial do que Schäuble disse na sua entrevista ao Financial Times foi o Diário de Notícias. Os outros puseram na sua boca uma declaração que ele não fez — e que está muito provavelmente nos antípodas do que ele pensa.

Na verdade, parece óbvio que a resposta de Schäuble à pergunta retórica que diz fazer por vezes a si próprio (“Poderíamos ter feito as coisas de modo diferente?”) — se ele for coerente, como sempre mostrou ser, com o seu posicionamento político durante todo o tempo em que foi ministro das finanças do governo alemão, e com o seu pensamento sobre o Eurogrupo e a União Europeia [ver, no arquivo deste blogue, Schäuble volta a atacar, 7 de Novembro de 2016] — só poderá ser a seguinte: “A minha conclusão, sempre que faço esta pergunta a mim próprio, é sempre a mesma: obviamente que não podíamos.” E não podiam, porque Schäuble representava, com implacável determinação, os interesses das grandes firmas transnacionais (financeiras [bancos, gestão de investimentos, seguros], industriais, comerciais, de serviços) que operam no espaço europeu, em particular as que têm a sua casa-mãe (administração central) na Alemanha. Para esses interesses, a política dita de “austeridade” na Irlanda e nos países da Europa do Sul (Espanha, Portugal, Grécia e Chipre), não era uma opção. Era a política de que precisavam para garantir a recuperação rápida dos seus investimentos com lucros acrescidos.


Relações comerciais Alemanha-Portugal: 2016-2017 

Em 2016, as cerca de 400 empresas alemãs que operam em Portugal registaram um volume de negócios próximo dos 10 mil milhões de euros. Quase metade desse valor resultou de vendas para o estrangeiro. Fonte: Dinheiro Vivo, 30-06-2018 

Neste particular, Schäuble respondeu exactamente como o apparatchik do FMI, Poul Thompsen (director europeu do Fundo Monetário Internacional e o rosto mais conhecido desta organização quando a troika chegou a Portugal para impor o seu plano de ajustamento, em 2011), entrevistado alguns dias depois de Schäuble pelo Público.

Poul Thompsen, director europeu do FMI 

Sérgio Aníbal [jornalista do Público]: Wolfgang Schäuble, ex-ministro das Finanças da Alemanha, disse recentemente, em relação à crise da zona euro e aos países periféricos, que “muitas vezes pensa se poderia ter feito alguma coisa diferente.” Também pensa nisso às vezes?

Poul Thompsen: Temos de pensar. Temos sempre de pensar o que é que poderíamos ter feito diferente.

Lembremo-nos: em 7 de Setembro de 2012, Passos Coelho, então 1º Ministro do governo PSD-CDS, anunciou a intenção do seu governo em reduzir  a contribuição do patronato para a TSU [taxa social única] em 5,75 %, passando-a para 18 %, e aumentar a contribuição dos trabalhadores assalariados (tanto os do sector privado como os da função pública) para 18 %, ou seja, uma subida de 7 pontos percentuais. A medida foi justificada com o argumento de que se inseria no plano de “ajustamento” negociado com a troika. Nos dias seguintes, o ministro da Solidariedade e da Segurança Social, Pedro Mota Soares, do CDS, admitiu que a «redistribuição» das taxas sociais iria «ajudar à sustentabilidade» da Segurança Social e, simultaneamente, «embaratecer» o custo do trabalho em Portugal. Foram as gigantescas manifestações de 15 de Setembro de 2012 que forçaram o cancelamento deste ataque sem precedentes aos direitos dos trabalhadores.

É natural, por isso, que Thompsen fosse interrogado a este respeito.

Sérgio Aníbal: Com a TSU, essa união política [entre os partidos (PS, PSD e CDS) que negociaram e assinaram o “memorando de ajustamento” com a troika; união que Thompsen considerou ser a chave do êxito da sua aplicação] saiu muito abalada e cresceu o sentimento de que havia um excesso de austeridade. Não houve um excesso de austeridade no programa que acabou por ser contraproducente?

Uma imagem que ficou para história, a 15 de Setembro de 2012, quando a população trabalhadora saiu à rua em protesto contra as mexidas na TSU (que previam a sua redução para o patronato de 23,75% para 18% e o seu aumento para os trabalhadores de 11% para 18%). Uma bela rapariga tenta convencer um agente da polícia de choque a abandonar a sua atitude belicosa. FOTO: JOSÉ MANUEL RIBEIRO / REUTERS

Poul Thompsen: Não penso que houvesse uma forma de evitar a prioridade dada ao ajustamento orçamental. Portugal tinha um grande défice orçamental, não tão grande como na Grécia é certo, mas não vejo como é que poderíamos ter restaurado a confiança tanto nos mercados, como junto dos parceiros europeus, para que estes pudessem proporcionar o financiamento de larga escala que era preciso. (Público, 31 de Março de 2019)

Schäuble e Thompsen são dois bons exemplos contemporâneos daquela estirpe de homens que deu azo à expressão chorar lágrimas de crocodilo.