O que é o HAMAS? [*]
[parte 3]
José Catarino Soares
9. Gaza e o gueto de
Varsóvia
O
embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, pôs ao peito a estrela amarela que a
Alemanha nazi obrigou os judeus a usarem, como prelúdio para a “Solução Final” que ficou conhecida como Holocausto. Fê-lo,
esclareceu,
por duas razões:
―
para protestar contra a resolução da Assembleia Geral da ONU que exige uma «trégua humanitária imediata, duradoura e sustentada que
conduza à cessação das hostilidades» em Gaza (assim como a protecção de
civis e bens civis, e do pessoal humanitário; e o fornecimento imediato,
contínuo, e sem entraves de bens e serviços essenciais aos civis em toda a
Faixa de Gaza, incluindo, água, alimentos, suprimentos médicos, combustível e
electricidade), que considerou representar «um dia
escuro para a humanidade»;
― para mostrar que o ataque do Hamas a Israel,
em 7 de Outubro de 2023, foi uma acção semelhante à “Solução
final da questão judaica” de Hitler, que o Conselho de Segurança da ONU
não condenou como tal.
«Alguns de vós não aprenderam nada nos últimos 80 anos. Alguns de
vós esqueceram a razão pela qual esta organização [a
ONU] foi criada. De hoje em diante, cada vez que vocês
olharem para mim, vão lembrar-se do que significa permanecer em silêncio
perante o mal», disse o embaixador israelita.
30 de Outubro de 2023. Gilad Erdan, embaixador de Israel na ONU, com uma estrela amarela ao peito, numa reunião do Conselho de Segurança da ONU. Foto: Michael M. Santiago/Getty Images/AFP |
Mas o gesto de pôr a estrela ao peito não poderia ser mais grotesco e a analogia com a “Solução Final” de Hitler não poderia ser mais falsa e enganadora. Quem não aprendeu nada da história dos últimos 80 anos é este embaixador.
Não
sabe, ou finge não saber, que quem poderia pôr a estrela amarela ao peito com
toda a legitimidade era a população palestiniana de Gaza que o governo
israelita de Netanyahu quer dizimar à bomba, à fome, à sede e à míngua de
auxílio médico, para, em seguida, expulsar definitivamente, de Gaza para o
Egipto (península do Sinai), o que dela restar [5]. Isso sim, é um émulo
da “Solução Final” de Hitler e a sua camarilha
genocida.
E
há, de facto, um episódio da história dos judeus que o embaixador Erdan poderia
evocar para descrever a componente militar (a componente principal) do ataque
das brigadas Izz al-Din al-Qassam a Israel, em 7 de Outubro 2023. Seria a
insurreição armada dos judeus do gueto de Varsóvia contra as tropas da Alemanha
nazi, em 19 de Abril de 1943 [6].
Segunda quinzena de Maio de 1945. Pessoas emergem dos escombros do gueto de Varsóvia depois de os nazis o terem incendiado e reduzido a cinzas. [Desconheço a identidade do fotógrafo] |
Se fosse vivo, Marek Edelman (1919-2009) ⎼ o comandante judeu que, com apenas 24 anos, substituiu Mordecai Anielewicz quando este morreu (com 23 anos), e o único dirigente dessa insurreição armada que sobreviveu à sua honrosa derrota ⎼ poderia lembrar ao senhor Gilad Erdan que a situação infernal que Israel impôs à população palestiniana de Gaza [7] é em tudo semelhante à situação infernal que as tropas da Alemanha nazi impuseram aos judeus do gueto de Varsóvia. Mas como Marek Edelman já não está entre nós, cabe-nos recordar as suas palavras:«Lutámos pela dignidade e pela liberdade. Não por um território, nem por uma identidade nacional» [8].
Marek Edelman (1919-2009), o único dos cinco comandantes da insurreição do gueto de Varsóvia que sobreviveu. |
Mas
a coisa mais importante que Marek Edelman disse, no que diz respeito ao modo
como podemos avaliar a situação que hoje se vive em Gaza foi esta:
«Ser judeu significa estar sempre com os oprimidos, nunca com
os opressores».
Por
conseguinte, Marek Edelman estaria hoje, com certeza, ao lado dos palestinianos
de Gaza, contra o Estado de Israel. Seria o primeiro a reconhecer no embaixador
de Israel na ONU, Gilad Erdan, no ministro da guerra de Israel, Yoav Galant, e
no primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, indivíduos da mesma estirpe
que o general das SS Juergen Stroop que mandou os seus esbirros incendiarem o
gueto de Varsóvia e matarem ou deportarem para campos de extermínio os seus
habitantes, como, de facto, foi feito. 7-13 mil judeus polacos desse gueto
foram assassinados e 56-58 mil foram deportados para campos de extermínio.
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[*] Publicado originalmente no blogue Estátua de Sal, em 8 de Novembro de 2023, [https://estatuadesal.com/2023/11/08/o-que-e-o-hamas-parte-iii/]
Parte 2 mais abaixo, e Parte 1 aqui [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2023/11/o-que-e-o-hamas-parte-1-jose-catarino.html]
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Notas e Referências
[5] Quando o bombardeamento maciço de Gaza por
Israel entrou na sua terceira semana, fazendo mais de 5.000 mortos e pelo menos
um milhão de residentes deslocados, um centro de estudos [Ingl. “think tank”]
com sede em Tel Aviv, denominado “Instituto de Segurança Nacional e Estratégia
Sionista”, delineou «um plano para a recolocação e
reabilitação final no Egipto de toda a população de Gaza», baseado na «única e rara oportunidade de evacuar toda a Faixa de Gaza»
proporcionada pelo último ataque de Israel ao enclave costeiro sitiado.
Publicado em hebraico no sítio electrónico da organização, o artigo é de
autoria de Amir Weitman, «um gestor de investimentos e
investigador visitante» do Instituto que também dirige a bancada
libertária do Partido Likud, actualmente no poder em Israel. O documento
começava por referir que existem 10 milhões de unidades habitacionais vagas no
vizinho Egipto que poderiam ser «imediatamente
preenchidas» por palestinianos. Weitman garante aos leitores que o «plano [é] sustentável e se
alinha bem com os interesses económicos e geopolíticos do Estado de Israel, do
Egipto, dos EUA e da Arábia Saudita» (Kit Klarenberg, “Zionist think
tank publishes blueprint for Palestinian genocide.” The Grayzone,
October 24, 2023).
[6] «No Verão de 1942, cerca de 300.000 judeus foram deportados
de Varsóvia para Treblinka. Quando as informações sobre os assassinatos em
massa nos centros de extermínio chegaram ao gueto de Varsóvia, um grupo de
judeus, na sua maioria jovens, formou uma organização chamada Z.O.B. (Organização Judaica Combatente; em polaco, Zydowska
Organizacja Bojowa). A Zob, comandada por Mordecai Anielewicz, de apenas 23
anos, divulgou um manifesto no qual pedia aos judeus que resistissem contra a
embarque nos vagões dos comboios [OBS: os judeus não sabiam para onde
estavam sendo levados]. Em Janeiro de 1943,
combatentes da Zob no gueto de Varsóvia dispararam contra soldados alemães
quando estes tentavam arrebanhar outro grupo de moradores do gueto para
deportá-los. Os resistentes usaram as poucas armas fabricadas por eles próprios
e as armas que tinham conseguido obter por meio de contrabando, e após alguns
dias de luta os soldados alemães recuaram. Aquela pequena vitória deu alento
aos combatentes do gueto para se prepararem para novos conflitos.
Em 19 de Abril de 1943, quando as tropas alemãs e a polícia alemã
entraram no gueto para levar mais judeus para os campos de extermínio, “A
insurreição do Gueto de Varsóvia” teve início. Setecentos e cinquenta
combatentes judeus, pobremente armados e enfraquecidos por doenças e pela fome,
lutaram contra um número muito maior de soldados alemães bem alimentados,
fortemente armados e bem treinados. Os combatentes do gueto conseguiram
defender-se durante quase um mês mas, em 16 de Maio de 1943, a revolta acabou.
Lentamente, os alemães subjugaram a resistência. Dos mais de 56.000 judeus
capturados, cerca de 7.000 foram assassinados a tiro e os restantes foram
deportados para os campos de concentração onde foram mortos» (“O Levante do
Gueto de Varsóvia”. Enciclopédia do Holocausto)
[Editei o artigo original para o adaptar ao Português europeu padrão].
[7] Essa
situação já era infernal muito antes do dia 7 de Outubro de 2023. Ver José
Catarino Soares, “O que é Gaza?”. Tertúlia Orwelliana, 4 de Novembro de
2023 (https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/)
[8] Depois
da Segunda Guerra mundial, Marek Edelman condenou o sionismo como uma ideologia
étnica supremacista, utilizada para justificar o roubo de terras palestinianas.
Tomou o partido dos palestinianos, apoiou a sua resistência armada contra
Israel e reuniu-se frequentemente com militantes da causa palestiniana.
Insurgiu-se contra a apropriação do Holocausto por Israel para justificar a sua
repressão do povo palestiniano. Vale a pena acrescentar que Israel fez (e faz)
questão de exaltar o heroísmo dos combatentes judeus que fizeram a insurreição
armada do gueto de Varsóvia. Ao mesmo tempo, Israel sempre tratou o único
comandante sobrevivente dessa insurreição, Edelman, como um pária, por este ser
anti-sionista e se ter sempre recusado a abandonar o seu país natal, a Polónia,
e a emigrar para Israel. Edelman compreendeu que a lição a tirar do Holocausto
e da insurreição armada do gueto de Varsóvia não era a de que os judeus são
moralmente superiores ou vítimas eternas. A história, disse Edelman, pertence a
todos. Os oprimidos, incluindo os palestinianos, têm o direito de lutar pela
liberdade, dignidade e igualdade, recorrendo, se necessário for, à luta armada
contra os seus opressores.