Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

28 novembro, 2023

 

O que é o HAMAS? [*]

[parte 3]

José Catarino Soares

9. Gaza e o gueto de Varsóvia

O embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, pôs ao peito a estrela amarela que a Alemanha nazi obrigou os judeus a usarem, como prelúdio para a “Solução Final” que ficou conhecida como Holocausto. Fê-lo, esclareceu, por duas razões:

― para protestar contra a resolução da Assembleia Geral da ONU que exige uma «trégua humanitária imediata, duradoura e sustentada que conduza à cessação das hostilidades» em Gaza (assim como a protecção de civis e bens civis, e do pessoal humanitário; e o fornecimento imediato, contínuo, e sem entraves de bens e serviços essenciais aos civis em toda a Faixa de Gaza, incluindo, água, alimentos, suprimentos médicos, combustível e electricidade), que considerou representar «um dia escuro para a humanidade»;

  para mostrar que o ataque do Hamas a Israel, em 7 de Outubro de 2023, foi uma acção semelhante à “Solução final da questão judaica” de Hitler, que o Conselho de Segurança da ONU não condenou como tal. 

«Alguns de vós não aprenderam nada nos últimos 80 anos. Alguns de vós esqueceram a razão pela qual esta organização [a ONU] foi criada. De hoje em diante, cada vez que vocês olharem para mim, vão lembrar-se do que significa permanecer em silêncio perante o mal», disse o embaixador israelita.


30 de Outubro de 2023. Gilad Erdan, embaixador de Israel na ONU, com uma estrela amarela ao peito, numa reunião do Conselho de Segurança da ONU. Foto: Michael M. Santiago/Getty Images/AFP

Mas o gesto de pôr a estrela ao peito não poderia ser mais grotesco e a analogia com a Solução Final” de Hitler não poderia ser mais falsa e enganadora. Quem não aprendeu nada da história dos últimos 80 anos é este embaixador.

Não sabe, ou finge não saber, que quem poderia pôr a estrela amarela ao peito com toda a legitimidade era a população palestiniana de Gaza que o governo israelita de Netanyahu quer dizimar à bomba, à fome, à sede e à míngua de auxílio médico, para, em seguida, expulsar definitivamente, de Gaza para o Egipto (península do Sinai), o que dela restar [5]. Isso sim, é um émulo da “Solução Final” de Hitler e a sua camarilha genocida.

E há, de facto, um episódio da história dos judeus que o embaixador Erdan poderia evocar para descrever a componente militar (a componente principal) do ataque das brigadas Izz al-Din al-Qassam a Israel, em 7 de Outubro 2023. Seria a insurreição armada dos judeus do gueto de Varsóvia contra as tropas da Alemanha nazi, em 19 de Abril de 1943 [6].  


Segunda quinzena de Maio de 1945. Pessoas emergem dos escombros do gueto de Varsóvia depois de os nazis o terem incendiado e reduzido a cinzas. [Desconheço a identidade do fotógrafo]

Se fosse vivo, Marek Edelman (1919-2009) o comandante judeu que, com apenas 24 anos, substituiu Mordecai Anielewicz quando este morreu (com 23 anos), e o único dirigente dessa insurreição armada que sobreviveu à sua honrosa derrota poderia lembrar ao senhor Gilad Erdan que a situação infernal que Israel impôs à população palestiniana de Gaza [7] é em tudo semelhante à situação infernal que as tropas da Alemanha nazi impuseram aos judeus do gueto de Varsóvia. Mas como Marek Edelman já não está entre nós, cabe-nos recordar as suas palavras:«Lutámos pela dignidade e pela liberdade. Não por um território, nem por uma identidade nacional» [8].


Marek Edelman (1919-2009), o único dos cinco comandantes da insurreição
do gueto de Varsóvia que sobreviveu.

Mas a coisa mais importante que Marek Edelman disse, no que diz respeito ao modo como podemos avaliar a situação que hoje se vive em Gaza foi esta:

«Ser judeu significa estar sempre com os oprimidos, nunca com os opressores».

Por conseguinte, Marek Edelman estaria hoje, com certeza, ao lado dos palestinianos de Gaza, contra o Estado de Israel. Seria o primeiro a reconhecer no embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, no ministro da guerra de Israel, Yoav Galant, e no primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, indivíduos da mesma estirpe que o general das SS Juergen Stroop que mandou os seus esbirros incendiarem o gueto de Varsóvia e matarem ou deportarem para campos de extermínio os seus habitantes, como, de facto, foi feito. 7-13 mil judeus polacos desse gueto foram assassinados e 56-58 mil foram deportados para campos de extermínio.

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[*] Publicado originalmente no blogue Estátua de Sal, em 8 de Novembro de 2023,   [https://estatuadesal.com/2023/11/08/o-que-e-o-hamas-parte-iii/]

Parte 2 mais abaixo, e Parte 1 aqui [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2023/11/o-que-e-o-hamas-parte-1-jose-catarino.html]

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Notas e Referências

[5] Quando o bombardeamento maciço de Gaza por Israel entrou na sua terceira semana, fazendo mais de 5.000 mortos e pelo menos um milhão de residentes deslocados, um centro de estudos [Ingl. “think tank”] com sede em Tel Aviv, denominado “Instituto de Segurança Nacional e Estratégia Sionista”, delineou «um plano para a recolocação e reabilitação final no Egipto de toda a população de Gaza», baseado na «única e rara oportunidade de evacuar toda a Faixa de Gaza» proporcionada pelo último ataque de Israel ao enclave costeiro sitiado. Publicado em hebraico no sítio electrónico da organização, o artigo é de autoria de Amir Weitman, «um gestor de investimentos e investigador visitante» do Instituto que também dirige a bancada libertária do Partido Likud, actualmente no poder em Israel. O documento começava por referir que existem 10 milhões de unidades habitacionais vagas no vizinho Egipto que poderiam ser «imediatamente preenchidas» por palestinianos. Weitman garante aos leitores que o «plano [é] sustentável e se alinha bem com os interesses económicos e geopolíticos do Estado de Israel, do Egipto, dos EUA e da Arábia Saudita» (Kit Klarenberg, “Zionist think tank publishes blueprint for Palestinian genocide.” The Grayzone, October 24, 2023).

[6] «No Verão de 1942, cerca de 300.000 judeus foram deportados de Varsóvia para Treblinka. Quando as informações sobre os assassinatos em massa nos centros de extermínio chegaram ao gueto de Varsóvia, um grupo de judeus, na sua maioria jovens, formou uma organização chamada Z.O.B. (Organização Judaica Combatente; em polaco, Zydowska Organizacja Bojowa). A Zob, comandada por Mordecai Anielewicz, de apenas 23 anos, divulgou um manifesto no qual pedia aos judeus que resistissem contra a embarque nos vagões dos comboios [OBS: os judeus não sabiam para onde estavam sendo levados]. Em Janeiro de 1943, combatentes da Zob no gueto de Varsóvia dispararam contra soldados alemães quando estes tentavam arrebanhar outro grupo de moradores do gueto para deportá-los. Os resistentes usaram as poucas armas fabricadas por eles próprios e as armas que tinham conseguido obter por meio de contrabando, e após alguns dias de luta os soldados alemães recuaram. Aquela pequena vitória deu alento aos combatentes do gueto para se prepararem para novos conflitos.

Em 19 de Abril de 1943, quando as tropas alemãs e a polícia alemã entraram no gueto para levar mais judeus para os campos de extermínio, “A insurreição do Gueto de Varsóvia” teve início. Setecentos e cinquenta combatentes judeus, pobremente armados e enfraquecidos por doenças e pela fome, lutaram contra um número muito maior de soldados alemães bem alimentados, fortemente armados e bem treinados. Os combatentes do gueto conseguiram defender-se durante quase um mês mas, em 16 de Maio de 1943, a revolta acabou. Lentamente, os alemães subjugaram a resistência. Dos mais de 56.000 judeus capturados, cerca de 7.000 foram assassinados a tiro e os restantes foram deportados para os campos de concentração onde foram mortos» (“O Levante do Gueto de Varsóvia”. Enciclopédia do Holocausto) [Editei o artigo original para o adaptar ao Português europeu padrão].

[7] Essa situação já era infernal muito antes do dia 7 de Outubro de 2023. Ver José Catarino Soares, “O que é Gaza?”. Tertúlia Orwelliana, 4 de Novembro de 2023 (https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/)

[8] Depois da Segunda Guerra mundial, Marek Edelman condenou o sionismo como uma ideologia étnica supremacista, utilizada para justificar o roubo de terras palestinianas. Tomou o partido dos palestinianos, apoiou a sua resistência armada contra Israel e reuniu-se frequentemente com militantes da causa palestiniana. Insurgiu-se contra a apropriação do Holocausto por Israel para justificar a sua repressão do povo palestiniano. Vale a pena acrescentar que Israel fez (e faz) questão de exaltar o heroísmo dos combatentes judeus que fizeram a insurreição armada do gueto de Varsóvia. Ao mesmo tempo, Israel sempre tratou o único comandante sobrevivente dessa insurreição, Edelman, como um pária, por este ser anti-sionista e se ter sempre recusado a abandonar o seu país natal, a Polónia, e a emigrar para Israel. Edelman compreendeu que a lição a tirar do Holocausto e da insurreição armada do gueto de Varsóvia não era a de que os judeus são moralmente superiores ou vítimas eternas. A história, disse Edelman, pertence a todos. Os oprimidos, incluindo os palestinianos, têm o direito de lutar pela liberdade, dignidade e igualdade, recorrendo, se necessário for, à luta armada contra os seus opressores.

 

O que é o HAMAS?[*]

[parte 2]

José Catarino Soares

6. Como foi criado o Hamas

O Hamas foi oficialmente criado em 1987, quando foi fundada a sua componente política. No entanto, embora seja hostil a Israel, beneficiou sempre, paradoxalmente, da ajuda deste, que o financiou e apoiou (secretamente) de várias maneiras desde 1973 (quando foi fundada a sua componente caritativa, Mujama al-Islamiya), até, pelo menos, 2019.

Esta afirmação não é uma calúnia. Resulta de confidências feitas por governantes e chefes militares de Israel, incluindo o seu actual primeiro-ministro. Netanyahu [4].  O objectivo confesso de Israel ao apoiar e financiar o Hamas era dividir para reinar — dividir a Organização de Libertação da Palestina (OLP) e, a partir de 1995 (Acordos de Oslo 2) desacreditar a Autoridade Nacional da Palestina (ANP) dirigida pela Al-Fatha, a principal componente da OLP.  O que Israel conseguiu fazer com êxito.

7. As tácticas de combate do Hamas

As táticas de combate do Hamas foram inteiramente decalcadas (no caso das TG), ou decalcadas em grande medida (tt.3 e tt.4, no caso das TT [cf. parte 1, secção 3 deste artigo]), das tácticas de combate do Irgun, do Lehi, do Palmach e do Haganá — as organizações paramilitares sionistas que operaram clandestinamente contra os palestinianos árabes (e algumas delas também contra as autoridades militares e civis britânicas) durante o Mandato Britânico da Palestina (1931-1948). Essas organizações constituíram o núcleo duro das futuras Forças Armadas de Israel (“Tzahal”), criadas em 26 de Maio de 1948.

8. O ataque do Hamas a Israel em 7 de Outubro de 2023

O ataque dos combatentes do Hamas a Israel em 7 de Outubro de 2023, denominado “Operação Tempestade Al-Aqsa”, foi uma operação que surpreendeu tudo e todos pela sua audácia, dimensão e eficácia.

 «As autoridades israelitas não emitiram quaisquer avisos nem tomaram quaisquer medidas preventivas antes do ataque, o que sugere que não dispunham de informações sobre o planeamento e os preparativos do ataque, apesar do aumento acentuado das tensões entre as autoridades israelitas e os palestinianos nos últimos meses» (“IntelBrief: Complex Attack by Hamas into Israel has Altered the Dynamics of the Conflict.” The Soufan Center. October 9, 2023).

O New York Times também noticiou a surpresa, audácia, dimensão e eficácia deste ataque:

«Com um planeamento meticuloso e um conhecimento extraordinário dos segredos e fraquezas de Israel, o Hamas e os seus aliados dominaram toda a extensão da frente de Israel com Gaza pouco depois do amanhecer, chocando uma nação que há muito considera a superioridade das suas forças armadas como um artigo de fé. Usando drones, o Hamas destruiu as principais torres de vigilância e comunicação ao longo da fronteira com Gaza, impondo vastos pontos cegos aos militares israelitas. Com explosivos e tractores, o Hamas abriu brechas nas barricadas da fronteira, permitindo que 200 atacantes passassem na primeira vaga e outros 1.800 no final do dia, segundo as autoridades. Em motociclos e camionetas, os atacantes avançaram para Israel, dominando pelo menos oito bases militares e lançando ataques terroristas contra civis em mais de 15 aldeias e cidades» (Patrick Kings Ley & Ronen Bergman, “The Secrets Hamas Knew About Israel’s Military.” October 13, 2023).


Combatentes do Hamas conduzem um jeep capturado ao exército israelita no sul de Israel, perto da fronteira norte de Gaza. Foto de Ahmed Zakot/REUTERS.

Parece, pois, ser incontroverso que esse ataque comportou duas componentes: uma componente militar que se enquadra no conceito de luta armada da resolução 37/43 da ONU, incluindo as suas modalidades de guerrilha (TG), descritas na secção 4 deste artigo e uma componente terrorista, que extravasa do conceito de luta armada para se enquadrar no conceito de tácticas terroristas (TT), descrito na mesma secção.

É pela sua componente principal (a componente militar), exclusivamente, que o ataque do Hamas de 7 de Outubro 2023 tem muitas afinidades com a insurreição armada da Zob no gueto de Varsóvia de 12 de Abril de 1943, de que tornarei a falar na secção 9 deste artigo. Referindo-se à acção militar que a ZOB (acrónimo polaco para Zydowska Organizacja Bojowa, Organização Judaica Combatente) realizou nesse dia contra o exército da Alemanha nazi, a partir do gueto de Varsóvia, Marek Edelman comentou no seu espantoso testemunho (The Ghetto Fights: Warsaw 1941-1943 [1990]):

«Pela primeira vez, os planos alemães foram frustrados. Pela primeira vez, a auréola de omnipotência e invencibilidade foi arrancada da cabeça dos alemães. Pela primeira vez, o judeu na rua apercebeu-se de que era possível fazer alguma coisa. Foi um ponto de viragem psicológica».

O mesmo se pode dizer, mutatis mutandis, da acção militar contra Israel que as brigadas Izz al-Din al-Qassam realizaram em 7 de Outubro de 2023, a partir do “gueto” de Gaza.

«O ataque estilhaçou a aura de invencibilidade de Israel e provocou um contra-ataque israelita em Gaza que matou mais de 1.900 palestinianos numa semana, com uma ferocidade nunca vista em Gaza.» (Patrick Kingsley & Ronen Bergman, New York Times, ibidem).

O jornalista Samuel Forey escreveu:

«Três semanas após o ataque mais ambicioso da história do movimento islamita [Hamas], o modus operandi do que aconteceu nesse dia está a tornar-se mais claro. Mais de 2.000 homens [das brigadas Izz al-Din al-Qassam] entraram em território israelita através de 29 brechas na barreira que rodeia a Faixa de Gaza. A invasão, um êxito militar, levou a atrocidades cometidas contra civis» (“Hamas attack:October 7, a day of hell on earth in Israel.” Le Monde, October 30, 2023).

 O Le Monde noticiou também que

 «Depois de atravessarem a barreira, os combatentes [do Hamas] atacaram simultaneamente pelo menos seis bases militares das Forças Armadas de Israel e sete zonas civis, incluindo uma cidade, cinco kibbutzim e um festival de música» (“Israel-Hamas war: Images reveal the strategy behind the militant group’s attack.” October 14, 2023).

Repare-se que o New York Times refere, como vimos, «pelo menos oito bases militares» e não seis, como o Le Monde. A Aljazeera identificou três dessas seis ou oito bases militares israelitas que os combatentes do Hamas invadiram: «o posto fronteiriço de Beit Hanoon (chamado Erez por Israel), a base de Zikim e o quartel-general da divisão de Gaza em Reim» (“What happened in Israel? A breakdown of how Hamas attack unfolded.” October 7, 2023). Não consegui ficar a saber quais foram as outras três ou cinco bases militares referidas pelo Le Monde e pelo New York Times, respectivamente, apesar de ter feito uma demorada pesquisa no Google, no Bing e no Yahoo!

Vale a pena notar, a este propósito, que os combatentes do Hamas que invadiram essas bases militares israelitas «se apoderaram de armas e equipamento e estabeleceram linhas logísticas a partir do território israelita» (“IntelBrief: Complex Attack by Hamas into Israel has Altered the Dynamics of the Conflict,ibidem). Segundo informações colhidas pelo jornalista Seymour Hersh, o ataque de 7 de Outubro das brigadas do Hamas provocou 317 baixas mortais no exército israelita (algumas dessas vítimas poderão ser militares contratados), além de 58 polícias (“The Labyrinth War,” November 1, 2023, https:// seymourhersh.substack.com/). Segundo a Reuters de 18 de Outubro, citando Netanyahu, o ataque de 7 de Outubro gerou 1.400 vítimas mortais no lado israelita. Se subtrairmos a este número, o número de militares e polícias indicado por Hersh, obtemos 1.025 vítimas mortais israelitas que não eram nem militares nem polícias.

Não temos informação fidedigna e suficiente (a que temos é incompleta e quase exclusivamente de origem israelita) sobre o modo como estas pessoas morreram que nos permita avaliar a veracidade e a extensão de todas as atrocidades que, alegadamente, terão sido cometidas pelos combatentes do Hamas no âmbito da componente terrorista do seu ataque a Israel: o ataque a zonas civis. Na verdade, não temos sequer informação exacta sobre a extensão desse ataque. O Le Monde refere, como vimos, «sete zonas civis, incluindo uma cidade, cinco kibbutzim e um festival de música». Por sua vez, o New York Times refere, como vimos, «mais de 15 aldeias e cidades». Em quem devemos acreditar neste particular: no Le Monde, no New York Times ou em nenhum deles?

Por outro lado, ao contrário dos 242 reféns feitos pelo Hamas (que têm todos um nome e um rosto conhecido), não foi publicada (salvo melhor informação) a lista dos nomes dos mortos civis israelitas e dos locais onde morreram. Há testemunhos de israelitas que acusam o exército israelita de ser o autor da morte dos seus companheiros, apanhados por “fogo amigo”. É o caso, por exemplo, de Yasmin Porat, uma mulher israelita que foi entrevistada no programa de rádio Haboker Hazeh, da emissora estatal israelita Kan, em 15 de Outubro de 2023. Porat, que sobreviveu ao ataque do Hamas aos colonatos perto da fronteira de Gaza em 7 de Outubro de 2023, afirma que os civis israelitas foram «indubitavelmente» (sic) mortos pelas suas próprias forças de segurança. Diz também que ela e outros israelitas detidos pelos combatentes palestinianos foram tratados «com humanidade» (https://www.youtube.com/watch?v=3cPeRSVgUpQ). Há ainda muita coisa por esclarecer relativamente às vítimas mortais civis do ataque.

Seja como for, em matéria de tácticas terroristas, sabemos, pelo historial dos últimos 36 anos, que Israel e Hamas estão bem um para outro: se um diz “mata!”, o outro diz “esfola!”. As únicas diferenças neste particular e não são de modo nenhum despiciendas é que (i) um (Israel) é o carcereiro de Gaza e o outro (Hamas) uma das organizações de resistência dos encarcerados de Gaza, e que (ii) um (Israel) mata e aterroriza muito mais e há muito mais tempo do que o outro (Hamas), que, como vimos (cf. secção 7), com ele aprendeu a matar e aterrorizar, convencido que só dessa maneira o poderá derrotar.

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[*] Publicado originalmente no blogue Estátua de Sal, em 7 de Novembro de 2023 [https://estatuadesal.com/2023/11/07/o-que-e-o-hamas-parte-ii/]

Parte 1 aqui [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2023/11/o-que-e-o-hamas-parte-1-jose-catarino. html]

[continua]

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Notas e referências

[4] «Qualquer pessoa que queira impedir a criação de um Estado palestiniano tem de apoiar o fortalecimento do Hamas e transferir dinheiro para o Hamas. Isto faz parte da nossa estratégia — isolar os palestinianos em Gaza dos palestinianos na Cisjordânia», explicou Netanyahu aos membros do seu partido, o Likud, em Março de 2019 (citado por Gidi Weitz, “Another Concept Implodes: Israel Can’t Be Managed by a Criminal Defendant”. Haaretz, October 9, 2023). Num vídeo recente [a partir do momento 12m36s], o embaixador da Autoridade Nacional Palestiniana em Moscovo chegou mesmo a quantificar esse apoio financeiro de Israel ao Hamas: 36 milhões de dólares, mensalmente, nos últimos 5 anos (https://www.youtube.com/watc h?v=hS-Aa7E2-Hk).  

Não sei se este número é exacto. Mas sabemos que esse apoio começou há muito mais do que cinco anos. Na verdade, começou há mais de quatro décadas. O general Yitzhak Segev, que foi o governador militar israelita de Gaza no início da década de 1980, confidenciou, alguns anos mais tarde, a David Schipler, repórter do New York Times, que Israel ajudou a financiar o Hamas como um contrapeso à OLP. «O governo israelita deu-me um orçamento, e o governo militar dá-o às mesquitas» (David K. Shipler, Arab and Jew: Wounded Spirits in a Promised Land. Crown, 2015), p.221. «O Hamas, para meu grande pesar, é uma criação de Israel. Foi um erro enorme e estúpido», disse Avner Cohen, um governante israelita responsável pelos assuntos religiosos israelitas que trabalhou em Gaza durante mais de duas décadas, até 1994 (Andrew Higgins, “How Israel Helped to Spawn Hamas.” The Wall Street Journal, January 24, 2009). «Quando Israel encontrou pela primeira vez islamistas em Gaza, nos anos 70 e 80, eles pareciam concentrados no estudo do Alcorão e não no confronto com Israel. O governo israelita reconheceu oficialmente um precursor do Hamas, chamado Mujama Al-Islamiya, registando o grupo como uma instituição de caridade. Permitiu que os membros do Mujama criassem uma universidade islâmica e construíssem mesquitas, clubes e escolas». David Hacham, que trabalhou em Gaza no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 como especialista em assuntos árabes nas forças armadas israelitas, «lembra-se de ter levado um dos fundadores do Hamas, Mahmoud Zahar, para se encontrar com o então ministro da defesa de Israel, Yitzhak Rabin, no âmbito de consultas regulares entre funcionários israelitas e palestinianos não ligados à OLP. O sr. Zahar, o único fundador do Hamas que se sabe estar vivo actualmente, é agora o chefe político sénior do grupo em Gaza» (ibidem). «Quando olho para trás e vejo a cadeia de acontecimentos, penso que cometemos um erro» diz David Hacham «Mas, na altura, ninguém pensou nos possíveis resultados» (ibidem). 

Os EUA estavam ao corrente desta longa relação de duplicidade mútua entre Israel e o Hamas. David Long, que foi diplomata dos EUA na Arábia Saudita e chefe da divisão do Próximo Oriente no Gabinete de Informações e Investigação do Ministério dos Negócios Estrangeiros [State Department] dos EUA durante o governo de Ronald Reagan, disse ao jornalista Robert Dreyfuss: «Pensei que os Israelitas estavam a brincar com fogo. Mas não sabia que acabariam por criar um monstro. Não acho que nos devamos meter com fanáticos potenciais»» (Devil’s Game, https://www.c-span.org/video/?190 584-1/devils-game, January 5, 2006).

 

O que é o HAMAS? [*]

[parte 1]

José Catarino Soares

1. Caracterização

O HAMAS (aqui, e só desta vez, escrito em maiúsculas para lembrar que é o acrónimo árabe para “Movimento de Resistência Islâmica”) é um partido nacionalista, islamista (do ramo sunita), jihadista, teocrático, da Palestina. O seu lema resume bem o seu ideário:

«Alá é o nosso alvo, o Profeta é nosso modelo, o Corão é a nossa constituição, a Jihad é o nosso caminho e morrer por amor a Alá é o nosso desejo supremo» (artigo 8.º da Carta de Princípios do Hamas).

Fica claro, presumo, que a emancipação dos palestinianos nunca poderá ser alcançada pondo este lema em prática.

2. Composição

O Hamas tem três ramos distintos e autónomos: uma entidade caritativa (que estabeleceu e gere uma extensa rede de hospitais, escolas, jardins-de-infância, orfanatos, bibliotecas, clubes juvenis e outros serviços sociais), criada em 1973; uma entidade política (que governa a Faixa de Gaza desde 2006, administrativamente auxiliada pela Autoridade Nacional Palestiniana [1]), criada em 1987; e uma entidade militar (as brigadas Izz al-Din al-Qassam), criada em 1991.

3. O Hamas e a luta armada

Convém saber que a própria ONU reconhece, desde 3 de Dezembro de 1982, através da resolução 37/43 da sua 90.ª assembleia geral, a legitimidade de o povo palestiniano recorrer à luta armada para conquistar o seu direito à autodeterminação. As brigadas Izz al-Din al-Qassam são a maneira como o Hamas interpreta e dá corpo a essa luta armada.

Assim, estas brigadas empregam tácticas de guerrilha (TG) para combater as forças armadas e policiais de Israel, o Estado ocupante e opressor dos palestinianos. Todavia, empregam também tácticas terroristas (TT) contra a população civil israelita, o que constitui uma interpretação abusiva da resolução 37/43.

As TG incluem missões de reconhecimento especial; acções de sabotagem, destruição ou remoção de obstáculos; emboscadas; ataques com morteiros, foguetes, mísseis e drones; surtidas, operações de busca, resgate e salvamento — todas elas dirigidas, regra geral, contra alvos militares e policiais. As TT incluem (tt.1) ataques suicidas, cujo êxito, depende, necessariamente, da morte do(s) agente(s) atacante(s) (e.g. homens-bomba); (tt.2) missões quase suicidas, nas quais os perpetradores podem ou não morrer pelas suas próprias mãos (e.g. sequestro de um avião ou de um navio); (tt.3) colocação furtiva de diferentes tipos de engenhos explosivos improvisados em locais frequentados ou utilizados por muita gente (e.g., centros comerciais, esplanadas, autocarros, aviões), (tt.4) acções terroristas com alvos altamente remuneradores [na lógica do terrorismo [2]] (e.g., assassinatos selectivos; rapto, sequestro e troca de reféns) — todas elas dirigidas, regra geral, contra elementos, grupos e organizações da sociedade civil.


Desfile das brigadas Izz al-Din al-Qassam, do Hamas, em Gaza. Foto: Associated Press.

4. Divergências na caracterização do Hamas

O sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado” (SMDCSOA para abreviar) faz vista grossa sobre a estrutura tripartida do Hamas. Armado com esta análise vesga, faz questão de nos repetir todos os dias que o Hamas é, tão-somente, uma organização terrorista — o que já vimos ser um erro, mesmo se reduzíssemos o Hamas apenas às brigadas Izz al-Din al-Qassam.  Além disso, apresenta essa caracterização defeituosa como se ela fosse universalmente aceite.

Mas isso também não é verdade. Não há unanimidade entre os Estados que fazem parte da ONU sobre a caracterização do Hamas. Por exemplo, Israel, EUA, UE (Portugal inclusive), Canadá e Japão consideram o Hamas uma organização terrorista. Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e Egipto consideram terrorista apenas o braço armado do Hamas: as brigadas Izz al-Din al-Qassam. Rússia, China, Turquia, Irão, Brasil, África do Sul e Noruega não consideram o Hamas (nem o seu braço armado) uma organização terrorista.

Para alguns comentadores do SMDCSOA, tanto os governantes dos países pertencentes aos dois últimos grupos, como os cidadãos dos países pertencentes ao primeiro grupo que compartilham a posição desses governantes neste particular, são “idiotas úteis do Hamas[3].

5. Falhas analíticas

Pode discutir-se a razão de ser destas discrepâncias sobre a caracterização do Hamas, que são parcimoniosamente noticiadas pelo SMDCSOA. A meu ver, estão todas ligadas a duas falhas analíticas:

(i) a falha em reconhecer que o Hamas é semelhante a uma hidra com três cabeças. Se uma for cortada (as brigadas Izz al-Din al-Qassam, por exemplo), as outras duas não desapareceriam como por encanto, porque dispõem de uma forte base social de apoio: a resistência do povo palestiniano à opressão multiforme e sufocante do Estado de Israel.

(ii) a falha em distinguir TG e TT e em reconhecer que o Hamas, através do seu braço armado, emprega ambas.

Seja como for, o SMDCSOA nunca ou raramente nos dirá três coisas essenciais (ver secções 6, 7 e 9), sem as quais não é possível compreender a actuação do Hamas, incluindo o seu ataque em 7 de Outubro de 2023 (ver secção 8).

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[*] Publicado originalmente no blogue Estátua de Sal, em 6 de Novembro de 2023 https://estatuadesal.com/2023/11/06/o-que-e-o-hamas-parte-i/

[continua]

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Notas e Referências

[1] O Hamas governa a Faixa de Gaza com a ajuda da ANP (dirigida pela Al-Fatha, organização bem mais antiga e rival do Hamas) que co-financia e co-administra os serviços de saúde e de educação da Faixa de Gaza. Este facto é raramente mencionado nas análises sobre o Hamas e sobre Gaza. 

[2] A lógica do terrorismo consiste em planear e realizar com êxito acções violentas que causem medo intenso ou espalhem medo intenso na população que apoia os seus inimigos políticos e em conseguir fazê-lo de uma forma altamente remuneradora — isto é, que potencie ao máximo, nessa população, o efeito de terror resultante dos danos físicos causados às suas vítimas imediatas (que podem ser desproporcionalmente diminutos relativamente à grande intensidade e abrangência do terror que geram).

[3] Ver, por exemplo, Jorge Almeida Fernandes (doravante JAF, para abreviar), “Os idiotas úteis do Hamas.” (O Estado da Coisas. Público 3 de Novembro de 2023). Para este comentador, «As vítimas palestinianas dos bombardeamentos [de Israel] são de uma natureza muito diferente das vítimas do Hamas». Porquê? Porque (P1) umas vítimas, argumenta JAF, as vítimas de Israel, são o resultado de «efeitos colaterais» dos bombardeamentos; ao passo que (P2) as outras, as vítimas do Hamas, são o resultado de «assassínios planeados». Assim, deduz-se que, para este comentador, os governantes e militares de Israel não cometem crimes de guerra nem crimes contra a humanidade, só os dirigentes e combatentes do Hamas o fazem.  O conceito de “efeitos colaterais” de JAF é, como se vê, muito elástico porque inclui, por exemplo, os 72 funcionários da United Nations Relief and Works Agency (UNRWA), uma agência humanitária da ONU, e as 3.648 crianças e menores vítimas mortais dos bombardeamentos israelitas em Gaza desde 8 de Outubro de 2023.

Mas só não vê quem não quer que estes bombardeamentos são «assassínios planeados» em grande escala e a grande distância, assassínios por atacado — mas que podem também tomar uma forma mais personalizada, como acontece amiúde. O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, declarou a propósito de um dos mais recentes desta última espécie: «Estou horrorizado com o ataque em Gaza [de 3 de Novembro] contra uma caravana de ambulâncias à porta do hospital Al Shifa. As imagens de corpos espalhados na rua em frente ao hospital são angustiantes», disse, acrescentando: «Há quase um mês que os civis em Gaza, incluindo crianças e mulheres, estão sitiados, não recebem ajuda, são mortos e bombardeados fora das suas casas». (“Israel admits airstrike on ambulance near hospital that witnesses say killed and wounded dozens.” CNN, November 4, 2023). Presumo que Guterres será, para JAF, um dos «idiotas úteis do Hamas». É uma conclusão que faz sentido, se admitirmos as suas premissas, (P1) e (P2). Todavia, para entendermos o qualificativo de “idiota útil” que JAF emprega na sua análise do conflito israelo-palestiniano, faz também todo o sentido aplicar a JAF a distinção que ele faz da natureza das vítimas palestinianas de Israel e das vítimas israelitas do Hamas, mas sem aceitar (como ele pretende) que umas valem menos do que as outras quando as contamos. Se o fizermos, chegamos à conclusão de que JAF se coloca do lado do contendor mais poderoso, mais mortífero e mais impiedoso — ou seja, para empregar a sua própria terminologia, que ele se assume como “um idiota útil de Israel”; quiçá (presumo) com muita honra e orgulho de o ser.

 

 

04 novembro, 2023

 Tema 3

O que é Gaza?

José Catarino Soares

A Faixa de Gaza (doravante Gaza, para abreviar) é uma parte do antigo território da Palestina, hoje quase todo ele ocupado por Israel. É um território exíguo, situado na costa leste do Mediterrâneo. Tem uma área de 365 km2, um pouco menor do que a do concelho de Redondo (369,5 km2) e um pouco maior do que a do concelho de Alter do Chão (362 km2), em Portugal continental.

A população actual de Gaza é de 2,1 milhões de habitantes, maioritariamente árabe-palestiniana. Não há judeus israelitas em Gaza, nem árabes israelitas, que representam 1,8 milhões de habitantes (21% da população de Israel) e que preferem autodenominar-se “palestinianos de Israel”. Cerca de metade da população de Gaza (47,3%) são crianças e jovens com menos de 18 anos. Gaza é a terceira região mais densamente povoada do mundo: 5.839 habitantes por quilómetro quadrado. Para se ter um termo de comparação, podemos recorrer outra vez aos dois concelhos portugueses supramencionados. O concelho de Redondo tem 6.300 habitantes e o de Alter do Chão tem 3.044 habitantes (números de 2021), com uma densidade populacional de 17 habitantes por km2 e 8,4 habitantes por km2, respectivamente.

Gaza tem uma linha de costa de 40 km. Tem duas fronteiras terrestres: uma, maior, com Israel, ao longo de 59 km, a norte e a oeste; outra, menor, com o Egipto, ao longo de 13 km, a sul (ver mapa abaixo).

Mapa da Faixa de Gaza. Autor: Lencer, retocado e traduzido para Português por Indech.
Fonte: 
Wikipédia.

Desde Junho 2007 que Israel, com a colaboração do Egipto, mantem um drástico bloqueio económico e comercial a Gaza, que se agravou a partir do dia 7 de Outubro de 2023. O bloqueio a Gaza é mantido, militarmente, por terra, mar e ar. O bloqueio impede a livre circulação de pessoas: ninguém pode entrar e sair de Gaza sem autorização das forças militares de Israel e do Egipto. Este regime só é um pouco menos apertado para os habitantes de Gaza que tenham necessidades médicas graves. Esses habitantes são, por vezes, autorizados a atravessar a fronteira e a procurar auxílio médico em hospitais de Israel.

 Por outro lado, o bloqueio só permite a entrada de bens considerados de primeira necessidade (água potável, electricidade, alimentos, vestuário, calçado, medicamentos, combustíveis, produtos de higiene) e de ajuda humanitária, após um controle minucioso de seu conteúdo. E mesmo a importação desses bens e o fornecimento dessa ajuda são discricionariamente reduzidos ou proibidos sempre que o governo de Israel entende fazê-lo. É o que acontece actualmente, depois de o governo de Netanyahu ter cortado a água, a electricidade, o combustível, os víveres e o medicamentos à população de Gaza, em represália pelo ataque do Hamas em 7 de Outubro último. 

O bloqueio económico e comercial a Gaza foi imposto depois do Hamas ter vencido as eleições parlamentares de 25 de Janeiro de 2006. Nesse dia, foram realizadas eleições nos territórios palestinos (Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental) para escolher os 132 membros do Conselho Legislativo da Palestina (CLP), órgão legislativo da Autoridade Nacional Palestiniana (ANP). Os resultados finais da eleição deram a vitória ao Hamas, com 74 assentos no CLP. A criatura (Hamas) começava a escapar ao seu patrocinador (Israel) [1] que julgou, ao instaurar o bloqueio, conseguir mantê-lo sob rédea curta. Mas tudo o que conseguiu foi, pelo contrário, aumentar o prestígio dos dirigentes do Hamas aos olhos da população palestiniana, em especial em Gaza, conferindo-lhe uma auréola de resistentes intransigentes, impolutos e incorruptíveis, ao contrário dos dirigentes da Al-Fatah, a componente (laica) até então maioritária da Organização de Libertação da Palestina (OLP) que domina a ANP.

Com o bloqueio económico e comercial, as condições de vida em Gaza deterioraram-se rápida e gravemente. A pobreza aumentou de 38,8% para 53,0%, de 2011 a 2016, deixando pobres um em cada dois gazenses. Durante a segundo trimestre de 2022, a taxa de desemprego era de 44% em Gaza. A insegurança alimentar em Gaza permanece alta: 63%. Jimmy Carter, ex-presidente dos EUA, não estava a exagerar quando disse, em 2009:

«[Os palestinianos da Faixa de Gaza] estão a ser tratados mais como animais do que como seres humanos... Nunca antes na história uma grande comunidade como esta foi devastada por bombas e mísseis e depois foi privada dos meios para se reparar» (Reuters, June 16, 2009).

Os seres humanos pertencem, biologicamente, ao reino Animalia. Somos, portanto, animais, pelo que presumo que Carter queria dizer “animais ferozes”. Vale a pena notar que Carter exprimiu, inadvertidamente e com 14 anos de antecedência, o pensamento profundo dos governantes israelitas. O actual ministro da defesa de Israel, Yoan Gallant, esclareceu que os palestinianos de Gaza são “animais ferozes” (“human animals” no seu Inglês macarrónico) e o embaixador de Israel na Alemanha, Ron Prosor, declarou que os palestinianos de Gaza são “animais [ferozes] sedentos de sangue” (“bloodthirsty animals” no original). E acrescentou:  

«As pessoas que vimos a violar, a matar e a disparar contra famílias, crianças pequenas e a queimar pessoas vivas nas suas próprias casas são as pessoas de Gaza» afirmou. «Por isso, tentar diferenciá-las [dos militantes do Hamas] é um verdadeiro problema» (Político, October 12, 2023).

Em 2010, o primeiro-ministro (conservador) britânico David Cameron chamou a Gaza «uma prisão a céu aberto», suscitando a ira de Israel, velho aliado do Reino Unido. Em Fevereiro de 2015, Banksy, o conhecido artista de rua britânico, deslocou-se a Gaza para chamar a atenção para a situação dos palestinianos após o devastador ataque israelita que ocorrera no Verão anterior. Relativamente aos murais que pintou em Gaza, escreveu:

«Gaza é frequentemente descrita como “a maior prisão a céu aberto do mundo” porque ninguém pode entrar ou sair. Mas isso parece um pouco injusto para as prisões — elas não têm a sua electricidade e água potável cortadas aleatoriamente quase todos os dias» (The Independent, February 27, 2015).

Como disse um residente de Rafah: «Isto é pior do que a prisão.... Na prisão, podemos estar seguros. Aqui estamos em perigo a toda a hora» (Reuters, August 19, 2001), nomeadamente por causa dos bombardeamentos.. E disse-o em Agosto de 2001, catorze anos antes de Banksy ter dito o mesmo por outras palavras.  

7 de Dezembro de 2021. Membros da Segurança Israelita gesticulam numa abertura da (então) recém-concluída barreira construída por Israel ao longo da fronteira com a Faixa de Gaza, em Erez, no Sul de Israel. Foto: Reuters/Ammar Awadi.

O que é, então, Gaza? Creio que Baruch Kimmerling (1939-2007), professor da Universidade Hebraica, deu a resposta mais certeira: «o maior campo de concentração que alguma vez existiu». Mas já não é suficiente. Hoje temos de acrescentar: é também «um campo de matança» [«a killing field», Norman Finkelstein] e a maior morgue a céu aberto do planeta [2]

 Gaza. 1 de Novembro de 2023. Fonte:Ammon News Agency
              

Notas

[1] Num texto a publicar ulteriormente, intitulado “O que é o Hamas?”, elucidarei a razão de ser desta relação patrocinador/criatura patrocinada. 

[2] Esta apreciação acaba de ser confirmada (28.11.2023) por Francesca Albanese, relatora especial da ONU para os territórios palestinianos ocupados, que declarou:

«Houve uma suspensão das hostilidades após 24 horas de intensificação dos bombardeamentos, muito violentos. As pessoas vêem o nível de violência. Vêem o nível de catástrofe. A ONU, com a qual estou em contacto permanente, diz que a situação em Gaza é muito pior do que o estimado. Mais de metade das infra-estruturas foi destruída. Há uma estimativa de 13 mil mortos, 30 mil feridos e três mil pessoas ainda debaixo dos escombros » (Francesca Albanese: “Israel tem a capacidade militar para levar a cabo um genocídio em Gaza”. Público, 28 de Novembro de 2023 [ênfase por meio de traço grosso acrescentado ao original]. https://www.publico.pt/2023/11/28/mundo/entrevista/francesca-albanese-israel-capacidade-militar-levar-cabo-genocidio-gaza-2071650?).