Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

09 dezembro, 2023

 Temas 2 e 3


Em 9 de Abril de 2022, Zelensky preferiu a guerra à paz

pelos motivos mais mesquinhos

 

José Catarino Soares

 

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10.º artigo da série 

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!

 

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1. Introdução

 

Este artigo elucida fornecendo-lhe o necessário contexto e uma chave interpretativa as recentes confidências de Davyd Arakhamia, também conhecido como David Braun, chefe do grupo parlamentar do partido Servente do Povo, o partido fundado pelo presidente Volodymyr Zelensky da Ucrânia, maioritário no parlamento ucraniano. 

 

Que eu saiba, nenhum órgão português do sistema mediático dominante de comunicação social noticiou ou comentou as declarações do senhor Arakhamia sobre os importantes episódios de que ele foi protagonista — uma variante laica da história bíblica de Jonas e a baleia, mas com um Jonas pusilânime. Mas é muito importante conhecê-las e dá-las a conhecer, porque elas lançam uma luz forte sobre as zonas mais recônditas da segunda guerra na Ucrânia (a que começou em 24 de Fevereiro de 2022) e, em particular, sobre as pesadíssimas responsabilidades de Zelensky na continuação dessa guerra até aos dias de hoje.  

 

2. As negociações de Março/Abril de 2022


Na secção 9.2 [“As responsabilidades de Zelensky”] do meu livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal (editora Primeiro Capítulo, Agosto 2023), descrevi sucintamente as negociações que ocorreram em Março de 2022, na Turquia, entre a Ucrânia e a Rússia, com vista a celebrar um acordo de paz entre os dois países beligerantes.

 

Estava em causa uma solução negociada que permitisse alcançar dois objectivos:

 

(i) pôr fim ao conflito armado entre as duas Repúblicas da Donbass – República Popular de Donetsk (RPD) e República Popular de Lugansk (RPL) e a Ucrânia, resultante do desrespeito dos Acordos de Minsk (2014-2015) — sistemática e cientemente violados pela Ucrânia com a cumplicidade, como ficámos recentemente a saber, de dois dos seus mediadores e padrinhos (França e Alemanha) [1];

e

(ii) garantir a neutralidade militar (incluindo a renúncia ao armamento nuclear) da Ucrânia, ameaçada pela intenção reiteradamente declarada da Ucrânia, expressa  pela boca e pelos actos dos seus governantes pós-golpe de Estado de Maidan (Fevereiro de 2014), de abandonar a sua neutralidade militar (que se comprometera a respeitar ao assinar o Memorando de Budapeste sobre Garantias de Segurança, em 1994), instalar armas nucleares (de fabrico próprio ou alheio) no seu território e aderir à OTAN (NATO no acrónimo inglês) — intenção essa que a Rússia encarava, fundadamente, como uma gravíssima ameaça à sua existência [2].

Essas negociações entre a Rússia e a Ucrânia ocorreram em Antália e Istambul, na Turquia, e chegaram a bom porto, como o atestam todos os testemunhos, incluindo os dos seus mediadores — Mevlut Cavusoglu (ministro dos Negócios Estrangeiros da Turquia), Gerhard Schröeder (ex-chanceler da Alemanha) e Neftali Bennett, à época primeiro-ministro de Israel.



Turquia, 29 de Março de 2022. Na foto vêm-se vários membros da delegação ucraniana nas negociações russo-ucranianas. O segundo homem a contar da esquerda, é Davyd Arakhamia, chefe dessa delegação e chefe do grupo parlamentar do partido Servente do Povo (o partido fundado pelo presidente Volodymyr Zelensky). Foto: Lokman Akkaya/Anadolu Agency via Getty Images.

Mais: chegou-se a um acordo entre as duas partes beligerantes que era muito favorável à Ucrânia.

 

«Os principais pontos do plano eram um cessar-fogo e a retirada russa [do território ucraniano], e a adopção pela Ucrânia de um estatuto de neutralidade semelhante ao da Áustria. A Ucrânia renunciaria a qualquer plano futuro de adesão à OTAN e prometeria não acolher instalações de armas ou bases militares estrangeiras, em troca de novas garantias de segurança de outros países. A língua russa seria também reconhecida como uma língua oficial na Ucrânia. Os pontos de atrito da Rússia envolviam a natureza das garantias de segurança e que países as forneceriam, e os pormenores de como o futuro da Crimeia e das duas Repúblicas Populares em Donbass seria decidido. Mas os contornos de um acordo de paz estavam em cima da mesa» [3].


Gerhard Schröeder, ex-chanceler da Alemanha (1998-2005) que foi também mediador em Istambul (a pedido da Ucrânia) entre a Ucrânia e a Rússia, e que tem acesso fácil ao Kremlin devido às suas funções profissionais [4] foi ainda mais explícito sobre o teor do acordo. Numa entrevista recente [5], Schröeder revelou que o acordo russo-ucraniano alcançado na Turquia em Março/Abril de 2022 incluía os seguintes pontos:

 

― A Ucrânia abandonaria as suas pretensões de vir a pertencer à OTAN;

 

― A revogação, pelo parlamento ucraniano pós-golpe de Estado de Maidan (2014), da lei que garantia o bilinguismo oficial (ucraniano + russo) [a lei Kivalov-Kolesnichenko de 2012] seria revertida;

 

― A região da Donbass [onde se situavam a RPD e a RPL] permaneceria na Ucrânia, mas como uma região autónoma (Schröeder: “Como o Tirol do Sul” relativamente à Itália);

 

― O Conselho de Segurança da ONU e a Alemanha deveriam fornecer à Ucrânia as garantias de segurança que ela pedia e a que tem direito.

 

O ex-chanceler alemão também falou sobre a Crimeia — uma república autónoma da ex-União Soviética que a Ucrânia anexou em 1995 [6]. Considerou-a uma parte da história russa.

 

«Há quanto tempo é que a Crimeia é russa? Para a Rússia, a Crimeia não é apenas uma região, mas uma parte da sua história. A guerra poderia ter terminado se não estivessem em jogo interesses geopolíticos», afirmou Gerhard Schröeder.

 

3.    A opinião de Davyd Arakhamia em 3 de Abril de 2022

 

O chefe da delegação ucraniana de negociadores, Davyd Arakhamia, considerou as negociações de Março/Abril de 2022, na Turquia, um êxito retumbante para a Ucrânia.

 

O The Telegraph (o jornal que apoia o Partido Conservador do Reino Unido, o partido actualmente no poder) deu conta disso mesmo ao publicar a seguinte manchete no dia 3 de Abril de 2022:



Tradução da manchete: «A Rússia concordou com quase todas as nossas propostas de paz, diz o negociador ucraniano. No início desta semana, a delegação da Ucrânia concordou em desistir das suas aspirações a entrar na OTAN [= NATO, no acrónimo inglês, n.e.se o Ocidente lhe oferecer garantias de segurança». [n.e.= nota editorial]


A manchete vinha acompanhada da seguinte fotografia e legenda.



Vladimir Medinsky (à esquerda) [chefe da delegação russa] e Davyd Arakhamia [chefe da delegação ucraniana] durante as conversações Russo-Ucranianas em Istambul, na terça-feira, 5 de Abril de 2022. Foto: Ukrainian Foreign Ministry Press Service.


A Agência Lusa noticiou na mesma altura algo que permite dar às palavras de Davyd Arakhamia a sua verdadeira dimensão.

 

«Kiev [entenda-se: o governo de Zelensky, n.e.] propõe a neutralidade da Ucrânia e a renúncia à adesão à NATO, desde que a sua segurança seja garantida por vários países, tendo proposto ainda um período de negociações para resolver o estatuto da região da  Donbass e da Crimeia.

 

 “Na realidade, todos os acordos obtidos em Istambul nada mais são do que aquilo que Rússia tem exigido desde 2014”, notou Medinsky [o chefe da delegação russa, n.e.], apontando para questões como a neutralidade ucraniana, a proibição de bases militares estrangeiras e a presença de tropas estrangeiras ou qualquer tipo de sistemas de mísseis» [7].

 

4.    A visita-surpresa de Boris Johnson a Kiev

 

Poucos dias depois do acordo alcançado na Turquia, Boris Johnson, à época primeiro-ministro do Reino Unido (RU), fez uma visita-surpresa a Kiev com dois potentes engodos na pasta: (i) uma promessa de 100 milhões de libras esterlinas em armamento britânico do mais moderno e outras avultadas benesses financeiras, e (ii) um recado seu e de Joe Biden, o chefe incontestado do “Ocidente alargado”.

 

Perante o resultado que se conhece dessa visita de Johnson [8], não é difícil conjecturar qual terá sido o teor fundamental desse recado a Zelensky que o próprio Johnson se encarregou de transmitir à sua maneira. Poderá ter sido algo como isto:

 

“Senhor Presidente. O senhor é livre, bem entendido, de fazer esse acordo de paz com a Rússia. Mas tem de estar ciente que, se o fizer, nós (RU, EUA, OTAN, UE — o núcleo duro do “Ocidente alargado” tão caro ao nosso saudoso mestre Zibgniew Brzezinski) deixaremos de o apoiar. Mas não há necessidade nenhuma disso acontecer. A Rússia não é um parceiro confiável. Putin é um criminoso de guerra. Se o senhor recusar esses cantos de sereia de Putin, nós apoiá-lo-emos em tudo armas, munições, treino de tropas, informações militares estratégicas e operacionais, logística, dinheiro, apoio diplomático e pelo tempo que for preciso. Eu trago-lhe hoje um cheque-promessa de mais de 100 milhões de libras esterlinas [=120 milhões de euros = 130 milhões de dólares americanos ao câmbio de então, n.e.] em armamento britânico da mais alta qualidade, além de um empréstimo de 500 milhões de dólares americanos do Banco Mundial, elevando assim a 100 mil milhões de dólares a garantia total de empréstimos do Reino Unido à Ucrânia. É uma prova concreta do nosso apreço por si e da nossa confiança no futuro da Ucrânia. E permita-me, sr. Presidente, que lhe diga mais uma coisa da máxima importância: a Ucrânia pode ganhar esta guerra contra a Rússia com o nosso apoio inabalável. Porque o nosso apoio inabalável ao seu país, não é apenas militar, financeiro e diplomático; é também económico. Nós vamos infligir sanções económicas à Rússia de Putin de uma dureza e numa escala nunca vistas, que, juntamente com a constante pressão militar, obrigarão Putin a claudicar e/ou a enfrentar uma revolta da sua própria população que o poderá derrubar”.



Boris Johnson e Volodymyr Zelensky no gabinete presidencial de Zelensky durante a visita-surpresa de Johnson a Kiev, em 9 de Abril de 2022. Esta foto foi divulgada no Twitter pela embaixada do Reino Unido na Ucrânia, com o título “Surpresa”. Fonte: @UkrEmbLondon.

    


    5. O papel pernicioso da dupla Johnson/Biden

 

Seja como for, uma coisa é certa: antes da visita-surpresa de Boris Johnson em 9 de Abril de 2022, a Ucrânia e a Rússia tinham chegado a um acordo de paz que ambas as partes beligerantes consideravam altamente satisfatório. Depois dessa visita, esse acordo foi recusado pela Ucrânia.

 

Não se trata de uma mera coincidência. Em 5 de Maio de 2022, os jornalistas ucranianos Iryna Balachuk e Roman Romaniuk, do Ukrayinska Pravda, escreveram:

 

«De acordo com fontes do Ukrayinska Pravda próximas de Zelensky, o Primeiro-Ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que apareceu na capital quase sem aviso prévio, trouxe duas mensagens simples: a primeira é que Putin é um criminoso de guerra, deve ser pressionado e não trazido para negociações; e a segunda é que, mesmo que a Ucrânia esteja pronta para assinar alguns acordos de garantias com Putin, eles [os membros do “Ocidente alargado”, n.e.] não estão.

 

A posição de Johnson era a de que o Ocidente alargado, que em Fevereiro tinha sugerido que Zelensky se rendesse e fugisse, sentia agora que Putin não era tão poderoso quanto imaginavam e que esta era uma oportunidade para o “pressionar”.

 

Três dias depois de Johnson ter partido para a Grã-Bretanha, Putin veio a público dizer que as conversações com a Ucrânia “tinham-se transformado num beco sem saída”»[9].

 

Por sua vez, Gerhard Schröeder confidenciou na sua entrevista ao Berliner Zeitung:

 

«As únicas pessoas que podem resolver a guerra da Ucrânia são os americanos. Durante as conversações de paz em Março de 2022, em Istambul, com Rustem Umierov [actual Ministro da Defesa da Ucrânia, n.e.], os ucranianos não concordaram com a paz porque não lhes foi permitido. Tiveram, primeiro, de coordenar tudo o que disseram com os americanos».

 

O antigo chanceler afirmou ainda, depois ter falado com Umierov e em “tête-à-tête com Putin”:

 

«No entanto, acabou por não acontecer nada. A minha impressão é que nada podia acontecer porque tudo o resto foi decidido em Washington. Foi fatal». [o realce, por meio de traço grosso, foi acrescentado ao original, n.e.]

 

6.    14 meses depois: o testemunho de Putin

 

Em 16 e 17 de Junho de 2023, uma delegação de governantes de vários países africanos África do Sul, Egipto, Zâmbia, República do Congo, Senegal, Uganda, União das Comores visitou, sucessivamente, Kiev e Moscovo para apresentar aos presidentes da Ucrânia e da Rússia um plano em 10 pontos destinado a pôr termo ao conflito armado entre esses dois países e para oferecer os seus préstimos como mediadora nas negociações que viessem a ocorrer nesse sentido.

 

Numa conferência de imprensa conjunta em Kiev, após a reunião com a delegação africana, Zelensky negou qualquer possibilidade de negociações com a Rússia e reiterou a posição do seu país de que as conversações de paz só poderão prosseguir depois de a Rússia se retirar completamente de todos os territórios ucranianos.


Durante a reunião com a delegação africana, o presidente russo, Vladimir Putin, mostrou o projecto final de acordo com a Ucrânia, elaborado em Março de 2022 em Istambul, que já descrevi na secção 2 deste artigo. Putin disse nessa ocasião: 

 

«Gostaria de chamar a vossa atenção para o facto de que, com a ajuda do Presidente [Tayyip] Erdogan, como sabem, teve lugar na Turquia uma série de conversações entre a Rússia e a Ucrânia, a fim de elaborar tanto as medidas de reforço da confiança que mencionaram, como o texto do acordo. Não acordámos com a parte ucraniana que este tratado seria confidencial, mas também nunca o apresentámos [publicamente], nem o comentámos [publicamente]. Este projecto de acordo foi rubricado pelo chefe da equipa de negociação de Kiev [o sr. Davyd Arakhamia, n.e.]. Ele colocou nele a sua assinatura. Aqui está ela»disse o Presidente russo, mostrando o documento à delegação africana.

 

De acordo com Putin, o projecto de acordo sobre a neutralidade militar permanente da Ucrânia (incluindo a componente nuclear) e as garantias de segurança da Ucrânia continha 18 artigos, com um anexo onde «tudo está especificado, desde o número de unidades de equipamento militar até ao pessoal das Forças Armadas», disse.

 

«Assim que a Rússia, conforme tinha prometido, retirou as suas tropas das cercanias de Kiev [num gesto de boa vontade demonstrativo do seu empenho no êxito do acordo, n.e.], a Ucrânia atirou o acordo para o caixote do lixo da história» — acrescentou Putin.

 

A intervenção completa de Putin nesta ocasião, com legendas em Inglês, pode ser vista e ouvida aqui [https://x.com/onlydjole/status/1670141702797967361?s=20].

 

O sistema mediático dominante de comunicação social do chamado “Ocidente alargado” deu pouca ou nula cobertura noticiosa a este discurso de Putin e os seus comentadores encartados dispensaram-se de comentar o seu conteúdo e as suas implicações. Quando o fizeram foi, o mais das vezes, para emitirem dúvidas quanto à autenticidade do documento exibido por Putin nessa ocasião. Veremos mais adiante (secções 8 e 9) quais as razões desse comportamento.

 

7.    19 meses depois: Arakhamia, outra vez

 

Cinco meses volvidos sobre as declarações de Putin à delegação africana sobre as negociações russo-ucranianas na Turquia e 18 meses volvidos sobre essas negociações, eis que o mesmo senhor David Arakhamia que continua  a ser o chefe do grupo parlamentar do partido Servente do Povo decide dar uma entrevista ao canal de televisão ucraniano 1+1, na qual…confirma tudo o que já sabíamos pela boca de Mevlut Cavusoglu, Ibrahim Kalin (porta-voz presidencial da Turquia) [10], Neftali Bennett, Vladimir Medinsky, Vladimir Putin, Gerhard Schröeder e do próprio Davyd Arakhamia!

 

A grande diferença, porém, é que, desta vez, a confirmação vem de alguém que esteve no ventre da baleia; alguém que participou directamente nas negociações de paz que tiveram lugar na Turquia como membro da parte que se apresenta como agredida; alguém que chefiou a delegação ucraniana nessas negociações; alguém que é um dos dirigentes mais proeminentes do partido Servente do Povo, o partido governante da Ucrânia; alguém em quem Zelensk tem plena confiança e que é um dos seus mais próximos colaboradores. Por isso, não é possível descartar o depoimento de Arakhamia afirmando que se trata do depoimento de um inimigo de Zelensky, de alguém que lhe quer mal, de alguém que pretende difamá-lo.

 

A entrevista a Arakhamia foi feita pela jornalista Natalia Moseichuk e, para quem saiba ucraniano, pode ser vista aqui [https://www.youtube.com/watch?v=6lt4E0DiJts]. Os trechos seguintes das declarações feitas por Arakhamia durante essa entrevista foram extraídos da transcrição feita pelo jornal ucraniano Ukrayinska Pravda na sua edição inglesa, em 24 de Novembro de 2023.

 

«Arakhamia: Eles [os membros da delegação russa, n.e.] estavam esperançados, e mantiveram essa esperança até quase ao último momento, que nos obrigariam a assinar um acordo desse género para que assumíssemos a neutralidade. Era o mais importante para eles. Estavam dispostos a acabar com a guerra se nós concordássemos com a neutralidade — como outrora fez a Finlândia — e nos comprometêssemos a não aderir à NATO [= OTAN, n.e.]. De facto, esse era o ponto-chave. Tudo o resto era apenas retórica e “tempero político” sobre a desnazificação, a população de língua russa e blá-blá-blá» [o realce, por meio de traço grosso, foi acrescentado ao original, n.e.]

 

Quando lhe foi perguntado porque é que a Ucrânia não concordava com esse ponto-chave, Arakhamia respondeu que os ucranianos [entenda-se: o governo ucraniano] não tinham confiança nos russos [entenda-se: no governo russo], porque eles estavam dispostos a prometer qualquer coisa.

 

«Arakhamia: Em primeiro lugar, para chegar a acordo sobre esse ponto, é necessário alterar a Constituição. O nosso caminho para a NATO está inscrito na Constituição. Em segundo lugar, não havia confiança nos russos de que eles fariam o que prometeram. Isso só seria possível se houvesse garantias».

 

Dois comentários que vêm a talho de foice.

 

1.º) O parlamento da Ucrânia inscreveu o desejo deste Estado de aderir à OTAN/NATO em 3 artigos da Constituição da Ucrânia (artigos 85, 102 e 116). A Constituição da Ucrânia já foi revista 6 vezes desde a sua aprovação (1996). Nada impede que seja revista uma 7.ª vez para desinscrever esse desejo que só trouxe morte e destruição em doses maciças a esse país e cuja realização, aliás, não depende sequer da vontade exclusiva da Ucrânia, mesmo que esse desejo não tivesse tais óbices. Como se sabe, um Estado só pode ser aceite na OTAN (i) se cumprir um certo número de requisitos e (ii) se os demais membros dessa organização estiverem de acordo por unanimidade, mesmo que o país candidato à adesão cumpra tais requisitos na íntegra. Que o diga a Suécia, por exemplo, que cumpre todos os requisitos exigidos, mas que continua à espera de entrar por causa da oposição da Turquia e da Hungria.

 

2.º) O que Arakhamia afirma sobre a falta de garantias de segurança que tinham sido pedidas pela Ucrânia não corresponde à verdade, a fazer fé no que Schröeder nos revelou na sua entrevista ao Berliner Zeitung. Segundo Schröeder, as partes puseram-se de acordo sobre quem forneceria essas garantias: a Alemanha e o Conselho de Segurança da ONU, como vimos.

 

Prossigamos. Arakhamia acrescentou que os parceiros ocidentais estavam a par das negociações e que leram os rascunhos dos documentos que foram redigidos enquanto as negociações duraram, mas que não tentaram substituir-se à Ucrânia tomando uma decisão por ela. O que fizeram, isso sim, foi dar conselhos, disse.

 

«Arakhamia: Na verdade, aconselharam-nos a não aceitar garantias de segurança efémeras [da parte dos russos — nota editorial da Ukrainska Pravda], que não poderiam de modo nenhum ser dadas nessa altura».

 

Mas, logo a seguir, acabou por confidenciar que, vindos de quem vêm, os conselhos desta natureza são ordens para os “Serventes do Povo”:

 

«Arakhamia: Além disso, quando regressámos de Istambul, Boris Johnson veio a Kiev e disse que não íamos assinar com eles [os russos, n.e.] coisíssima nenhuma, vamos mas é lutar contra eles» [o realce, por meio de traço grosso, foi acrescentado ao original, n.e.]

 

8. As pesadíssimas responsabilidades de Zelensky

 

Basta cotejar a avaliação que Arakhamia fez do acordo de paz russo-ucraniano de Março de 2022, em duas ocasiões distintas em 3 de Abril de 2022 (“excelente!”) e em 24 de Novembro de 2023 (“péssimo!”) para se perceber que este homem é um pau-mandado. É possível vê-lo (é o meu caso) como um Jonas a quem foi dada uma oportunidade única de reflectir sobre a sua experiência quando esteve no ventre protector da baleia, mas que renegou tudo o que aprendeu durante esse período, logo que a baleia o expeliu de volta às ondas revoltas do mar.

 

Seja como for, as cabriolas opinativas de Arakhamia não alteram os factos que este artigo pretende destacar, que Arakhamia confirmou na sua entrevista e para a existência dos quais o mesmo Arakhamia contribuiu com a sua quota-parte, malgrado a sua pusilanimidade.


O facto principal a destacar é este. Em 3 de Abril de 2022, Davyd Arakhamia, chefe da delegação ucraniana nas conversações de paz com a Rússia, assinou livremente e em nome do seu governo, um acordo com o governo russo que teria permitido ao seu país:

 

― Beneficiar de um cessar-fogo imediato;

 

― Evitar a morte em combate de centenas de milhares de soldados ucranianos;

 

― Evitar que centenas de milhares de soldados ucranianos fossem feridos, capturados como prisioneiros de guerra, dados como desaparecidos em combate ou que ficassem estropiados para o resto da vida;

 

 Evitar a fuga de milhões de ucranianos para o estrangeiro e a deslocação de milhões de outros dentro do seu país [11].

 

― Evitar a morte de milhares de civis ucranianos (incluindo centenas de crianças) [12], vítimas colaterais tanto dos bombardeamentos russos como, sobretudo, da política dita de “defesa total” do governo de Zelenzky, que aboliu a distinção basilar das leis da guerra entre combatentes e civis e transformou os civis ucranianos das cidades em escudos humanos das tropas e das instalações militares ucranianas [13].



«A Ucrânia não tem cidadãos civis. Agora todos estão na guerra contra a ocupação moscoviana». Este cartaz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia faz a apologia do conceito de defesa total”, um elemento central da doutrina militar aprovada pelo parlamento ucraniano — ou seja, a abolição da distinção entre combatentes e civis; a distinção que constitui a base do direito internacional humanitário (ou “leis da guerra”). É a justificação encontrada pelo governo de Zelensky para a utilização dos civis ucranianos dos centros urbanos, sobretudo os que vivem em bairros densamente povoados, como “escudos humanos” das tropas e instalações militares ucranianas. É também a justificação encontrada pelo governo de Zelensky para dar aos agentes do SBU [o serviço de vigilância policial da Ucrânia] e do HUR [os serviços secretos de informações, espionagem e acções especiais do Ministério da Defesa da Ucrânia] licença para prenderem e assassinarem civis (incluindo jornalistas) ou militares que sejam considerados como inimigos da Ucrânia, tenham ou não nacionalidade ucraniana e vivam dentro ou fora das fronteiras da Ucrânia. «Moscoviano» é um termo pejorativo dos grupos neonazis banderistas para denominar xenofobicamente os russos.


― Evitar danos físicos ou funcionais e destruições nas suas infraestruturas físicas (barragens, pontes, aeródromos, viadutos, estradas, ferrovias, centrais eléctricas térmicas não-nucleares, postos de transformação eléctrica, instalações portuárias), no seu parque habitacional e até, por vezes, no seu património edificado, com todo o seu cortejo de efeitos indirectos.


Uma ponte destruída pela guerra na Ucrânia. 

 

Além disso, o acordo firmado na Turquia pela delegação ucraniana e pela delegação russa teria permitido preservar a integridade territorial da Ucrânia tal como esta existia à data da sua declaração de independência (24 de Agosto de 1991) — ou seja, teria evitado a secessão definitiva da RPL e da RPD na região de Donbass (substituída por uma autonomia à tirolesa no âmbito da Ucrânia), a sua adesão ulterior à Federação Russa e a incorporação dos oblasts de Zaporíjia e Kherson na Federação Russa. Este aspecto do conteúdo do acordo ⎼ a fazer fé na exactidão das confidências de Gerhard Schröeder   seria, sem dúvida, a cereja em cima do bolo para os nacionalistas ucranianos, pelo menos para os mais moderados, e um sapo que seria engolido sem grandes dificuldades pelos mais ferrenhos, incluindo os ultranacionalistas neonazis seguidores de Stepan Bandera.  

 

Mas o presidente Volodymyr Zelensky e o seu regime repudiaram tudo isto. Preferiram aceitar, cheios de gratidão, a conta à ordem e o tapete rolante de material bélico que lhes foram oferecidos pelos seus patronos anglo-americanos (Johnson e Biden) e os seus prestimosos ajudantes europeus (Olaf Scholz, Charles Michel, Ursula von der Leyen, Emmanuel Macron, Joseph Borrell, Jens Stoltenberg). Em troca de quê? Do cumprimento de um mandato camicase destinado a «enfraquecer a Rússia» (Lloyd Austin, ipse dixit [14]), cujo teor foi muito bem resumido por Andrés López Obrador, o presidente do México: «Nós [Ucrânia] fornecemos os mortos; vós [Ocidente alargado] forneceis as armas».

 

9. A derrocada de uma pseudo-explicação 

 

O primeiro efeito da entrevista de Davyd Arakhamia é, portanto, o de revelar, da maneira mais terra a terra que é possível, o modo como Zelensky e os seus colaboradores arrastaram cientemente o seu país para uma guerra devastadora que poderiam facilmente ter evitado, não fora o breviário onde procuram inspiração e conselho para a sua actuação como governantes — um inebriante cacharolete de ignorância crassa, esperteza saloia, ganância, mesquinhez e hubris.

 

O segundo efeito dessa entrevista que convém destacar é o de fazer ruir, como um piparote num castelo de cartas, a pseudo-explicação favorita das guerras na Ucrânia (em particular a segunda) que é avançada pelos comentadores do sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado”. Para fins mnemónicos, podemos denominar essa pseudo-explicação como sendo a de “Putin, o conquistador” — uma explicação que faz dele um émulo russo de Dom Afonso Henriques (o primeiro rei de Portugal) nos dias de hoje.

 

Fiona Hill uma historiadora anglo-americana e assessora política de vários presidentes americanos expressou muito clara e sucintamente essa pseudo-explicação na seguinte passagem:

 

«O presidente da Rússia invadiu a Ucrânia não por se sentir ameaçado pela expansão da NATO ou por “provocações” ocidentais. Ele ordenou a sua “operação militar especial” porque acredita que a Rússia tem o direito divino de governar a Ucrânia, de acabar com a identidade nacional do país e de integrar o seu povo numa Grande Rússia» [15].

 

Já desmontei e refutei, longamente, a tese do “expansionismo da Rússia” ou das alegadas “ambições territoriais de Putin” (em suma, “Putin, o conquistador”) no meu livro Dissipando a Névoa Artificial da Ucrânia: um roteiro para fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa, e o desarmamento nuclear universal (cf. nota 10, pp.153-157). Não vou repetir aqui o que disse nesse livro, porque isso não serviria nenhum propósito útil.

 

Mas vale a pena dar aqui a conhecer, na íntegra, os argumentos principais que John Mearsheimer desenvolveu contra essa pseudo-explicação num artigo recente. Os seus argumentos vão no mesmo sentido que os meus, apesar das grandes diferenças que nos separam no plano epistemológico e no plano político [16].   

 

«Segundo todos os relatos, essas negociações [entre a Ucrânia e Rússia, na Turquia, n.e.], que tiveram lugar em Março-Abril de 2022, estavam a fazer progressos reais quando o Reino Unido e os EUA disseram ao presidente ucraniano Zelensky para as abandonar, o que ele fez.

 

A cobertura destes acontecimentos centrou-se na insensatez e irresponsabilidade que foi o Presidente Joe Biden e o primeiro-ministro Boris Johnson terem posto fim a estas negociações, tendo em conta toda a mortandade e destruição que a Ucrânia tem sofrido desde então — numa guerra que Kiev provavelmente perderá.

 

No entanto, um aspecto especialmente importante desta história, relativo às causas da guerra na Ucrânia, tem recebido pouca atenção. A opinião convencional bem enraizada no Ocidente é que o Presidente Putin invadiu a Ucrânia para conquistar o país e torná-lo parte de uma Grande Rússia. Depois, seguiria em frente e conquistaria outros países da Europa de Leste. O contra-argumento, que goza de pouco apoio no Ocidente, é que Putin foi motivado para invadir principalmente pela ameaça de a Ucrânia aderir à NATO e se tornar um baluarte ocidental na fronteira da Rússia. Para ele e para outras elites russas, a adesão da Ucrânia à NATO era uma ameaça existencial.

 

As negociações de Março-Abril de 2022 tornam claro que a sabedoria convencional sobre as causas da guerra está errada e que o contra-argumento está certo, por duas razões principais.

 

Em primeiro lugar, as conversações centraram-se diretamente na satisfação da exigência da Rússia de que a Ucrânia não fizesse parte da OTAN e, em vez disso, se tornasse um Estado neutro. Todos os envolvidos nas negociações compreenderam que a relação da Ucrânia com a OTAN era a principal preocupação da Rússia.

 

Em segundo lugar, se Putin estivesse empenhado em conquistar toda a Ucrânia, não teria concordado com estas conversações, uma vez que a sua própria essência contradizia qualquer possibilidade de a Rússia conquistar toda a Ucrânia. Poder-se-ia argumentar que Putin participou nestas negociações e falou muito de neutralidade para mascarar as suas ambições maiores. No entanto, não há provas que sustentem esta linha de argumentação, para além de que: 1) a pequena força de invasão da Rússia não era capaz de conquistar e ocupar toda a Ucrânia; e 2) não teria feito sentido atrasar uma ofensiva maior, pois isso daria tempo à Ucrânia para construir as suas defesas.

 

Em suma, Putin lançou um ataque limitado à Ucrânia com o objectivo de coagir Zelensky a abandonar a política de alinhamento de Kiev com o Ocidente e a não levar, por fim, a Ucrânia para dentro da OTAN. Se o Reino Unido e o Ocidente não tivessem intervindo para estragar as negociações, há boas razões para pensar que Putin teria atingido este objetivo limitado e concordado em acabar com a guerra.

 

Também vale a pena lembrar que a Rússia só anexou os oblasts ucranianos de Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporíjia em Setembro de 2022, muito depois de as negociações terem terminado. Se tivesse sido alcançado um acordo, a Ucrânia controlaria quase de certeza uma parte muito maior do seu território original do que aquela que controla actualmente. É cada vez mais claro que, no caso da Ucrânia, o nível de insensatez e desonestidade das elites ocidentais e dos principais meios de comunicação ocidentais é pasmoso »[17].


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Notas e Referências

 

[1] A ex-chanceler da Alemanha, Angela Merkel, e o ex-presidente da França, François Hollande, mediadores e garantes dos Acordos de Minsk 2 por parte da Ucrânia, deram recentemente entrevistas (Merkel ao Der Spiegel [1-12-2022] e ao Die Zeit [7-12-2022]; Hollande ao The Kyiv Independent [28-12-2022] e ao Frankfurter Allgemeine [24-03-2023]) durante as quais afirmaram que nunca foi sua intenção fazê-los cumprir. A sua única intenção foi, confessaram, a de permitir que o presidente Poroshenko da Ucrânia ganhasse o tempo necessário para poder construir, com a ajuda dos EUA e dos países da OTAN, umas Forças Armadas poderosas, capazes de destruir a RPD e a RPL, subjugar de novo a população russófona da Donbass e confrontar-se vitoriosamente com as Forças Armadas russas, caso estas viessem em socorro daquelas repúblicas.

[2] Os apologistas da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) costumam alegar, em seu abono, que esta é uma aliança benigna, puramente defensiva. Destarte, argumentam, a Rússia nada teria a temer com a expansão da OTAN em 5 ondas sucessivas (1999, 2004, 2009, 2017, 2020) em direcção às fronteiras russas e a eventual adesão da Ucrânia e da Geórgia seria apenas mais um episódio dessa inofensiva expansão da OTAN. Mas basta evocar as intervenções militares ofensivas da OTAN (Jugoslávia 1995 e 1999, Afeganistão 2003, Líbia 2011) e observar o rasto sangrento de morte e destruição que deixaram para verificar que essas alegações são uma facécia para consumo jornalístico.

[3] Medea Benjamin & Nicolas Davies, War in Ukraine: Making Sense of a Senseless Conflict [“Guerra na Ucrânia: para entender um conflito que não se entende”]. OR Books, December 21, 2022.

[4] Schröeder ocupa actualmente o cargo de presidente do conselho de administração da Rosneft, uma empresa pública russa, e de presidente do conselho de administração da Nord Stream 2, uma subsidiária da Gazprom, uma empresa pública russa.

[5] “Gerhard Schröeder im Interview: So scheiterten dienFriedensverhandlungen zwischen Ukraine und Russland”. Berliner Zeitung, 21-10-2023; “Former German Chancellor claims he ‘mediated’ situation between Ukraine and Russia in 2022”. Ukrayinska Pravda, October 21, 2023 [reproduzido em Yahoo! News].

[6] Consultar, a este propósito, o capítulo 3 (“A colossal patranha da anexação da Crimeia pela Rússia”) do meu livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal” (Editora Primeiro Capítulo, 2023).

[7] “Rússia fala em lento cumprimento dos acordos de Istambul por Kiev”. Lusa, 3 de Abril de 2022.

[8] Robert Sermones, “Former Israeli PM: West Blocked Russo-Ukraine Peace Deal”. The European Conservative, February 7, 2023; Iryna Balachuk & Roman Romaniuk, “Possibility of talks between Zelenskiy and Putin came to halt after Johnson’s visit — UP sources”. Ukrayinska Pravda, 5 May, 2022.  

[9] Iryna Balachuk & Roman Romaniuk,“Possibility of talks between Zelenskiy and Putin came to halt after Johnson’s visit — UP sources”. Ukrayinska Pravda, 5 May, 2022. 

[10] «Numa entrevista ao jornal diário Hurriyet, o porta-voz presidencial [da Turquia], Ibrahim Kalin, afirmou que as partes estavam a negociar seis pontos: A neutralidade da Ucrânia, o desarmamento e as garantias de segurança, a chamada “desnazificação”, a eliminação dos obstáculos à utilização da língua russa na Ucrânia, o estatuto das repúblicas separatistas na região da Donbass e o estatuto da Crimeia» (“Russia, Ukraine ‘close to agreement’ in negotiations, says Turkey». Aljazeera, 20 March 2022).

[11] Segundo os últimos dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), em 21 de Novembro de 2023, havia mais de 6 milhões (6.338.100) de refugiados ucranianos noutros países, e mais de três milhões (3.674.000) deslocados internos em 3 de Novembro de 2023, segundo os dados da Organização Internacional para as Migrações (OIM) das Nações Unidas

[12] Pelo menos, 10.000 civis, incluindo mais de 560 crianças, foram mortos e mais de 18.500 ficaram feridos desde o início da 2.ª guerra na Ucrânia, em 24 Fevereiro de 2022, segundo o relatório de 24 de Novembro de 2023 do ACNUR.

[13] O emprego de escudos humanos é um crime de guerra, expressamente proibido pelo Direito Internacional Humanitário, também conhecido como Direito Internacional dos Conflitos Armados (vulgo, “as leis da guerra”) — nomeadamente pela Terceira Convenção de Genebra (relativa aos prisioneiros de guerra), pela Quarta Convenção de Genebra (relativa aos civis protegidos), pelo Protocolo Adicional I (relativa aos civis em geral), assim como pelo estatuto do Tribunal Penal Internacional. Tanto a Ucrânia como a Rússia subscreveram estas convenções e os seus protocolos adicionais.

Por “emprego de escudos humanos” entende-se, especificamente, «o emprego da presença (ou do movimento) de civis ou outras pessoas protegidas para tornar certos pontos ou áreas (ou forças militares) imunes às operações militares ou ainda, uma colocação intencional de civis ou pessoas fora de combate [tais como pessoal médico e paramédico, bombeiros, prisoneiros de guerra, n.e.] junto a objectivos militares [tais como bivaques militares, obuses, baterias DCA, carros de combate, depósitos de munições, radares, centros de comando e controlo, n.e.] com a finalidade específica de tentar evitar os ataques a esses objectivos (Jean-Marie Henckaerts & Louise Doswald-Beck, Direito Internacional Humanitário Consuetudinário. Volume 1. Normas. Comité Internacional da Cruz Vermelha. 2007, pp.381-2). O emprego, numa guerra, de civis como escudos humanos é uma das violações mais cínicas da abolição da distinção entre combatente e civil (ou pessoa fora de combate), a qual constitui a base de sustentação de todo o moderno edifício do direito internacional humanitário — a sua Norma nº.1.

«Norma 1. As partes em conflito devem distinguir entre civis e combatentes em todas as circunstâncias. Os ataques só podem ser dirigidos contra os combatentes. Os ataques não podem ser dirigidos contra os civis» (Henckaerts & Doswald-Beck, op.cit., p.3).

Zelensky não hesitou, desde o início da segunda guerra na Ucrânia, em violar a Norma Nº.1 do Direito Internacional Humanitário, empregando civis ucranianos, sobretudo nas cidades, como escudos humanos para defender as tropas e as instalações militares ucranianas dos ataques das tropas russas. Este é um facto praticamente desconhecido do grande público. Esse desconhecimento deve-se ao silêncio noticioso e comentarístico que o sistema mediático dominante da comunicação social tem feito sobre este assunto, salvo raras excepções. Esta é uma delas: Susan Raghavan, “Russia has killed civilians in Ukraine. Kyiv’s defense tactics add to the danger.” Washington Post.  March 22, 2022.

[14] «Numa conferência de imprensa na Polónia, após a sua visita [a Kiev], Austin [ministro da Defesa dos EUA, n.e.] disse aos jornalistas que os EUA querem ver a Rússia enfraquecida ao ponto de não poder fazer o tipo de coisas que fez ao invadir a Ucrânia»Matt Murphy, Ukraine war: US wants to see a weakened Russia”. BBC News, 25 April 2022. 

[15] Fiona Hill & Angela Stent, “The World Putin Wants. How Distortions About the Past Feed Delusions About the Future.” Foreign Affairs. September/October 2022. Published on August 25, 2022.

[16] John J. Mearsheimer é professor de politologia e relações internacionais na Universidade de Chicago, EUA, desde 1982. No domínio das relações internacionais, é o principal teórico da corrente denominada “realismo ofensivo”, uma variante da doutrina do realismo político.

[17] John J. Mearsheimer, “The Myth that Putin Was Bent on Conquering Ukraine and Creating a Greater Russia.” Substack, 27-11-2023.

28 novembro, 2023

 

O que é o HAMAS? [*]

[parte 3]

José Catarino Soares

9. Gaza e o gueto de Varsóvia

O embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, pôs ao peito a estrela amarela que a Alemanha nazi obrigou os judeus a usarem, como prelúdio para a “Solução Final” que ficou conhecida como Holocausto. Fê-lo, esclareceu, por duas razões:

― para protestar contra a resolução da Assembleia Geral da ONU que exige uma «trégua humanitária imediata, duradoura e sustentada que conduza à cessação das hostilidades» em Gaza (assim como a protecção de civis e bens civis, e do pessoal humanitário; e o fornecimento imediato, contínuo, e sem entraves de bens e serviços essenciais aos civis em toda a Faixa de Gaza, incluindo, água, alimentos, suprimentos médicos, combustível e electricidade), que considerou representar «um dia escuro para a humanidade»;

  para mostrar que o ataque do Hamas a Israel, em 7 de Outubro de 2023, foi uma acção semelhante à “Solução final da questão judaica” de Hitler, que o Conselho de Segurança da ONU não condenou como tal. 

«Alguns de vós não aprenderam nada nos últimos 80 anos. Alguns de vós esqueceram a razão pela qual esta organização [a ONU] foi criada. De hoje em diante, cada vez que vocês olharem para mim, vão lembrar-se do que significa permanecer em silêncio perante o mal», disse o embaixador israelita.


30 de Outubro de 2023. Gilad Erdan, embaixador de Israel na ONU, com uma estrela amarela ao peito, numa reunião do Conselho de Segurança da ONU. Foto: Michael M. Santiago/Getty Images/AFP

Mas o gesto de pôr a estrela ao peito não poderia ser mais grotesco e a analogia com a Solução Final” de Hitler não poderia ser mais falsa e enganadora. Quem não aprendeu nada da história dos últimos 80 anos é este embaixador.

Não sabe, ou finge não saber, que quem poderia pôr a estrela amarela ao peito com toda a legitimidade era a população palestiniana de Gaza que o governo israelita de Netanyahu quer dizimar à bomba, à fome, à sede e à míngua de auxílio médico, para, em seguida, expulsar definitivamente, de Gaza para o Egipto (península do Sinai), o que dela restar [5]. Isso sim, é um émulo da “Solução Final” de Hitler e a sua camarilha genocida.

E há, de facto, um episódio da história dos judeus que o embaixador Erdan poderia evocar para descrever a componente militar (a componente principal) do ataque das brigadas Izz al-Din al-Qassam a Israel, em 7 de Outubro 2023. Seria a insurreição armada dos judeus do gueto de Varsóvia contra as tropas da Alemanha nazi, em 19 de Abril de 1943 [6].  


Segunda quinzena de Maio de 1945. Pessoas emergem dos escombros do gueto de Varsóvia depois de os nazis o terem incendiado e reduzido a cinzas. [Desconheço a identidade do fotógrafo]

Se fosse vivo, Marek Edelman (1919-2009) o comandante judeu que, com apenas 24 anos, substituiu Mordecai Anielewicz quando este morreu (com 23 anos), e o único dirigente dessa insurreição armada que sobreviveu à sua honrosa derrota poderia lembrar ao senhor Gilad Erdan que a situação infernal que Israel impôs à população palestiniana de Gaza [7] é em tudo semelhante à situação infernal que as tropas da Alemanha nazi impuseram aos judeus do gueto de Varsóvia. Mas como Marek Edelman já não está entre nós, cabe-nos recordar as suas palavras:«Lutámos pela dignidade e pela liberdade. Não por um território, nem por uma identidade nacional» [8].


Marek Edelman (1919-2009), o único dos cinco comandantes da insurreição
do gueto de Varsóvia que sobreviveu.

Mas a coisa mais importante que Marek Edelman disse, no que diz respeito ao modo como podemos avaliar a situação que hoje se vive em Gaza foi esta:

«Ser judeu significa estar sempre com os oprimidos, nunca com os opressores».

Por conseguinte, Marek Edelman estaria hoje, com certeza, ao lado dos palestinianos de Gaza, contra o Estado de Israel. Seria o primeiro a reconhecer no embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, no ministro da guerra de Israel, Yoav Galant, e no primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, indivíduos da mesma estirpe que o general das SS Juergen Stroop que mandou os seus esbirros incendiarem o gueto de Varsóvia e matarem ou deportarem para campos de extermínio os seus habitantes, como, de facto, foi feito. 7-13 mil judeus polacos desse gueto foram assassinados e 56-58 mil foram deportados para campos de extermínio.

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[*] Publicado originalmente no blogue Estátua de Sal, em 8 de Novembro de 2023,   [https://estatuadesal.com/2023/11/08/o-que-e-o-hamas-parte-iii/]

Parte 2 mais abaixo, e Parte 1 aqui [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2023/11/o-que-e-o-hamas-parte-1-jose-catarino.html]

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Notas e Referências

[5] Quando o bombardeamento maciço de Gaza por Israel entrou na sua terceira semana, fazendo mais de 5.000 mortos e pelo menos um milhão de residentes deslocados, um centro de estudos [Ingl. “think tank”] com sede em Tel Aviv, denominado “Instituto de Segurança Nacional e Estratégia Sionista”, delineou «um plano para a recolocação e reabilitação final no Egipto de toda a população de Gaza», baseado na «única e rara oportunidade de evacuar toda a Faixa de Gaza» proporcionada pelo último ataque de Israel ao enclave costeiro sitiado. Publicado em hebraico no sítio electrónico da organização, o artigo é de autoria de Amir Weitman, «um gestor de investimentos e investigador visitante» do Instituto que também dirige a bancada libertária do Partido Likud, actualmente no poder em Israel. O documento começava por referir que existem 10 milhões de unidades habitacionais vagas no vizinho Egipto que poderiam ser «imediatamente preenchidas» por palestinianos. Weitman garante aos leitores que o «plano [é] sustentável e se alinha bem com os interesses económicos e geopolíticos do Estado de Israel, do Egipto, dos EUA e da Arábia Saudita» (Kit Klarenberg, “Zionist think tank publishes blueprint for Palestinian genocide.” The Grayzone, October 24, 2023).

[6] «No Verão de 1942, cerca de 300.000 judeus foram deportados de Varsóvia para Treblinka. Quando as informações sobre os assassinatos em massa nos centros de extermínio chegaram ao gueto de Varsóvia, um grupo de judeus, na sua maioria jovens, formou uma organização chamada Z.O.B. (Organização Judaica Combatente; em polaco, Zydowska Organizacja Bojowa). A Zob, comandada por Mordecai Anielewicz, de apenas 23 anos, divulgou um manifesto no qual pedia aos judeus que resistissem contra a embarque nos vagões dos comboios [OBS: os judeus não sabiam para onde estavam sendo levados]. Em Janeiro de 1943, combatentes da Zob no gueto de Varsóvia dispararam contra soldados alemães quando estes tentavam arrebanhar outro grupo de moradores do gueto para deportá-los. Os resistentes usaram as poucas armas fabricadas por eles próprios e as armas que tinham conseguido obter por meio de contrabando, e após alguns dias de luta os soldados alemães recuaram. Aquela pequena vitória deu alento aos combatentes do gueto para se prepararem para novos conflitos.

Em 19 de Abril de 1943, quando as tropas alemãs e a polícia alemã entraram no gueto para levar mais judeus para os campos de extermínio, “A insurreição do Gueto de Varsóvia” teve início. Setecentos e cinquenta combatentes judeus, pobremente armados e enfraquecidos por doenças e pela fome, lutaram contra um número muito maior de soldados alemães bem alimentados, fortemente armados e bem treinados. Os combatentes do gueto conseguiram defender-se durante quase um mês mas, em 16 de Maio de 1943, a revolta acabou. Lentamente, os alemães subjugaram a resistência. Dos mais de 56.000 judeus capturados, cerca de 7.000 foram assassinados a tiro e os restantes foram deportados para os campos de concentração onde foram mortos» (“O Levante do Gueto de Varsóvia”. Enciclopédia do Holocausto) [Editei o artigo original para o adaptar ao Português europeu padrão].

[7] Essa situação já era infernal muito antes do dia 7 de Outubro de 2023. Ver José Catarino Soares, “O que é Gaza?”. Tertúlia Orwelliana, 4 de Novembro de 2023 (https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/)

[8] Depois da Segunda Guerra mundial, Marek Edelman condenou o sionismo como uma ideologia étnica supremacista, utilizada para justificar o roubo de terras palestinianas. Tomou o partido dos palestinianos, apoiou a sua resistência armada contra Israel e reuniu-se frequentemente com militantes da causa palestiniana. Insurgiu-se contra a apropriação do Holocausto por Israel para justificar a sua repressão do povo palestiniano. Vale a pena acrescentar que Israel fez (e faz) questão de exaltar o heroísmo dos combatentes judeus que fizeram a insurreição armada do gueto de Varsóvia. Ao mesmo tempo, Israel sempre tratou o único comandante sobrevivente dessa insurreição, Edelman, como um pária, por este ser anti-sionista e se ter sempre recusado a abandonar o seu país natal, a Polónia, e a emigrar para Israel. Edelman compreendeu que a lição a tirar do Holocausto e da insurreição armada do gueto de Varsóvia não era a de que os judeus são moralmente superiores ou vítimas eternas. A história, disse Edelman, pertence a todos. Os oprimidos, incluindo os palestinianos, têm o direito de lutar pela liberdade, dignidade e igualdade, recorrendo, se necessário for, à luta armada contra os seus opressores.

 

O que é o HAMAS?[*]

[parte 2]

José Catarino Soares

6. Como foi criado o Hamas

O Hamas foi oficialmente criado em 1987, quando foi fundada a sua componente política. No entanto, embora seja hostil a Israel, beneficiou sempre, paradoxalmente, da ajuda deste, que o financiou e apoiou (secretamente) de várias maneiras desde 1973 (quando foi fundada a sua componente caritativa, Mujama al-Islamiya), até, pelo menos, 2019.

Esta afirmação não é uma calúnia. Resulta de confidências feitas por governantes e chefes militares de Israel, incluindo o seu actual primeiro-ministro. Netanyahu [4].  O objectivo confesso de Israel ao apoiar e financiar o Hamas era dividir para reinar — dividir a Organização de Libertação da Palestina (OLP) e, a partir de 1995 (Acordos de Oslo 2) desacreditar a Autoridade Nacional da Palestina (ANP) dirigida pela Al-Fatha, a principal componente da OLP.  O que Israel conseguiu fazer com êxito.

7. As tácticas de combate do Hamas

As táticas de combate do Hamas foram inteiramente decalcadas (no caso das TG), ou decalcadas em grande medida (tt.3 e tt.4, no caso das TT [cf. parte 1, secção 3 deste artigo]), das tácticas de combate do Irgun, do Lehi, do Palmach e do Haganá — as organizações paramilitares sionistas que operaram clandestinamente contra os palestinianos árabes (e algumas delas também contra as autoridades militares e civis britânicas) durante o Mandato Britânico da Palestina (1931-1948). Essas organizações constituíram o núcleo duro das futuras Forças Armadas de Israel (“Tzahal”), criadas em 26 de Maio de 1948.

8. O ataque do Hamas a Israel em 7 de Outubro de 2023

O ataque dos combatentes do Hamas a Israel em 7 de Outubro de 2023, denominado “Operação Tempestade Al-Aqsa”, foi uma operação que surpreendeu tudo e todos pela sua audácia, dimensão e eficácia.

 «As autoridades israelitas não emitiram quaisquer avisos nem tomaram quaisquer medidas preventivas antes do ataque, o que sugere que não dispunham de informações sobre o planeamento e os preparativos do ataque, apesar do aumento acentuado das tensões entre as autoridades israelitas e os palestinianos nos últimos meses» (“IntelBrief: Complex Attack by Hamas into Israel has Altered the Dynamics of the Conflict.” The Soufan Center. October 9, 2023).

O New York Times também noticiou a surpresa, audácia, dimensão e eficácia deste ataque:

«Com um planeamento meticuloso e um conhecimento extraordinário dos segredos e fraquezas de Israel, o Hamas e os seus aliados dominaram toda a extensão da frente de Israel com Gaza pouco depois do amanhecer, chocando uma nação que há muito considera a superioridade das suas forças armadas como um artigo de fé. Usando drones, o Hamas destruiu as principais torres de vigilância e comunicação ao longo da fronteira com Gaza, impondo vastos pontos cegos aos militares israelitas. Com explosivos e tractores, o Hamas abriu brechas nas barricadas da fronteira, permitindo que 200 atacantes passassem na primeira vaga e outros 1.800 no final do dia, segundo as autoridades. Em motociclos e camionetas, os atacantes avançaram para Israel, dominando pelo menos oito bases militares e lançando ataques terroristas contra civis em mais de 15 aldeias e cidades» (Patrick Kings Ley & Ronen Bergman, “The Secrets Hamas Knew About Israel’s Military.” October 13, 2023).


Combatentes do Hamas conduzem um jeep capturado ao exército israelita no sul de Israel, perto da fronteira norte de Gaza. Foto de Ahmed Zakot/REUTERS.

Parece, pois, ser incontroverso que esse ataque comportou duas componentes: uma componente militar que se enquadra no conceito de luta armada da resolução 37/43 da ONU, incluindo as suas modalidades de guerrilha (TG), descritas na secção 4 deste artigo e uma componente terrorista, que extravasa do conceito de luta armada para se enquadrar no conceito de tácticas terroristas (TT), descrito na mesma secção.

É pela sua componente principal (a componente militar), exclusivamente, que o ataque do Hamas de 7 de Outubro 2023 tem muitas afinidades com a insurreição armada da Zob no gueto de Varsóvia de 12 de Abril de 1943, de que tornarei a falar na secção 9 deste artigo. Referindo-se à acção militar que a ZOB (acrónimo polaco para Zydowska Organizacja Bojowa, Organização Judaica Combatente) realizou nesse dia contra o exército da Alemanha nazi, a partir do gueto de Varsóvia, Marek Edelman comentou no seu espantoso testemunho (The Ghetto Fights: Warsaw 1941-1943 [1990]):

«Pela primeira vez, os planos alemães foram frustrados. Pela primeira vez, a auréola de omnipotência e invencibilidade foi arrancada da cabeça dos alemães. Pela primeira vez, o judeu na rua apercebeu-se de que era possível fazer alguma coisa. Foi um ponto de viragem psicológica».

O mesmo se pode dizer, mutatis mutandis, da acção militar contra Israel que as brigadas Izz al-Din al-Qassam realizaram em 7 de Outubro de 2023, a partir do “gueto” de Gaza.

«O ataque estilhaçou a aura de invencibilidade de Israel e provocou um contra-ataque israelita em Gaza que matou mais de 1.900 palestinianos numa semana, com uma ferocidade nunca vista em Gaza.» (Patrick Kingsley & Ronen Bergman, New York Times, ibidem).

O jornalista Samuel Forey escreveu:

«Três semanas após o ataque mais ambicioso da história do movimento islamita [Hamas], o modus operandi do que aconteceu nesse dia está a tornar-se mais claro. Mais de 2.000 homens [das brigadas Izz al-Din al-Qassam] entraram em território israelita através de 29 brechas na barreira que rodeia a Faixa de Gaza. A invasão, um êxito militar, levou a atrocidades cometidas contra civis» (“Hamas attack:October 7, a day of hell on earth in Israel.” Le Monde, October 30, 2023).

 O Le Monde noticiou também que

 «Depois de atravessarem a barreira, os combatentes [do Hamas] atacaram simultaneamente pelo menos seis bases militares das Forças Armadas de Israel e sete zonas civis, incluindo uma cidade, cinco kibbutzim e um festival de música» (“Israel-Hamas war: Images reveal the strategy behind the militant group’s attack.” October 14, 2023).

Repare-se que o New York Times refere, como vimos, «pelo menos oito bases militares» e não seis, como o Le Monde. A Aljazeera identificou três dessas seis ou oito bases militares israelitas que os combatentes do Hamas invadiram: «o posto fronteiriço de Beit Hanoon (chamado Erez por Israel), a base de Zikim e o quartel-general da divisão de Gaza em Reim» (“What happened in Israel? A breakdown of how Hamas attack unfolded.” October 7, 2023). Não consegui ficar a saber quais foram as outras três ou cinco bases militares referidas pelo Le Monde e pelo New York Times, respectivamente, apesar de ter feito uma demorada pesquisa no Google, no Bing e no Yahoo!

Vale a pena notar, a este propósito, que os combatentes do Hamas que invadiram essas bases militares israelitas «se apoderaram de armas e equipamento e estabeleceram linhas logísticas a partir do território israelita» (“IntelBrief: Complex Attack by Hamas into Israel has Altered the Dynamics of the Conflict,ibidem). Segundo informações colhidas pelo jornalista Seymour Hersh, o ataque de 7 de Outubro das brigadas do Hamas provocou 317 baixas mortais no exército israelita (algumas dessas vítimas poderão ser militares contratados), além de 58 polícias (“The Labyrinth War,” November 1, 2023, https:// seymourhersh.substack.com/). Segundo a Reuters de 18 de Outubro, citando Netanyahu, o ataque de 7 de Outubro gerou 1.400 vítimas mortais no lado israelita. Se subtrairmos a este número, o número de militares e polícias indicado por Hersh, obtemos 1.025 vítimas mortais israelitas que não eram nem militares nem polícias.

Não temos informação fidedigna e suficiente (a que temos é incompleta e quase exclusivamente de origem israelita) sobre o modo como estas pessoas morreram que nos permita avaliar a veracidade e a extensão de todas as atrocidades que, alegadamente, terão sido cometidas pelos combatentes do Hamas no âmbito da componente terrorista do seu ataque a Israel: o ataque a zonas civis. Na verdade, não temos sequer informação exacta sobre a extensão desse ataque. O Le Monde refere, como vimos, «sete zonas civis, incluindo uma cidade, cinco kibbutzim e um festival de música». Por sua vez, o New York Times refere, como vimos, «mais de 15 aldeias e cidades». Em quem devemos acreditar neste particular: no Le Monde, no New York Times ou em nenhum deles?

Por outro lado, ao contrário dos 242 reféns feitos pelo Hamas (que têm todos um nome e um rosto conhecido), não foi publicada (salvo melhor informação) a lista dos nomes dos mortos civis israelitas e dos locais onde morreram. Há testemunhos de israelitas que acusam o exército israelita de ser o autor da morte dos seus companheiros, apanhados por “fogo amigo”. É o caso, por exemplo, de Yasmin Porat, uma mulher israelita que foi entrevistada no programa de rádio Haboker Hazeh, da emissora estatal israelita Kan, em 15 de Outubro de 2023. Porat, que sobreviveu ao ataque do Hamas aos colonatos perto da fronteira de Gaza em 7 de Outubro de 2023, afirma que os civis israelitas foram «indubitavelmente» (sic) mortos pelas suas próprias forças de segurança. Diz também que ela e outros israelitas detidos pelos combatentes palestinianos foram tratados «com humanidade» (https://www.youtube.com/watch?v=3cPeRSVgUpQ). Há ainda muita coisa por esclarecer relativamente às vítimas mortais civis do ataque.

Seja como for, em matéria de tácticas terroristas, sabemos, pelo historial dos últimos 36 anos, que Israel e Hamas estão bem um para outro: se um diz “mata!”, o outro diz “esfola!”. As únicas diferenças neste particular e não são de modo nenhum despiciendas é que (i) um (Israel) é o carcereiro de Gaza e o outro (Hamas) uma das organizações de resistência dos encarcerados de Gaza, e que (ii) um (Israel) mata e aterroriza muito mais e há muito mais tempo do que o outro (Hamas), que, como vimos (cf. secção 7), com ele aprendeu a matar e aterrorizar, convencido que só dessa maneira o poderá derrotar.

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[*] Publicado originalmente no blogue Estátua de Sal, em 7 de Novembro de 2023 [https://estatuadesal.com/2023/11/07/o-que-e-o-hamas-parte-ii/]

Parte 1 aqui [https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2023/11/o-que-e-o-hamas-parte-1-jose-catarino. html]

[continua]

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Notas e referências

[4] «Qualquer pessoa que queira impedir a criação de um Estado palestiniano tem de apoiar o fortalecimento do Hamas e transferir dinheiro para o Hamas. Isto faz parte da nossa estratégia — isolar os palestinianos em Gaza dos palestinianos na Cisjordânia», explicou Netanyahu aos membros do seu partido, o Likud, em Março de 2019 (citado por Gidi Weitz, “Another Concept Implodes: Israel Can’t Be Managed by a Criminal Defendant”. Haaretz, October 9, 2023). Num vídeo recente [a partir do momento 12m36s], o embaixador da Autoridade Nacional Palestiniana em Moscovo chegou mesmo a quantificar esse apoio financeiro de Israel ao Hamas: 36 milhões de dólares, mensalmente, nos últimos 5 anos (https://www.youtube.com/watc h?v=hS-Aa7E2-Hk).  

Não sei se este número é exacto. Mas sabemos que esse apoio começou há muito mais do que cinco anos. Na verdade, começou há mais de quatro décadas. O general Yitzhak Segev, que foi o governador militar israelita de Gaza no início da década de 1980, confidenciou, alguns anos mais tarde, a David Schipler, repórter do New York Times, que Israel ajudou a financiar o Hamas como um contrapeso à OLP. «O governo israelita deu-me um orçamento, e o governo militar dá-o às mesquitas» (David K. Shipler, Arab and Jew: Wounded Spirits in a Promised Land. Crown, 2015), p.221. «O Hamas, para meu grande pesar, é uma criação de Israel. Foi um erro enorme e estúpido», disse Avner Cohen, um governante israelita responsável pelos assuntos religiosos israelitas que trabalhou em Gaza durante mais de duas décadas, até 1994 (Andrew Higgins, “How Israel Helped to Spawn Hamas.” The Wall Street Journal, January 24, 2009). «Quando Israel encontrou pela primeira vez islamistas em Gaza, nos anos 70 e 80, eles pareciam concentrados no estudo do Alcorão e não no confronto com Israel. O governo israelita reconheceu oficialmente um precursor do Hamas, chamado Mujama Al-Islamiya, registando o grupo como uma instituição de caridade. Permitiu que os membros do Mujama criassem uma universidade islâmica e construíssem mesquitas, clubes e escolas». David Hacham, que trabalhou em Gaza no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 como especialista em assuntos árabes nas forças armadas israelitas, «lembra-se de ter levado um dos fundadores do Hamas, Mahmoud Zahar, para se encontrar com o então ministro da defesa de Israel, Yitzhak Rabin, no âmbito de consultas regulares entre funcionários israelitas e palestinianos não ligados à OLP. O sr. Zahar, o único fundador do Hamas que se sabe estar vivo actualmente, é agora o chefe político sénior do grupo em Gaza» (ibidem). «Quando olho para trás e vejo a cadeia de acontecimentos, penso que cometemos um erro» diz David Hacham «Mas, na altura, ninguém pensou nos possíveis resultados» (ibidem). 

Os EUA estavam ao corrente desta longa relação de duplicidade mútua entre Israel e o Hamas. David Long, que foi diplomata dos EUA na Arábia Saudita e chefe da divisão do Próximo Oriente no Gabinete de Informações e Investigação do Ministério dos Negócios Estrangeiros [State Department] dos EUA durante o governo de Ronald Reagan, disse ao jornalista Robert Dreyfuss: «Pensei que os Israelitas estavam a brincar com fogo. Mas não sabia que acabariam por criar um monstro. Não acho que nos devamos meter com fanáticos potenciais»» (Devil’s Game, https://www.c-span.org/video/?190 584-1/devils-game, January 5, 2006).

 

O que é o HAMAS? [*]

[parte 1]

José Catarino Soares

1. Caracterização

O HAMAS (aqui, e só desta vez, escrito em maiúsculas para lembrar que é o acrónimo árabe para “Movimento de Resistência Islâmica”) é um partido nacionalista, islamista (do ramo sunita), jihadista, teocrático, da Palestina. O seu lema resume bem o seu ideário:

«Alá é o nosso alvo, o Profeta é nosso modelo, o Corão é a nossa constituição, a Jihad é o nosso caminho e morrer por amor a Alá é o nosso desejo supremo» (artigo 8.º da Carta de Princípios do Hamas).

Fica claro, presumo, que a emancipação dos palestinianos nunca poderá ser alcançada pondo este lema em prática.

2. Composição

O Hamas tem três ramos distintos e autónomos: uma entidade caritativa (que estabeleceu e gere uma extensa rede de hospitais, escolas, jardins-de-infância, orfanatos, bibliotecas, clubes juvenis e outros serviços sociais), criada em 1973; uma entidade política (que governa a Faixa de Gaza desde 2006, administrativamente auxiliada pela Autoridade Nacional Palestiniana [1]), criada em 1987; e uma entidade militar (as brigadas Izz al-Din al-Qassam), criada em 1991.

3. O Hamas e a luta armada

Convém saber que a própria ONU reconhece, desde 3 de Dezembro de 1982, através da resolução 37/43 da sua 90.ª assembleia geral, a legitimidade de o povo palestiniano recorrer à luta armada para conquistar o seu direito à autodeterminação. As brigadas Izz al-Din al-Qassam são a maneira como o Hamas interpreta e dá corpo a essa luta armada.

Assim, estas brigadas empregam tácticas de guerrilha (TG) para combater as forças armadas e policiais de Israel, o Estado ocupante e opressor dos palestinianos. Todavia, empregam também tácticas terroristas (TT) contra a população civil israelita, o que constitui uma interpretação abusiva da resolução 37/43.

As TG incluem missões de reconhecimento especial; acções de sabotagem, destruição ou remoção de obstáculos; emboscadas; ataques com morteiros, foguetes, mísseis e drones; surtidas, operações de busca, resgate e salvamento — todas elas dirigidas, regra geral, contra alvos militares e policiais. As TT incluem (tt.1) ataques suicidas, cujo êxito, depende, necessariamente, da morte do(s) agente(s) atacante(s) (e.g. homens-bomba); (tt.2) missões quase suicidas, nas quais os perpetradores podem ou não morrer pelas suas próprias mãos (e.g. sequestro de um avião ou de um navio); (tt.3) colocação furtiva de diferentes tipos de engenhos explosivos improvisados em locais frequentados ou utilizados por muita gente (e.g., centros comerciais, esplanadas, autocarros, aviões), (tt.4) acções terroristas com alvos altamente remuneradores [na lógica do terrorismo [2]] (e.g., assassinatos selectivos; rapto, sequestro e troca de reféns) — todas elas dirigidas, regra geral, contra elementos, grupos e organizações da sociedade civil.


Desfile das brigadas Izz al-Din al-Qassam, do Hamas, em Gaza. Foto: Associated Press.

4. Divergências na caracterização do Hamas

O sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado” (SMDCSOA para abreviar) faz vista grossa sobre a estrutura tripartida do Hamas. Armado com esta análise vesga, faz questão de nos repetir todos os dias que o Hamas é, tão-somente, uma organização terrorista — o que já vimos ser um erro, mesmo se reduzíssemos o Hamas apenas às brigadas Izz al-Din al-Qassam.  Além disso, apresenta essa caracterização defeituosa como se ela fosse universalmente aceite.

Mas isso também não é verdade. Não há unanimidade entre os Estados que fazem parte da ONU sobre a caracterização do Hamas. Por exemplo, Israel, EUA, UE (Portugal inclusive), Canadá e Japão consideram o Hamas uma organização terrorista. Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e Egipto consideram terrorista apenas o braço armado do Hamas: as brigadas Izz al-Din al-Qassam. Rússia, China, Turquia, Irão, Brasil, África do Sul e Noruega não consideram o Hamas (nem o seu braço armado) uma organização terrorista.

Para alguns comentadores do SMDCSOA, tanto os governantes dos países pertencentes aos dois últimos grupos, como os cidadãos dos países pertencentes ao primeiro grupo que compartilham a posição desses governantes neste particular, são “idiotas úteis do Hamas[3].

5. Falhas analíticas

Pode discutir-se a razão de ser destas discrepâncias sobre a caracterização do Hamas, que são parcimoniosamente noticiadas pelo SMDCSOA. A meu ver, estão todas ligadas a duas falhas analíticas:

(i) a falha em reconhecer que o Hamas é semelhante a uma hidra com três cabeças. Se uma for cortada (as brigadas Izz al-Din al-Qassam, por exemplo), as outras duas não desapareceriam como por encanto, porque dispõem de uma forte base social de apoio: a resistência do povo palestiniano à opressão multiforme e sufocante do Estado de Israel.

(ii) a falha em distinguir TG e TT e em reconhecer que o Hamas, através do seu braço armado, emprega ambas.

Seja como for, o SMDCSOA nunca ou raramente nos dirá três coisas essenciais (ver secções 6, 7 e 9), sem as quais não é possível compreender a actuação do Hamas, incluindo o seu ataque em 7 de Outubro de 2023 (ver secção 8).

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[*] Publicado originalmente no blogue Estátua de Sal, em 6 de Novembro de 2023 https://estatuadesal.com/2023/11/06/o-que-e-o-hamas-parte-i/

[continua]

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Notas e Referências

[1] O Hamas governa a Faixa de Gaza com a ajuda da ANP (dirigida pela Al-Fatha, organização bem mais antiga e rival do Hamas) que co-financia e co-administra os serviços de saúde e de educação da Faixa de Gaza. Este facto é raramente mencionado nas análises sobre o Hamas e sobre Gaza. 

[2] A lógica do terrorismo consiste em planear e realizar com êxito acções violentas que causem medo intenso ou espalhem medo intenso na população que apoia os seus inimigos políticos e em conseguir fazê-lo de uma forma altamente remuneradora — isto é, que potencie ao máximo, nessa população, o efeito de terror resultante dos danos físicos causados às suas vítimas imediatas (que podem ser desproporcionalmente diminutos relativamente à grande intensidade e abrangência do terror que geram).

[3] Ver, por exemplo, Jorge Almeida Fernandes (doravante JAF, para abreviar), “Os idiotas úteis do Hamas.” (O Estado da Coisas. Público 3 de Novembro de 2023). Para este comentador, «As vítimas palestinianas dos bombardeamentos [de Israel] são de uma natureza muito diferente das vítimas do Hamas». Porquê? Porque (P1) umas vítimas, argumenta JAF, as vítimas de Israel, são o resultado de «efeitos colaterais» dos bombardeamentos; ao passo que (P2) as outras, as vítimas do Hamas, são o resultado de «assassínios planeados». Assim, deduz-se que, para este comentador, os governantes e militares de Israel não cometem crimes de guerra nem crimes contra a humanidade, só os dirigentes e combatentes do Hamas o fazem.  O conceito de “efeitos colaterais” de JAF é, como se vê, muito elástico porque inclui, por exemplo, os 72 funcionários da United Nations Relief and Works Agency (UNRWA), uma agência humanitária da ONU, e as 3.648 crianças e menores vítimas mortais dos bombardeamentos israelitas em Gaza desde 8 de Outubro de 2023.

Mas só não vê quem não quer que estes bombardeamentos são «assassínios planeados» em grande escala e a grande distância, assassínios por atacado — mas que podem também tomar uma forma mais personalizada, como acontece amiúde. O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, declarou a propósito de um dos mais recentes desta última espécie: «Estou horrorizado com o ataque em Gaza [de 3 de Novembro] contra uma caravana de ambulâncias à porta do hospital Al Shifa. As imagens de corpos espalhados na rua em frente ao hospital são angustiantes», disse, acrescentando: «Há quase um mês que os civis em Gaza, incluindo crianças e mulheres, estão sitiados, não recebem ajuda, são mortos e bombardeados fora das suas casas». (“Israel admits airstrike on ambulance near hospital that witnesses say killed and wounded dozens.” CNN, November 4, 2023). Presumo que Guterres será, para JAF, um dos «idiotas úteis do Hamas». É uma conclusão que faz sentido, se admitirmos as suas premissas, (P1) e (P2). Todavia, para entendermos o qualificativo de “idiota útil” que JAF emprega na sua análise do conflito israelo-palestiniano, faz também todo o sentido aplicar a JAF a distinção que ele faz da natureza das vítimas palestinianas de Israel e das vítimas israelitas do Hamas, mas sem aceitar (como ele pretende) que umas valem menos do que as outras quando as contamos. Se o fizermos, chegamos à conclusão de que JAF se coloca do lado do contendor mais poderoso, mais mortífero e mais impiedoso — ou seja, para empregar a sua própria terminologia, que ele se assume como “um idiota útil de Israel”; quiçá (presumo) com muita honra e orgulho de o ser.