Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

12 fevereiro, 2024

 Temas 2 e 3

Uma grande brecha no unanimismo narrativo sobre as guerras na Ucrânia

José Catarino Soares

Sumário: A entrevista feita por Tucker Carlson a Vladimir Putin em 6 de Fevereiro de 2024 produziu ondas de choque no sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado” [1],  que reagiu com fúria indisfarçada ao que considerou ser um desaforo intolerável de um jornalista independente. Explico as razões dessa reacção inusitada no texto que se segue.

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11.º artigo da série

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tantas ideias confusas sobre as guerras na Ucrânia!

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1.Introdução

A primeira emenda da Constituição dos EUA ‒ que é também uma das 10 emendas que constituem a “Declaração dos Direitos” integrada nessa Constituição em 15 de Dezembro de 1791 ‒ garante aos cidadãos desse país a liberdade de expressão e de imprensa (assim como a liberdade de associação, a liberdade de religião e o direito de petição).

Mas onde é que isso já vai! Para o actual sistema mediático dominante da comunicação social (SMDCS, para abreviar) desse país (ou seja, os jornais e revistas de grande circulação; os canais de televisão e as emissoras de rádio de grande audiência; as grandes agências noticiosas globais [Associated Press, Reuters]) ‒ e, na verdade, de todo o chamado “Ocidente alargado” ‒ esse artigo da Constituição americana é um anátema.

A semelhança desse sistema com o “Ministério da Verdade” da “Oceania” (a potência dominante do mundo aneutópico [2] imaginado por George Orwell no seu romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro) é assombrosa. Basta ver a reacção unânime que teve perante a entrevista de Tucker Carlson a Vladimir Putin. O jornal americano Politico (uma das centenas de órgãos mediáticos de comunicação social da multinacional Alex Springer SE, o maior potentado de comunicação social do mundo) publicou , em 9 de Fevereiro de 2024, uma notícia intitulada «Tucker Carlson faces media fury over Putin interview” [“Tucker Carlson enfrenta a fúria dos média por causa da sua entrevista a Putin”]. Nela, uma jornalista relata candidamente o modo como o SMDCS reagiu a essa entrevista: «A reacção tem sido apoplética». Isto, apesar de Tucker Carlson ser um nacionalista americano, conservador e republicano (na acepção americana destes termos). 

 
Kremlin, 6 de Fevereiro de 2024, Tucker Carlson entrevista Vladimir Putin. Foto: Tucker Carlson Network

2. A reacção tem sido apopléctica

Porquê? Por várias razões, que não posso aprofundar aqui para não tornar este texto demasiadamente extenso. Limitar-me-ei a apontar as duas principais e mais evidentes: 1) só nas primeiras 24 horas seguintes à sua publicação, a entrevista foi vista por 150 milhões de pessoas. Nos dias seguintes e com as traduções em várias línguas (incluindo o Chinês-Mandarim), este número subiu para muitas centenas de milhões de pessoas. George Galloway afirmou que se trata da entrevista mais vista de todos os tempos. 2) durante a entrevista, Putin disse várias coisas que essas pessoas puderam ouvir e que, no mínimo, as farão pensar. Por exemplo:

#2.1) que a guerra na Ucrânia não começou em Fevereiro de 2022, mas em Abril de 2014. Quem iniciou e continuou a guerra em Abril de 2014 não foi a Rússia, mas os sucessivos governos ucranianos saídos do golpe de Estado sangrento de Fevereiro de 2014 que derrubou inconstitucionalmente o presidente da Ucrânia livremente eleito, Viktor Yanukóvych. Foram eles que começaram uma guerra sem quartel contra as populações russas, russófonas e russófilas do leste e do sul da Ucrânia que se revoltaram contra a opressão e supressão dos seus direitos e interesses, a começar pelo direito básico de utilizarem a sua língua materna (a língua russa) em todos os contextos do espaço público (escolas, tribunais, hospitais, administração pública. autarquias locais, etc.) e semipúblico (cinemas, lojas, restaurantes, etc.)

#2.2) que os Acordos de Minsk (2014, 2015) ‒ celebrados entre a Ucrânia e as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk do leste da Ucrânia para resolverem, a contento de ambas as partes, o conflito armado que as opunha ‒ nunca foram cumpridos pelos presidentes da Ucrânia (Poroshenko e Zelensky); incumprimento que teve o apoio e a conivência da Alemanha e da França, seus mediadores e garantes por parte da Ucrânia. Por isso, a guerra da Ucrânia contra as populações dessas Repúblicas continuou durante os 7 anos seguintes.

#2.3) que a “Operação Militar Especial” da Rússia, iniciada em 24 de Fevereiro de 2022, teve como objectivos principais (i) defender essas populações dessa agressão e pôr-lhe fim; (ii) garantir-lhes o direito à autodeterminação (incluindo o direito à secessão); (iii) obter da Ucrânia a sua renúncia à intenção reiterada de aderir à OTAN e de instalar armas nucleares no seu território; (iv) e impor à Ucrânia a adopção de um estatuto de neutralidade militar semelhante ao da Áustria.

#2.4) que, em Março-Abril de 2023, a Rússia e a Ucrânia chegaram a um acordo sobre os pontos [2.3 (ii), (iii) e (iv)], mas que esse acordo foi desfeito pela oposição dos EUA, Reino Unido, Alemanha e França, arrastando atrás deles os demais Estados-membros da OTAN(/NATO). Foi Boris Johnson (à época primeiro-ministro do Reino Unido) quem se encarregou de ir a Kiev comunicar a Zelensky essa oposição e garantir a sua adesão ao objectivo de travar uma guerra contra a Rússia até ao último soldado ucraniano.

#2.5) que quem fez explodir os dois gasodutos NordStream 2 e danificou um dos dois gasodutos NordStream 1 ‒ a maior e mais traiçoeira agressão feita contra a Alemanha e os demais países europeus receptores de gás russo barato desde o fim da 2.ª guerra mundial ‒ foram os EUA.

Tudo isto é comprovável e foi comprovado (ver, por exemplo, o livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal [Editora Primeiro Capítulo, 2023], do qual sou autor) e os artigos publicados neste blogue da série “Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!”

O que foi afirmado em #2.2 foi, inclusive, confirmado de viva-voz por Poroshenko (17-6-2022; 21-11-2022), Angela Merkel (1-12-2022; 7-12-2022) e François Hollande (28-12-2022; 24-03-1023) em entrevistas que deram nas datas assinaladas entre parênteses.

O que foi afirmado em #2.3 (iii) e (iv) foi, inclusive, reconhecido de viva-voz pelo secretário-geral da OTAN (/NATO), Jens Stoltenberg, no seu discurso no Parlamento Europeu de 7 de Setembro de 2023. 

O que foi afirmado em #2.4 foi, inclusive, confirmado de viva-voz, em declarações públicas feitas por Naftali Bennett (ex-primeiro-ministro de Israel ) em 4 de Fevereiro de 2023; por Gerhard Schröeder (ex-chanceler da Alemanha) em 21 de Outubro de 2023; por Davyd Arakhamia (chefe do grupo parlamentar do partido “Servente do Povo” [o partido fundado por Zelensky]) em 24 de Novembro de 2023; por Oleksandr Chaliy (embaixador ucraniano) em 5 de Dezembro de 2023; por Oleksiy Arestovich (ex-conselheiro da presidência da República ucraniana) em 15 de Janeiro de 2024. Bennett e Schröeder participaram nas negociações de paz entre a Ucrânia e a Rússia que tiveram lugar em Istambul em Março-Abril de 2022 como mediadores, a pedido da Ucrânia. Os outros três homens mencionados foram, todos eles, membros da delegação de negociadores ucranianos nessas negociações.

O que foi afirmado em # 2.5, foi, inclusive, anunciado prévia e publicamente, de viva-voz, pela secretária de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros dos EUA, Victoria Nuland (em 27 de Janeiro de 2022), e pelo presidente dos EUA, Joe Biden (em 7 de Fevereiro de 2022).

3. Controlo de danos

Daí que, perante a impossibilidade de impedir que Putin, durante a entrevista, desse conhecimento destes factos directamente ao grande público do “Ocidente alargado”, o SMDCS tenha tido uma fúria incontrolável, que lhe provocou uma apoplexia. A única maneira que encontrou para controlar os danos à sua reputação provocados pela entrevista feita por Tucker Carlson a Putin, foi cerrar fileiras e repetir o mesmo mantra: “tudo o que Putin disse é mentira. A OTAN é a única maneira que temos para o impedir de conquistar a Ucrânia e, a seguir, invadir outros países da Europa. Não vejam a entrevista de Tucker Carlson, porque ele é um agente de Putin”.

A senhora Svetlana Chunikhina, vice-presidente da Associação de Psicólogos Políticos, sediada em Quieve, resumiu o pensamento comum a todos os defensores da continuação da guerra até ao último ucraniano:

«O maldito Tucker Carlson serviu muito bem de microfone para o louco maníaco que durante duas horas divagou sobre como gosta de matar ucranianos» (“Decoding Putin’s ‘obsessive ideas’ in the Tucker Carlson interview.” Aljazeera, 9-02-2024).

Para garantir que esta mensagem seja assimilada pelo grande público como uma verdade indiscutível, um “think-tank” americano, o “Renew Democracy Initiative”, descobriu até a receita ideal: poupar-nos a maçada de vermos a entrevista de Putin e tirarmos as nossas próprias conclusões, oferecendo-se ele para fazer isso por nós (“We Watched Tucker’s Putin Interview So You Don’t Have”, February 9, 2024).

4. Extremamente perigoso para quem?

Em suma, perante a grande brecha aberta, pela entrevista de Tucker Carlson a Vladimir Putin, no muro do unanimismo narrativo sobre as guerras na Ucrânia, todos os órgãos do sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado” procuram agora, o melhor que podem, seguir o exemplo de um dos seus maiores, o Sinclair Broadcast Group — um grupo de magnatas americanos que são donos de 294 estações de televisão nos EUA.

Em 2018, este bastião da oligarquia televisiva ordenou aos seus apresentadores que repetissem a mesma mensagem à exaustão: «isto é extremamente perigoso para a nossa democracia» (ver vídeo) — entenda-se, «isto é extremamente perigoso para a nossa oligocracia». Pois é. Nesse ponto estamos de acordo.


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                                                                          Notas

[1] Ocidente alargado é uma expressão cara a Zbigniew Brzezinski (um dos mais cínicos ideólogos da supremacia dos EUA sobre todos os outros países do mundo) que a empregava para designar o conjunto formado pelos EUA e os seus aliados na América do Norte, Europa, Ásia e Australásia. 

[2] Eutopia (do Grego , «bem; bom» + tópos, «lugar»+ -ia, «qualidade») é um lugar onde se desenvolve uma sociedade bem organizada e atractiva em todos os aspectos. Aneutopia (que acrescenta o prefixo grego a(n), «privação, negação, afastamento») é o antónimo de eutopia: um lugar onde se desenvolve uma sociedade mal organizada e repulsiva  em todos os aspectos, 

12 janeiro, 2024

 

Tema 3

Provas da intenção genocida do Estado de Israel 

contra a população palestiniana da Faixa de Gaza

José Catarino Soares


«O Grito de Gaza», gravura de Omar Esstar (artista tunisino)

Está em curso um genocídio da população palestiniana da Faixa de Gaza (23.708 mortos até ontem, incluindo mais de 10.000 crianças), acompanhado da destruição completa das suas infraestruturas e do seu parque habitacional. Foram ambos (genocídio e destruição material) meticulosamente planeados pelas mais altas instâncias do Estado de Israel — o seu governo, o estado-maior das suas forças armadas. Estão ambos a ser executados há mais de três meses, com a maior frieza exterminadora, pelas suas forças armadas, com a aprovação da quase totalidade dos deputados do Knesset e o apoio directo dos EUA — que fornecem as armas e munições utilizadas por Israel.

As provas da intenção genocida do Estado de Israel foram compiladas pela República da África do Sul (RAS). Constituem a secção D da «Solicitação de instauração de um processo judicial em nome da República da África de Sul (“África do Sul”) contra o Estado de Israel (“Israel”)» apresentada ao Tribunal Internacional de Justiça em 28 de Dezembro de 2023, cujo julgamento começou hoje. Traduzi essa secção do documento da RAS, que pode ser lida aqui:

https://estatuadesal.com/2024/01/11/processo-judicial-em-nome-da-africa-de-sul-contra-o-estado-de-israel/

O documento da RAS, na sua versão original e na sua integralidade, pode ser consultado e/ou obtido aqui:

https://www.icj-cij.org/node/203394


26 dezembro, 2023

Temas 5 e 3 

“Se eu tiver de morrer” —

o último poema de Refaat Alareer

 

José Catarino Soares

 

 

O número de civis palestinianos assassinados em Gaza, vítimas dos ataques das forças armadas de Israel nas últimas 11 semanas, atingiu os 20.258, enquanto 53.688 ficaram feridos, informou o Ministério da Saúde palestiniano no sábado, dia 23 de Dezembro de 2023. Entre os mortos, mais de 9.077 eram crianças, informou o Euro-Med Human Rights Monitor. Presume-se que outros milhares de cadáveres, de adultos e crianças, estejam presos sob os escombros em toda a faixa de Gaza.

 

Um dessas vítimas mortais foi Refaat Alareer (23 de Setembro de 1979 6 de Dezembro de 2023), um proeminente escritor, poeta, professor e activista palestiniano da Faixa de Gaza.

 

 Refaat Alareer (3 de Setembro de 1979 – 6 de Dezembro de 2023)

                                                                                            

 

Refaat Alareer ensinava literatura inglesa (área onde se doutorou a muito custo devido às proibições de viajar e estudar no estrangeiro que Israel lhe impôs) e escrita criativa na Universidade Islâmica de Gaza — que foi, entretanto, completamente destruída pelos bombardeamentos de Israel. Foi também co-fundador da organização We Are Not Numbers [“Nós não somos números”], que junta autores experientes e jovens escritores em Gaza e promove a narração de histórias como forma de resistência ao ocupante israelita.

 

Em Gaza Writes Back: Short Stories from Young Writers in Gaza, Palestine (Just World Books.2014) [“Gaza riposta pela escrita: contos de jovens escritores em Gaza, Palestina”], uma antologia que editou, o poeta e professor Refaat Alareer afirmou:

 

«A Palestina começou por ser ocupada metaforicamente com palavras, histórias e poemas».

 

Isto, porque são também as histórias que nos contam desde crianças e as histórias que contamos que nos fazem como pessoas, muitas vezes sem estarmos cientes do seu poder educativo [1].

 

Num país brutalmente oprimido; num país, como a Palestina, ocupado há mais de 70 anos por um Estado colonizador (Israel), cujos habitantes estão, na sua grande maioria, imbuídos até à ponta dos cabelos de uma ideologia messiânica da “Terra Prometida” (o sionismo), condimentada com uma série de versículos do Velho Testamento sobre a supremacia étnica do povo escolhido por Javé (uma divindade carrancuda e vingativa), este problema do poder das narrativas na formação e autoformação individual dos oprimidos adquire uma acuidade especial. Um dos alunos de Alareer fez notar a este propósito:

«Vivemos num mundo que castiga os oprimidos sempre que estes reclamam o seu direito básico de contar a sua versão da história. Vivemos num mundo que assassina as vozes da verdade. Vivemos num mundo que prende os escritores que usam as suas canetas em busca de justiça. Vivemos num mundo que silencia os desventurados quando eles choram. Ainda assim, temos de continuar a contar histórias» [2].


Quando o fazemos, salientou Rafaat Alereer no livro Gaza Writes Back:


«Por vezes, uma pátria torna-se uma lenda. Gostamos da lenda porque é sobre a nossa pátria e gostamos ainda mais da nossa pátria por causa da lenda».

 

Em 2014, Alareer fez uma visita de estudo aos EUA a convite da Lannan Foundation, uma fundação sediada em Santa Fé, Novo México, que apoia uma combinação de actividades artísticas e causas políticas progressistas. Essa estadia nos EUA teve um profundo impacto transformador em Alareer. Pela primeira vez na vida, teve oportunidade de encontrar judeus que não eram sionistas (como o seu futuro grande amigo, o jornalista Max Blumenthal), mas que, pelo contrário, apoiavam a causa da Palestina, e judeus que não se apresentavam diante de si fardados e armados até aos dentes prontos a disparar ou a falar-lhe num tom de arrogante superioridade.

 

«Israel quer que nos fechemos, que nos isolemos — quer empurrar-nos para o extremo. Não quer que sejamos educados. Não quer que nos vejamos como parte de uma luta universal contra a opressão. Não quer que sejamos educados ou que sejamos educadores» [3].

 

Depois dessa visita, Refaat Alareer decidiu iniciar os seus estudantes na literatura imaginativa hebraica. Entre os escritores judeus israelitas que lhes indicou estava Yehuda Amichai, um reputado poeta, cujo famoso poema, God Has Pity on Kindergarten Children [“Deus tem pena das crianças do jardim de infância”] fala de vidas curtas, consumidas pela guerra e pontuadas por encontros íntimos com a violência. As estrofes iniciais do poema calaram fundo nos alunos de Refaat Alaleer.


Deus tem pena das crianças do jardim de infância,

Tem pena das crianças da escola — destas menos.

Mas dos adultos não tem pena nenhuma.

Abandona-os,

E às vezes eles têm de rastejar a quatro patas

Na areia escaldante

Para chegar ao posto de socorros,

a escorrer sangue.

 

Em 6 de Dezembro de 2023, aos 44 anos, Alareer foi assassinado num ataque aéreo israelita no norte de Gaza, juntamente com o seu irmão, a sua irmã e os três filhos desta, durante a invasão israelita da Faixa de Gaza iniciada em 27 de Outubro de 2023. A sua mulher e seis filhos sobreviveram ao ataque que o matou.

 

O seu amigo Max Blumenthal conta:

 

«Na nossa última conversa, a 27 de Novembro [de 2023], quando o bombardeamento se aproximava da sua casa, disse-me: “Está tudo a acabar. A comida. A água. Gás de cozinha. Israel está a bombardear todas as fontes de vida. Painéis solares, tanques de água e canos de água. Nem uma padaria está a funcionar”» [4].

 

O Euro-Med Human Rights Monitor divulgou um comunicado em que afirmava que Alareer tinha sido deliberadamente visado, já que todo o edifício em que vivia com os seus familiares foi «cirurgicamente bombardeado», e que o ataque ocorreu após semanas de «ameaças de morte que Refaat recebeu via internet e por telefone de contas israelitas» [5]

 

Os seus cobardes assassinos estavam perfeitamente cientes de que o seu alvo nada tinha de letal. Numa das suas últimas entrevistas, Refaat Alareer, jurou que, se necessário e se pudesse, morreria a lutar com as mesmas ferramentas com que viveu.

 

«Sou um universitário. Provavelmente, a coisa mais rija que tenho em casa é um marcador de ponta de feltro. Mas se os israelitas invadirem, se os pára-quedistas nos atacarem, indo de porta em porta, para nos massacrarem, vou usar esse marcador para o atirar aos soldados israelitas, nem que seja a última coisa que faça» [6].

 

Como fez notar um dos seus ex-alunos: «Refaat Alareer foi morto porque a sua mensagem alcançava o mundo» [7] — entenda-se: o mundo que está para além do muro que cerca o maior campo de concentração do planeta que é Gaza.


Uma manifestante em Chicago evoca a memória de Refaat Alareer.
Na primeira linha do cartaz que exibe lê-se: «Descansa em paz Refaat».
Na parte direita do cartaz, estão as três últimas linhas
do último poema de Alareer. Na parte esquerda, pode ler-se:
« Professor, poeta e activista. Assassinado por Israel,
juntamente com a sua família».


No dia 1 de Novembro de 2023, Refaat Alareer escreveu o seu último poema, If I must die [“Se eu tiver de morrer”].

 

Cumprindo a sua última vontade da única maneira que me é possível, contei acima, muito sucintamente, a sua história [8] e publico aqui, neste blogue (o meu papagaio voador), o seu poema, que traduzi para Português.

 

If I must die,                                                      Se eu tiver de morrer

you must live                                                     tu tens de viver

to tell my story                                                   para contares a minha história

to sell my things                                                 para venderes os meus pertences

to buy a piece of cloth                                        e comprares um pedaço de pano

and some strings,                                               e alguns cordéis

(make it white with a long tail)                          (façam-no de cor branca com uma cauda comprida)

so that a child, somewhere in Gaza                    a fim de que uma criança, algures em Gaza

while looking heaven in the eye                         ao virar os olhos para o céu

awaiting his dad who left in a blaze—             à espera do seu pai que morreu envolto em chamas —

and bid no one farewell                                      sem se despedir de ninguém

not even to his flesh                                            nem sequer dos seus

not even to himself—                                          nem sequer de si próprio —

sees the kite, my kite you made,                         veja o papagaio, o papagaio que tu me fizeste

flying up above                                                   a voar alto no céu

and thinks for a moment an angel is there           e pense por um momento que vai ali um anjo

bringing back love                                               que traz o amor de volta

If I must die                                                          Se eu tiver de morrer

let it bring hope                                                    deixem-no trazer a esperança

let it be a tale.                                                       deixem-no ser uma lenda


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P.S. A cantora jordana Farah Siraj musicou e cantou o poema original. Pode ser escutada aqui

  https://www.youtube.com/watch?v=sCP1KF2mDh

Uma mulher da qual só sei o nome que usa, Shamis, faz uma bela recitação do poema original. Pode ser escutada aqui: https://www.youtube.com/watch?v=3esWqn7Jbws

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P.S. (2). Uma das últimas entrevistas a Refaat Alareer foi feita pelos jornalistas americanos Aaron Maté e Katie Halper (ambos judeus, por sinal), no canal «Useful Idiots», em 11 de Outubro de 2023. Pode ser vista e escutada aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Nk0x_s_h-pU

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P.S. (3). O actor escocês Brian Cox interpretou também o último poema de Alareer. Pode ser visto e escutado aqui: 

https://www.youtube.com/watch?v=Ualqa-MIwpg

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P.S (4). Maxine Peake, actriz e activista inglesa, interpretou o último poema de Alareer, em 13 de Dezembro de 2023, durante uma manifestação pró-Palestina em Londres. Podemos vê-la e escutá-la aqui: 

https://www.youtube.com/watch?v=gonKClOAXrE

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P.S. (5). A jornalista americana Rania Khalek também evocou a memória e recitou o poema de Alareer no canal «BreakThrough News», há 3 semanas. Podemos vê-la e escutá-la aqui:

https://www.youtube.com/watch?v=TbA9wdWkSPw

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P.S.(6). O cantor  francês HK e o seu conjunto Les Saltibanks  também interpretaram o poema de Alareer, xo um texto complementar. Podemos ouvi-lo aqui : https://www.youtube.com/watch?v=w6vdQJNwcxY

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Notas e referências


[1] Refaat Alareer desenvolveu este tema numa palestra do TEDx Talks que ele fez em Shujaiya, a sua terra natal: “Stories make us” [https://www.youtube.com/watch?v=YsbEjldJjOw]  

[2] Alia Khaled Madi, “Refaat Alareer and the power of words”. Electronic Intifada, 23 December 2023

[3] Max Blumenthal, “«If I must die, let it be a tale»: a tribute to Refaat Alareer”. The Grayzone, December 7, 2023.

[4] Max Blumenthal, op.cit.

[5] “Israeli Strike on Refaat al-Areer Apparently Deliberate”. Euro-Mediterranean Human Rights Monitor, 8 December 2023.

[6] Max Blumenthal, op.cit.

[7] Asmaa Abu Matar, “Refaat Alareer was killed because his message reached the world”. Electronic Intifada, 17 December 2023.

[8] A história de Alareer está mais amplamente contada, até 2014, no livro de Max Blumenthal, The 51 Day War: Ruin and Resistance in Gaza (Nation Books/Verso Books. 2015) e, após 2014, em “In memory of Dr. Refaat Alareer”. Electronic Intifada, 7 December 2023, e Jennifer Bing, “Lessons from Refaat Alareer, storyteller”. Electronic Intifada, 21 December 2023.