Temas 2 e 3
Uma grande brecha no unanimismo
narrativo sobre as guerras na Ucrânia
José Catarino Soares
Sumário: A entrevista feita por Tucker Carlson a Vladimir Putin
em 6 de Fevereiro de 2024 produziu ondas de choque no sistema mediático
dominante de comunicação social do “Ocidente alargado” [1], que reagiu com fúria
indisfarçada ao que considerou ser um desaforo intolerável de um jornalista
independente. Explico as razões dessa reacção inusitada no texto que se segue.
……………………………………………………………………………………………………………….
11.º artigo da série
Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tantas ideias
confusas sobre as guerras na Ucrânia!
………………………………………………………………………………………………………………..
1.Introdução
A primeira emenda da Constituição dos EUA ‒ que é também uma das 10 emendas que constituem a “Declaração dos Direitos” integrada nessa Constituição em 15 de Dezembro de 1791 ‒ garante aos cidadãos desse país a liberdade de expressão e de imprensa (assim como a liberdade de associação, a liberdade de religião e o direito de petição).
Mas onde é que isso já vai! Para o actual sistema mediático dominante da comunicação social (SMDCS, para abreviar) desse país (ou seja, os jornais e revistas de grande circulação; os canais de televisão e as emissoras de rádio de grande audiência; as grandes agências noticiosas globais [Associated Press, Reuters]) ‒ e, na verdade, de todo o chamado “Ocidente alargado” ‒ esse artigo da Constituição americana é um anátema.
A semelhança desse sistema com o “Ministério da Verdade” da “Oceania” (a potência dominante do mundo aneutópico [2] imaginado por George Orwell no seu romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro) é assombrosa. Basta ver a reacção
unânime que teve perante a entrevista de Tucker Carlson a Vladimir Putin. O
jornal americano Politico (uma das centenas de órgãos mediáticos de
comunicação social da multinacional Alex Springer SE, o maior potentado de
comunicação social do mundo) publicou , em 9 de Fevereiro de 2024, uma notícia
intitulada «Tucker Carlson
faces media fury over Putin interview” [“Tucker
Carlson enfrenta a fúria dos média por causa da sua entrevista a Putin”]. Nela, uma jornalista relata
candidamente o modo como o SMDCS reagiu a essa entrevista: «A reacção tem sido apoplética». Isto, apesar de Tucker Carlson ser um nacionalista americano, conservador e republicano (na acepção americana destes termos).
Kremlin, 6 de Fevereiro de 2024, Tucker Carlson entrevista Vladimir Putin. Foto: Tucker Carlson Network |
2. A reacção tem sido apopléctica
Porquê? Por várias razões, que não posso aprofundar aqui para não tornar este texto demasiadamente extenso. Limitar-me-ei a apontar as duas principais e mais evidentes: 1) só nas primeiras 24 horas seguintes à sua publicação, a entrevista foi vista por 150 milhões de pessoas. Nos dias seguintes e com as traduções em várias línguas (incluindo o Chinês-Mandarim), este número subiu para muitas centenas de milhões de pessoas. George Galloway afirmou que se trata da entrevista mais vista de todos os tempos. 2) durante a entrevista, Putin disse várias coisas que essas pessoas puderam ouvir e que, no mínimo, as farão pensar. Por exemplo:
#2.1) que a guerra na Ucrânia não começou em Fevereiro de 2022, mas em Abril de 2014. Quem iniciou e continuou a guerra em Abril de 2014 não foi a Rússia, mas os sucessivos governos ucranianos saídos do golpe de Estado sangrento de Fevereiro de 2014 que derrubou inconstitucionalmente o presidente da Ucrânia livremente eleito, Viktor Yanukóvych. Foram eles que começaram uma guerra sem quartel contra as populações russas, russófonas e russófilas do leste e do sul da Ucrânia que se revoltaram contra a opressão e supressão dos seus direitos e interesses, a começar pelo direito básico de utilizarem a sua língua materna (a língua russa) em todos os contextos do espaço público (escolas, tribunais, hospitais, administração pública. autarquias locais, etc.) e semipúblico (cinemas, lojas, restaurantes, etc.)
#2.2) que os Acordos de Minsk (2014, 2015) ‒ celebrados entre a Ucrânia e as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk do leste da Ucrânia para resolverem, a contento de ambas as partes, o conflito armado que as opunha ‒ nunca foram cumpridos pelos presidentes da Ucrânia (Poroshenko e Zelensky); incumprimento que teve o apoio e a conivência da Alemanha e da França, seus mediadores e garantes por parte da Ucrânia. Por isso, a guerra da Ucrânia contra as populações dessas Repúblicas continuou durante os 7 anos seguintes.
#2.3) que a “Operação Militar Especial” da Rússia, iniciada em 24 de Fevereiro de 2022, teve como objectivos principais (i) defender essas populações dessa agressão e pôr-lhe fim; (ii) garantir-lhes o direito à autodeterminação (incluindo o direito à secessão); (iii) obter da Ucrânia a sua renúncia à intenção reiterada de aderir à OTAN e de instalar armas nucleares no seu território; (iv) e impor à Ucrânia a adopção de um estatuto de neutralidade militar semelhante ao da Áustria.
#2.4) que, em Março-Abril de 2023, a Rússia e a Ucrânia chegaram a um acordo sobre os pontos [2.3 (ii), (iii) e (iv)], mas que esse acordo foi desfeito pela oposição dos EUA, Reino Unido, Alemanha e França, arrastando atrás deles os demais Estados-membros da OTAN(/NATO). Foi Boris Johnson (à época primeiro-ministro do Reino Unido) quem se encarregou de ir a Kiev comunicar a Zelensky essa oposição e garantir a sua adesão ao objectivo de travar uma guerra contra a Rússia até ao último soldado ucraniano.
#2.5) que quem fez explodir os dois gasodutos NordStream 2 e danificou um dos dois gasodutos NordStream 1 ‒ a maior e mais traiçoeira agressão feita contra a Alemanha e os demais países europeus receptores de gás russo barato desde o fim da 2.ª guerra mundial ‒ foram os EUA.
Tudo isto é comprovável e foi comprovado (ver, por exemplo, o livro Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal [Editora Primeiro Capítulo, 2023], do qual sou autor) e os artigos publicados neste blogue da série “Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!”
O que foi afirmado em #2.2 foi, inclusive, confirmado de viva-voz por Poroshenko (17-6-2022; 21-11-2022), Angela Merkel (1-12-2022; 7-12-2022) e François Hollande (28-12-2022; 24-03-1023) em entrevistas que deram nas datas assinaladas entre parênteses.
O que foi afirmado em #2.3 (iii) e (iv) foi, inclusive, reconhecido de viva-voz pelo secretário-geral da OTAN (/NATO), Jens Stoltenberg, no seu discurso no Parlamento Europeu de 7 de Setembro de 2023.
O que foi afirmado em #2.4 foi, inclusive, confirmado de viva-voz, em declarações públicas feitas por Naftali Bennett (ex-primeiro-ministro de Israel ) em 4 de Fevereiro de 2023; por Gerhard Schröeder (ex-chanceler da Alemanha) em 21 de Outubro de 2023; por Davyd Arakhamia (chefe do grupo parlamentar do partido “Servente do Povo” [o partido fundado por Zelensky]) em 24 de Novembro de 2023; por Oleksandr Chaliy (embaixador ucraniano) em 5 de Dezembro de 2023; por Oleksiy Arestovich (ex-conselheiro da presidência da República ucraniana) em 15 de Janeiro de 2024. Bennett e Schröeder participaram nas negociações de paz entre a Ucrânia e a Rússia que tiveram lugar em Istambul em Março-Abril de 2022 como mediadores, a pedido da Ucrânia. Os outros três homens mencionados foram, todos eles, membros da delegação de negociadores ucranianos nessas negociações.
O que foi afirmado em # 2.5, foi, inclusive, anunciado prévia e publicamente, de viva-voz, pela secretária de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros dos EUA, Victoria Nuland (em 27 de Janeiro de 2022), e pelo presidente dos EUA, Joe Biden (em 7 de Fevereiro de 2022).
3. Controlo de danos
Daí que, perante a impossibilidade de impedir que Putin, durante a entrevista, desse conhecimento destes factos directamente ao grande público do “Ocidente alargado”, o SMDCS tenha tido uma fúria incontrolável, que lhe provocou uma apoplexia. A única maneira que encontrou para controlar os danos à sua reputação provocados pela entrevista feita por Tucker Carlson a Putin, foi cerrar fileiras e repetir o mesmo mantra: “tudo o que Putin disse é mentira. A OTAN é a única maneira que temos para o impedir de conquistar a Ucrânia e, a seguir, invadir outros países da Europa. Não vejam a entrevista de Tucker Carlson, porque ele é um agente de Putin”.
A senhora Svetlana Chunikhina, vice-presidente da Associação de Psicólogos Políticos, sediada em Quieve, resumiu o pensamento comum a todos os defensores da continuação da guerra até ao último ucraniano:
«O maldito Tucker Carlson serviu muito bem de microfone para o louco maníaco que durante duas horas divagou sobre como gosta de matar ucranianos» (“Decoding Putin’s ‘obsessive ideas’ in the Tucker Carlson interview.” Aljazeera, 9-02-2024).
Para garantir que esta mensagem seja assimilada pelo grande público como uma verdade indiscutível, um “think-tank” americano, o “Renew Democracy Initiative”, descobriu até a receita ideal: poupar-nos a maçada de vermos a entrevista de Putin e tirarmos as nossas próprias conclusões, oferecendo-se ele para fazer isso por nós (“We Watched Tucker’s Putin Interview So You Don’t Have”, February 9, 2024).
4. Extremamente perigoso para quem?
Em suma, perante a grande brecha aberta, pela entrevista de Tucker Carlson a Vladimir Putin, no muro do unanimismo narrativo sobre as guerras na Ucrânia, todos os órgãos do sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado” procuram agora, o melhor que podem, seguir o exemplo de um dos seus maiores, o Sinclair Broadcast Group — um grupo de magnatas americanos que são donos de 294 estações de televisão nos EUA.
Em 2018, este bastião da oligarquia televisiva ordenou aos seus apresentadores que repetissem a mesma mensagem à exaustão: «isto é extremamente perigoso para a nossa democracia» (ver vídeo) — entenda-se, «isto é extremamente perigoso para a nossa oligocracia». Pois é. Nesse ponto estamos de acordo.
..................................................................................................................................................