Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

22 agosto, 2024

 Temas 2 e 3

Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 sob o signo do niilismo neoliberal: 

(II) a negação da diferenciação sexual pelo Comité Olímpico InternacionaI

 José Catarino Soares

 

1. Lembrete e introdução

Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 já pertencem ao passado. Mas as trapaças de que foram palco não devem ser esquecidas e os ensinamentos que delas se podem colher não devem ficar no tinteiro. (São demasiadamente importantes para o futuro do desporto e da própria sanidade mental para deixarmos que isso aconteça). Este artigo em série (I, II, …) é um contributo para essa dupla tarefa.  

    Jogos Olímpicos de Paris 2024. Imagem gerada por IA (inteligência artificial). Concebida por Freepik.


A sua primeira parte, Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 sob o signo do niilismo neoliberal (I) [que pode ser lida aqui:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2024/08/os-jogos-olimpicos-de-paris-2024-sob-o.html]

analisou a usurpação do olimpismo pelo Comité Olímpico Internacional (COI) — um processo que se desenvolve há 40 anos.

A continuação do artigo analisará outra faceta reveladora do niilismo neoliberal que impregna o modo de actuação do Comité Olímpico Internacional e que impregnou o modo de actuação do Comité de Organização dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 (JOP 2024). Essa faceta niilista neoliberal manifestou-se com grande vigor nos dois eventos do JOP 2024 que, não por acaso, causaram maior controvérsia: o campeonato olímpico de boxe feminino de 66 kg e a cerimónia de abertura desses Jogos.

A articulação mais forte entre esses dois eventos aparentemente tão díspares é a da negação da realidade biológica do sexo e da diferenciação sexual. Será essa articulação, por conseguinte, que constituirá o fio condutor da análise desses eventos. Teremos, no entanto, de proceder por partes, porque há muito matagal ideológico a desbastar e remover para conseguirmos ter uma vista desafogada sobre esses eventos.

Para não alongar demasiado o tempo de leitura e evitar, porventura, que se torne indigesta, vou dividir a continuação do artigo em cinco partes sensivelmente do mesmo tamanho, 10-12 páginas, a publicar em dias diferentes. Assim sendo, os assuntos que eu tinha julgado, inicialmente, poder tratar em duas partes, vão exigir seis partes para esse efeito: esta (a segunda) e mais quatro que se lhe seguirão.  

2. A diferenciação sexual como critério fundacional dos Jogos Olímpicos

Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 (tal como sucedeu em muitas edições anteriores dos Jogos Olímpicos) estão organizados em seis categorias distintas e estanques de modalidades e provas segundo o sexo dos participantes:

― (A) modalidades “comuns de dois”, mas cujas provas são exclusivamente acessíveis a mulheres (e.g. natação, esgrima, atletismo);

― (B) modalidades “comuns de dois”, mas cujas provas são exclusivamente acessíveis a homens (e.g. natação, esgrima, atletismo);

(C) modalidades exclusivamente femininas (ginástica rítmica, natação artística, softbol);

― (D) modalidades exclusivamente masculinas (luta greco-romana, pistola de velocidade a 25 metros, basebol);

― (E) modalidades “comuns de dois”, mas cujas provas são também realizadas por pares mistos, ou equipas mistas ou seja, realizadas através da cooperação de atletas de ambos os sexos ⎼ que se opõem umas às outras, a saber:

(E.1) ténis: pares mistos; (E.2) ténis de mesa: pares mistos; (E.3) badmington: pares mistos; (E.4) ginástica acrobática: par misto; (E.5) tiro com arco: par misto; (E.6) natação 4x100 m estilos: quarteto misto; (E.7) estafetas 4x400 m: quarteto misto; (E.8) maratona de marcha atlética de estafeta mista; (E.9) judo: sexteto misto; (E.10) tiro desportivo com carabina de ar comprimido a 10 m: par misto; (E.11) tiro desportivo com pistola de ar comprimido a 10 m: par misto; (E.12) fosso olímpico [tiro aos pratos com arma de caça]: par misto; (E.13) triatlo: estafeta  mista; (E.14) vela multicasco (Nacra 17): par misto; (E.15) vela 470: par misto;  (E.16) patinagem artística no gelo: par misto; (E.17) dança no gelo: par misto.

(F) modalidades “sobrecomuns”, aquelas em que homens e mulheres competem uns com os outros sem distinção de sexo em todas as provas (hipismo) [1].

O hipismo é a única modalidade olímpica em que homens e mulheres, assim como as suas montadas (cavalos e éguas), competem uns com os outros e com igualdade de regras [2].Foto: Abelardo Mendes Jr. rededoesporte.gov.br


Como se constata, sem esta classificação de base sexual os Jogos Olímpicos desmoronar-se-iam na sua forma actual.

Suponhamos, então, que ela deixava de existir. Isso equivale a dizer que as categorias (A), (B), (C), (D), (E), desapareciam e que todas as modalidades, quer individuais quer supra-individuais, passavam a ser sobrecomuns, como é a única modalidade da categoria (F).

Qual seria então o resultado? Julgo que, nessas condições, os Jogos Olímpicos passariam a ser, na prática (embora não nas palavras), jogos unissexuais, como eram os Jogos Olímpicos da Grécia antiga — ou seja, seriam completamente dominados por atletas de sexo masculino em todas as modalidades de todas as categorias, com algumas excepções (hipismo, ginástica rítmica, natação artística, patinagem artística no gelo e, pelo menos, em algumas subcategorias do tiro desportivo).

Porquê?

3. A necessidade de uma classificação de base sexual dos desportos olímpicos

Antes de responder a esta pergunta, recordemos o lema do Jogos Olímpicos modernos proposto por Pierre de Coubertin: citius, altius, fortius [“mais rápido, mais alto, mais forte”].

Ora, sucede que os homens correm 10% mais depressa do que as mulheres, saltam 20% mais alto, lançam bolas 50% mais longe e levantam pesos 65% mais pesados.  Os ombros mais largos e a maior massa da parte superior do corpo masculino significam que os homens são quase duas vezes mais fortes do que as mulheres nas costas e nos ombros e que podem executar um movimento semelhante a um murro 2,5 vezes mais forte do que as mulheres [3] — uma grande vantagem no pugilismo, à qual regressaremos na quarta (ou na quinta)  parte deste artigo.  

Outro exemplo: a maior estatura, as mãos mais largas e os dedos mais compridos dos homens permitem que a bola de basquetebol seja mais facilmente agarrada com a palma da mão durante um afundanço, um movimento rotineiro em todos os jogadores gigantes do sexo masculino da NBA [National Basket Association] dos EUA, mas que muito poucas jogadoras de basquetebol conseguem executar.

As muitas e grandes diferenças físicas entre homens e mulheres acentuam-se drasticamente na puberdade.

«A puberdade masculina é responsável tanto pela formação do caçador-guerreiro [de outrora] como pela formação do velocista da corrida dos 100 metros em menos de 10 segundos — uma proeza realizada por mais de 150 homens nos tempos modernos, mas por nenhuma mulher, até à data. O que é que leva ao desenvolvimento da vantagem atlética masculina na puberdade? As hormonas: especificamente, a testosterona.

Esta é a hormona que “faz homem”, a hormona que “faz altura” e que “faz músculo”. Na puberdade, os homens têm níveis de testosterona até 20 vezes superiores aos das mulheres, que orientam o desenvolvimento, durante a adolescência, das características sexuais secundárias masculinas, as quais, no contexto do desporto, são traduzidas em vantagens atléticas masculinas.

Mas a vantagem dos machos humanos sobre as fêmeas humanas não se limita às diferenças físicas e funcionais conferidas pela morfologia, forma e tamanho masculinos. Mais obviamente, as atletas do sexo feminino têm de lidar com os efeitos do ciclo menstrual e com os efeitos cíclicos das hormonas na capacidade de treino e desempenho. Sabe-se que o ciclo menstrual afecta a função cardiovascular, respiratória, cerebral, a resposta a ajudas ergogénicas, a ortopedia e os parâmetros metabólicos, e que representa uma barreira à capacidade atlética que não é sentida pelos homens.

Além disso, a susceptibilidade a lesões difere entre homens e mulheres, com o consequente impacto no tempo de treino. A investigação emergente mostra que, em comparação com os homens, as jogadoras de râguebi parecem ser mais susceptíveis a lesões concussivas, com resultados mais graves. Este facto tem sido atribuído a uma menor resistência ao impacto nos seus músculos do pescoço e nas estruturas cerebrais mais delicadas. Estudos sobre a fragilidade neuronal em células nervosas masculinas e femininas numa placa de Petri descobriram que os neurónios femininos são mais facilmente danificados por lesões por estiramento» [4].

Jogos Olímpicos Paris 2024. Gabriel Medina, surfista brasileiro, voando alto acima da superfície do mar em Teahupo’o, uma vila na costa sudoeste da ilha do Taiti, Polinésia Francesa. Foto: Morgan Maassen.

Por todas estas razões, fica claro que não existe o perigo (ou é puramente residual) de alguém do sexo feminino se fazer passar fraudulentamente como sendo do sexo masculino a fim de poder participar em modalidades das categorias (B) e (D), ou de se infiltrar, sob essa falsa identidade sexual, nas modalidades que são subcategorias da categoria (E). Porquê? Pela boa e simples razão que isso seria aumentar exponencialmente as suas possibilidades individuais de derrota, ou de derrota do par misto/equipa mista em que participasse. E ninguém concorre aos Jogos Olímpicos com o objectivo de perder…

Não se pode dizer o mesmo da possibilidade de um atleta do sexo masculino se fazer passar fraudulentamente (ou até inadvertidamente, como veremos no 5.º artigo desta série) como sendo do sexo feminino a fim de poder participar em modalidades das categorias (A) e (C) (neste último caso, pelo menos na modalidade de softbol), ou de se infiltrar, sob essa falsa identidade sexual, nas modalidades que são subcategorias da categoria (E). Pelo contrário, o perigo de isso poder acontecer é muito grande, pela boa e simples razão de que isso aumentaria exponencialmente as possibilidades individuais de vitória dos impostores, ou de vitórias dos pares mistos/equipas mista em que os impostores participassem.

Daqui se seguem duas implicações lógicas, que vou identificar com letras gregas, α e β, para facilitar a sua referenciação futura:

α) A necessidade imperiosa de proteger os atletas do sexo feminino da concorrência desleal de impostores do sexo masculino nas modalidades das categorias (A), (C) e (E).

β) A responsabilidade que cabe aos órgãos constituintes do Movimento Olímpico e, em primeiro lugar, à sua instância máxima, o Comité Olímpico Internacional (COI) de assegurar, através de regras e medidas adequadas, a protecção α devida aos atletas do sexo feminino. 

4. O COI abdicou da sua responsabilidade de proteger os atletas do sexo feminino

Acontece, porém, que o COI é pródigo em declarações a favor de α, sem, contudo, mexer uma palha para concretizar β. Pelo contrário, tudo faz, há 25 anos, para tornar β letra morta.

Não foi sempre assim. Sob a presidência de Avery Brundage (1952-1972), o último grande defensor do desporto amador no movimento olímpico, e a partir da preparação dos Jogos Olímpicos de Helsínquia (1952), o COI passou a solicitar que as atletas olímpicas apresentassem uma declaração juramentada, assinada por um médico, atestando que eram mulheres. No entanto, a preocupação de que alguns atletas ou médicos sem escrúpulos pudessem utilizar ou passar documentos fraudulentos levou à realização de um exame visual, um requisito que acabou por se tornar a norma, a partir de 1966.

Nesse ano, na preparação do Campeonato Europeu de Atletismo, a Federação Internacional de Atletismo Amador (mais conhecida por IAAF [International Amateur Athletic Federation]), introduziu um teste de elegibilidade para todas as mulheres que competiam nas provas de atletismo das categorias (A) e (E). As concorrentes tinham de dar alguns passos, nuas, perante um júri constituído por um painel de 3 médicas (os chamados “desfiles nus”) e/ou submeter-se a exames ginecológicos em caso de dúvida por parte do júri. As atletas consideradas pelo júri como tendo uma anatomia reprodutiva feminina típica eram elegíveis para competir. As demais eram eliminadas [5].

A partir de 1967, os desfiles nus perante um júri de médicas foram eliminados em benefício de um método mais expedito, além de estar isento de qualquer alegada ofensa ao pudor feminino. De 1968 a 1998, durante 30 anos, todas as mulheres que competiam nos Jogos Olímpicos, em todas as modalidades de todas as categorias (A), (C), e (E), tinham de fazer um teste cromossómico realizado por um laboratório acreditado pelo COI. Esse teste destinava-se a verificar, pela presença ou não do cromossoma Y (característico dos indivíduos do sexo masculino, cariótipo 46, XY), se a atleta estaria ou não a trapacear o sistema.

Sabemos que foram testadas 11.370 mulheres apuradas para 5 edições dos Jogos Olímpicos: Munique (1972), Montreal (1976), Los Angeles (1984), Barcelona (1992), Atlanta (1996). Durante esse período, as 27 concorrentes que foram consideradas anormais do ponto de vista cromossómico foram aconselhadas a retirar-se discretamente, a menos que concordassem em submeter-se a exames clínicos e ginecológicos de acompanhamento para decidir se deveriam ser proibidas definitivamente de concorrer aos Jogos Olímpicos, ou se lhes deveria ser concedida a elegibilidade olímpica [6]. Às concorrentes que superavam o teste de verificação sexual era entregue um cartão que comprovava que eram do sexo feminino. As atletas tinham de trazer sempre esse cartão consigo se quisessem competir.

A fiabilidade dos testes de verificação sexual evoluiu com o progresso da biologia molecular, da genética, da genómica e da biotecnologia. Os primeiros testes cromossómicos de verificação sexual eram testes da cromatina sexual extraída das células bucais com uma espátula [7]. O corpúsculo de Barr, ou cromatina sexual, é encontrado em indivíduos do sexo feminino (cariótipo 46, XX) — ou seja, que têm duas cópias do cromossoma X, uma das quais é inactivada durante o processo de desenvolvimento do embrião e reduzida a um corpúsculo, o sobredito corpúsculo de Barr. Nos indivíduos masculinos da espécie humana (cariótipo 46, XY) ou seja, que têm um cromossoma X e um Y , não há, em princípio, corpúsculo de Barr.

 Cariótipo [conjunto dos cromossomas] masculino. O cromossoma Y encontra-se destacadoImagem: “Human male karyotype high resolution – Chromosome Y” do National Human Genome Research Institute. Licença: Public Domain.

No entanto, é necessário acrescentar que a sensibilidade e a exactidão do teste de cromatina sexual varia em função de vários parâmetros [8]. Ulteriormente, os diagnósticos de cromatina sexual foram substituídos por um tipo de teste mais aperfeiçoado: o diagnóstico do gene RYS [SRY no acrónimo inglês], um gene exclusivo dos indivíduos do sexo masculino e situado no cromossoma Y.

O teste consiste em produzir (e ampliar em muitas ordens de grandeza) milhões de cópias de uma amostra de ADN (que é extraído por raspagem de células bucais nucleadas) através de uma reacção química denominada “amplificação por reacção em cadeia da polimerase (RCP)” e em analisar a amostra de RCP [PCR na sigla inglesa] por eletroforese em gel. A presença no gel de uma banda de ADN correspondente ao RYS determinava a desqualificação do atleta para competir em provas femininas. A última vez que este teste de verificação sexual foi realizado foi em 1996. A partir dessa data, este teste de verificação sexual foi abandonado pelo COI e nada o veio substituir entretanto.

A justificação para essa drástica mudança de atitude foram

(i) a surpresa causada pelos resultados invulgares dos testes de verificação sexual que surgiam em atletas presumidamente do sexo feminino, mas com anomalias de diferenciação sexual (ADS) ou, em inglês, DSD (“Disorders of Sexual Development”) que as revelavam como sendo de facto, geneticamente, do sexo masculino;

(ii) o traumatismo psicológico que o resultado desses testes podia provocar nessas atletas naqueles casos em que elas próprias não suspeitavam da sua real identidade genotípica, e

(iii) a crença, então prevalecente, de que um cariótipo ADS XY masculino numa “mulher” provavelmente não tinha importância no desporto feminino, no sentido de não conferir uma vantagem fisiológica e física indevida ao seu detentor.

Presumo que seja óbvia a fraqueza destes argumentos para justificar a decisão de eliminar qualquer teste de verificação sexual nas modalidades das categorias (A), (C) e (E). A verdade, por muito amarga que seja, não deve ser varrida para debaixo do tapete para dar lugar a um mundo do faz-de-conta. Presumo, portanto, que será também óbvio que a única função útil dos argumentos (i), (ii) e (iii) é a de funcionarem como outros tantos biombos para ocultar a dura realidade: a renúncia do COI em continuar a assumir a responsabilidade β. 

A prova mais evidente dessa renúncia foi a decisão do COI, em 2004, de permitir a participação de indivíduos impropriamente chamados “mulheres transexuais” ou “mulheres transgénero” nas categorias (A), (C) e (E) mediante três condições:

(a) Os atletas assim designados deveriam ter sido submetidos a uma cirurgia de “mudança de sexo” [mas é impossível mudar de sexo, como veremos no próximo artigo desta série], incluindo alterações dos órgãos genitais externos e uma gonadectomia [castração cirúrgica];

(b) Os atletas assim designados devem demonstrar o reconhecimento legal do seu “género” [um conceito tudo menos claro, que examinaremos no 4.º artigo desta série];

(c) Os atletas assim designados deveriam ter sido submetidos a “terapia hormonal” durante um período de tempo adequado antes da participação, sendo o período sugerido de dois anos.

Em 2015, o COI modificou estas diretrizes, abolindo a condição (a); exigindo que a declaração de género da condição (b) não fosse alterada durante quatro anos; e modificando a condição (c) do seguinte modo: a “mulher trans” teria de demonstrar ter um nível de testosterona inferior a 10 nanomoles por litro durante, pelo menos, um ano antes da competição e durante todo o período de elegibilidade. Na mesma ocasião, os atletas que tivessem completado a “transição” (?!) de “mulher” para “homem” foram autorizados a competir sem restrições.

Estas diretrizes estiveram em vigor nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016, embora, que se saiba, nenhum atleta abertamente “transgénero” tenha competido. Mas nos Jogos Olímpicos de Tóquio de 2020-2021, o COI autorizou uma “mulher trans”, Laurel Hubbard, a competir no levantamento de peso.

Laurel Hubbard, uma “mulher trans” (ou seja, um homem que alega ser uma mulher) da Nova Zelândia, quando competia na Final Feminina durante o levantamento de peso acima de 90 kg, nos Jogos da Commonwealth de 2018 (Foto: Scott Barbour/Getty Imagens).

As últimas diretrizes (2023) do COI [9] vão ainda mais longe na abdicação da responsabilidade de proteger as mulheres da concorrência desleal de homens que se apresentam (com intenção dolosa ou não) como mulheres.

Fazem-no ao renunciar a qualquer teste de verificação do sexo das concorrentes às modalidades das categorias (A), (C) e (E) e ao omitir completamente os conceitos biológicos fundamentais de sexo, diferenciação sexual e dimorfismo sexual dos seres humanos (que nunca são mencionados nos seus documentos oficiais, incluindo as suas diretrizes), em proveito dos conceitos de “género”, “identidade de género” e “igualdade de género”.

5. Antevisão das partes seguintes deste artigo

A parte III deste artigo será dedicada à elucidação dos conceitos biológicos fundamentais de sexo, diferenciação sexual e dimorfismo sexual que o COI baniu desde 2004 do seu ideário e da sua prática, mas que são a base indispensável para garantir a igualdade de oportunidades aos homens e mulheres nos Jogos Olímpicos, nos Jogos Paraolímpicos e, de um modo geral, em todas a competições desportivas. 

A parte IV, por sua vez, apoiar-se-á nesses resultados para escalpelizar os conceitos de “género”, “identidade de género” e “igualdade de género” que o COI perfilhou em detrimento dos conceitos supramencionados. Mostrarei que esses conceitos não são apenas obscuros e difusos. São também supérfluos e, de facto, contraproducentes para a tarefa de organizar as provas dos Jogos Olímpicos, dos Jogos Paraolímpicos e de outros eventos desportivos de índole semelhante (campeonatos nacionais, campeonatos continentais, campeonatos mundiais das diferentes modalidades desportivas) de modo a garantir a igualdade de oportunidades para mulheres e homens.

As partes V e VI examinarão, à luz das aquisições das partes anteriores, os dois eventos mais controversos do JOP 2024: respectivamente, as provas de boxe feminino de 66 kg e a cerimónia de abertura desses Jogos.

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P.S. [5 Agosto 2024] Parti o braço direito numa queda estúpida há 8 dias. Como não vou poder escrever nas próximas 5-6 semanas, vejo-me obrigado a interromper a continuação deste artigo (que terá mais 4 partes) por igual período de tempo. Por este motivo, apresento as minhas desculpas aos leitores.

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Notas e Referências

[1] Os termos que empreguei entre aspas (“comum de dois” e “sobrecomum”) foram tomados de empréstimo à Gramática Filosófica da Língua Portuguesa, de Jerónimo Soares Barbosa (Academia Real da Ciência, 1830, 2.ª edição), p.127.

[2] Teoricamente, isso também deveria ser o caso na vela [/ “iatismo” para os brasileiros, até 2000], como, de facto, já foi. Porém, na prática, o que sucede é que as diferenças físicas dão vantagem atlética (não necessariamente técnica) aos homens, pelo menos em certas classes de barcos à vela, apesar dos barcos serem projectados para serem cada vez menores e mais leves. Houve oito classes de barcos à vela nos Jogos Olímpicos de 2024. Todas elas seguem regras rígidas, que determinam as medidas exactas para as velas e para o casco, o número de tripulantes e, em alguns casos, até o limite de peso dos atletas. «Existe um biótipo ideal para cada classe. Quanto maior a vela, mais pesado deve ser o atleta para fazer o contrapeso», explica o velejador brasileiro Tobin Grael, bicampeão olímpico [https://super.abril.com.br/mundo-estranho/qual-e-a-diferenca-entre-as-classes-do-iatismo]. Esta seria a razão pela qual as mulheres se inscrevem nas regatas comuns de dois exclusivamente reservadas para mulheres (modalidade A), ou em equipas mistas (modalidade E). 

 A classe de veleiros Nacra 17 Foiling em competição no nono dia dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. Foto: Phil Walter, Getty Imagens.

Curiosamente, o mesmo não se verifica na vela adaptada, uma modalidade dos Jogos Paraolímpicos com três classes de barcos e que é disputada em três categorias sobrecomuns de atletas — isto é, sem divisão por sexo. Assim, homens e mulheres competem juntos nas classes 2.4mr, Sonar e SKUD-18. A 2.4mr é individual, enquanto a Sonar leva três pessoas (que podem ser todas elas mulheres ou todas elas homens) e a SKUD-18 é composta por duplas mistas: um homem e uma mulher.

Outra modalidade em que não é óbvia a necessidade de diferenciação das provas por sexo é o tiro desportivo. Não sei se também aqui haverá um biótipo ideal consoante o tipo de arma, a natureza (fixa ou móvel) dos alvos e a distância do alvo que favoreça os atletas do sexo masculino.  (Regressaremos a este assunto na parte 5 deste artigo).   

[3] Emma Hilton. “Sex Differences between Men and Women and why they matter in sport”. Beetle Bomb. August 18, 2022.

[4] Ibidem

[5] Lindsay Parks Pieper, Policing Womanhood: The International Olympic Committee, Sex Testing and the Maintenance of Hetero-Femininity in Sport (2013). Doctoral Dissertation, Ohio State University. USA.

[6] Louis J. Elsas et al. “Gender verification of female athletes”. Genetics in Medicine, July-August 2000. Vol.2. No 4.

[7] O esfregaço bucal é o método mais comum de colheita porque as células epiteliais bucais podem ser colhidas facilmente de forma simples, económica, rápida e não invasiva. No entanto, também podem ser recolhidas amostras da bainha da raiz do cabelo, sangue, osso, tecido pulpar, saliva e sémen. Navdeep Kaur et al., “Buccal Barr Bodies: Accuracy and Reliability in Sex Determination”. Saudi J. Oral.Dent. Res., Vol.2, Iss-7(Jul. 2017).

[8] Navdeep Kaur et al., op.cit.; R. Amirthaa Priyadharscini & T.R. Sabarinath, “Barr bodies in sex determination”. Journal of Forensic Dental Sciences. January-June 2013; Vol. 5, Issue 1.

[9] Portrayal Guidelines. Gender-equal, fair and inclusive representation in sport. International Olympic Committee. 3rd edition. 2024. Actualmente, as posições do COI são designadas por “linhas orientadoras” ou “quadros de referência” porque a Carta Olímpica confere às federações desportivas internacionais (FDI), e não ao COI, a autoridade para estabelecer as regras de elegibilidade para os respectivos desportos. No entanto, como autoridade máxima do Movimento Olímpico, as posições políticas do COI são muito influentes ou mesmo determinantes, como veremos na 5.ª parte deste artigo.

07 agosto, 2024

Temas 2,3 e 4


Os Jogos Olímpicos de Paris 2024

sob o signo do niilismo neoliberal: 

(I) a usurpação do olimpismo 

José Catarino Soares

 

Este artigo tem cinco ou seis partes (ainda não sei bem). A primeira parte, que começa mais abaixo, trata da usurpação do olimpismo pelos Jogos Olímpicos de Paris 2024 (JOP 2024), um processo que se desenvolve há 40 anos. As partes seguintes tratam de duas trapaças dos JOP 2024 (houve mais, mas não entram no âmbito desta série de artigos) que têm a ver com  o pugilismo feminino e a cerimónia de abertura desses Jogos. 

Como qualquer trapaça, para ter êxito, necessita de muita lábia, dei à espécie de lábia que foi empregue nas grandiosas trapaças dos JOP 2024 o nome de “niilismo neoliberal” — um termo que será devidamente elucidado na última parte (a quinta ou a sexta) do artigo.

1. Jogos Olímpicos da Grécia antiga vs. Jogos Olímpicos de Paris 2024

Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 pouco se assemelham, para além do nome, com os Jogos Olímpicos da Grécia antiga (séculos VIII a.C.-IV d.C.) — uma celebração da excelência atlética masculina realizada em Olímpia, no Peloponeso, que mais tarde evoluiu para uma competição atlética pacífica quadripolar (Olímpia, Nemeia, Delfos, Corinto) entre os atletas de cidades gregas do Peloponeso, da Grécia continental e insular, da Itália, do Norte de África e da Ásia Menor, denominada Jogos Pan-Helénicos (do século VI a.C. em diante) pelos seus participantes e organizadores.


A principal diferença dos Jogos Olímpicos da Grécia antiga relativamente aos Jogos Olímpicos de Paris 2024 é esta: durante a sua realização, de quatro em quatro anos, era declarada uma “trégua sagrada” (gr. ekecheiria, que significava “depor as armas”) que proibia a guerra entre as cidades gregas e que tinha o propósito de proteger os espectadores, atletas, treinadores e juízes/árbitros das provas atléticas durante o período inteiro que começava pela sua vinda aos Jogos Olímpicos, continuava com a sua estadia durante o desenrolar das provas e terminava com o seu regresso a casa.

A segunda diferença importante é que os Jogos Olímpicos da Grécia antiga estavam reservados quase exclusivamente a atletas do sexo masculino. Acresce, como terceira diferença, que ninguém tinha dúvidas no que respeita a distinguir um adulto do sexo masculino de um adulto do sexo feminino. (Este é um assunto ao qual regressaremos na 4.ª parte deste artigo).

A quarta diferença é que esses jogos eram exclusivamente constituídos por modalidades atléticas individuais, não por um misto de modalidades individuais e de equipa.  

As principais semelhanças entre os Jogos Olímpicos da Grécia antiga e os Jogos Olímpicos de Paris 2024 são duas:

— 1) a preparação dos atletas em competição (muito prolongada e exigente, em ambos os casos)

— 2) a motivação dos atletas em competição (competir pela glória atlética e por recompensas com alto valor monetário ou de grande prestígio, em ambos os casos).

No entanto, não deixa de ser digno de nota a extrema modéstia relativamente aos padrões dos Jogos Olímpicos do século em curso da recompensa mais cobiçada pelos atletas gregos: uma simples coroa de folhas (de oliveira, de loureiro, de pinheiro ou de aipo selvagem) e uma fita de lã vermelha (a “taenia”, que era amarrada à cabeça) para os vencedores (uma distinção reservada apenas para os primeiros lugares), além de uma folha de palmeira que podiam segurar na mão [1].


2. Jogos Olímpicos da era Coubertin vs. Jogos Olímpicos de Paris 2024

Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 também têm poucas semelhanças com a recriação do ideal olímpico grego por William Penny Brookes, Evángelos Záppas e, sobretudo, no final do século XIX, por Pierre de Fredy (barão de Coubertin), a que este deu o nome de “olimpismo”. O olimpismo é um esforço concertado de «promoção da paz universal» através de um campeonato reunindo «todos os desportos e todas as nações» (P. de Coubertin, Discurso de 25 de Novembro de 1892; Carta Olímpica XXI, 17 de Maio de 1921).

Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 estão a uma distância astronómica deste ideal [2]

Em 21 de Novembro de 2023, Tony Estanguet, presidente do Comité de Organização dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, apresentou, perante a Assembleia Geral da ONU, uma resolução intitulada “Por um mundo melhor e mais pacífico através do desporto e do ideal olímpico”, para defender o princípio da “trégua sagrada” de todas guerras que lavram por esse mundo fora durante a realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Paris 2024 — concretamente a partir do sétimo dia anterior ao início dos Jogos Olímpicos de Paris (26 de Julho a 11 de Agosto de 2024) e até ao sétimo dia seguinte ao final dos Jogos Paraolímpicos (28 de Agosto a 8 de Setembro) [3]. Essa iniciativa veio na sequência da resolução aprovada pela 77.ª sessão da Assembleia Geral da Nações Unidas de 1 de Dezembro de 2022, reconhecendo e apoiando a neutralidade política do Movimento Olímpico  nomeadamente a neutralidade política dos seus três principais constituintes (o Comité Olímpico Internacional, as Federações Desportivas Internacionais e os Comités Olímpicos Nacionais)  e a autonomia do desporto.

2024. Torre Eiffel, Paris. Em primeiro plano, vemos os aros interligados e de várias cores que são o símbolo inventado por Pierre de Coubertin para identificar os Jogos Olímpicos da era Moderna. Foto: Shutterstock


Seria pois natural que o Comité Olímpico Internacional (COI) actuasse em conformidade com essas duas resoluções. Mas o que o COI fez para satisfazer as exigências do então presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky [4],  e da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, entre outros  foi outra coisa, bem diferente: proibir os atletas da Rússia e da Bielorrússia de participarem nos Jogos Olímpicos de Paris 2024, com a alegação de que os governos desses países estão envolvidos numa guerra na Ucrânia. A única maneira de os atletas desses dois países serem admitidos nos JOP 2024 seria, estipulou, (i) renegarem a sua nacionalidade, ou (ii) declararem publicamente a sua oposição ao governo do seu país na questão da guerra e (iii) não terem contratos com as Forças Armadas dos seus países [5]. Os atletas que preencham estas condições são rotulados, na Novilíngua do Comité Olímpico Internacional, “atletas individuais neutros”.

Thomas Bach, presidente do COI, cumprimenta Volodymyr Zelensky em Quieve. Foto: Comité Olímpico da Ucrânia.


Mas tal proibição viola ostensiva e grosseiramente os parágrafos 5.º e 6.º do capítulo 2 da Carta Olímpica [missão e papel do Comité Olímpico Internacional], que estipulam que este organismo deve «actuar para o reforço do movimento olímpico, proteger a sua independência, manter e promover a sua neutralidade política e preservar a autonomia do desporto», assim como «opor-se a qualquer forma de discriminação que afecte o Movimento olímpico». [realce por meio de traço grosso acrescentado ao original]

Esta violação grosseira da Carta Olímpica foi feita sem qualquer oposição ou protesto (mas corrijam-me se eu estiver mal informado) do secretário-geral da ONU, da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), da Amnistia Internacional, da Human Rights Watch, da Federação Internacional dos Direitos Humanos, da EuroMedRights, da Coligação Informal para a Defesa do Estado de Direito [Netherlands Helsinki Committee], e de tantas outras entidades que se proclamam intransigentes defensoras da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nomeadamente no que respeita aos artigos seguintes:

«Artigo 1.º ‒ Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

Artigo 2.º ‒ Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.

Artigo 30.º ‒ Nenhuma disposição da presente Declaração poder ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer acto destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecido» [realce por meio de traço grosso acrescentado ao original].

Deste modo, foram ilegalmente afastados da competição nos Jogos Olímpicos de Paris 2024 atletas que não cometeram nenhuma infracção desportiva. E que atletas!

«Entre 1994 e 2020 os atletas russos conquistaram 426 medalhas, 149 das quais de ouro, números que apenas são ultrapassados por competidores dos Estados Unidos [que têm uma população duas vezes maior do que a da Rússia, n.e.]. Um número relevante de troféus olímpicos será assim distribuído este ano por desportistas que, em circunstâncias normais, não os conquistariam. Isto significa viciação, corrupção competitiva» [6]. [n.e.= nota editorial]

Esta é Viyaleta Bardzilouskaya, atleta da Bielorrússia, que conquistou a medalha de prata da ginástica de trampolins nos Jogos Olímpicos de Paris 2024 (JOP 2024). Mas como o Comité Olímpico Nacional da Bielorrússia aceitou, ainda que a contragosto, que esta sua atleta concorresse como “atleta individual neutra”, Viyaleta compareceu no pódio sem a bandeira do seu país natal, por ter sido banido dos JOP 2024. Mais: se alguém for procurar o seu nome no quadro das medalhas presente no sítio electrónico oficial dos JOP 2024, não encontrará qualquer referência a Viyaleta Bardzilouskaya nem aos “atletas individuais neutros” medalhados. Foram duas vezes “apagados” (em inglês woke: “cancelled”) pelo Comité Olímpico Internacional: uma como cidadãos naturais de um país, outra como atletas vencedores.

A melhor prova de que o Comité Olímpico Internacional (COI) é uma correia de transmissão de poderes ocultos reside no facto de não se preocupar sequer em disfarçar a sua falta de escrúpulos e de coerência. O seu presidente, Thomas Bach, está bem ciente da hipocrisia dos governos que o compeliram a excluir a Rússia e a Bielorrússia dos Jogos Olímpicos de Paris 2024.

«É deplorável ver que os governos não querem respeitar a vontade da maioria das partes interessadas no movimento olímpico ou a autonomia do desporto, e é deplorável ver que esses governos não abordam a questão dos dois pesos e duas medidas. Não vimos um único comentário sobre a sua atitude relativamente à participação de atletas de países envolvidos em mais de 70 guerras e conflitos armados em todo o mundo» [7]

O exemplo mais flagrante dessa duplicidade de critérios do COI e dos governos que lhe impõem a sua vontade é a participação nos Jogos Olímpicos de Paris 2024 dos atletas de Israel, apesar de o governo de Israel levar a cabo acções de guerra, genocídio e purga étnica contra o povo palestiniano desde há 75 anos, como sucede presentemente em Gaza e na Cisjordânia há 7 meses consecutivos com uma violência inaudita.

3. Os Jogos Olímpicos na era neoliberal

A esta duplicidade de critérios nos planos ético, político e estatutário, acresce a corrupção comercial. Desde os Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, que o COI decidiu comercializar os símbolos dos Jogos Olímpicos: (i) o Símbolo Olímpico dos cinco aros interligados e de várias cores que representam os cinco continentes; (ii) a Bandeira Olímpica (com o símbolo olímpico sobre fundo branco); (iii) o Lema Olímpico  Citius-Altius-Fortius” [“mais rápido, mais alto, mais forte”]  que Pierre de Coubertin pediu de empréstimo ao frade dominicano Henri Didon, seu amigo, para o converter no lema dos Jogos Olímpicos; (iv) o Hino Olímpico, composto por Spyridon Samaras, e (v) a Tocha olímpica, que foram, todos eles, transformados em marcas registadas. 

Na verdade, toda a organização dos Jogos Olímpicos foi comercializada: os Jogos são financiados por cidades anfitriãs e pelos governos dos respectivos países, pelo que o COI não incorre em nenhum custo, mas controla todos os direitos relativos aos jogos e os lucros dos símbolos olímpicos. O COI tem os direitos de transmissão televisiva dos Jogos e os direitos de marketing e merchandising (p.ex., uma percentagem de todas as receitas de publicidade e patrocínio dos jogos e na venda de bilhetes para os seus eventos e de objectos de recordação dos Jogos Olímpicos).

O COI tem também um enorme poder negocial no planeamento urbano e na construção de estádios e de outras instalações e equipamentos desportivos necessários à realização dos Jogos; na restauração, hotelaria e alojamento local (“Aldeia Olímpica”) dos atletas, treinadores e outros membros das delegações nacionais; nos meios de transporte e viagens turísticas suscitadas pela realização dos Jogos, etc. E tudo isto começou em grande nos Jogos Olímpicos de 1984.  «Em Los Angeles tudo estava à venda» [8].  

Concomitantemente, a partir de 1988, o desporto amador, tão prezado por Pierre de Coubertin como garante do olimpismo, foi relegado definitivamente para um lugar residual.

«No entanto, o facto mais significativo, que demonstra a introdução do profissionalismo nos Jogos, são os patrocínios concedidos a atletas individuais. Estes patrocínios representam enormes somas de dinheiro, especialmente quando o atleta não só ganha como também estabelece um recorde mundial. Os patrocínios aos atletas introduziram uma concorrência desleal nos Jogos, de tal forma que o conceito olímpico da lisura desportiva foi posto em causa, e representam a forma mais extrema de comercialização dos Jogos Olímpicos. /…/

É um fenómeno em constante evolução para finalmente assumir o carácter de uma grande festa, com os inevitáveis confrontos políticos, os enormes custos e os escândalos envolvendo atletas dopados. A introdução do profissionalismo nos Jogos, a partir da década de 1980, e a inversão da ideologia do amadorismo, a perturbação das ideologias, o desenvolvimento de percepções nacionalistas, a sobrevalorização da vitória e o desprezo pela simples participação e, de um modo geral, o enfraquecimento dos valores do espírito olímpico são, potencialmente, os maiores riscos que os Jogos Olímpicos enfrentam.

No entanto, o maior risco é a “venda” dos próprios atletas a empresas comerciais e a exploração comercial dos seus desempenhos. A história mostra que, desde a introdução do profissionalismo nos Jogos e a subsequente entrada de empresas comerciais no desporto, o número de atletas que utilizam substâncias controladas se multiplicou, com as conhecidas consequências para a sua saúde, bem como a contínua erosão dos ideais olímpicos» [9].

Daí que não seja de modo nenhum surpreendente que este processo de ultracomercialização neoliberal dos Jogos Olímpicos e dos atletas que neles participam, que se desenvolve há 40 anos, tenha atingido um ponto alto nos Jogos Olímpicos de Paris 2024. Deles se pode dizer que são

«um megafestival desportivo internacional viciado sob os pontos de vista competitivo e ético muito antes de iniciado; um acontecimento gigantesco com laivos de feira popular e de certame comercial financiado e patrocinado pela rentável ostentação do poder transnacional (e sem controlo) de velhos e novos-ricos para quem todo o mundo é seu» [10].

Uma das manifestações mais evidentes da ultracomercialização dos Jogos Olímpicos é a presença ubíqua das grandes “marcas” comerciais (entenda-se, das grandes empresas transnacionais) da comida rápida, dos refrigerantes, das bebidas energéticas, do vestuário e calçado desportivo, etc.: Coca-Cola, MacDonald, Red Bull, Adidas, Puma, Nike, etc.


Segundo uma reportagem da revista Forbes, que contactou os Ministérios do Desporto e as delegações nacionais dos 206 países e territórios presentes em Paris, 33 confirmaram que os atletas olímpicos recebem um prémio monetário caso conquistem uma medalha (de ouro, prata ou bronze) durante a competição [11].

Dentro deste grupo, 15 países oferecem um prémio superior a 100 mil dólares americanos [91,2 mil euros]. Neste particular, o primeiro lugar da classificação vai para Hong-Kong, que compete independentemente da China e que oferece 768 mil dólares [700,7 mil euros] ao vencedor de uma medalha de ouro. Destarte, a esgrimista Vivian Kong, que conquistou a terceira medalha de ouro na história olímpica de Hong-Kong no Jogos Olímpico de Paris 2024, vai embolsar bem mais de meio milhão de euros. Contudo, a medalha de prata conquistada por um atleta de Hong-Kong também é recompensada com 346,7 mil euros, uma quantia acima da que qualquer outro país oferece pela medalha de ouro.

Israel ocupa o 2.º lugar dos países que atribui prémios monetários com valores mais altos aos seus atletas olímpicos medalhados, com o campeão olímpico a receber 251 mil euros pela medalha de ouro. Segue-se a Sérvia, que atribui 200 mil euros ao atleta que ganhe uma medalha de ouro.

A investigação da Forbes revelou também que nem todas as recompensas olímpicas se cingem a prémios em dinheiro. A Polónia, além de um prémio monetário de 74,8 mil euros, oferece a cada atleta medalhado um quadro de artistas polacos “talentosos e respeitados”, um diamante de investimento e um vale de férias para duas pessoas, oferecido por uma agência de viagens. Os treinadores dos atletas medalhados obtêm os mesmos prémios que os seus pupilos. Adicionalmente, no ano em que se comemora o 100.º aniversário da sua primeira presença do comité polaco nos Jogos Olímpicos, o país vai ainda oferecer um apartamento com dois quartos em Varsóvia para os vencedores nos desportos individuais, ao passo que os vencedores nas modalidades coletivas receberão um apartamento com um quarto.

Não são só os Comités Olímpicos Nacionais, ou os governos que os patrocinam, que oferecem prémios e outras recompensas de alto valor monetário ou monetizável. As federações desportivas internacionais também o fazem. Por exemplo, a Federação Internacional de Pugilismo (IBA no acrónimo inglês) oferece um prémio de 100 mil dólares americanos (cerca de 91 mil euros) ao vencedor de uma medalha de ouro, a ser distribuído pelo pugilista (50 mil dólares), pela federação do respectivo país (25 mil dólares) e pelo treinador do atleta (25 mil dólares).

Por último, mas não menos importante, cabe referir o patrocínio das grandes marcas comerciais a atletas e equipas nacionais participantes nos jogos. Por exemplo, a Adidas lançou estojos para as equipas olímpicas que patrocina: Alemanha, Reino-Unido, Polónia, Bahrein, Cuba, Hungria e Turquia. Os seus estojos incluem vestuário especialmente concebido para os atletas que competem em cadeira de rodas.

«A Adidas e as suas congéneres também estão interessadas em gerar um burburinho em torno dos Jogos junto da Geração Z e dos consumidores adolescentes, um grupo demográfico fundamental para o futuro destas empresas. /…/

“O que está em causa é o esbatimento das linhas entre o que é moda e o que é desempenho, e o facto de as pessoas se identificarem com os atletas como criadores de gostos nesse espaço”, contextualiza Abbie Zvejnieks, analista de vestuário desportivo e de retalho na Piper Sandler, em Nova Iorque» [12].

No dia 19 de Abril de 2024, na Arena Adidas de Paris, a Adidas lançou novas sapatilhas para 41 modalidades olímpicas dos JOP 2024, com a participação de atletas patrocinados, incluindo a medalhista de ouro de escalada, a atleta eslovena Janja Garnbret (na foto), que também faz publicidade e é patrocinada pela Red Bull, como se vê pelo boné.  Foto: Sara Meysonnier/Reuters.

4. A cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024

Todos os aspectos dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 referidos nas três secções anteriores (russofobia, otanização [= alinhamento pelas posições e decisões da OTAN] do COI, ultracomercialização das provas desportivas e dos atletas, corrupção competitiva) se reflectiram de maneira espectacular na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024.

Já foi dita muita coisa díspar sobre essa cerimónia. O veredicto de António Guerreiro parece-me resumir bem o que aconteceu.

«A abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 foi certamente a mais grandiosa manifestação Kitsch da história dos espectáculos públicos» [13].

Aqui pretendo salientar a convergência ideológica entre a usurpação neoliberal do olimpismo levada a cabo pelo Comité Olímpico Internacional, presidido por Thomas Bach, e, em particular, pelo Comité de Organização dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, presidido por Tony Estanguet, e a opção kitsch [14] do director artístico da sua cerimónia de abertura, Thomas Jolly, seleccionado pelo dito Comité de Organização. Mas esse é um assunto que ficará para a quinta parte deste artigo a publicar oportunamente.

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P.S. [20-08-2024]. Alterei ligeiramente o primeiro e o último parágrafo deste texto de modo a reflectir a extensão que tomou, entretanto, o artigo subordinado ao título principal (antes do algarismo romano) e que me levou a dividi-lo em cinco (ou seis) partes. Inicialmente, julguei que teria duas. 

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Notas e Referências

[1] Os vencedores dos Jogos Olímpicos da Grécia antiga recebiam com frequência, nas suas cidades-natais, brindes com um grande valor monetário — como, por exemplo, ânforas cheias de azeite, trípodes (grandes vasos com três pés) de bronze, escudos de bronze, taças de prata, refeições grátis para o resto da vida, pensões vitalícias ou mesmo prémios em dinheiro vivo. No entanto, nem todas as recompensas consistiam em benefícios materiais. Algumas consistiam simplesmente em brindes honoríficos, como, por exemplo, lugares especiais nos espectáculos de teatro ou uma entrada festiva e cerimonial na cidade-natal. Alguns atletas extraordinários eram, além disso, homenageados com estátuas, poemas ou inscrições lapidares.

[2] A este propósito, pode argumentar-se, como o faz Marc Perelman («Sportifs russes et biélorusses aux JO 2024: ‘Les Jeux Olympiques ont toujours été politiques’». Le Figaro, 14.04.2023) que o mesmo vale dizer relativamente ao COI da era de Pierre de Coubertin. Concedido. Contraponho, porém, que a distância entre o ideal olímpico de Coubertin e a realidade dos Jogos Olímpicos realizados sob a sua égide não era, como é hoje, “astronómica”.  

[3] Recordemos que o Comité Olímpico Internacional (COI) tem, desde 2009, o estatuto de observador permanente na Assembleia Geral da ONU — o que lhe confere o direito de se envolver diretamente na Agenda da ONU, participar nas reuniões da Assembleia Geral da ONU e tomar a palavra nessa assembleia.

[4] Actualmente, Volodymyr Zelensky usurpa o cargo de Presidente da Ucrânia. O seu mandato de cinco anos terminou em 21 de Maio de 2024 e não há nenhuma disposição na Constituição da Ucrânia que permita prolongá-lo. Por conseguinte, a sua legitimidade constitucional é, actualmente, nula. Acresce que o senhor Zelensky não marcou eleições presidenciais nos prazos previstos e não dá mostras sequer de o querer fazer tão cedo. Estes factos são totalmente silenciados pelo sistema mediático dominante de comunicação social do chamado “Ocidente alargado”. Imaginem, agora, o banzé que esse mesmo sistema mediático faria se Vladimir Putin procedesse da mesma forma na Rússia…

[5]  A este propósito, Marc Perelman (op.cit.) perguntou, na altura, com pertinência: «Quem é que vai verificar todas estas condições? Quem é que pode acreditar em tais compromissos?» 

[6] José Goulão, “Requiem pelo Olimpismo”. Abril Abril, 29 Julho 2024.

[7]  «Le CIO juge « déplorables » les pressions occidentales dans le dossier russe, dit son président». La Croix, 30.03. 2023; «Le CIO juge « déplorables » les pressions occidentales». La Presse, 30.03.2023.

[8] A. Tomlinson,“The commercialization of the Olympics: Cities, corporations and the Olympic commodity”. In: Kevin Young and Kevin Wamsley, (eds.). Global Olympics: Historical and Sociological Studies of the Panagiota Papanikolaou Modem Games. Oxford: Elsevier. 2006.

[9] Panagiota Papanikolaou, “The Spirit of the Olympics vs. Commercial Success: A Critical Examination of the Strategic Position of the Olympic Movement”. International Journal of Humanities and Social Science. Vol. 2 No. 23; December 2012.

[10] José Goulão, op.cit.

[11] “These Countries Pay Olympians Six-Figure Bonuses for Winning Gold”. Forbes. July 27, 2024.  

[12] Helen Reid, “In Olympics launch, Adidas seeks to broaden sport appeal”. Reuters. April 18, 2024.

[13] António Guerreiro, “As Olimpíadas e as suas Máscaras”. Público, 02.08.2024; Estátua de Sal, 03.08.2024.

[14] Há várias definições de kitsch. As que prefiro, uma breve e uma longa, são as (i) de João Pais Machado e (ii) Fritz Karpfen, respectivamente.  (i) «O Kitsch é uma arte da corrupção, da trapaça, da mentira, do faz-de-conta» (J. Pais Machado, “Kitsch”. In Cardoso, J. L., Magalhães, P., Pais, J.M. (org), Portugal social de A a Z: temas em aberto. Lisboa: Impresa Publishing, 2013). (ii) O kitsch são «futilidades baratas e desprovidas de gosto, enfeitadas com atributos artísticos; presunção ridícula com chavões diletantes /…/; coisa que não quer dizer nada e nada exige ao pensamento; adorno no convívio pacato do burguês à mesa do café; /…/ bluff que quer fazer bluff ao coração e faz verter lágrimas como uma cebola; /…/ em suma, pechisbeque que especula com a alegria infantil por aquilo que brilha» (F. Karpfen, Kitsch: Um estudo sobre a degenerescência da arte. tradução e introdução de João Tiago Proença. Lisboa: Antígona, 2017). O livro de Karpfen foi publicado originalmente em 1925.