Temas 2, 3, 5
O
mistério (deslindado)
do
massacre da praça Maidan
José Catarino Soares
1.
Sherlock Holmes
Quando pensamos nos romances e contos policiais de Arthur
Conan Doyle (1859-1930) é impossível não mencionar O Mistério do Silver Blaze.
Este conto [1] transporta o leitor para um mundo de
intriga, onde a perspicácia do detective Sherlock Holmes (acompanhado pelo seu fiel
amigo, o dr. Watson) brilha intensamente. A trama gira em torno do
desaparecimento de Silver Blaze [Labareda
Prateada], um cavalo de corridas famoso pelas suas vitórias, e o aparente assassinato do seu treinador, John Straker.
A presença de um cão que não ladrou, um pormenor que, à
primeira vista, parece trivial, torna-se o fio condutor que Sherlock Holmes vai
seguir para deslindar o mistério do Silver Blaze.
2.
Ivan Katchanovski
O professor Ivan Katchanovski é um Sherlock Holmes
contemporâneo que se abalançou sozinho ‒ sem nenhum dr. Watson para o auxiliar e
correndo grandes riscos (incluindo o risco de vida [2]) que Holmes nunca correu
no universo ficcional de Arthur Conan Doyle ‒ a deslindar um mistério muito mais
complicado e muitíssimo mais grave.
Ivan Katchanovski |
Refiro-me ao massacre da praça Maidan (Quieve), em Fevereiro
de 2014, cujos efeitos imprevistos estão na origem de uma guerra fratricida (a
primeira guerra na Ucrânia, a que começou em 2 de Maio de 2014 e que se prolongou
até 24 de Fevereiro de 2024, entre o regime ucraniano pós-massacre de Maidan e as
Repúblicas Populares de Lugansk [RPL] e Donetsk [RPD] na região da Donbass), a
qual, por sua vez, está na origem ‒ não exclusivamente, mas em grande medida ‒ da
segunda guerra na Ucrânia (a que começou em 24 de Fevereiro de 2022 e que
continua, entre o regime ucraniano pós-massacre de Maidan e o regime russo pós-Ieltsin).
O massacre ‒ ou
(em vernáculo) a matança ‒ da praça Maidan (o massacre de Maidan, para abreviar) é uma forma expedita
de designar o assassinato em massa e à bala de 74 manifestantes civis e de 17 membros
da Berkut [polícia de choque] e das
Tropas Internas da Ucrânia [um corpo semelhante à GNR portuguesa] durante os protestos conhecidos
como Euromaidan, em 18-20 de Fevereiro de 2014.
Do massacre e distúrbios violentos conexos resultaram também os ferimentos (muitos
dos quais de bala) infligidos a mais de 300 activistas e cerca de 200 membros
da Berkut e das Tropas Internas presentes na praça Maidan nesses dias.
Este massacre alimentou e precedeu imediatamente o golpe de Estado sangrento de 22 de Fevereiro de 2014, que derrubou inconstitucionalmente o presidente da Ucrânia livremente eleito, Viktor Ianukóvytch.
Ivan Katchanovski acaba de publicar (2 de Outubro de 2024), na editora Palgrave Macmillan, um livro intitulado, The Maidan Massacre in Ukraine — the mass killing that changed the world [O Massacre de Maidan na Ucrânia — o morticínio que mudou o mundo], que deslinda completamente o mistério deste massacre.
Apresentei noutro lugar, muito sucintamente, além dos
objectivos cognitivos da obra, as características editoriais inéditas que o seu
autor pretende conferir à sua divulgação (ver aqui [https://estatuadesal.com/2024/10/05/um-livro-indispensavel-e-que-fara-data/]
e aqui [https://www.facebook.com/share/p/dM8WgTAQTFzeaAxp/]). Neste artigo, vou analisar mais detidamente a sua forma e o seu conteúdo.
3.
Cães que não ladram
A presença de muitos cães que não ladraram (quando seria
expectável que o fizessem e com muita intensidade) perante este massacre foi o
fio condutor da investigação de Katachnovski no seu livro.
Por exemplo:
― # «O Procurador-Geral da República ucraniana declarou, em Junho de 2014, que entregou vídeos da matança de Maidan ao FBI [a polícia federal americana] para melhorar a sua qualidade (Relatório, 2015a). No entanto, os EUA e outros governos ocidentais não divulgaram as suas avaliações dos serviços secretos e outras informações relativas a esta matança, e os resultados do alegado envolvimento do FBI na investigação da matança de Maidan também não foram revelados»
― # «Os investigadores do Ministério Público da Ucrânia, os
advogados das vítimas da Maidan e, com algumas excepções, os meios de
comunicação social ucranianos e ocidentais negaram que os atiradores furtivos
da Maidan tenham assassinado os activistas da Maidan. Em 19 de novembro de
2014, o Gabinete do Procurador-Geral da República ucraniana afirmou, durante a
sua conferência de imprensa, que a sua extensa investigação não produziu provas
de “atiradores furtivos” no Hotel Ukraina, no Palácio Zhovtnevyi e noutros
locais controlados pelos manifestantes de Maidan.
No entanto, numa conversa telefónica interceptada [em Fevereiro de 2014 e que pode ser encontrada no Youtube, aqui https://www.youtube.com/watch?v=BTbwdP5_d8M] com a chefe da diplomacia da UE [Catherine Ashton, baronesa Ashton de Upholland], o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Estónia [Urmas Paet] referiu-se a um dos médicos de Maidan [entender: a um dos médicos que prestaram assistência aos manifestantes de Maidan], nomeadamente a dra. Olha Bohomolets, que apontou para a semelhança dos ferimentos [de bala] entre os manifestantes e os polícias, o que constituiu uma das indicações de que a matança foi organizada por alguns elementos da oposição [antigovernamental] de Maidan (Bergman, 2014)»
― # «Os governos e as organizações ocidentais ignoraram, de um
modo geral, os julgamentos e as investigações do massacre de Maidan, apesar de
este massacre ter sido uma das mais graves violações dos direitos humanos na
Ucrânia contemporânea e na Europa em geral e de ter um significado político
crucial para além da Ucrânia»
― # «Muitos altos funcionários ocidentais prestaram homenagem aos manifestantes mortos no local do massacre durante as suas visitas à Ucrânia. A posição dos governos ocidentais em relação aos inquéritos e julgamentos do massacre de Maidan contrasta com as suas várias declarações públicas e outras formas de envolvimento noutros processos e julgamentos criminais politicamente importantes, como o julgamento de Iuliya Tymoshenko durante a presidência de Ianukóvytch, os casos de corrupção no governo ucraniano após o “Euromaidan” e a pressão bem sucedida do governo dos EUA para afastar Viktor Shokin do cargo de Procurador-Geral da República ucraniana»
― # «O Parlamento Europeu rejeitou 17 pedidos de um dos seus
membros para incluir na sua agenda investigações sobre os massacres de Maidan e
Odessa (Evroparlament, 2017)»
― # «Algumas organizações internacionais examinaram o julgamento e as investigações do massacre de Maidan nos seus relatórios, mas não efectuaram as suas próprias investigações sobre este massacre e ignoraram os estudos académicos sobre o mesmo. Não puseram em causa as conclusões da investigação oficial de que as forças governamentais, sob as ordens do governo de Ianukóvytch, foram responsáveis pelo massacre dos manifestantes e confiaram nas conclusões do inquérito»
― # «Em 2015, um relatório do Painel Consultivo Internacional do
Conselho da Europa concluiu que a investigação estava a ser bloqueada, em
especial pelo Ministério da Administração Interna e pelo Ministério Público da Ucrânia. O
relatório revelou que, contrariamente às declarações públicas, a investigação
oficial tinha provas de que “atiradores” mataram pelo menos três manifestantes a partir do Hotel Ukraina ou do Conservatório de Música e que pelo menos 10
manifestantes foram mortos por “atiradores furtivos” não identificados a partir
de telhados de edifícios [circundantes da praça Maidan]. A acusação inicial contra os polícias da Berkut pela morte de 39 manifestantes simplesmente omitiu as mortes
dos outros 10 manifestantes, apesar de pelo menos 8 deles terem sido mortos a
tiro na mesma altura e no mesmo local.
No entanto, a comissão do Conselho da Europa, que não conduziu o seu próprio inquérito, repetiu as conclusões do inquérito oficial, segundo as quais os polícias da Berkut foram responsáveis pela morte da maioria absoluta dos manifestantes (Relatório, 2015a)»
― # «O Parlamento ucraniano solicitou ao Tribunal Penal Internacional (TPI), imediatamente após o derrube de Ianukóvytch, para investigar este e outros casos de violência política durante o “Euromaidan”. No entanto, o Ministério Público da Ucrânia terá, alegadamente, informado os representantes do tribunal, no Outono de 2014, que as autoridades policiais ucranianas não estavam interessadas em apoiar uma investigação do TPI (ver Katchanovski, 2015a, 8). O TPI não deu seguimento ao caso da matança de Maidan e a outros casos de violência política durante o “Euromaidan”» (op.cit., pp.21-27).
4.
Metodêutica
Vale a pena salientar o modo como Ivan Katchnovski, o nosso Sherlock Holmes de carne e osso, investigou as
contradições, omissões, silêncios, encobrimentos e manobras dilatórias em que
se enredaram o Ministério Público e o
Ministério da Administração Interna ucranianos, os governos ocidentais,
instituições judiciais internacionais (como, por exemplo, o TPI) e organizações
internacionais de defesa dos direitos humanos (como, por exemplo, o Conselho da
Europa) no que toca à identificação, julgamento e punição dos mandantes e executantes do
massacre de Maidan.
«Este livro [diz Katchnovski
na Introdução do seu livro] combina diferentes métodos
de investigação em ciências sociais e a análise de uma vasta quantidade de
vários tipos de dados. Recorre à análise de conteúdo de todos os vídeos,
fotografias e gravações áudio do massacre de Maidan de 18 e 20 de Fevereiro [de
2014], disponíveis ao público em inglês, ucraniano,
russo, polaco e noutros idiomas, bem como à análise de várias centenas de
testemunhos relativos a este morticínio, com base numa metodologia de
entrevista qualitativa.
A análise de conteúdo manifesto e latente
abrange mais de 2.000 vídeos e gravações de transmissões televisivas e na
Internet, em directo, da matança em quase 50 países; reportagens e publicações
nas redes sociais de mais de 120 jornalistas que cobriram a matança a partir de
Quieve; mais de 6.000 fotografias e cerca de 30 gigabytes de intercepções de
rádio, publicamente disponíveis, de
atiradores e comandantes da polícia e das Tropas Internas.
A análise baseia-se igualmente em cerca de
1.000 horas de gravações de vídeo oficiais do julgamento da matança de Maidan e
do julgamento por traição de Ianukóvych, bem como no texto de cerca de
1.000.000 de palavras do veredicto do julgamento da matança de Maidan, o qual
está disponível na base de dados oficial, electrónica, das decisões judiciais
ucranianas. Os dados incluem informações relativas às investigações do
Ministério Público da Ucrânia sobre esta matança de manifestantes e elementos
da polícia em mais de 2.500 decisões judiciais. Estas decisões judiciais estão
disponíveis ao público na base de dados oficial, electrónica, das decisões
judiciais ucranianas.
Os nomes das pessoas que estão a ser
investigadas são omitidos nestas decisões. São também analisadas entrevistas
nos meios de comunicação social a procuradores, advogados das vítimas da Maidan
e advogados da Berkut, bem como várias notícias nos meios de comunicação social
sobre os julgamentos e investigações da matança de Maidan.
Este estudo analisou entrevistas e declarações
de várias centenas de testemunhas nos meios de comunicação social e nas redes
sociais. A maioria destes depoimentos são de testemunhas oculares, na sua
maioria manifestantes na praça Maidan, e de jornalistas ocidentais e
ucranianos. Os depoimentos de testemunhas indirectas sobre os atiradores
furtivos na Maidan são principalmente de manifestantes, políticos e jornalistas
pró-Maidan.
Estas “declarações contra interesses”
transmitidas por testemunhas indirectas são aceites no direito penal e em
julgamentos nos EUA, Canadá e outros países ocidentais (ver Martin, 1994). Uma
vez que seria do interesse racional dos oficiais da Berkut e dos funcionários
do governo de Ianukóvych, acusados de serem os autores da matança de Maidan,
negar a sua responsabilidade, quer sejam culpados ou não, a análise não se
baseia nos seus testemunhos. /…/
Uma metodologia multimétodo, que combina a
análise de conteúdo de vídeos, gravações áudio e fotografias do morticínio com
a análise de entrevistas qualitativas com testemunhas, torna o estudo de caso e
as suas conclusões muito mais fiáveis do que os estudos universitários típicos.
Os testemunhos específicos relativos a
acontecimentos concretos, em especial as mortes e os ferimentos de
manifestantes específicos e a localização dos atiradores, foram corroborados
por outras provas, como outros testemunhos, gravações vídeo e áudio desses
acontecimentos e resultados de exames médicos forenses e balísticos efectuados
por peritos governamentais sobre os mesmos acontecimentos específicos. O mesmo
se aplica a outros tipos de provas, como vídeos. Além disso, as provas são
avaliadas utilizando outros critérios normalizados na metodologia
universitária, como a validade, especificamente, a validade facial e a
replicação.
Este estudo introduziu também uma metodologia de reconstrução de eventos digitais para a investigação universitária sobre violência política. A metodologia de reconstrução digital de eventos, em particular de assassínios em massa e outros casos de violência política, é utilizada na justiça penal internacional e por investigadores não universitários como o Bellingcat (ver Zarmsky, 2021).
É revelador que o Bellingcat [um consórcio privado de jornalistas de investigação] não tenha apresentado uma análise desta matança, apesar de
ter declarado, em Fevereiro de 2015, que estava a trabalhar nessa investigação
(Bellingcat, 2015). O facto de o Bellingcat não ter analisado o massacre de
Maidan foi mais um cão que não ladrou».
5.
O que o livro de Katchnovski tem de mais
importante
Tudo isto é verdade, como poderá constatar quem leia o seu
livro. Com esta ressalva: o que verdadeiramente importa no livro não são as
opiniões do seu autor sobre o estatuto da Crimeia antes e depois de 2014, sobre
a guerra civil na Donbass [sudeste da Ucrânia] a partir de 2014, ou sobre a
política e o comportamento da Rússia em relação a essas regiões. As opiniões de
Katchanovski sobre esses temas são erradas ou confusas [3].
Seja como for, elas têm um papel marginal no fluxo
discursivo do livro. O que verdadeiramente importa no seu livro são os factos
avassaladores que Katchanovski desocultou e compilou sobre a identidade dos
autores (mandantes e executantes) da carnificina de Maidan. Foi para descobrir
e compreender esses factos que Katchanovski lançou mão da investigação
multifacetada descrita na secção 4, praticando-a ao longo de uma década.
6.
Origem e natureza do regime ucraniano
Esses factos demonstram, sem margem para qualquer dúvida
razoável, que o regime político vigente na Ucrânia ‒ o regime dos presidentes
Oleksandr Turchynov (nomeado pelos golpistas para substituir interinamente
Ianukóvytch), Petro Poroshenko (7 de Junho de 2014-20 de Maio de 2019) e
Volodymyr Zelensky (21 de Maio de 2019-21 de Maio de 2024) ‒ é um regime como
nenhum outro no mundo.
É um regime que foi implantado por assassinos seriais que
não hesitaram, inclusivamente, em mandar disparar a matar, ou disparar a matar,
contra uma multidão de seus concidadãos reunidos na praça Maidan ‒ concidadãos,
note-se, com ideias políticas muito semelhantes às suas (!!) ‒ para alcançar os
seus pérfidos intentos: lançar a culpa dos seus crimes hediondos sobre o
presidente livremente eleito, Ianukóvytch, para justificar como virtuosa a
acção de o derrubar pela violência armada.
Praça Maidan, Quieve. 20 (?) de Fevereiro de 2014. Um paramédico aponta para o buraco feito pela bala que matou este manifestante. |
Não admira, por isso, que esse regime seja um mostruário
de todos os atributos inerentes à sua sórdida origem: inconstitucional,
corrupto, subserviente, mafioso, russófobo, mendaz, liberticida, belicista e (claro!)
superoligárquico.
Este carácter superoligárquico do regime ucraniano é
agora evidente. Neste momento, por exemplo, todos os membros da sua oligarquia
dirigente cuja autoridade e legitimidade dependem de eleições ‒ incluindo no
rol tanto os deputados do Verkhovna Rada (o arremedo de parlamento existente na
Ucrânia) como o próprio presidente Zelensky ‒ ultrapassaram o prazo de validade
dos seus mandatos há muitos meses: desde 29 de Outubro de 2023 e 21 de Maio de
2024, respectivamente. Mas isso não os impede de se manterem no poder pelo
tempo que entenderem, evitando o destino dos iogurtes que ultrapassaram o prazo
de validade. Bastou-lhes, para tanto, aprovar uma lei marcial que lhes confere
esse privilégio regaliano…
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Notas
e referências
[1] Este conto pode ser lido aqui [https://mundosherlock.wordpress.com/canon_e/arthur-conan-doyle-memorias-de-sherlock-holmes-1894/estrela-de-prata/],
numa tradução em Português do Brasil, sob o estranho título “Estrela de Prata”.
[2] Para se ter uma ideia dos riscos,
incluindo o risco de perder a vida, que o professor Katchanovski corre com a
publicação, em acesso aberto, do seu livro, remeto o leitor para a secção 4.3.6. Listas negras dos inimigos a abater, do meu artigo Volodymyr Zelensky é
«a figura do ano 2022» (para o Financial Times, a Time, etc.). É, de facto, mas
pelas piores razões, aqui: https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2023/02/volodymyr-zelensky-e-figura-do-ano-2022.html
[3] Esta não é uma afirmação dogmática. Escrevi um livro [#] e mais de uma dúzia de artigos sobre as guerras na Ucrânia em que refuto, com base em factos indisputáveis, opiniões semelhantes às que o professor Katchanovski emite sobre a anexação da Crimeia, a guerra na Donbass, a política e o comportamento da Rússia relativamente a esses territórios, e a intervenção militar russa na Ucrânia. Ver # Dissipando a Névoa Artificial da Guerra — um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal. (Editora Primeiro Capítulo. Agosto 2023).