Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

01 março, 2017

TEMA 3

1 de Março de 2017

Os ficheiros secretos do Banco Central Europeu sobre a Grécia poderão deixar de o ser 


Em 25 de Janeiro de 2015 o povo grego elegia um novo governo. A força maioritária desse governo, o Syriza (uma vasta coligação de partidos de esquerda, com excepção do PASOK [partido socialista grego] e do KKE [partido comunista grego]), tinha-se apresentado às eleições com base no chamado programa de Tessalónica. Através desse programa, o Syriza comprometia-se, entre outras coisas, a enfrentar a crise humanitária do país criada pelas medidas de “austeridade” do anterior governo — um governo enfeudado à chamada troika (Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional) — e a renegociar com estas instituições burocráticas supranacionais a monstruosa  dívida (pública e sobretudo privada) contraída pela banca grega e pelos anteriores governos gregos; uma dívida que é, aliás, na sua maioria, ilegal e ilegítima, como já se suspeitava e como se veio a comprovar (cf. Conclusões da Auditoria à Dívida Grega. http://www.cadtm.org/Leia-aqui-as-conclusoes-da; Preliminary Report of the Truth Committee on the Greek Public Debt. http://www.cadtm.org/Preliminary-Report-of-the-Truth). A ideia desta renegociação era a de relançar a economia grega em bases mais sãs e evitar que o povo grego continuasse a suportar a continuação dos sacrifícios odiosos e inúteis que lhe tinham sido impostos pela troika através do mais severo programa de “austeridade” da história recente — e que foi agravado nos últimos 2 anos, no seguimento dos episódios que adiante se relatam.

A crise grega

Em meados de Junho de 2015, o governo do Syriza encontrava-se ainda embrenhado em duras negociações com a troika com vista a cumprir o mandato pelo qual tinha sido eleito. Mas estas negociações tinham já revelado, nessa altura, que não passavam de uma encenação para uma das partes.

A troika, com o beneplácito do chamado Eurogrupo (uma organização zombie, sem existência legal à luz dos tratados que regem a UE e o próprio euro), recusara já todas as propostas do governo grego, nomeadamente os dois planos de recuperação e de desenvolvimento económico apresentados pelo então ministro das finanças grego, Yanis Varoufakis, em Maio de 2015 e em Junho de 2015, respectivamente. Na verdade, sob a batuta do senhor Schäuble, ministro das finanças da Alemanha, a troika estava apostada, com o beneplácito do Eurogrupo, em impor ao novo governo grego um programa de “austeridade” ainda mais gravoso do que os dois anteriores.

A troika sabia, porém, que tinha de recorrer a meios drásticos se quisesse (como queria) fazer capitular o novo governo grego perante as suas exigências. E foi o  que fez. O seu instrumento privilegiado foi o Banco Central Europeu (BCE). Através do BCE, a troika tomou, entre outras, as seguintes medidas:

(A) Em 4 de Fevereiro de 2015, o Conselho do BCE (o principal órgão de decisão deste banco) decidiu cortar aos bancos gregos o acesso directo à liquidez do BCE, remetendo os seus pedidos para a ELA (Emergency Liquidity Assistance), um programa de financiamento de emergência menos favorável, da responsabilidade do Banco da Grécia (o banco central de Grécia, membro do Eurosistema). Note-se que esta decisão foi tomada apenas uma semana depois da eleição do governo do Syriza e três semanas antes de expirar um dos prazos de pagamento do vultuosíssimo empréstimo contraído pelo governo anterior [o governo do partido de direita chamado Nova Democracia] junto da troika;

(B) Em 4 de Março de 2015, o conselho do BCE decidiu não restaurar o acesso dos bancos gregos à liquidez do BCE ;

(C) Em 28 de Junho de 2015, o conselho do BCE decidiu não aumentar o tecto de ELA à disposição do banco da Grécia. Ora, convém lembrar que o governo grego estava obrigado a pagar 1600 milhões de euros do empréstimo ao FMI feito pelo governo anterior até 30 de Junho de 2015, ou a declarar-se insolvente. Esta medida do BCE levou a que se tornasse inevitável limitar a 60 euros por dia e por pessoa os levantamentos nos multibancos e acabar por fechar os bancos gregos durante uma semana (e que semana!) para controlar o levantamento de depósitos e a fuga gigantesca de capitais para o estrangeiro, em particular para os paraísos fiscais (offshores), que tinha sido desencadeada pelas medidas (A) e (B).

Três dias antes, em 25 de Junho de 2015, a troika tinha apresentado ao governo grego um programa de medidas considerado “inegociável”, acompanhado com um «é pegar ou largar». Em 27 de Junho de 2015, o primeiro ministro grego, Alexis Tsipras, anuncia um referendo destinado a permitir ao povo grego pronunciar-se sobre se o seu governo deveria aceitar ou recusar o novo “programa de ajustamento” da troika que lhe tinha sido apresentado à guisa de ultimato.

A troika riposta a este anúncio com a medida (C) do BCE, isto é, impondo na prática o fecho efectivo dos bancos gregos durante a semana do referendo. Em 29 de Junho, Benoît Coeuré, membro proeminente do conselho do BCE, declara que, no caso da Grécia, «uma saída da zona euro, que era até hoje uma hipótese puramente teórica, não está infelizmente  excluída», acrescentando que essa era uma consequência do governo grego ter rompido as negociações com a troika. Em seguida, acrescenta ainda que se os gregos votassem SIM no referendo, as autoridades da zona euro encontrariam sem dúvida uma solução para a Grécia. Todavia, se o NÃO ganhasse, «seria muito dífícil retomar o diálogo» (https://www.lesechos.fr/monde/europe/021174193580-benoit-coeure-bce-la-sortie-de-la-grece-de-leuro-ne-peut-plus-etre-exclue1132860.php). Em 3 de Julho de 2015, Vítor Constâncio, vice-presidente do BCE, declara que não podia garantir que o BCE voltaria a providenciar ajuda financeira aos bancos gregos através o programa ELA se os gregos votassem «não» no referendo de 5 de Julho (http://www.reuters.com/article/us-eurozone-greece-ecb-constancio-idUSKCN0P D0SJ 20150703).

As medidas (A), (B) e (C) foram tomadas, como é perfeitamente óbvio, para levar o governo do Syriza a aceitar o terceiro “programa de ajustamento” — ou seja, um novo cortejo de medidas de “austeridade” e de redução da soberania grega — e, dessa feita, levá-lo a renegar o mandato popular que tinha recebido do povo grego por duas vezes sucessivas.

Como sabemos, o povo grego recusou maioritariamente o ultimato da troika, no referendo de 5 de Julho de 2015, apesar dos bancos fechados e da imagem de caos e falência iminente provocada por esse fecho. 

         5 de Julho de 2015. 61,31% dos eleitores gregos dizem «não» (em grego OXI) à                 "proposta" da  troika, contra 38,69% que dizem «sim»

        5 de Julho de 2015. Os eleitores gregos festejam a vitória do OXI no referendo,                  cantando e dançando à noite nas praças e nas ruas.  

Como sabemos também, o governo do Syriza, com apenas três excepções (Varoufakis, ministro das finanças, Nadia Valavani, vice-ministra das finanças, e Nikolaos Chountis, vice-ministro das relações com as instituições europeias), acabou por capitular em 9 e 13 de Julho de 2015 perante a troika, renegando assim o mandato que o povo lhe havia confiado nas eleições de 25 de Janeiro de 2015 e no referendo de 5 de Julho de 2015 para recusar e resistir às imposições despóticas da troika (v. no Arquivo do Blogue os textos publicados sobre este assunto: «A Grécia não existe (dizem alguns) e no entanto move-se», 4 de Julho de 2015; «O humilhante e calamitoso acordo imposto à Grécia», 22 de Julho de 2015).

Os rabos-de-palha do BCE

Há, no entanto, um episódio (entre muitos outros) deste drama grego que não foi noticiado pela comunicação social e que está longe de ser despiciendo.

Apesar da sua pressa e do seu zêlo em esmagar a resistência do povo grego à troika, os responsáveis máximos do BCE foram assaltados por uma dúvida: as suas acções conducentes à asfixia financeira do governo grego teriam cobertura legal ? A dúvida afectava em particular as medidas (A) e (C) descritas mais acima, já que o BCE se define como um órgão “independente” dos governos dos países da zona Euro e clama pautar as suas decisões por motivos puramente técnicos.  Para responder à sua dúvida — e porque cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém — o BCE encomendou a um reputado escritório de advogados um parecer jurídico sobre o assunto. Curiosamente, esse parecer foi arquivado pelo BCE nos “ficheiros gregos” desta instituição, sem que ninguém fora dos círculos dirigentes do BCE lhe pudesse pôr os olhos em cima.

Em Julho de 2015, Fabio de Masi, deputado alemão ao parlamento europeu do partido Die Linke, colocou ao BCE as seguintes perguntas, pedindo uma resposta escrita:

1. Tenciona o BCE publicar esse parecer jurídico e, em caso afirmativo, em que prazos? 2. Independentemente dos planos do BCE relativos à publicação ou não desse parecer, permitirá o BCE aos deputados do Parlamento Europeu inspeccionar esse documento por intermédio da Unidade Parlamentar de Informação Classificada [CIU, na sigla inglesa] ou por por outros meios semelhantes de preservar a sua confidencialidade e, em caso afirmativo, em que prazos? 3. Se o BCE não tem intenção de publicar esse parecer jurídico nem de permitir que os deputados do Parlamento Europeu possam inspeccioná-lo, que justificação dá para isso?

Em 17 de Setembro de 2015, Mario Draghi, presidente do BCE, respondeu a Fabio de Masi com uma carta (ver anexo 1) onde basicamente se recusa a publicar o parecer e a autorizar que os deputados do Parlamento Europeu o possam inspeccionar, escudando-se no “sigilo da relação cliente-advogado” (ingl. “attorney-client privilege”).

Parece pois legítimo conjecturar que o parecer contém algo que Draghi não quer que nós vejamos.

Não é difícil adivinhar quais poderão ser as razões de inquietação do sr. Draghi. A decisão do BCE de limitar a liquidez fornecida ao sistema bancário grego durante os primeiros meses do governo do Syriza (medidas A, B e C) — decisão que conduziu, como vimos, à fuga massiva dos capitais, à asfixia financeira, ao fecho dos bancos na semana decisiva do referendo e, finalmente, à capitulação do 1º governo Syriza e à sua substituição por um outro “amansado” e transformado em joguete da troika — constitui uma violação do mandato deste banco.

Uma vez que o BCE tinha reconhecido que os bancos gregos eram solventes aquando dos testes de “stress” bancário que realizou em 2014, estava obrigado a fornecer-lhes a liquidez de urgência necessária para sustentar o sistema bancário deste país, desde que os bancos gregos depositassem obrigações do tesouro como colaterais no BCP, tal como está previsto nos regulamentos e tal como os bancos gregos fizeram.

No momento em que o BCE tomou a medida (A) estima-se que os bancos gregos teriam podido aceder a 28 mil milhões de euros suplementares de ELA (cf. Barclays Research (2015). Greece’s Achilles’ Heel). A actuação do BCE relativamente à Grécia no período de Fevereiro-Junho de 2015 infringiu as suas obrigações legais. Em primeiro lugar, as medidas (A), (B) e (C) constituem uma violação flagrante do artigo 127 do Tratado sobre o Funcionamento de União Europeia. Em segundo lugar, essas medidas constituem um flagrante desmentido da proclamada independência do BCE, que não só actuou como braço armado dos credores da Grécia (www.latribune.fr/ economie/union-europeenne/grece-la-bce-bras-arme-des-creanciers-576354.html), como também não hesitou em brandir a ameaça da expulsão da Grécia da zona euro cuja integridade e estabilidade lhe incumbe defender.  É difícil imaginar uma violação mais descarada do seu mandato. Fica assim clara a natureza do BCE: a de uma agência europeia do capital financeiro, sendo este o principal instrumento de domínio da fracção mais poderosa da oligarquia liberal. 

Seja como for, o BCE não tem o direito de esconder dos deputados do parlamento europeu e dos cidadãos dos países membros da União Europeia (UE), em particular os que fazem parte da zona Euro, o parecer jurídico que encomendou sobre a sua actuação na Grécia no período de Fevereiro a Junho de 2015. Um reputado jurista europeu, o doutor Andreas Fisher-Lescano, professor na Universidade de Bremen, examinou esta questão e concluiu (v. anexo 2) que o BCE não pode, de maneira nenhuma, recusar a divulgação de um parecer jurídico que esse banco público pediu para avaliar a sua conduta num assunto que afecta a vida quotidiana de milhões de cidadãos (não só gregos, mas também de muitas outras nações europeias) e que foi pago com o dinheiro dos seus impostos. O sigilo da relação advogado-cliente é uma folha de parra que não tem cabimento invocar neste caso. Serve apenas para o BCE encobrir uma vergonhosa tentativa de se eximir ao escrutínio público.


                                    Mario Draghi, presidente do BCE

Uma exigência cidadã

Como cidadãos de países pertencentes à UE e à zona Euro, assiste-nos o direito de fazer o BCE cumprir este imperativo legal de transparência. Por isso, é muito oportuna a petição internacional que o leitor pode encontrar AQUI: https://www.change.org/p/mr-draghi-what-are-you-afraid-of-release-thegreekfiles. Os seus primeiros subscritores são os já referidos Yanis Varoufakis e Fabio de Masi.

Esta petição parece coisa pouca, mas não é. Subscrevê-la é um passo concreto para se conseguir impedir que esta todo-poderosa instituição burocrática possa, amanhã, exorbitando uma vez mais das suas competências, tornar a forçar, como o fez na Grécia, o fecho dos bancos de outro país da zona Euro, se não lhe agradarem as decisões do seu governo democraticamente eleito.

J.M. Catarino Soares

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Anexo 1: Carta de Draghi a Fabio de Masi


ECB-PUBLIC
COURTESY TRANSLATION
Mario DRAGHI
President

Mr Fabio De Masi
Member of the European Parliament
European Parliament
60, rue Wiertz
B-1047 Brussels
Belgium
Frankfurt, 17 September 2015
L/MD/15/548

Re: Your letter (QZ-123)

Dear Honourable Member of the European Parliament, dear Mr De Masi,

Thank you for your letter, which was passed on to me by Mr Roberto Gualtieri, Chairman of the Committee on Economic and Monetary Affairs, accompanied by a cover letter dated 20 July 2015.

I would like to inform you that the European Central Bank (ECB) does not plan to publish the legal opinions regarding the “separation of monetary and economic policy” that you refer to in your letter.

Legal opinions provided by external lawyers and related legal advice are protected by legal professional privilege (the so-called ‘attorney-client privilege’) in accordance with European Union case law. Those opinions were drafted in full independence, on the understanding that they can only be disclosed by the addressee and only shared with people who need to know in order to take reasoned decisions on the issues at stake.

The disclosure of such legal opinions would undermine the ECB’s ability to obtain uncensored, objective and comprehensive legal advice, which is essential for well-informed and comprehensive deliberations of its decision-making bodies. I would also like to point out that legal advice on matters relating to the ECB’s monetary policy is of a particularly sensitive nature. 

Finally, it should be noted that those legal opinions deal with matters relating to the economic and monetary policies of the European Union. Consequently, as regards the possibility of members of the European Parliament accessing this type of ECB document via the European Parliament’s Classified Information Unit, I would reiterate the points that I made in my letter of 17 June 2015. 

Yours sincerely.

[signed]

Mario Draghi

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ANEXO 2: Professor Fischer-Lescano’s Legal Opinion – A Summary

The reference to ‘administrative tasks’ is so general that refusal of access to documents on that basis would further undermine the notably weak democratic legitimacy of the European Central Bank. For the weaker the democratic legitimacy of an institution, the more transparent its decisions must be. The present case specifically concerns assessment of the lawfulness of the decisions of 4 February 2015 and 28 June 2015, i.e. a legal opinion on whether the decision of the ECB Governing Council to cease accepting government bonds as security for loans, and to freeze ELA loans at a certain level, is within the legal bounds of the TFEU. 

A legal opinion does not constitute political advice on the use (or non-use) of the instruments that have been granted to the ECB for the purpose of monetary policy control and ensuring price stability in the Union. The framework in which the ECB makes its monetary policy decisions is not affected by legal decisions. If negatively defined in relation to such monetary policy activities, the legal opinions therefore come under the scope of administrative activities. The ECB is obliged to provide access to the legal opinions. The exception set out in the second indent of Article 4 (1) (a) ECB/2004/3 is not applicable. The public interest, in the form of the monetary and economic policies of the Community or a Member State, is not specifically affected by publication of the legal opinions. In the present case, access is requested to external legal opinions that deal with the decisions of the ECB Governing Council of 4 February 2015 and 28 June 2015. Access is refused by the ECB because ‘those legal opinions deal with matters relating to the economic and monetary policies of the European Union’. If the term ‘monetary policy and economic policy measures’ were to be interpreted so broadly as to include everything that is merely indirectly related to it, then all administrative matters of the ECB, for which transparency is required pursuant to the fourth subparagraph of Article 15 (3) TFEU, would come under the exception. The institution must assess whether the protection of legal advice would actually be undermined by disclosure of the document. 

The ECJ applies a strict standard to that assessment – access may not be refused on the grounds of abstract and general risks alone. According to the ECJ, it is rather a lack of information and debate that raises doubts in citizens concerning the legal act itself, as well as the decision-making process as a whole, since as long as the institution provides convincing reasoning as to why a certain legal position in a legal opinion is not followed, unfounded doubts cannot arise as to the lawfulness of a legal act adopted by the institution. The ECJ has also decisively established that citing the difficulty of defending the lawfulness of a legal act in the event of later disclosure of a legal opinion that takes the opposite view is not sufficient for application of the exception for protection of legal advice. A potential situation in which the legal experts have to justify themselves before other institutions and are therefore prevented from giving frank, objective or comprehensive advice cannot arise. The mere fact that the legal opinion comes under the scope of monetary and economic policy (i.e. the exception set out in the second indent of Article 4 (1) (a) ECB/2004/3) is not sufficient for presumption of the exception set out in the second indent of Article 4 (2) ECB/2004/3 (protection of legal advice). A legal opinion and legal advice about the lawfulness or unlawfulness of the actions of European institutions cannot undermine the protection of the public interest. On the contrary, the unlawful actions of European public bodies are never entitled to protection in the public interest for reasons of the rule of law alone. The European institution cannot have an interest in withholding such legal opinions, because the legal assessment – and consequently the establishment of a potentially unlawful decision of the ECB – is the very definition of public interest and is therefore necessarily in the public interest. Citizens have a fundamental interest in assuring themselves of the lawful actions of European bodies, especially in the case of decisions that are made in a highly contentious environment and in the context of political battles. The ECB must at least justify why the opinions (namely, the legal deliberations of relevance in this case) are not even partially disclosed. (Fonte: #The Greek Files.DIEM25).

Siglas: ECB = Banco Central Europeu; TFEU = Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (vulgo Tratado de Lisboa, 2007); ECJ = Tribunal de Justiça da União Europeia. O vermelho como meio de realce foi acrescentado por mim (J.M.C.S).


08 novembro, 2016

Tema 3

7 de Novembro de 2016


Schäuble volta a atacar


A notícia reproduzida em anexo (no fim deste artigo) merece alguns comentários porque tem como protagonista  um senhor alemão que anda de cadeira de rodas, mas que é muito, mas muito perigoso para a grande maioria de nós, cidadãos portugueses — e não apenas portugueses, como se verá. É que o referido senhor está convencido que merecemos ser duramente castigados se não cumprirmos as suas ordens. 

Falo do sr. Schäuble, do partido União Democrata-Cristã, oficialmente ministro das Finanças de Alemanha desde 2005 e, não oficialmente, o patrão do Euro, razão pela qual a imprensa financeira o chama carinhosamente “tesoureiro da Europa”.

Foi ele que gizou o plano de fazer da Grécia um exemplo inesquecível para todos os povos ‘mal comportados’. Primeiro, propôs a sua expulsão da zona Euro, logo após a eleição do Syriza, exactamente com o mesmo argumento que agora utilizou contra o governo PS (v. notícia no fim deste artigo). A ideia não foi avante porque a França (Hollande) se opôs — os seus bancos eram os mais expostos à dívida grega e temiam ficar a ver navios se a Grécia fosse expulsa do euro e se o seu governo recém-eleito, para sobreviver, repudiasse (= considerasse impagável) a dívida contraída pelos governos anteriores do Pasok e da Nova Democracia. Em seguida, gizou um segundo plano, em que a França (Hollande) alinhou.  A encenação do plano coube ao chamado Eurogrupo, uma instituição fantasmagórica, porque não tem existência legal à luz dos tratados vigentes, que é fundamentalmente o instrumento que permite a Schäuble impor a sua vontade aos ministros das finanças dos países do euro.  Não tem precisado de se esforçar muito, porque os ditos ministros são quase todos membros de partidos nacionais, como o de Schäuble, filiados no PPE (Partido popular Europeu) — a força política maioritária do Parlamento Europeu e na Comissão Europeia — e os que o não são, como, por exemplo, o sr. Jeroen Dijsselbloem, ministro das finanças da Holanda, membro do Partido do Trabalho desse país e presidente do Eurogrupo, têm basicamente a mesma ideia da economia e do mundo.

O plano de Schäuble consistia em (i) recusar a dilatação até Junho do prazo de pagamento do empréstimo (que expirava em Fevereiro, mês em que o novo governo grego tomou posse) feito ao governo anterior da Nova Democracia, um partido filiado, como o de Schäuble, no PPE; dilatação necessária para o governo não ficar imediatamente sufocado antes mesmo de poder começar a actuar; (ii) recusar qualquer medida proposta pelo governo grego ao Eurogrupo e à troika (Varoufakis apresentou-lhes dois planos pormenorizados, por sinal muito moderados) para regenerar a economia grega e as finanças públicas gregas; (iii) recusar qualquer acordo de renegociação da monstruosa dívida grega (315 mil milhões de euros em Fevereiro de 2015), que uma comissão internacional independente de peritos, formada por iniciativa do parlamento grego, tinha concluído ser, na sua maioria, ilegal e ilegítima; (iv) recusar o pagamento de 162 mil milhões de euros da Alemanha à Grécia a título de reparação pelo empréstimo (476 milhões de marcos à data, 54 mil milhões de euros, em paridades de poder de compra de 2010) que esta foi forçada a conceder-lhe no tempo de Hitler e pelos crimes de guerra — destruições, pilhagens e atrocidades (40 mil civis mortos só em Atenas) — cometidos pelos seus exércitos durante a sua ocupação da Grécia. Recorde-se que a Itália pagou integralmente as reparações de guerra exigidas pela Grécia pela ocupação dos exércitos de Mussolini, mas a Alemanha só pagou uma pequena parte (115 milhões de marcos) dessas reparações, em 1960, no tempo de Adenauer, acrescidos de 20 milhões de euros em 2003, ou seja, 1,67% do total devido; (v) declarar o ministro das finanças grego (Varoufakis) persona non grata, nomeadamente por este divulgar publicamente as suas intervenções no Eurogrupo e ter proposto que este grupo passasse a ter actas pormenorizadas das suas reuniões e que estas fossem acessíveis ao público; (vi) cortar toda a liquidez do BCE aos bancos gregos, de modo a (vii) a suscitar uma corrida aos bancos (o que veio a acontecer: 45 mil milhões de euros de depósitos foram levantados entre Março e Junho de 2015) e uma gigantesca fuga de capitais (o que também veio a acontecer, em montantes ainda mais elevados) que levasse o governo grego a fechar temporariamente os bancos (o que veio a acontecer na semana do referendo convocado pelo governo grego) e (viii) que obrigasse Tsipras a retirar todos os poderes negociais a Varoufakis e a capitular perante as exigências da troika de um novo e mais duro plano de ‘austeridade’, traindo o mandato que o povo grego lhe deu por duas vezes (o que também acabou por acontecer).

A Grécia foi invadida pela Alemanha nazi em 1941. Na foto, soldados alemães hasteiam a bandeira nazi na Acrópole. A Grécia perdeu 14% da sua população durante a ocupação nazi — homens, mulheres e crianças baleados ou vítimas da fome organizada pelas pilhagens e destruições feitas pelo exército nazi. 1600 aldeias foram incendiadas e muitos habitantes civis assassinados em 87 cidades, vilas e aldeias, com particular destaque para Atenas.

Foi magistral. A sua execução primorosa excedeu as expectativas dos mais cépticos.  Por exemplo, cá no burgo, o sr. José Manuel Fernandes, do Observador, escreveu um artigo intitulado Estou farto do choradinho dos desgraçadinhos dos gregos (14/2/2015) onde expressava os seus receios do seguinte modo: 

Não há dúvida que quando a troika chegou a Atenas [em 2010] cometeu muitos erros de abordagem, alguns dos quais até corrigiria depois na Irlanda e em Portugal. Houve medidas de uma imensa brutalidade — basta recordar que enquanto em Portugal se preservou e até se actualizaram as pensões mais baixas, na Grécia nem prestações na casa dos 300 euros escaparam. (…)

[JMF esqueceu-se de dizer que, para fazer essa actualização, o governo tirou a uns (que pouco tinham) para dar a outros (que também pouco tinham). O cúmulo da demagogia.  Concretamente, o governo PSD-CDS alterou, em Janeiro de 2013, a legislação sobre o complemento solidário para idosos, diminuindo o valor de referência desta prestação — ou seja, o “valor limite” fixado como rendimento mínimo do idoso para ter direito a este complemento, que passou de 5022 euros anuais (418 euros mensais) para 4909 (409 euros mensais) — o que implicou que idosos que a tinham perderem-na, e outros que se candidataram, e que com as anteriores regras poderiam recebê-la, não a conseguirem obter. Entre Dezembro de 2011 e final de 2015, o número de pessoas a receber o complemento solidário para idosos passou de 235.726 a 160.982, sofrendo portanto uma redução de um terço dos seus beneficiários (75 mil ), enquanto a pobreza nessa população aumentava de 14,7% para 17%. Se isto não é brutalidade, o que é então brutalidade?]

Não surpreende assim que a espiral recessiva que tantos previram para o nosso país e que não se materializou, tenha na Grécia provocado uma queda de 25% do PIB. (…) [De facto, a queda foi de 27%]

A vitória do Syriza pode ter a virtude de quebrar, pelo menos em parte, estas lógicas ancestrais, lógicas que se entrelaçam com a corrupção e a fuga aos impostos. Mas, em contrapartida, pode fazer regredir o pouco que, apesar de tudo, tinha evoluído na abertura da economia. Basta recordar que, antes do resgate, a Grécia mantinha centenas de empresas nacionalizadas na década de 1980, quando na Europa já se privatizava, o que fazia com que o Estado empregasse directamente 45% da população activa.

Pelo seu lado, o doutor Vasco Pulido Valente, num  artigo entitulado A Grécia ? («Público». 26-06-2015), aconselhava:

Se Bruxelas quisesse fazer alguma coisa por aquela triste terra, em vez de exibir os seus sentimentos democráticos, devia ajudar a construir um Estado capaz de reger e ordenar o caos reinante — uma espécie de colonização sem o nome e com dinheiro.

O sr. Schäuble teria gostado de os ler, se soubesse português, pois estaria habilitado a dizer-lhes:

Não, meus caros, não há razão para os vossos receios. A abertura da economia grega continua. As taxas de juro da dívida pública alemã a dez anos arrancaram, no ano de 2010, acima dos 3,3% e agora estão em 0,7%, ainda que já tenham chegado a mínimos históricos de 0,049%. À Grécia aconteceu-lhe exactamente o contrário: enquanto a taxa de juro da sua dívida a dez anos andava à volta dos 5,7% no início de 2010, agora move-se acima de 9%. E a poupança no custo de financiamento das nossas empresas não foi o único ganho para a Alemanha com a crise grega. O meu país aproveitou o terceiro resgate para impor aos gregos a necessidade de venderem  os seus activos mais valiosos para o pagarem. E tratámos de arranjar uma maneira para os obrigar mesmo a fazê-lo, em vez de arrastarem os pés. A privatização das empresas públicas gregas (portos, marinas, aeroportos, refinarias de petróleo, OTE [a equivalente à vossa ex-Portugal Telecom], ELTA [o equivalente aos vossos CTT antes de Passos Coelho e Portas os terem privatizado], rede de caminhos de ferro, rede eléctrica, rede de distribuição de água, rede de distribuição de gás, EAV [indústria aeronáutica], ELVO [indústria automóvel],  estradas portajadas, transportes públicos de Atenas [metropolitano e autocarros], Centro Olímpico de Atenas, etc.) está agora sob a supervisão de um novo organismo criado por nós, “Mecanismo de Estabilidade Europeia”, a que chamámos Privatization Fund [Fundo de Privatização] ou simplesmente The Fund, sobre o qual o governo grego não tem qualquer poder de decisão. O valor estimado dos activos deste fundo é de 70 mil milhões de euros. Mas, claro, o seu valor real é muito maior, porque a estimativa é feita tendo em conta a grande depreciação que estes bens públicos sofrerem com a nossa intervenção. Tudo o que valer a pena vai ser privatizado, e, sempre que possível, leiloado. Só deixámos de fora os monumentos nacionais, as estações arqueológicas, os espaços públicos de recreio (como praias e parques) e as instalações militares e policiais *. O dinheiro apurado pelas privatizações e pelas concessões de gestão será utilizado pelo governo grego para nos pagar os empréstimos que lhe fizemos. E esperamos ser nós, alemães, os principais beneficiários dos leilões, porque somos nós (com os chineses) quem tem mais dinheiro e somos nós, portanto, a ditar o preço de venda. Por exemplo, um terço do porto do Pireu já está há vários anos nas mãos de uma empresa estatal chinesa, a China Cosco, mas, em Agosto de 2015, a empresa alemã Fraport ficou com a gestão dos 17 aeroportos regionais helénicos. Assim, ganhamos nos dois tabuleiros. Emprestamos à Grécia o dinheiro que ela precisa para nos pagar as dívidas que os seus governos contraíram para financiar a fundo perdido a sua oligarquia doméstica (como vocês fizeram com os vossos BES, BPN, BPP, BANIF, CGD e com as vossas Parcerias Público-Privadas) e o governo actual, tal como os anteriores, paga-nos o que nos deve vendendo-nos e alugando-nos por tuta-e-meia os activos mais valiosos do seu povo. E de caminho desacreditamos o governo actual que proclamava que nos faria frente com unhas e dentes. Em resumo, a colonização (sem o nome) dessa triste terra está a ser feita e com dinheiro, muito dinheiro, a fluir da Grécia para a Alemanha.

Em suma, o doutor Schäuble tem todas as razões para se sentir orgulhoso. Conseguiu, apenas com um livro de cheques, fazer à Grécia o que Hitler não conseguiu com um exército.

Há, no entanto, uma pergunta com interesse político que se pode (e se deve) fazer a este propósito. O partido de Schäuble tem por ideário a doutrina social e económica da Igreja Católica. Por isso se auto-apelida de democrata-cristão. A pergunta é: a actuação de Schäuble relativamente à Grécia está em conformidade com os preceitos dessa doutrina? Ou, posta de outra maneira: a actuação de Schäuble terá a aprovação do papa Francisco, o representante máximo e o intérprete mais abalizado dessa doutrina? Há boas razões para crer que a resposta seja negativa.

A mim, que não tenho crenças religiosas, mas que respeito quem as tem e que (também por isso) li a Bíblia, parece-me que a conduta de Schäuble é um exemplo acabado de conduta farisaica. Para quem nunca leu a Bíblia, convém informar que os fariseus eram um grupo de judeus ultraconservadores que acusavam Cristo de apostasia, de violar as leis de Deus e as tradições dos antepassados. O Novo Testamento narra muitos episódios da perseguição que moveram a Cristo e que levou à sua crucificação. Os seus encontros com os discípulos de Cristo nunca eram pacíficos. Eis um exemplo:

Encontrando-se Jesus à mesa na Sua casa, numerosos publicanos e pecadores vieram e sentaram-se com Ele e Seus discípulos. Os fariseus, vendo isto, diziam aos discípulos: «Como é que o vosso Mestre come com os publicanos e os pecadores?» Jesus ouviu-os e respondeu-lhes: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Ide aprender o que significa: ‘Prefiro a misericórdia ao sacrifício’. Porque não vim chamar os justos, mas os pecadores  (Mateus 9: 11‒13. Bíblia Sagrada. Versão portuguesa preparada a partir dos textos originais pelos Rev.os Padres Capuchinhos com o imprimatur do Cardeal-Patriarca. Verbo. 1982). 

Cristo acusou-os com palavras severas de serem hipócritas e de viverem uma religiosidade de fachada.

Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque sois semelhantes aos sepulcros caiados, formosos por fora, mas, por dentro, cheios de ossos de mortos  e de toda a espécie de imundície. Assim também vós, por fora, pareceis justos aos homens, mas, por dentro, estais cheios de hipocrisia e de iniquidade (Mateus 23: 27-28, o.cit.)

A Bíblia cristã, cujos ensinamentos Schäuble diz professar, relata também numerosas parábolas de Cristo, entre as quais a seguinte:

O  reino dos céus é semelhante a uma rede que, lançada ao mar,  apanha toda a espécie de peixes. Logo que ela se enche, os pescadores puxam-na para a praia, sentam-se e escolhem os bons para as canastras e os ruins deitam-nos fora. Assim será no fim do mundo. Saiarão os anjos e separarão os maus do meio dos justos e lançá-los-ão na fornalha ardente: Ali haverá choro e ranger de dentes  (Mateus 13:47‒50, o.cit.).

A esta luz, presumo que Schäuble terá razões de sobra para se apoquentar quanto a saber a que espécie de peixe pertence.

                                      Junho de 2015. A Alemanha volta a subjugar a Grécia, desta vez com um livro de cheques

Seja como for, as preocupações mundanas do sr. Schäuble são, agora, com Portugal, onde ele vê um perigo semelhante ao da Grécia, embora, como toda a gente sabe, o governo PS e o seu primeiro-ministro nunca tenham tido sequer as veleidades do Syriza e de Tsipras e se declarem cumpridores das metas do tratado orçamental que ele inventou.
26 de Outubro de 2016. O ministro das finanças alemão declara: “alertei o nosso colega português”, “disse-lhe que se for por esse caminho [não fazer o que ficou combinado com o governo do PSD-CDS] iria assumir um grande risco, e eu não assumiria tal risco”.

Porém, a situação, hoje, já não é a mesma de há um ano. Muita coisa mudou. Por exemplo, (1) o sr. Draghi e a actual Comissão Europeia têm, cada qual considerado de per si, agendas próprias que nem sempre coincidem uma com a outra, nem com a de Schäuble; (2) Durão Barroso, outro proeminente membro do PPE, saíu da presidência da Comissão Europeia para ir direitinho trabalhar, agora às claras, para a Goldman Sachs, o seu verdadeiro patrão, provocando a revolta dos próprios funcionários da UE que fizeram uma petição com mais de 150 mil assinaturas pedindo que lhe fosse, pelo menos, suspensa a pensão de aposentação; (3) houve o terramoto político do  Brexit, e, agora, (4) o sr. Hollande não resistiu a contar a dois jornalistas que o entrevistaram longamente, durante meses, com vista a escreverem um livro laudatório dos seus grandes dotes de estadista, que a França aldrabou sempre os seus orçamentos, que nunca cumpriu o chamado Tratado Orçamental, tudo com o conhecimento e o consentimento de Barroso e de Schäuble, entre outros. Milhões de europeus podem hoje constatar como é o verdadeiro funcionamento da UE, a quem beneficia e a quem prejudica.

Por estas e outras razões, a margem de manobra de Schäuble diminuiu muito em apenas um ano (o que é bom para nós, portugueses). Mas o homem é perigoso e obstinado. Não podendo agir directamente contra nós, como o fez contra a Grécia (Centeno não é Varoufakis, o PS não é, nem nunca foi, o que foi o Syriza), dirige-se aos famosos mercados financeiros para que nos apertem o garrote. Sucede, porém, que os mercados financeiros são agregados instáveis de milhares de grandes especuladores que perseguem objectivos de lucro que muitas vezes se entrechocam. Mais, os mercados financeiros acreditam numa versão particular do Vodu, que, para eles, tem a forma de algoritmos matemáticos, elaborados por economistas semi-letrados, que lhes sussurram ao ouvido quais são os activos que devem comprar e os que devem vender, onde e quando. Não é certo, pois, que reajam como carneiros bem alinhados à voz de comando de Schäuble. Uma prova disso foi a agência de notação financeira canadiana DBRS (que se diz à boca cheia agir em concerto com o sr. Draghi) que manteve a cotação de Portugal acima do lixo. Veremos, pois, quais são os próximos lances do sr. Schäuble, se os mercados financeiros não se assustarem com os seus vaticínios.

Costuma dizer-se que a frase «Que possas viver tempos interessantes!» é uma maldição chinesa, em que “interessantes” significaria “atribulados” ou “conturbados”. Mas a frase não é chinesa (ninguém sabe a sua origem exacta), como explicou o historiador Pacheco Pereira numa crónica sua há uns 5 anos, onde nos lembrava que não há razão para lamentarmos o que nunca tivemos. A normalidade (seja lá o que isso for) não existia antes da grande crise financeira e económica que estalou em 2008, não existe e não existirá no horizonte temporal que podemos vislumbrar. Todo o século 20 foi atribulado (nunca morreu tanta gente em guerras, nem nunca emigrou tanta gente como no século passado). Em Portugal, tivemos uma ditadura que durou 48 anos, uma guerra em África que durou 13 anos, e uma revolução. E agora, além da desintegração em curso da UE e dos efeitos e choques múltiplos da chamada globalização, temos as consequências previsíveis (e imprevisíveis) das alterações climáticas.

A única conclusão que se pode tirar é que vivemos mesmo tempos conturbados. Só se tornam interessantes se estivermos alerta para não sermos apanhados desprevenidos com as suas mudanças repentinas e se soubermos compreender as suas fontes de conturbação para podermos agir sobre elas do modo que considerarmos mais apropriado em cada momento. Caso contrário, somos como palhinhas arrastadas na torrente.

José Manuel Catarino Soares


Notas

* Não se julgue que há qualquer exagero neste relato. É o que está escrito preto no branco no memorando de entendimento entre o “Mecanismo de Estabilidade Europeia”  e o governo grego (MEMORANDUM OF UNDERSTANDING BETWEEN THE EUROPEAN COMMISSION ACTING ON BEHALF OF THE EUROPEAN STABILITY MECHANISM AND THE HELLENIC REPUBLIC AND THE BANK OF GREECE, 8 September 2015). No seu ponto 4.4 (Privatisation) pode ler-se:

Privatisation can help to make the economy more efficient and to reduce public debt. While the privatisation process has come to a standstill since the beginning of the year, the Government has now committed to proceed with an ambitious privatisation program and to explore all possibilities to reduce the financing envelope, through an alternative fiscal path or higher privatisation proceeds. To preserve the on-going privatisation process  and maintain investor interest in key tenders, the Hellenic Republic commits to proceed with the on-going privatisation programme. (…) In line with the statement of the Euro Summit of 12 July 2015, a new independent fund (the “Fund”) will be established and have in its possession valuable Greek assets. The overarching objective of the Fund is to manage valuable Greek assets; and to protect, create and ultimately maximize their value which it will monetize through privatisations and other means.

Os anexos 1 e 2 deste memorando, assim como o documento intitulado Greece: technical memorandum of understanding (16 de Junho de 2016), pormenorizam todos os activos cuja privatização já estava em curso à data da assinatura do primeiro memorando (isto é, aqueles que vinham do governo anterior) e os que estão previstos no curto-médio prazo após a sua assinatura. Num dos pontos (How public assets ought to be utilised) de um projecto de memorando de Maio de 2015, pode ler-se ainda:

Bundling of assets that can be potentially envisaged as non-public into a central holding company to be separated from the government administration and to be managed as a private enterprise entity with the goal of maximising the value of its underlying assets. The Greek state will be the sole shareholder, but will not guarantee its liabilities or debt.
• Assets will include: ports, airports, land, real estate, energy assets, utilities assets e.g. water, gas, electricity grid, traffic infrastructure, licenses, offshore and onshore mining rights (gas, oil, and metals etc.), state owned companies and all other assets which can potentially be put to private management. Exceptions from this list would be only those assets relevant for the country’s security, public amenities, and its cultural heritage sites.
• The total value of these assets is currently estimated to be in excess of 70 billion euros – taking into account the depressed nature of all asset prices in Greece due to the ongoing crisis/negotiation.

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ANEXO:Notícia publicada pelo Diário de Notícias

 OE 2017
Schäuble. Portugal estava a ir bem até vir o Governo PS
           Diário de Notícias. Luís Reis Ribeiro 26.10.2016 / 18:08
        Wolfgang Schäuble, ministro das Finanças da Alemanha.Fotografia: EPA/UWE ANSPACH

Ministro das Finanças alemão repete ataque ao governo. Já o tinha feito, em fevereiro, quando a crise do Deutsche Bank se agudizou.

Portugal foi muito bem-sucedido até ao novo Governo. Depois das eleições (…), [o novo Governo] declarou que não iria respeitar aquilo que tinha sido acordado pelo anterior”, declarou o ministro da Finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, nesta quarta-feira, durante uma visita à Roménia. De acordo com o jornal online Eco, que cita a Bloomberg, o ministro alemão (da CDU, partido da direita cristã conservadora alemã) volta a atacar Portugal e o atual governo de forma contundente.

Já o anda a fazer, aliás, há algum tempo. A 12 de fevereiro, a margem de uma reunião do Ecofin (ministros das Finanças da UE), no mesmo dia em que os graves problemas financeiros do Deutsche Bank começaram a deitar por fora, fazendo afundar de forma aguda as ações da banca europeia. Nessa altura, desviou as atenções do caso Deutsche Bank, e disse que estava era preocupado com Portugal e que o país tinha “de fazer tudo para contrariar a incerteza nos mercados financeiros”. O governo do PS apoiado pelos partidos à esquerda (CDU e BE) apresentara há poucos dias (5 de fevereiro) o seu primeiro orçamento (OE2016). 

Mais tarde, no final de junho, o ministro alemão regressaria em força. Na altura disse que Portugal iria precisar de um novo programa de resgate, mas mais tarde acabou por corrigir ou suavizar as declarações iniciais, dizendo que se o país não cumprisse as regras é que necessitaria de um novo programa de ajustamento financiado pela Europa. 

Hoje, quarta-feira, 26 de outubro (e outra vez poucos dias após a apresentação no novo OE, neste caso o de 2017), Schäuble volta a atacar. Em declarações a vários jornalistas internacionais à margem de um evento em Bucareste, disse que já transmitiu a Mário Centeno, o ministro português, as suas preocupações relativamente à falta de garantias políticas e financeiras por parte do governo de António Costa no prosseguimento das políticas definidas pelo anterior governo de Pedro Passos Coelho em coordenação com a troika.

Ainda segundo o Eco.pt, o ministro alemão declarou: “alertei o nosso colega português”, “disse-lhe que se for por esse caminho [não fazer o que ficou combinado com o governo do PSD-CDS] iria assumir um grande risco, e eu não assumiria tal risco”. 

As declarações de Schäuble surgem um dia depois de a Comissão Europeia ter levantado dúvidas sobre o esboço do OE2017, mas no mesmo dia em que o comissário europeu, Pierre Moscovici (do PS francês), suavizou as críticas da véspera (que ele próprio abaixo-assinou), referindo que o OE parece estar conforme as regras europeias. “Parece estar dentro dos critérios que nós procuramos através das regras”, disse numa conferência de imprensa na capital belga. O governo tem até quinta-feira 27 de outubro para mandar mais informação à Comissão de forma a desfazer as dúvidas que ainda possam subsistir. Em meados de novembro, Bruxelas irá revelar a avaliação que faz ao novo OE (de Portugal e dos restantes países do euro) e passar um caderno de encargos (novas medidas) para corrigir os problemas que venha a detetar. Schäuble e Centeno voltam a encontrar-se a 7 de novembro (Eurogrupo) e 8 de novembro (Ecofin), em Bruxelas.

Esta semana Portugal foi visado duas vezes por autoridades alemãs. Depois de Schäuble foi a vez do diretor do fundo de resgate da União Europeia, o alemão Klaus Regling, a dizer que “o único país com que estou preocupado é Portugal”.

25 junho, 2016

Tema 3

Justiça Poética


Numa nota de um livro que estou a escrever, escrevi o seguinte:

Afirmamos que o inglês se converteu em língua franca, mas não neutral, da alta finança, dos negócios, da diplomacia, da tecnologia e até, infelizmente, da ciência à escala mundial, pelas seguintes razões. O latim alcançou uma posição semelhante nos séculos XVI e XVII, mas muito mais limitada, visto que se confinava à diplomacia e às disciplinas cognoscitivas (ciência inclusive) no chamado mundo ocidental e só se manteve nessa posição até aos inícios do século XIX. Era, porém, uma língua neutral, tanto do ponto de vista psicológico como do ponto de vista sociológico, visto que não conferia privilégios especiais a quem a tivesse como língua materna. Nessa altura, o latim já tinha cessado há muito de ser a língua materna de quem quer que fosse. Era, como se costuma dizer, uma língua «morta». Além disso, o latim alcandorou-se a essa posição peculiar de língua franca internacional precisamente na altura em que as línguas vernáculas da Europa conquistavam o direito de ombrearem com ela em todos os domínios. Em Portugal, esse processo inicia-se muito cedo, no fim do século 13, com o rei D. Dinis, e está já bem consolidado no fim do século XVI. O uso do latim como língua franca internacional implicava, portanto, um esforço comum de aprendizagem a todos os seus utentes. Não é o caso do inglês, que é a língua materna de centenas de milhões de pessoas, que assim se vêm dispensadas de aprender outras línguas se quiserem fazer-se entender por pessoas e povos com outros idiomas. Embora imensurável nos seus múltiplos efeitos, é difícil imaginar maior privilégio de casta do que este nos dias que correm.

Agora, o economista António Bagão Félix, no seu comentário sobre o Brexit, chama a atenção para um pormenor (que é, de facto, um ‘pormaior’) ligado a este acontecimento:

Uma curiosidade: a língua inglesa, língua franca de hoje, vai deixar de estar representada na UE (haverá a relativa excepção da Irlanda cujo verdadeiro idioma é o gaélico)! E esta hein? (28 menos 1 (R.U.) não é o mesmo que 27. Público. 24.06.2016)

Eu vejo nisto um caso auspicioso de justiça poética. Os britânicos (e muito em particular os ingleses) recuperaram a soberania do seu parlamento em Westminster. Em contrapartida, perderam uma parte considerável do privilégio de casta que lhes conferia o “direito” de não terem de aprender línguas estrangeiras para se fazerem entender quando saiem da sua ilha e atravessam o canal da Mancha, continuando a comportar-se quase como se estivessem em casa.