Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

21 abril, 2020

Esta é a 2ª entrada do Diário Intermitente da pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 (ver a sua apresentação nos arquivos deste blogue, Março de 2020, no fundo da coluna à direita deste texto). 

Gostaria de conseguir escrever este diário fazendo jus ao lema que encerra a resposta à seguinte adivinha (que me foi contada pelo meu amigo João Viegas Fernandes): «Qual é a semelhança entre um pára-quedas e a mente humana? É o facto de tanto um como a outra só nos serem úteis, salvando-nos a vida, se estiverem bem abertos».

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UM BALANÇO PROVISÓRIO E MUITO PARCELAR DA PANDEMIA DA COVID-19 EM PORTUGAL

José Manuel Catarino Soares

Em 19 de Abril 2010 fez um mês que entrou em vigor o estado de emergência em Portugal. Construí duas tabelas comparativas que permitem estabelecer um balanço, ainda que provisório e muito parcelar, da evolução da pandemia do novo coronavírus em Portugal.
                                                            Tabela 1

Como se pode constatar pela tabela 1, a nossa situação, em Portugal, não é tão má como a de outros países bem mais ricos que o nosso. Estamos melhor do que a Espanha, a França, a Itália, o Reino Unido e (fora da Europa) os EUA, em todos os parâmetros importantes (as 3 últimas colunas da 1ª tabela). Comparamos bem, inclusivamente, com a Alemanha. Estamos um pouco atrás dela em número de mortes por 1 milhão de habitantes e em número de casos confirmados de infecção por 1 milhão de habitantes. E estamos à frente dela (e de todos os outros países que seleccionei) em número de testes de diagnóstico por 1 milhão de habitantes.

A comparação mais interessante é com a Chéquia. A Chéquia (ou República Checa) tem uma população de 10,6 milhões de habitantes, um pouco superior à de Portugal (10,2 milhões), e o tamanho do seu território (78.866 Km2) é um pouco inferior ao de Portugal continental (89.015 Km2). É pois um país muito semelhante ao nosso nestes dois aspectos estruturais, e noutros ainda da mesma índole que não vem agora ao caso mencionar. Mas as semelhanças noutros aspectos, ainda que de outra índole, não se ficam por aqui.
    Tabela 2

A Chéquia registou o seu primeiro caso confirmado de Covid-19 um dia antes (1 de Março) do primeiro caso confirmado em Portugal (2 de Março). Decretou o estado de calamidade ou de emergência 1 dia antes (11 de Março) de  Portugal o ter feito (12 e 18 de Março), com medidas semelhantes em tudo às que vigoram em Portugal. Salvo uma, que o governo checo tomou, mas que o governo português não tomou até à data: o uso OBRIGATÓRIO de máscara por toda a população em todos os espaços públicos: supermercados, lojas, autocarros, comboios, jardins, etc. E isso parece ter feito toda (ou quase toda) a diferença entre os números da tabela 1 — quer os números  brutos, quer os rácios — e que valem até ao dia 19 de Abril.

Casos confirmados de infecção por Covid-19: Portugal (20.026), Chéquia (6.657). Mortes por Covid-19: Portugal (714), Chéquia (181). Número de casos confirmados de infecção por 1 milhão de habitantes: Portugal (1.982), Chéquia (622). Número de mortes de Covid-19 por 1 milhão de habitantes: Portugal (70), Chéquia (17).


Chéquia, Praga, 16 de Abril de 2020.  Pessoas com máscara de protecção individual fazem bicha diante de uma geladaria.  Foto de Michal Cizek, AFP, via Getty Images

A Chéquia bate-nos em tudo, salvo no número de testes de diagnóstico por 1 milhão de habitantes, em que levamos a melhor (última coluna da tabela 1). Julgo, por isso mesmo, que a razão da superioridade dos invejáveis êxitos da Chéquia relativamente a Portugal se deve EXCLUSIVAMENTE ao uso generalizado de máscara de protecção individual pela população em todos os espaços públicos, sobretudo os fechados e muito povoados —  transportes públicos, supermercados, lojas, etc. 

Vale a pena notar que o uso generalizado de máscaras na Chéquia começou por ser um movimento de activistas # Máscaras Para Todos. Porém, bem depressa se transformou num movimento de massas. Em apenas três dias, quase 100% da população checa já usava máscara de protecção individual, levando o governo a decretar, ex post facto,  o seu uso obrigatório, para não correr atrás do prejuízo que a sua omissão traria para a sua imagem. Moral da história: não precisamos de esperar por um decreto do governo para tomarmos a iniciativa e nos protegermos à maneira checa. 

Claro, isso não significa deixar de cumprir as outras medidas de protecção individual em vigor, em particular a distância proxémica de 2 metros, a higiene frequente das mãos com água e sabão e a etiqueta respiratória. Significa acrescentar-lhes mais uma, tão ou mais importante do que as outras. Também não significa açambarcarmos as máscaras cirúrgicas e menos ainda as máscaras filtrantes FFP1, FPP2/N95 e FFP3 (também conhecidas por respiradores) que tanta falta fazem aos profissionais de saúde. Tendo em conta a escassez ACTUALMENTE existente — e enquanto ela durar, e não durará muito tempo * — de máscaras cirúrgicas e máscaras ditas sociais, podemos fazer nós próprios máscaras sociais caseiras de protecção individual. Foi o que os checos fizeram, como é explicado neste vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=HhNo_IOPOtU 


Os checos deram largas à sua criatividade no fabrico de máscaras caseiras de protecção individual. Há máscaras para todos os gostos.

P.S. Um amigo meu fez uma objecção ao facto que aqui apresentei para explicar a superioridade dos resultados da Chéquia relativamente aos de Portugal, na luta contra a pandemia de Covid-19. O uso generalizado de máscaras de protecção individual pela população checa — afirmou — não é a única (nem talvez sequer a principal) razão para essa superioridade. Haveria que entrar em linha de conta, também, com o sistema nacional de saúde checo (incluindo o ensino da medicina) que, no seu entender, é melhor (na cobertura e na qualidade do atendimento hospitalar) e mais robusto do que português. Isso seria um resquício — acrescentou — dos tempos do regime socialista que vigorava nesse país. Esse resquício teria conseguido sobreviver à reinstauração do capitalismo que se seguiu à chamada “revolução de veludo” na ex-Checoslováquia.

Não estou suficientemente informado para avaliar a veracidade desta genealogia do sistema nacional de saúde checo. Mas discordo do rótulo “socialismo” (ou “socialismo real”) aplicado quer à ex-URSS, quer aos países do leste europeu que eram seus satélites nos tempos do ex-Pacto de Varsóvia. Nenhum desses países foi alguma vez socialista. Chamo ao sistema económico que neles vigorava criptocapitalismo de Estado e qualifico o sistema político que neles vigorava de oligarquia totalitária. A esta caracterização genérica, cabe acrescentar esta importante particularidade do tipo de oligarquia totalitária que vigorava nesses países (que a distinguia tipologicamente de outras oligarquias totalitárias e que justifica, aliás, o prefixo “cripto-” da caracterização do seu sistema económico): a de ter adoptado uma camuflagem socialista, destinada a legitimar o seu poder irrestrito aos olhos dos povos que governava. Estes são, porém, assuntos que não podem ser aqui aprofundados como merecem, mas que discuti noutro lugar (cf. o artigo Rumo à Democracia Integral, em especial a sua nota 23, publicado no blogue Sítio com Vista [https://sitewithaview.ovh/]).

Seja como for, isso em nada afecta a afirmação segundo a qual o sistema nacional saúde checo é superior ao português. Não tenho os meios de endossar ou rebater esta afirmação, por ignorância absoluta das peculiaridades do sistema nacional de saúde checo. Mesmo assim, julgo que a objecção desse meu amigo não colhe.

Ainda que déssemos de barato, apenas para argumentar, que o sistema nacional de saúde checo é melhor do que o português, essa superioridade só poderia explicar uma hipotética superioridade dos seus resultados em quatro parâmetros: (i) o número de testes de diagnóstico da doença por 1 milhão de habitantes, (ii) o número de pessoas recuperadas da doença por 1 milhão de habitantes, (iii) o número de dias de internamento hospitalar das pessoas recuperadas antes de terem alta (sendo a recuperação atestada por dois testes negativos com um intervalo de 24 horas) por 1 milhão de habitantes, (iv) o número de dias passados em unidades de cuidados intensivos das pessoas recuperadas (antes de passarem à enfermaria) por 1 milhão de pessoas.

Infelizmente (porque seria muito interessante conhecê-los) não sei onde possam ser encontrados tais resultados (se é que existem), salvo no que respeita ao parâmetro (i). Ora, relativamente a (i), como se vê na tabela 1, o sistema nacional de saúde checo não apresenta melhores resultados do que o português, bem pelo contrário.

Em suma, o número de pessoas infectadas com o vírus causador da doença Covid-19 — quer sejam pré-sintomáticas, assintomáticas ou sintomáticas — não depende da qualidade de atendimento hospitalar do sistema nacional de saúde de um país. Depende exclusivamente (ou quase exclusivamente) da qualidade das medidas de saúde pública adoptadas pela população e pelas autoridades sanitárias para proteger a população da propagação desse vírus. Mantenho, por conseguinte, a tese de que a superioridade dos resultados alcançados até à data pela Chéquia relativamente a Portugal, nesta matéria, se deve exclusivamente ao uso generalizado de máscaras de protecção individual pela população em todos os espaços públicos, visto que as demais medidas tomadas nos dois países são idênticas e foram tomadas praticamente na mesma data e numa fase de propagação do vírus  muito semelhante.
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«Mais de 200 empresas portuguesas estão prontas para fabricar máscaras sociais, já recomendadas pela DGS – Direção-Geral da Saúde   para utilizar em espaços fechados. O número foi anunciado esta terça-feira pelo secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales, na conferência de imprensa diária sobre o número de contagiados pelo novo coronavírus. O Infarmed já publicou as normas que as empresas devem respeitar para a produção das máscaras. “Estas empresas estão disponíveis para colocar no mercado máscaras em tecido de uso único, ou mesmo reutilizáveis, que não conseguindo cumprir com os requisitos de segurança, saúde e desempenho estabelecidos nas legislações aplicáveis aos dispositivos médicos e aos equipamentos de proteção individual, poderão conformar-se com os requisitos a serem definidos para uma utilização comunitária”, informa esta terça-feira o Infarmed em comunicação feita na página oficial». Dinheiro Vivo, 14 de Abril de  2020. 

* «A Covid-19 está a alterar os modelos de negócio de várias empresas. Os CTT continuam a distribuir cartas e encomendas, mas a empresa de correios liderada por João Bento vai também começar a comercializar máscaras e gel desinfetante nas lojas por todo o país. “Tendo em conta o atual contexto de pandemia por Covid-19 em que vivemos, e tendo em conta a preocupação com a segurança e bem-estar dos clientes, os CTT estão a comercializar estes produtos na sua rede de retalho, procurando que os cidadãos se desloquem o menos possível na compra de bens essenciais”, informa a empresa em comunicado. As máscaras cirúrgicas com “certificação ASTM nível dois, de acordo com a diretiva da União Europeia”, estarão à venda por 10 euros, o pack de seis unidades. Já o gel desinfetante com 70% de álcool terá o preço unitário de cinco euros, para uma embalagem de 100 mililitros. A iniciativa surge depois de a Direção-Geral da da Saúde ter recomendado o uso de máscaras de proteção a quem estiver em locais públicos fechados. Contudo, numa altura em que este produto é escasso para os profissionais de saúde na linha da frente do combate à pandemia, a recomendação da DGS aplica-se apenas às “máscaras comunitárias” ou “sociais”». eco.sapo.pt, 21 de Abril de 2020.
Fábrica de máscaras cirúrgicas em Nantong, província de Jiangsu, China. Foto de China Daily, via Reuters. 

02 abril, 2020


Esta é a 1ª entrada do Diário Intermitente da pandemia do novo coronavírus SARS-CoV-2 (ver a sua apresentação nos arquivos deste blogue, Março de 2020, no fundo da coluna à direita deste texto). 

Gostaria de conseguir escrever este diário fazendo jus ao lema que encerra a resposta à seguinte adivinha (que me foi contada pelo meu amigo João Viegas Fernandes): «Qual é a semelhança entre um pára-quedas e a mente humana? É o facto de tanto um como a outra só nos serem úteis, salvando-nos a vida, se estiverem bem abertos».

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O novo coronavírus e o uso generalizado de máscaras de protecção individual e viseiras pela população

José Manuel Catarino Soares

Sempre me pareceu que havia uma falha lógica, um elo fraco, no raciocínio da Organização Mundial de Saúde (OMS), do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (CEPCD) e da nossa Direcção Geral de Saúde (DGS) no que diz respeito ao uso de máscaras de protecção individual contra o novo coronavírus. Como se sabe, estas três prestigiadas instituições desencorajam o uso de máscaras de protecção individual pelo grosso da população, salvo para alguns grupos de risco — pessoas com doenças respiratórias, pessoas imunossuprimidas, pessoas infectadas com o vírus e sintomáticas, profissionais de saúde e cuidadores de pessoas infectadas.

Uma falha lógica

A falha a que me refiro prende-se com as partículas mais pequenas do novo coronavírus que, pela sua pequenez (inferior a 10 micrómetros) se disseminam sob a forma de aerossol, ao contrário do que sucede com as partículas maiores (de tamanho superior a 10 micrómetros) transportadas pelas pequenas gotículas – saliva e muco – expelidas pela fala, tosse ou espirros de uma pessoa infectada. As primeiras partículas referidas ficam em suspensão no ar, ao passo que as segundas, mais pesadas, caiem no chão ou em objectos (em particular superfícies) próximos da pessoa que as expeliu, sob a acção da gravidade. 

As partículas mais pequenas foram sempre desvalorizadas, desde o início da actual pandemia, pela OMS, pelo CEPCD e pela DGS (assim como pela maioria das suas congéneres nacionais) com o argumento de que (i) não há provas científicas suficientes que essa seja uma forma de contágio frequente, (ii) razão pela qual o uso generalizado de máscaras de protecção individual teria com efeito incutir na população um falso sentimento de segurança, contribuindo para as pessoas descurarem a higiene das mãos, o distanciamento proxémico (“distanciamento social” na terminologia da OMS e da DGS) e o isolamento social, as únicas medidas de autoprotecção preventiva que as pessoas podem tomar contra o vírus que são realmente eficazes. Além disso, acrescentam, (iii) a maior parte das pessoas não sabe fazer um uso correcto de uma máscara de protecção individual (mexendo nela com as mãos o tempo todo, não a descartando e substituindo no fim de uma actividade, como é obrigatório no caso das máscaras cirúrgicas, ou simplesmente colocando-a mal, tapando a boca mas não o nariz, por exemplo), o que pode comprometer o efeito protector e até aumentar o risco de infecção, reforçando assim o argumento (ii). 

Esta ilustração, criada pelo Centro de Controlo e Prevenção das Doenças (CDC) dos EUA, revela a morfologia ultra-estrutural exibida pelo coronavírus. Quando observado ao microscópio electrónico, os picos que adornam a superfície externa do vírus conferem-lhe a aparência de uma coroa (corona, em Latim) em torno do virião. O novo coronavírus, denominado Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS-CoV-2 na sigla inglesa), foi identificado como a causa do surto de doença respiratória detectado pela primeira vez em Wuhan, na China, em 2019. A doença provocada por este vírus foi denominada Doença por Coronavírus 2019 (Covid-19, para abreviar, na sigla inglesa). Foto de Alissa Eckert, MS; Dan Higgins, MAMS/CDC (Ilustração).

O argumento (iii) é fraquíssimo. O uso correcto de uma máscara de protecção individual nada tem de particularmente complicado (https://www.youtube.com/watch?v=qilLP_UnaHge) e uma boa campanha de esclarecimento público, semelhante à que foi feita relativamente à distância proxémica e à higiene das mãos, garantiria que todos aprendessem como fazê-lo. O único argumento válido que poderia substituir (iii) é o de que a procura de máscaras de protecção individual pelo grosso da população criaria, face à escassez destes equipamentos em Portugal e noutros países europeus, faltas graves no abastecimento dos mesmos aos grupos de risco, que poderiam ficar sem esta importante protecção. Mas este é um argumento económico, e não sanitário. Acresce que é um argumento económico que não colhe em vários países asiáticos (como, por exemplo, a China e a Coreia do Sul) e europeus (como, por exemplo, a Áustria e a República Checa) onde o uso generalizado de máscaras cirúrgicas em locais públicos é não apenas recomendado pelas autoridades de Saúde, mas obrigatório. 


O ponto (i) é, porém, aquele onde reside, a meu ver, a falha lógica da argumentação da DGS, do CEPCD e da OMS. A ausência de provas científicas da existência de X (neste caso, X= grande perigosidade e frequência da disseminação do vírus da Covid-19 por aerossol) não é prova da ausência de X. Em termos mais simples: pela simples razão de procurarmos alguma coisa (X) e não a encontrarmos, não podemos concluir que essa coisa (X) não existe.

Como não tenho conhecimentos científicos de biologia e de física (mecânica de fluidos e aerodinâmica) suficientes para dirimir esta questão da necessidade (ou não) do uso generalizado de máscaras de protecção individual como medida de autoprotecção contra a infecção pelo vírus SARS-CoV-2, e como também não tenho os meios de a investigar autonomamente, coloquei-a de lado, em “banho Maria”, à espera que surgissem mais dados que a esclarecesse e me esclarecessem.

Ora, é exactamente isso que acaba de acontecer pela mão de Manuel Gameiro da Silva, professor catedrático do Departamento de Engenharia Mecânica da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.

A opinião de um especialista em climatização

Em declarações à agência Lusa, feitas em 31 de Março de 2020, Manuel Gameiro da Silva afirmou que a qualidade do ar interior é crítica e devem ser tidos alguns cuidados enquanto se mantiver a crise pandémica. «Os espaços interiores com ocupação humana devem ser fortemente ventilados, exclusivamente com ar novo» — disse — para diminuir as concentrações do novo coronavírus, caso haja contaminação por partículas em suspensão.

No seu entender, «não devem ser realizadas reuniões presenciais» e, «quando se planeia uma saída para locais frequentados por outras pessoas, deve-se levar máscara e, se possível, viseira».

«As máscaras normais [creio que o autor se refere às máscaras cirúrgicas e às próprias máscaras filtrantes de partículas] não são completamente eficazes na retenção das partículas de menor dimensão, pelo que o uso combinado com uma viseira aumenta substancialmente a eficácia de retenção», defende este especialista em climatização.

Protótipo de viseira criado por Bruno Horta. Foto: Jornal  de Leiria.

Estes alertas surgem após uma análise que este investigador decidiu realizar devido às dúvidas sobre «a importância que as autoridades de saúde, quer a nível nacional, quer a nível internacional, atribuem ao papel que desempenham os diferentes modos de transmissão na propagação das infecções virais e as consequências que daí podem advir».

O professor Manuel Gameiro da Silva considera que, «sem que haja uma evidência científica que o justifique, se tem menorizado o papel que pode ser desempenhado pela transmissão através do modo de partículas em suspensão».

Em consequência, tem-se «desaconselhado algumas das medidas de protecção que, provavelmente, estarão na base das taxas de propagação da epidemia mais modestas em alguns países asiáticos», como a China (incluindo Macau), Coreia do Sul, Singapura, Taiwan.

22 de Janeiro de 2020. Passageiros envergando máscaras de protecção individual na estação de caminho-de-ferro Hankou, em Wuhan, China.

Segundo este cientista, os diferentes modos de transmissão das doenças infecciosas estão associados a partículas de dimensões diferentes, não havendo dúvidas de que o novo coronavírus (SARS-CoV-2) se transmite maioritariamente através das partículas exaladas pelos doentes contaminados.

A disseminação do vírus por aerossol

Já «as partículas mais pequenas (menos de 10 mícron) são responsáveis pelo modo de transmissão por partículas em suspensão, podendo permanecer no ar por horas, ser transportadas a longas distâncias e inaladas», acrescenta.

Convém saber que o mícron (designação que foi oficialmente abandonada em 1968, mas que ainda é usada, especialmente entre os anglófonos) ou micrómetro (denominação actual) é uma unidade de comprimento do Sistema Internacional de Unidades equivalente à milésima parte do milímetro.

No que respeita ao efeito da temperatura e da humidade, Manuel Gameiro da Silva, que é também coordenador da Iniciativa Energia para Sustentabilidade da Universidade de Coimbra, explica que, «tipicamente, a persistência dos vírus é mais alta com temperaturas frias do que com temperaturas quentes e, como a humidade desestabiliza a camada protectora de gordura dos vírus do tipo coronavírus, a persistência do vírus é maior em ambientes secos».

Como a radiação solar «tem uma componente de radiação ultravioleta que prejudica a persistência dos vírus», nos ambientes interiores «sem luz natural directa, há condições mais favoráveis para a persistência dos vírus como partículas em suspensão», acrescenta.

Por tudo isto, Manuel Gameiro da Silva defende a «redefinição do conceito de distância de segurança entre pessoas e a necessidade de uso generalizado de equipamentos de protecção das vias aéreas superiores (máscaras e viseiras) sempre que se preveja que se vai estar num ambiente com ocupação múltipla». 

As propostas do professor M. Gameiro da Silva não obstam, bem entendido, a que se continue a cumprir rigorosamente as normas de distanciamento proxémico e de higiene das mãos em espaços de ocupação múltipla, como supermercados, transportes públicos, lares de idosos, fábricas, etc. Por outro lado, tem uma grande vantagem suplementar: a de impedir mais eficazmente que a parte da população que está infectada (ou que será infectada), mas que não tem consciência disso por estar assintomática ou pré-sintomática, contagie inadvertidamente a parte da população que não está infectada, especialmente a que pertence aos grupos de risco. 

Multi- e inter-disciplinaridade científica e tecnológica

Curiosamente, por coincidência ou não, a Directora Geral da Saúde, dra. Graça Freitas, na conferência diária do Ministério da Saúde de 1 de Abril (um dia depois das declarações do professor Manuel Gameiro da Silva) revelou alguma abertura para reconsiderar as normas vigentes da DGS sobre o uso generalizado de máscara de protecção individual.

Respondendo a uma pergunta de uma jornalista sobre esse assunto, Graça Freitas repetiu, uma vez mais, os argumentos (i), (ii), e (iii) supra-referidos. Mas acrescentou também algumas novidades, ao afirmar, em substância, que era uma questão controversa; que estávamos todos os dias a aprender coisas novas com um vírus novo e completamente desconhecido até há muito pouco tempo; que se sabia que o SARS-CoV-2 era um vírus que também se podia transmitir por aerossol (ou seja, por partículas em suspensão no ar) — dando como exemplo uma situação em que isso acontece sempre: a dos doentes com Covid-19 que são entubados e sujeitos a ventilação; o ar que expelem contém um aerossol do vírus. Concluiu dizendo que a questão estava em estudo e que poderia ser reavaliada pela DGS.  

Será reavaliada, é uma certeza. A luta, no plano sanitário,  contra a pandemia do novo coronavírus SARS-CoV2 é uma luta que exige a cooperação e a convergência de esforços de investigadores de muitas disciplinas científicas e tecnológicas que normalmente não falam directamente uns com os outros, mas que nesta situação extraordinária foram compelidos a fazê-lo. E o mais interessante é que o fizeram movidos pelos valores da solidariedade e entreajuda. (Compilei mais abaixo alguns exemplos desse vasto e diverso movimento). 

Esperemos apenas que essa reavaliação das normas vigentes sobre o  uso das máscaras de protecção individual na prevenção da Covid-19 seja feita mais cedo do que tarde, a bem da saúde pública.

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* «Bruno Horta, licenciado em Engenharia Informática pela Escola Superior de Tecnologia e Gestão, do Politécnico de Leiria, é o fundador do Movimento Maker Portugal, um grupo que junta pessoas de todos os quadrantes e latitudes, apaixonadas pela impressão 3D, e está à frente de uma iniciativa para manufacturar, em impressoras 3D, viseiras de protecção para quem está na linha da frente da luta contra o Covid-19. O jovem, que também esteve envolvido no esforço dos Politécnicos de Viseu e de Leiria, para criar protótipos de ventiladores, percebeu que «se nos protegermos todos, precisaremos de menos ventiladores» e colocou-se em campo, em busca de projectos open source – livres de custos e de direitos de autor, e passíveis de serem alterados – de viseiras de protecção, que possam ser utilizadas em conjunto com máscaras e toucas médicas. Para as criar, é preciso apenas uma folha grossa de acetato transparente, um elástico, um furador de papel e filamento de impressão para a impressora 3D, material de baixo custo (embora, infelizmente, muitas empresas estejam a aumentar o preço, devido à procura.) Ao fim de algum tempo, Bruno tinha nas mãos uma protecção que pode ser utilizada por profissionais de Saúde, forças de segurança, Protecção Civil e lares [de idosos] e, basicamente, por todos os que tiverem de lidar com a doença, na linha da frente» (Jornal de Leiria, 24-03-2020).

* «Investigadores do Instituto Superior Técnico (IST) começaram a produzir viseiras de proteção para profissionais de saúde, envolvendo toda a comunidade do IST e convidando quem tiver impressoras 3D a colaborar. A iniciativa é liderada por Marco Leite e Paulo Peças, do departamento de Engenharia Mecânica, que criaram um projecto de viseira que pode ser descarregado da Internet e fabricado numa impressora 3D. A equipa já entregou viseiras fabricadas no seu laboratório no hospital Fernando Fonseca, na Amadora, e espera a partir de quarta-feira começar a obter mais material para distribuir pelas unidades hospitalares e centros de saúde, onde «há pessoas que não têm nada, estão desprotegidas» para lidar com pessoas potencialmente infectadas com o novo coronavírus. As viseiras são peças circulares, ajustáveis, que se fixam em torno da cabeça e nas quais pode ser montado um acetato transparente que serve como barreira de protecção no contexto da pandemia da Covid-19. No seu laboratório, Marco Leite e Paulo Peças conseguem produzir seis viseiras por hora, mas cerca de duas dezenas de unidades de investigação do Técnico vão começar também a produzi-las» (Lusa, 24-03-2020).

Para os profissionais de saúde, o uso durante muitas horas de óculos de protecção pode ser uma tortura. A viseira combinada com a máscara  oferece uma solução mais cómoda e segura. Foto: Jornal de Leiria
* «O Instituto Superior de Engenharia de Coimbra (ISEC) vai produzir um modelo de óculos e viseira em impressoras 3D que protege os profissionais de saúde envolvidos na triagem e tratamento da pandemia da Covid-19. «As primeiras centenas vão ser oferecidas ao Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC) a partir de quarta ou quinta-feira», disse hoje à agência Lusa Mário Velindro, presidente daquela instituição de ensino superior. «Trata-se de um sistema de protecção versátil que pode ser utilizado por médicos, enfermeiros e paramédicos como óculo de protecção ou evoluir, na mesma configuração, para viseira de protecção», afirma Mário Velindro. Segundo o responsável, o ISEC inicia a produção esta semana nas suas instalações, recorrendo a três impressoras 3D de alto rendimento, com capacidade para produzir 50 conjuntos por dia. «O meu receio é o de que o material falte, mas, para já, temos quantidade suficiente para produzir mais de 500 unidades», sublinha. O ISEC, que tem estado em contacto directo com os Serviços de Manutenção dos CHUC, está também «de prevenção» para apoiar o fabrico de componentes especiais que se avariam, como por exemplo nos ventiladores respiratórios» (Lusa, 24-03-2020). 

* «O designer português Luís Onofre juntou-se à luta contra a pandemia Covid-19 e está a produzir máscaras de protecção individual. As 500 máscaras produzidas por dia serão doadas a várias instituições do concelho de Oliveira de Azeméis e arredores. Com o apoio do Centro Tecnológico do Calçado de Portugal, a fábrica do Luís Onofre em Oliveira de Azeméis está a produzir cerca de 500 máscaras diárias. Ao longo da próxima semana, a equipa espera alcançar uma média de 800 unidades por dia. As máscaras estão a ser distribuídas nos arredores de Oliveira de Azeméis. Para já, os hospitais de Santa Maria da Feira e de Famalicão, o Centro Dial, o Lar Geribranca, o Lar Pinheiro da Bemposta, o Lar Pró Outeiro e a Cruz Vermelha são algumas das instituições apoiadas» (Público, 27-03-2020).

* «Um grupo de investigadores da Universidade do Minho (UMinho) elaborou um “manual de instruções” sobre o fabrico de máscaras de protecção para ajudar as empresas envolvidas na confecção do equipamento, foi hoje anunciado. Em comunicado, a Fibrenamics, plataforma internacional da UMinho, explica que o manual pretende ser um contributo para a “harmonização” da informação disponível relativamente aos meios de protecção respiratória (máscaras), abordando aspectos como os tipos de protecção requeridos em função dos agentes de risco, os materiais e os processos envolvidos na sua confecção, bem como a normalização aplicada à validação e certificação do seu desempenho. O White Paper [em Português diz-se Livro Branco]Máscaras de Protecção é um manual que surge da actual necessidade de produção em grande escala destes equipamentos de protecção ao contágio do novo coronavírus, com várias empresas a disponibilizarem-se para o fazer, mas identificando a falta de um documento informativo e de orientação para auxiliar no desenvolvimento desta solução» (Lusa, 27-03-2020). 

* «A OLI, a segunda maior produtora europeia de autoclismos, está a produzir um suporte de viseira para auxiliar a proteger os profissionais de saúde no tratamento dos doentes com o novo coronavírus. Em Aveiro, onde está sediada a sua fábrica, que continua a laborar 24 horas por dia, sete dias por semana, a OLI irá fabricar 20 mil unidades por semana (cerca de 80 mil por mês), anuncia a empresa em comunicado. Este material será entregue, gratuitamente, a vários hospitais do país, em especial a Norte, no Centro e em Lisboa e Vale do Tejo, a partir da próxima segunda-feira, dia 6 de abril» (Dinheiro Vivo, 31-03-2020). 

Nota técnica. Convém saber que há dois tipos principais de máscaras de protecção individual. As chamadas máscaras cirúrgicas, as mais simples e baratas, garantem a protecção das vias de entrada faciais (boca, nariz e trato respiratório) contra gotículas e partículas, mas não aerossóis. São utilizadas para impedir que o utilizador espalhe o agente infeccioso por meio da fala, de espirros e de tosse, podendo ser igualmente usada pelos cidadãos comuns. Estas máscaras são descartáveis (de uso único), não reutilizáveis, e por isso não necessitam de processos de descontaminação. As chamadas máscaras filtrantes de partículas oferecem protecção das vias respiratórias contra partículas, gotículas e aerossóis. Estas máscaras podem ser descartáveis (uso único) ou reutilizáveis, Neste último caso, a reutilização terá de ter em conta o processo de descontaminação. 

29 março, 2020


Diário Intermitente da Pandemia do Novo Coronavírus SARS-CoV-2


José Manuel Catarino Soares


Em 26 de março de 2020 entrámos, em Portugal, na fase 3.2 de mitigação da pandemia do coronavírus SARS-CoV-2. Decidi, por isso, iniciar hoje, domingo, dia 29 de Março de 2020, um diário (intermitente) desta pandemia.

A motivação para o fazer é a de combater, tanto quanto está ao meu alcance fazê-lo, a desinformação (Ingl. “fake news”), a ignorância, os mitos e as fabulações conspirativas que circulam por aí, em catadupas e à velocidade da luz, sobre esta pandemia — sobre as suas origens, as suas causas, a sua propagação, sobre a forma de a combater, sobre as suas implicações, os seus efeitos e as suas consequências.

O meu ponto de vista será politológico — sendo a politologia (= o estudo sociológico da política) concebida como o ramo cívico da ética, da praxiologia e da sociotecnologia.  

A pandemia actual já mostrou ser um grande revelador de crenças, comportamentos e hábitos profundamente enraizados mas falsos e contraproducentes. Já mostrou também ser um grande revelador de imensas lacunas e confusões nos conhecimentos científicos elementares da população, em particular no campo da biologia. São esses aspectos que procurarei analisar e esclarecer, tanto quanto me for possível fazê-lo. Espero com isso conseguir contribuir para aumentar a capacidade de discernimento e levantar o moral dos leitores que visitem este blogue, além de instruir-me a mim próprio.

Investigadores do novo Coronavírus no Centro  Enshi para o Controlo e Prevenção da Doença (China). Fevereiro de 2020.  Foto de Yang Shunpi Xinhua, Eyvine, Redudu

O Diário da Pandemia do novo coronovírus SARS-CoV-2 que agora inicio é intermitente porque não o escreverei todos os dias, mas só quando me parecer que tenho coisas para dizer suficientemente interessantes para serem ditas em público. É um diário que fundirá, dada a sua índole, os diversos temas que estão inscritos no frontispício deste blogue e abrangerá também outros temas que os ultrapassam. Assim sendo, constitui uma ruptura com a linhagem dos artigos anteriores deste blogue que eram tematicamente compartimentados.

Todavia, há uma coisa que se mantém constante: não consigo lembrar-me, na presente conjuntura, de um assunto mais orwelliano do que a pandemia actual, em ambos sentidos do adjectivo “orwelliano” (v. a coluna “Sobre George Orwell” à direita deste texto).

01 janeiro, 2020


temas 2 e 3


Na câmara escura de uma escola superior de educação:
uniformização, controle e vigilância, infantilização, multimediatização

Ana Laura Metelo Valadares

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Luís Souta, PEDAGOGIA S. 45 narrativas curtas sobre o Ensino Superior na perspectiva (desconstrutivista) do Prof. S. Edições ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro). 1ª edição, Junho de 2019. 210 páginas. ISBN: 978‑989-8867-64-3. Hiperligação /Products/9789898867643
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Pedagogia S. constitui um testemunho do quotidiano “académico” de uma escola superior de educação de um instituto politécnico português da rede pública. Esse testemunho advém da descrição do dia-a-dia da comunidade escolar que evoca, por vezes, a descrição etnográfica.

A pertença do autor à comunidade educativa, enquanto professor, confere à descrição uma dimensão necessariamente subjectiva; ao descrever a realidade escolar, o autor recorre, quer ao seu profundo conhecimento dos factores externos que condicionam essa realidade — nomeadamente, as directivas nacionais e internacionais de política educativa —, quer à sua longa experiência de vida comunitária escolar. Conhecimento e experiência permitem-lhe problematizar a realidade observada, dando-nos conta dos pensamentos e sentimentos que a experiência vivida, anotada e reflectida nele acordam. Fá-lo revelando um sentido de humor complacente e um sentido crítico atribulado e benigno, muito atento, dando-nos igualmente conta das suas interrogações e perplexidades, do seu desencanto, da sua paciência e perseverança, também da sua esperança.
 
O autor organiza a sua descrição em torno de práticas do quotidiano da sua escola e de reflexões, ocasionalmente desabafos, sobre temas que essas práticas suscitam.  Procura seguir um fio condutor temporal — grosso modo do início ao final de um ano lectivo (fio esse que revela, por si só, que, pelo menos para os professores, o ano lectivo parece não ter início, nem fim...).  Cito títulos como “Constituição de Turmas”, “Trabalhos de grupo”, ... mas também “Agarrados ao computador”, “Quando o telemóvel toca”, ou “Andar ao Engano”, “Paternalismo”, ou ainda “Bolonha, o Embuste”, “Do CTeSP ao doutoramento”.

O olhar do autor sobre a sua escola, cuja função reprodutiva das práticas sociais e discursivas envolventes lhe não escapa, permite ao leitor um segundo olhar sobre a realidade descrita e o seu contexto. E é desse olhar, no caso o meu, que eu vou dar conta em seguida.

Da leitura sobre as práticas sociais e discursivas da escola xpto (como lhe chama o autor) emergem para mim, como traços fundamentais da vida escolar, a uniformização, o excesso de controles reguladores e de vigilância, a infantilização dos alunos e a multimediatização. Para efeitos de análise, utilizarei exemplos para abordar cada um destes traços, retirando-os do livro e recorrendo muitas vezes às próprias palavras do autor. Não posso deixar de notar, desde já, que estes traços caracterizam igualmente a sociedade contemporânea, de que o sistema educativo é uma parcela. E também dizer que este traços co-ocorrem na interacção educativa, separando-os eu apenas para efeito de análise.

Uniformização

A uniformização permite o controlo das práticas educativas e dos seus sujeitos. Ela ocorre por diversas vias: focarei sobretudo as orientações exógenas e o uso alargado de um registo, ou jargão, educacional. Mas, de um modo geral, o efeito uniformizador revela-se na equiparação (e desvalorização) dos graus académicos, na equiparação dos sub-sistemas do ensino superior (as escolas politécnicas já podem outorgar o grau de doutor), no nivelamento de notas de alunos e professores (tendem a agregar-se no topo das escalas de classificação), na crença generalizada em um só modelo de aprendizagem (o construtivismo colaborativo) e na padronização das metodologias de ensino, dos métodos de avaliação de alunos, dos métodos e instrumentos de avaliação das instituições e seus profissionais, etc...

Focarei então em seguida o efeito uniformizador das orientações exógenas e do jargão educacional.

As orientações exógenas traçam o rumo e os caminhos da vida académica. Ao referir-se à Declaração de Bolonha (1999), que virou de sopetão o sistema de ensino superior em Portugal de pernas para o ar, Luís Souta escreve que “ficar cada vez mais igual aos outros era na época (como hoje) um objectivo central, também no domínio educativo”. Para atingir essa igualdade concorrem as rígidas e pormenorizadas directrizes de desenvolvimento curricular (de categorias fixas e imutáveis), incluindo as orientações centrais para a elaboração do calendário escolar e dos horários, bem como os instrumentos de avaliação. Quase tudo é regulamentado de forma centralizada, não deixando espaço para a tão propalada autonomia das escolas e a emancipação dos seus membros.

Os 48 países (incluindo os 28 da União Europeia) que integram o chamado Espaço Europeu do Ensino Superior, resultado institucional do processo político de uniformização iniciado pela Declaração de Bolonha (1999). Mapa de MacedonianBoy.

A uniformização passa igualmente pelo uso generalizado de um jargão educacional, que anula a pessoa que a usa e que muitos designam, a meu ver bem, por eduquês. O eduquês é rico em novas designações para velhos objectos e velhos conceitos (disciplina passa a “unidade curricular”, paralelo de “unidade empresarial”, aulas a “horas de contacto”); é também rico em siglas e acrónimos imprescrutáveis, o mais ridículo dos quais talvez seja a sigla inglesa ECTS (European Credit Transfer System) — dizem os colegas do Professor S. que uma “unidade curricular” tem x ECTSes, ou seja, que ela tem x sistemas de transferência de créditos… De que registo linguístico virão as “transferências” e os “créditos” ?!... Decerto do financês, essa fonte inspiradora de muitos -eses... O jargão educacional está recheado de empréstimos do inglês e de anglicismos: por exemplo, e-learning, upgrading, ranking, data-show; videoclipe, webgrafia, orientações tutórias. Estas importações linguísticas em catadupa, acriticamente usadas numa clara demonstração de submissa aculturação, distanciam a pessoa da sua identidade. O eduquês apresenta-se como uma variedade linguística “técnica”, reduzindo a língua natural a um código. O seu uso não emancipa, submete. E sufoca.

Excesso de controles reguladores e de vigilância

A uniformização permite o controle dos membros da comunidade educativa, que são excessivamente vigiados. E aqui passo a abordar o segundo traço — o excesso de controles reguladores e de vigilância — que parece decorrer sobretudo de uma obsessão com a avaliação — institucional, profissional, académica. Há sede de uma permanente justificação e prestação de contas formatada externa e internamente, quer para instituições, quer para professores, quer para alunos (virá de onde, esta sede que reproduz a papagueada produtividade ?!).

Abordarei duas estratégias de controle, uma relativa aos docentes — a avaliação do desempenho docente, outra relativa aos alunos, constituída pelos ubíquos trabalhos de grupo.

Previamente direi, porém, que o ambiente geral da escola parece ser um ambiente de excesso, de falta de limites — parece haver uma necessidade imposta, externa e internamente, de ocupar quase totalmente as horas do dia (e da noite) de professores e alunos. A esmagadora multiplicidade de tarefas do professor, a “overdose curricular” (citando o autor) correspondente a uma carga horária considerada excessiva e a uma fragmentação disciplinar traduzida em cursos de apenas cadeiras de 45 horas no 1º ano (algumas das quais, aliás, com designações muito bizarras, como “Carteira de Competências”),  as ofertas alternativas que permitem a dispensa das aulas (“eventos paralelos, a não perder”), tudo isto indica o medo da pausa e do descanso, do silêncio reflexivo e da interioridade.

Abordemos então o excesso de controles reguladores e de vigilância ilustrado pela avaliação de desempenho dos docentes, que decorre sob a égide da A3AES (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior). Segundo o autor, a A3AES é “especializada em sugar tempo aos professores” e (...) “marca a reorientação formativa”. Luís Souta chama-lhe “esse big brother de avaliação e acreditação que, na sua inflexibilidade e rigor burocráticos, mantém a espada de Dâmocles, permanentemente, sobre os politécnicos e as universidades”. O autor dá-nos conta de um complicado pacote de ficheiros electrónicos que, de uma assentada, se destinava a avaliar os últimos catorze anos de actividade profissional dos docentes. No final de um complexo e exaustivo programa que envolvia, além dos docentes, uma comissão de avaliação da própria escola, também ela avaliada, constatou-se que, em vez da curva normal esperada, quase todos os docentes se acantonavam num dos extremos da curva, com a nota de EXCELENTE.  Alguns outros tiveram só MUITO BOM, coitados.

Há muitas outras avaliações, de resto, por exemplo a ficha curricular de cada disciplina a preencher pelo respectivo docente em 3000 caracteres de eduquês...

O outro exemplo que escolhi para ilustrar o excesso de controles reguladores e de vigilância diz respeito aos trabalhos de grupo dos alunos. O trabalho de grupo parece surgir, sobretudo, como alternativa aos exames, pavor académico, quer por parte dos professores, quer, sobretudo, dos alunos — decerto devido à crença generalizada de que os exames não avaliam competências cognitivas de ordem superior, criando, ainda para mais, ansiedade nos alunos! 

O autor escreve sobre trabalhos realizados à “fatia”, dizendo-nos que cada membro do grupo só fica a conhecer a sua fatia, ignorando as dos outros colegas do grupo. O trabalho de grupo acaba assim por ser um declarado embuste.

Os trabalhos, entregues à última hora, são corrigidos à lufa-lufa, numa “maratona” realizada a desoras, em casa. Como o autor escreve, sente-se “condenado a ler, anotar, corrigir e classificar uma catrefada de trabalhos pindéricos”. De notar que os alunos não chegam a recolher os trabalhos corrigidos e avaliados...

Há no trabalho de grupo algum grau de ludificação, no sentido em que é utilizado para enriquecer o contexto e motivar os alunos, envolvendo-os. A ludificação é, de resto, uma técnica de publicidade para incentivar o envolvimento do consumidor com o produto ou serviço. A tendência para a ludificação e sua componente de gratificação imediata parece impor-se na escola e relaciona-se em parte com o terceiro traço da vida escolar, a infantilização no tratamento dos alunos.

A infantilização no tratamento dos alunos

A necessidade imposta, externa e internamente, de ocupar quase totalmente as horas do dia (e da noite) de professores e alunos parece ter invadido e entranhado a mente e a alma docentes. Os professores assemelham-se a átomos perdidos uns dos outros, mas cumprindo cada um deles, obedientemente e até extravasando, os ditames impostos (vem-me à ideia o conceito de auto-exploração do filósofo germano-coreano Byung-Chen Han, exposto no seu livro de 2014, Psicopolítica). A atitude dos professores para com os alunos reveste-se de paternalismo, cabendo naturalmente aos alunos o papel de filhos (rebeldes).

Parece-me que os alunos se defendem como podem do excesso escolar, escapando às aulas e tutorias, entrando tarde e saindo cedo, entrando e saindo a seu bel-prazer durante a aula, pedindo coisas e serviços ao professor: pausas para café, dispensa das aulas, dilatação dos prazos de entrega dos trabalhos, informações básicas sobre tudo e nada; refugiando-se nas violentas praxes, legalmente apadrinhadas pela escola, nas festas (queima das fitas, cortejos, espectáculos) e nas estadias académico-balneares ERASMUS. Refugiam-se e evadem-se: usam o computador e o telemóvel em plena aula, encerrados nas suas comunicações privadas.
Parece não haver regras.

Os comportamentos dos alunos não são separáveis da natureza das suas interacções com o meio. De facto, os comportamentos de dependência e associabilidade acima enumerados parecem-me decorrer, em parte, do tratamento infantil e de desresponsabilização dado aos alunos. Escolho apenas um exemplo, de peso: o controle docente para as eleições dos alunos para o Conselho de Representantes (órgão que confere aos alunos representação institucional) ou para o Conselho Pedagógico (órgão paritário). Cito o autor: “Um dos professores promotores chegou a confessar que o que lhe deu mais trabalho foi fazer a lista de discentes (!).” Parece, pois, haver um atropelo de papéis, um açambarcamento por parte dos professores, como se só a eles a escola pertencesse. E, ao mesmo tempo, parece existir um divórcio entre professor e alunos, justamente porque papéis e funções se confundem. Esse divórcio pode estar relacionado também com o alto grau de mediatização na escola, último traço por mim identificado, que passo a considerar em seguida.

1850. Um artista desenha com a ajuda de uma câmara escura.

Multimediatização

As interacções professor/alunos decorrem sobretudo em sala de aula, a que o autor chama “câmara escura”. Ficamos a saber que, apesar das ideias e engenho do arquitecto, a comunidade escolar não deixa entrar a luz solar na sala de aula e que professor e alunos, em presença real, não comunicam face a face e olhos nos olhos, mas sim através do ecrã de powerpoint (PP). O PP tornou-se, e cito, “suporte didáctico por excelência... (...)  cábula oficial e trabalhosa... (...) que leva mais tempo a montar que o tempo necessário para estudar a matéria... (...) causando hiatos, graças às atrapalhações técnicas...”. O autor conta que, numa só sessão de apresentação de trabalhos dos alunos em sala de aula, viu 180 diapositivos em PP, trinta por grupo.

A entrada da luz solar é barrada, mas não os telemóveis e a porta que eles abrem para vídeos, jogos, mensagens, tudo o que foi digitalizado, tudo o que é difundido. O seu uso parece ser livre, o que não acontece nas salas de teatro.

Eduardo Lourenço (2018) referiu “o circo romano a domicílio que a televisão universal nos oferece vinte e quatro horas por dia”. Esse circo romano invade e ocupa a escola superior.

Conclusão

Após a leitura do livro Pedagogia S. e a reflexão que me suscitou, fica-me, da escola descrita, uma impressão de ilusão, do que se nos afigura ser e não é.

Agradeço ao Luís Souta por me ter ajudado a disciplinar a memória.

Almada, 15 de Dezembro de 2019