Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

22 janeiro, 2021

 

Temas 2 e 3

As eleições presidenciais de 2021 em Portugal 

José Catarino Soares

Um grande e velho amigo escreveu-me pedindo-me que lhe desse a minha opinião sobre a eleição presidencial que se vai realizar no próximo domingo, dia 24 de Janeiro de 2021. Respondi-lhe também por escrito e a resposta acabou por ser bem mais longa e elaborada do que tinha inicialmente pensado. Publico-a aqui esperando que possa contribuir utilmente para o debate público e o esclarecimento político.

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Caro amigo […]

Aqui vai a opinião que me pediste sobre as eleições presidenciais. É muito curta, como verás, mas se fosse enunciada sem mais nada, receio que pudesse ser interpretada como sectária ou dogmática, embora não enferme de nenhuma dessas pechas.

Primeiro que tudo, é necessário, portanto, fornecer algum enquadramento teórico que facilitará a sua boa compreensão.

Parte I. Democracia vs. Oligarquia

1. A esmagadora maioria dos portugueses, se lhes fosse perguntado, diriam que «vivemos numa democracia». É uma grande e fatal ilusão, filha de uma crassa ignorância, que eu compartilhei durante mais de 30 anos. A única coisa que me poderia diferenciar nessa época era o facto de pertencer ao subconjunto muito minoritário dos que acrescentavam: «vivemos numa democracia burguesa», colocando a ênfase em burguesa. Mas isso só agravava o erro (em vez de o atenuar). Democracia burguesa é um oximoro.

2. Não vivemos numa democracia. Vivemos, isso sim, numa oligarquia. «Como é possível que o desconheçam !?» exclamaria Aristóteles (se alguém o fosse entrevistar aos Campos Elísios), surpreendido e profundamente chocado, imagino, ao tomar conhecimento de uma notícia inacreditável e no entanto verdadeira: a de não termos sido ainda capazes de assimilar uma verdade tão comezinha, depois dele a ter explicado tintim por tintim há mais de 2.300 anos em duas obras clássicas [1].

3. Democracia é, nas palavras de Aristóteles, «o governo dos muitos» (entenda-se, dos mais numerosos). Numa sociedade dividida em classes socio-económicas, os mais numerosos, como observou Aristóteles, são invariavelmente os mais pobres, os membros das classes trabalhadoras. Oligarquia é, nas palavras de Aristóteles, «o governo dos poucos» (entenda-se, de uma pequena minoria). Numa sociedade dividida em classes socio-económicas, essa minoria é invariavelmente formada pelos mais ricos, pelos membros das classes possidentes, que são também, regra geral, os mais instruídos.

4. Como se distingue, na prática, no seu funcionamento quotidiano, uma democracia de uma oligarquia? A oligarquia é aquele regime em que, permanentemente, só um certo número muito pequeno de cidadãos governa e decide dos assuntos que interessam à comunidade.  A democracia é aquele regime em que todo o cidadão governa e todo o cidadão é governado, em alternância, decidindo de todos os assuntos que interessam à comunidade. Governar significa exercer uma magistratura — uma parcela do poder político, em qualquer dos seus ramos: deliberativo-legislativo, judiciário, executivo-administrativo.

5. E como se consegue que isso aconteça? Aristóteles também respondeu minuciosamente a essa pergunta há mais de 2.300 anos.

A) não estipulando qualquer nível de riqueza para se aceder às magistraturas (deliberativas-legislativas, judiciárias, executivas-administrativas);

B) sorteando os cidadãos que vão exercer as magistraturas ou na totalidade delas, ou na sua grande maioria; isto é, exceptuando apenas, mas muito parcimoniosamente,  as que tenham a ver com as relações externas, e só naqueles casos (daí a parcimónia) em que o seu exercício exija, além de habilitações específicas, muita capacidade individual de decisão e de discernimento individual — como sejam, por exemplo, os comandantes-em-chefe das milícias de defesa territorial e os embaixadores, que, na Atenas democrática antiga, eram eleitos pela Assembleia do Povo (Ekklèsia), mas que, numa democracia do século XXI, poderão ser eleitos pelo Conselho Propedêutico [2], com base num prévio concurso público;

Figura 1.  Klèrotêrion era o nome deste dispositivo de pedra. Era de facto uma sofisticada máquina usada na selecção aleatória dos cidadãos que integravam os diversos colégios de magistrados (jurados dos tribunais, nomótetas, membros do  Conselho dos 500, etc.) da Atenas democrática do século IV a.C. Foto de magika 42000 no flickr. Museu da Ágora, Atenas.

Duas simulações de como funcionava o klèrotêrion podem ser vistas no vídeos que se encontram premindo nas seguintes hiperligações: https://www.youtube.com/watch?v=bWV8MZ7N90o https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=gt9H7nbZjAw&feature=youtu.be

C) garantindo a colegialidade de todas as magistraturas e a igualdade de direitos e deveres de todos os magistrados de um mesmo colégio;

D) impedindo que um mesmo cidadão exerça duas vezes seguidas a mesma magistratura, a não ser em circunstâncias extraordinárias e apenas naquelas escassas magistraturas que não são sorteáveis;

E) reduzindo ao mínimo o período de vigência de todas as magistraturas, ou então, do maior número possível delas;

F) atribuindo as magistraturas judiciárias a todos os cidadãos escolhidos por sorteio de entre todos, discernindo as questões em litígio ou a maioria delas [isto é, estabelecendo áreas de jurisdição ou de competência de cada tribunal, semelhantes às que, em linguagem moderna, se chamam varas, juízos ou julgados] e entre essas as mais importantes e decisivas, como sejam, por exemplo, as relacionadas com a fiscalização  das contas públicas [cometida ao que hoje em dia denominamos Tribunal de Contas], com a Constituição [Tribunal Constitucional] e com os contratos do foro privado [da competência dos Tribunais Judiciais (por oposição aos administrativos), como se diz na gíria jurídica actual];

G) entregando a supremacia das decisões à Assembleia Adsumus dos Cidadãos [3] no tocante a todos os assuntos, ou aos mais importantes, não atribuindo qualquer poder superior às magistraturas, ou atribuindo-o apenas para assuntos de pouca monta;

H) remunerando de modo especial [através de um salário nuns casos, ou de ajudas de custo para despesas de transporte, refeição e alojamento noutros casos] todos os magistrados de todas as magistraturas.

6. Não há qualquer semelhança entre uma democracia e uma oligarquia. Numa democracia não existem chefes de Estado (presidentes eleitos ou monarcas vitalícios), parlamentos eleitos, partidos com assento parlamentar, governos escolhidos pelos chefes dos partidos parlamentares e/ou pelos chefes de Estado, tribunais com juízes irresponsáveis e inamovíveis, militares e polícias de carreira. Tudo isso são atributos de uma oligarquia. Em resumo, numa oligarquia há governantes e governados, constantemente diferenciados, e uma hierarquia de governantes.

Numa democracia não há separação insanável entre governantes e governados, nem, por conseguinte, uma hierarquia dos governantes. Numa democracia há tão-somente cidadãos-magistrados, todos em pé de igualdade, todos simultaneamente governantes e governados, porque em constante alternância e rotação no exercício de magistraturas tiradas à sorte entre todos.

7. Mas, se as diferenças entre democracia e oligarquia não permitem alimentar qualquer confusão entre uma e outra, como conseguiram, então, os membros das classes possidentes – que são hoje em dia, nos países industrialmente desenvolvidos, constituídas pelos detentores e gestores do grande capital e pelos detentores e gestores da grande propriedade fundiária (e que são, uns e outros, tão poucos) – comer as papas na cabeça aos membros das classes trabalhadoras – que são hoje em dia, nos países industrialmente desenvolvidos, constituídas principalmente por trabalhadores assalariados (e que são tão numerosos) – persuadindo estes últimos a deixarem-se governar por eles numa oligarquia?

8. Através de um acordo de cavalheiros como o que Mefistófeles propôs a Fausto e que este selou com uma gota do seu sangue. Passo a descrevê-lo.

Ao cabo de muitas, prolongadas e muitas vezes sangrentas lutas entre as duas classes, os partidos dos membros das classes possidentes dos países capitalistas industrialmente mais desenvolvidos, como o Reino Unido, a Alemanha, a França, a Holanda, etc. fizeram aos partidos dos membros das classes trabalhadoras a seguinte proposta: façamos um pacto, um pacto pela democracia, para valer por séculos e séculos. Eis os seus termos:

t.1) Nós comprometemo-nos a reconhecer todos os vossos direitos e liberdades — a liberdade de expressão, a liberdade de reunião, a liberdade de associação, a liberdade de manifestação, a liberdade de imprensa, o direito à greve, e até o direito à saúde, o direito à educação, o direito à segurança social. Mais, estamos dispostos a dar-vos, suprema recompensa, o direito de elegerem por sufrágio universal os representantes do vosso agrado para a magistratura suprema: a magistratura deliberativa-legislativa, que podemos cindir, para que funcione com mais perfeição, em dois órgãos electivos independentes: parlamento e presidente da república (ou, se preferirmos, um monarca vitalício em vez de um presidente da república eleito). Ao parlamento (com duas câmaras ou com uma câmara única, consoante os casos) incumbirá legislar, aprovar o governo escolhido pelo primeiro-ministro em função da composição do parlamento e  fiscalizar a sua actividade. Ao presidente da República incumbirá assumir o comando supremo das forças armadas e (consoante os casos) formar o governo, tendo em conta a composição do parlamento, ou, se o governo tiver sido escolhido pelo primeiro-ministro, dar-lhe posse e demiti-lo se este perder o seu apoio parlamentar. Mas não nos demoremos muito nestes considerandos. Estas e outras configurações do poder legislativo-deliberativo e do poder executivo-administrativo são pormenores que poderemos negociar e afinar a qualquer momento.

t.2.) Em troca, nós exigimos de vós duas coisas: (a) o respeito sagrado pelas eleições como método único de seleccionar os governantes; (b) o respeito sagrado pelo nosso direito absoluto a comandarmos as empresas em que vós trabalhais por nossa conta.    

9.  No nosso caso (Portugal), e  relativamente a outros países europeus,  este pacto foi aceite e celebrado tardiamente, com a aprovação, em 1976, da Constituição da República Portuguesa, redigida e aprovada pela Assembleia Constituinte eleita em 1975 em plena revolução popular, na sequência de um golpe de Estado. Foi necessário correr muito sangue, suor e lágrimas das classes trabalhadoras, durante quarenta anos de oligarquia antiliberal e 13 anos de guerra em África, para se chegar a este resultado. A Constituição de 1976 define um regime de oligarquia liberal.

Evidentemente, uma oligarquia liberal é um regime incomensuravelmente mais favorável à vida quotidiana e à luta dos trabalhadores assalariados pela sua auto-emancipação do que uma tirania, ou de que uma oligarquia antiliberal. Mas isso não dá a ninguém o direito de chamar fraudatoriamente democracia a uma oligarquia, ainda que seja uma oligarquia liberal. O pacto celebrado em 1976 entre os partidos com assento na Assembleia Constituinte foi um pacto pela oligarquia liberal, não um pacto pela democracia.

10. A Constituição da oligarquia liberal portuguesa já foi revista 8 vezes. Todas as revisões serviram para consolidar as duas condições supramencionadas, (a) e (b). A cláusula (a) é a condição da cláusula (b). As classes possidentes de uma oligarquia liberal ganham sempre as eleições para os órgãos do poder legislativo-deliberativo e do poder executivo-administrativo, seja quem for que seja eleito, porque a eleição é, por definição, um método de selecção de uma oligarquia rica e poderosa. Para fazer campanha eleitoral é preciso gastar uma fortuna. Só tem possibilidade de ser eleito quem consegue arcar com essas despesas.

Os EUA, o país capitalista mais poderoso do mundo, mostra de um modo mais evidente do que qualquer outro essa realidade. As eleições de 2020 para o Congresso (que tem 535 membros, dos quais 470 foram a votos em 2020) e para a Presidência da República dos EUA (2 membros) custaram 14 mil milhões de dólares, o dobro da soma gasta em 2016 pelos partidos e candidatos concorrentes e um máximo absoluto na história  dos EUA (v. “2020 election to cost $14 billion, blowing away spending records”. OpenSecrets.orgOctober 28, 2020). Isso significa mais de 61 milhões de dólares por cada candidato eleito (congressista, presidente ou vice-presidente), somas só acessíveis a milionários ou aos seus afilhados políticos.                                                      

Joe Biden conseguiu angariar para a sua campanha presidencial 1.000 milhões de dólares de donativos. Trump conseguiu angariar 970 milhões de dólares. Em ambos os casos, os maiores doadores são multimilionários. Só dos banqueiros de Wall Street, Biden recebeu 74 milhões de dólares. Trump ficou-se pelos 17 milhões vindos da mesma proveniência.

Imagine-se por um segundo – a fim de estabelecer a este propósito um contraste entre democracia e oligarquia – o que seria do ponto de vista da representatividade sociológica, quanto custaria e quanto tempo levaria a tiragem à sorte, de entre toda a população adulta americana, de 535 membros do Conselho Propedêutico de uma hipotética democracia americana, utilizando a potência de cálculo dos computadores actuais.

Naturalmente, se a tiragem à sorte fosse feita segundo procedimentos rigorosamente aleatórios, os 535 membros selecionados seriam uma amostra verdadeiramente representativa da composição social, profissional, sexual e etária da população americana. Quanto ao custo e ao tempo que levaria essa operação os resultados expectáveis são igualmente promissores.  

O computador Fugaku, construído pelas firmas japonesas Fujitsu e Riken, é actualmente o supercomputador mais rápido do mundo, com 415,5 petaflops de HPL. A sigla HPL é usada em Inglês para abreviar High Performance Linpack (Pacote Linear de Alto Desempenho), sendo que Linpack (amálgama de lin [abreviação de linear] e pack [pacote]) é uma biblioteca de programas que executa álgebra linear em computadores. Um petaflop = mil biliões. Por outras palavras, o Fugaku é capaz de realizar 415 mil biliões de operações por segundo, ou seja, quase três vezes mais do que o agora segundo computador mais rápido do mundo: o norte-americano Summit, da IBM, com os seus 148,8 petaflops de HPL.

Assim sendo, tanto o Fugaku como o Summit levariam uma fracção de segundo para tirar à sorte os 545 conselheiros americanos. Não sei quanta electricidade gastariam durante essa operação, mas estou certo de que a soma angariada por Biden para pagar a despesa da sua eleição chegaria perfeitamente para pagar a electricidade gasta pelo supercomputador durante esse cálculo e ainda sobrariam muitas centenas de milhões de dólares.

Figura 2Supercomputador Fugaku. Foto de Jin Nishikioka, The Asahi Shinbun.

Além de muitíssimo dispendiosas e muito demoradas, as eleições  (parlamentares, presidenciais e autárquicas) tendem também a produzir resultados que reflectem o distanciamento cada vez maior dos eleitos relativamente à camada mais numerosa da população: a classe dos trabalhadores assalariados.

Por exemplo, na Assembleia da República só há um operário fabril (pertence ao grupo parlamentar do PS). No grupo parlamentar do Bloco de Esquerda não encontramos nenhum e no grupo parlamentar do PCP encontramos dois deputados que se declaram operários fabris: um com a profissão de afinador de máquinas e outro com a profissão de electricista. Mas essa informação é de natureza arqueológica, porque nem um nem outro exercem essas profissões há 45 anos. São ambos funcionários políticos do PCP desde 1975, ou seja, políticos profissionais de longa data (v. “Quem são os 230 novos deputados na Assembleia da República”, Observador, 6-10-2019; “Professores e juristas dominam um «Parlamento elitista»”, Público, 25-10-2019; “Um parlamento sem políticos” [atenção: este título é irónico], Diário de Notícias, 26-10-2019).  

A este propósito é instrutivo registar um facto curioso. O PCP e o seu candidato presidencial, João Ferreira, são os mais acérrimos defensores da Constituição em vigor, que pretendem cumprir e fazer cumprir. Mas não parecem dar-se conta de que é o mecanismo oligárquico da eleição que essa mesma Constituição consagra para a organização e o exercício do poder político que é um dos factores principais do declínio progressivo deste partido a cada nova disputa eleitoral.

11.Termino esta introdução com um facto da maior importância, mas que não posso aqui desenvolver. No pacto faustiano de que resultou a oligarquia liberal em que vivemos, a maior vitória obtida pelas classes possidentes foi a de terem conseguido apagar completamente da memória e da imaginação criativa dos trabalhadores assalariados o significado da palavra democracia e o método da tiragem à sorte dos magistrados que ela implica e que só lhes pode ser favorável.

Mais ainda, as classes possidentes conseguiram uma proeza ainda mais extraordinária, digna de figurar na novilíngua orwelliana, que foi a de conseguirem que praticamente todas as pessoas dos países em que vigoram regimes de oligarquia liberal (julgo que serei uma das raras excepções em Portugal) chamassem democracia ao seu oposto: a oligarquia ! Se a notícia desta extraordinária proeza conseguisse chegar aos ouvidos de Aristóteles, lá nos Campos Elísios, estou certo de que ele teria de se sentar para ganhar fôlego e não sufocar de indignação perante tão abjecta manobra oligárquica.

Parte 2. A eleições presidenciais de 2021

1. A minha opinião sobre estas eleições decorre do meu ponto de vista e o meu ponto de vista é o de um democrata. Para um democrata, participar ou não numa eleição oligárquica é uma questão táctica, fruto de uma avaliação caso a caso. É útil para fazer avançar a causa da democracia e a causa da auto-emancipação dos trabalhadores (as duas estão intimamente ligadas) ou, pelo menos, para as não fazer regredir?  

2. Por exemplo, era necessário participar nas eleições legislativas de 2015 porque era imperioso varrer o governo ultra-reaccionário da troika-Passos Coelho-Paulo Portas. Em minha opinião, a eleição presidencial de Janeiro 2021 não tem qualquer importância do ponto de vista enunciado, ao contrário das eleições legislativas de 2015.

3. O vencedor anunciado é Marcelo Rebelo de Sousa, o presidente em exercício e o candidato da oligarquia mais apreciado pelo eleitorado pela sua atitude conciliatória, pelo seu paternalismo patusco e pela sua verbosidade.

4. Os outros candidatos não estão nestas eleições para ganhar – e alguns dizem-no abertamente – mas para promoverem as ideias dos partidos que representam e que os apoiam (João Ferreira-PCP; Marisa Matias-Bloco de Esquerda; André Ventura-Chega; Tiago Mayan Gonçalves-Iniciativa Liberal, Vitorino Silva-RIR), ou para ganhar mais espaço de manobra e audiência para as ideias minoritárias que representa no seu partido (Ana Gomes-PS).

5. Todos os candidatos são defensores do regime vigente de oligarquia liberal, em versões mais à esquerda (João Ferreira, Ana Gomes, Marisa Matias) ou mais à direita (Vitorino Silva, Marcelo Rebelo de Sousa, Tiago Mayan Gonçalves), com uma única excepção: André Ventura. Este candidato defende uma mudança de regime: da oligarquia liberal para uma oligarquia antiliberal, totalitarista. Mas não tem qualquer hipótese de ser eleito, apesar da enorme abstenção que vai ocorrer.   

Evolução da abstenção nas eleições presidenciais em Portugal desde 1976

Se a abstenção atingir ou ultrapassar os 70%, o que é muito possível [4], poderá haver uma 2ª volta. E se Ventura for à 2ª volta será derrotado, porque os candidatos da esquerda desunida (João Ferreira, Ana Gomes, Marisa Matias) irão unir-se para apelarem os seus eleitores a votar... no candidato da direita (Marcelo Rebelo de Sousa) de modo a impedir a vitória do candidato da extrema-direita (Ventura). As eleições numa oligarquia liberal, sobretudo as eleições presidenciais, são pródigas nestes jogos de cabra-cega.

6.  O resultado destas eleições não afectará, por isso, o regime de oligarquia liberal em vigor, que não está em perigo de se desmoronar para dar lugar a um regime de oligarquia antiliberal, nem, muito menos, para dar lugar a um regime de democracia.  

7. A única novidade que estas eleições eventualmente trarão é a de saber se o apoio eleitoral de André Ventura é já suficiente para ele acalentar a ambição de vir a chefiar as forças oligárquicas que entendem que a continuação do modo capitalista de produção não é compatível com a coexistência de alguns dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que são consentidos pelas oligarquias liberais. «Para que o modo capitalista de produção continue a existir e nós possamos continuar a enriquecer, temos de nos desembaraçar desse luxo caríssimo e insuportável», entendem essas forças oligárquicas de que Ventura é, sem papas na língua, o porta-voz.                                                                            


NOTAS 

[1] . Politique [335-323 a.C.] Traduite par J. Barthélémy-Saint-Hilaire. Troisième édition revue et corrigée. Paris: Librairie Philosophique de Ladrance.1874; Aristotle. Politics. Translated by Benjamin Jowett. Oxford: At the Clarendon Press, 1908. Existe uma tradução portuguesa (que não aprecio) de António Campelo Amaral e Carlos Gomes: Aristóteles. Política. Lisboa: Edições Vega Lda. 1998; Aristotle (328-325a.C.). The Athenian Constitution. Translated by F.G. Kenyon. London: Georges Bell and Sons, 1891; Aristote.  Constitution d’Athènes, traduite par B. Haussoulier. Paris : Émile Bouillon Éditeur, 1891. Existe uma tradução portuguesa de Delfim Ferreira Leão: Aristóteles. Constituição dos Atenienses. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. Estas duas obras não são normativas, mas descritivas. Nelas Aristóteles não discorre sobre o que seria, em seu entender, um sistema ideal de democracia, mas descreve, isso sim, a realidade da democracia ateniense que conheceu directamente, visto que foi seu contemporâneo.

[2] . Conselho Propedêutico é a minha sugestão para denominar em Português, nos dias de hoje, um órgão com as características do Boulè, o Conselho dos 500 magistrados da democracia grega nos séculos V e IV a.C. O Conselho dos 500, cujos membros eram tirados à sorte anualmente por meio das máquinas denominadas klèrotèria (plural de klèrotêrion), reunia-se todos os dias e tinha um leque de competências muito mais amplo do que todos os outros colégios de magistrados. Trabalhava em ligação com a Assembleia do Povo (Ekklèsia), cujas deliberações lhe cabia executar, e com os nomótetas (jurisconsultos), ao passo que os outros colégios de magistrados trabalhavam em ligação com os tribunais. Recebia os embaixadores dos países estrangeiros e desempenhava um papel central na política externa. Supervisionava a administração das finanças e mantinha debaixo de olho os outros colégios de magistrados. Tinha poderes de decisão autónoma, mas sempre limitados pelas decisões da Assembleia do Povo. A sua tarefa principal era dupla: (i) preparar os trabalhos dos nomótetas, e (ii) preparar os trabalhos da Assembleia do Povo, as leis e decretos que eram submetidos à deliberação da Assembleia. Daí o nome de Conselho Propedêutico que sugeri.

[3]. Assembleia Adsumus dos Cidadãos é uma expressão da minha lavra para denominar a reunião deliberativa de todos os cidadãos numa democracia. Na Grécia antiga dos séculos V e IV a.C. a Assembleia Adsumus dos Cidadãos tinha o nome de Ekklèsia. Na época de Demóstenes (355-322 a.C.) a Ekklèsia reunia-se 40 vezes por ano na Pnyx, uma colina situada perto da Ágora, com um mínimo de 6000 cidadãos. Adsumus é uma palavra latina que significa “estamos presentes” ou “aqui estamos”. Nos dias de hoje, em países com milhões de habitantes, a reunião de todos os cidadãos num mesmo local para deliberarem sobre assuntos de interesse comum não é possível. Mas a Assembleia Adsumus dos Cidadãos pode ser chamada a deliberar por sufrágio universal sobre todos os assuntos que lhe sejam submetidos para consideração pelo Conselho Propedêutico, após um período adequado de discussão pública em foros de debate de todo o género. Basta para tanto montar um sistema de votação electrónica envolvendo telemóveis 4G, computadores, radiotelevisão e internet, como o sistema Handivote (v. William Paul Cockshott & Karen Renaud, Handivote: simple, anonymous, and auditable electronic voting”. Journal of information Technology and Politics, 6(1):60-80, 2009; William Paul Cockshott & Karen Renaud, “Information Technology: Gateway to Direct Democracy in China and the World”, International Critical Thought, 2013, Vol. 3, No. 1, 76–97, http://dx.doi.org/10.1080/21598282.2013. 761448).

[4]. Carlos Jalali, professor de ciência política na Universidade de Aveiro, «prevê perto de 75% de abstenção nas presidenciais de 24 de Janeiro, mesmo que 2021 fosse um ano normal» — que não é, obviamente, devido ao estado calamitoso da pandemia da COVID-19 em Portugal e ao confinamento recentemente decretado para lhe fazer face. Por conseguinte, não se pode descartar a possibilidade desta percentagem vir a ser ainda mais elevada. Uma coisa parece certa: «com covid ou sem covid, estas eleições iriam ter um nível absolutamente histórico de abstenção» (Público, 12-01-2021), afirma Jalali. E não nos esqueçamos que a abstenção não é um fenómeno passageiro. «Qualquer que seja a metodologia de medição empregue, a abstenção tem vindo a aumentar de forma expressiva desde as eleições fundadoras de 1975. Este aumento é visível em todas as eleições, com a exceção parcial das eleições autárquicas» (João Cancela,Como tem evoluído a abstenção eleitoral em Portugal, em Abstenção e Participação Eleitoral em Portugal. Diagnóstico e Hipóteses de Reforma. João Cancela (coord.) & Marta Xavier. Câmara Municipal de Cascais. 2018). Eu interpreto-o como uma manifestação clara do afastamento crescente entre eleitores e eleitos; um reflexo, por sua vez, no campo eleitoral, da separação estrutural entre governantes e governados inerente a todos os regimes de oligarquia liberal. 

09 janeiro, 2021

 Temas 2 e 3

Chickens have come home to roost

José Catarino Soares

 

Um dos passatempos favoritos de TODOS os Presidentes dos EUA (Barack Obama incluído) desde o fim da 2ª Guerra Mundial (para não irmos mais atrás) é o de ordenarem golpes de Estado, bombardeamentos, invasões, assassinatos, atentados, raptos, extradições, perseguições, bloqueios e espionagem em terra alheia. O que não impediu, ontem, o director de um dos nossos jornais de referência de qualificar os EUA como «o farol do mundo livre» (Público, 7 de Janeiro 2021).

Mas, desta vez houve uma novidade de monta. O presidente em exercício dos EUA decidiu patrocinar um simulacro de golpe de Estado na sua terra para mostrar aos seus apoiantes que fez tudo, até à 25ª hora, para se perpetuar no poder e barrar a entrada do senhor que se lhe segue [1]. Presumivelmente, julgou que, ao fazê-lo, reforçaria a confiança que nele depositaram os 74 milhões de eleitores que nele votaram e que aumentaria, desse modo, as suas probabilidades de regressar ao poder daqui a 4 anos [2]. Mas as coisas não correram exactamente como esperava.

Donald Trump, 45º Presidente dos EUA

«Chickens have come home to roost»; «to get a taste of your own medicine», foram dois velhos adágios muito utilizados por comentadores anglófonos para caracterizar o episódio da invasão do Capitólio por apoiantes de Donald Trump. Ambos são perfeitamente adequados e têm os seus equivalentes em Português: «o feitiço virou-se contra o feiticeiro» ou «cá se fazem, cá se pagam»; «provar o seu próprio veneno», respectivamente.

Agora os americanos já não poderão dizer que não sabem o que é que a Casa Branca e os seus inquilinos gastam fora de portas quando sentem o seu poder ameaçado. Basta-lhes descontar do que viram dia 6 de Janeiro de 2021 no Capitólio os aspectos de bufonaria, (que só são reais no seu país) e imaginar que os manifestantes vinham armados com armas de fogo, não com telemóveis.

6 de Janeiro de 2021. Apoiantes de Trump assaltam o Capitólio, sede do Congresso (senado + câmara dos representantes) dos EUA. Foto: Shannon Stapleton. Reuter.

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Notas

[1] Convém explicar por que razão emprego a expressão «simulacro de golpe de Estado». A esmagadora maioria dos comentadores e dos orgãos de comunicação social nos EUA, aqui em Portugal, como também um pouco por esse mundo fora, apressou-se, em uníssono, a qualificar a invasão do Capitólio por uma turbamulta desarmada de apoiantes de Trump como um golpe de Estado”, como uma intentona ou como uma insurreição” contra a “democracia” americana. Esses orgãos e comentadores fingem que não sabem o significado dessas palavras (voltarei em breve a este assunto com mais pormenor), procurando comer-nos as papas na cabeça, e fazem-no com um propósito. O artigo de Michael Tracey Only In Your Imagination Was That An Attempted Coup” revela esse propósito. Esse artigo pode ser lido clicando na seguinte hiperligação:https://mtracey.medium.com/ only-in-your-imagination-was-that-an-attempted-coup-8bb8cc9fb39b. Para quem não domina o Inglês, transcrevo aqui a sua conclusão: 

Há muitas pessoas que estão em posições de poder que gostariam de nos fazer acreditar que uma “insurreição” a sério está de facto em andamento, e de nos levar a desenvolver uma espécie de compreensão mítica exagerada do que aconteceu no Capitólio. Porque isso lhes permitirá obter poderes adicionais — não através de um “golpe”, mas exagerando enormemente uma alegada ameaça, que é sempre a maneira como actuam. 

[2] Trump teve, em 2020, mais 12 milhões de votos do que em 2016, quando foi eleito. 2016 — 62.984.828 votos (46,1% dos votos expressos ); 2020 — 74.216.722 votos (46,9% dos votos expressos). 

 

19 dezembro, 2020

 Temas 2 e 3

Julian Assange no Parlamento Europeu 

José Catarino Soares

1. Introdução

A relatora do relatório anual do Parlamento Europeu sobre A Situação dos Direitos Fundamentais na União Europeu para os anos 2018-2019, a eurodeputada socialista independente Clare Daly (irlandesa), propôs um aditamento relativo a Julian Assange – o aditamento 44 ao considerando W – a esse relatório.

Na fase em que esse relatório foi discutido na Comissão das Liberdades Cívicas desse parlamento, a maioria dos eurodeputados  da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas (grupo ao qual pertence o PS português) e do Partido Popular Europeu (grupo ao qual pertencem o PSD e o CDS) votou contra a inserção desse aditamento. Como estes dois grupos são os mais numerosos no Parlamento Europeu, este voto preliminar fazia temer o pior. Por isso, muitas pessoas por essa Europa fora, entre as quais me incluo, enviaram cartas aos eurodeputados destes dois grupos do Parlamento Europeu (incluindo os seus membros portugueses), instando-os a votar a favor do aditamento 44 aquando da votação final do relatório, no passado dia 24 de Novembro.

Fui saber o resultado desse voto: o aditamento passou? Não passou? Quem votou a seu favor? Quem votou contra? Isto porque os iniciadores da campanha a favor da aprovação do aditamento não tiveram o cuidado de informar os seus apoiantes do que se passou no Parlamento Europeu  aquando dessa votação, nem mostraram vontade de o fazer, uma atitude que considero lamentável.

Consegui obter todas as informações que pretendia pelos meus próprios meios. Não foi difícil consegui-lo, nem levou muito tempo. São as que constam das secções 2, 3 e 4 seguintes.

2. Quem votou e como votou

Resultado da votação respeitante ao aditamento 44 ao considerando W do relatório Situation of Fundamental Rights in the European Union – Annual Report for the years 2018-2019:

 

A favor 191 (28%)

Contra 408 (59%)

Abstenções 93 (13%)

Votos necessários à aprovação  300


Quem quiser saber quem foram os deputados que votaram deste modo (de todos os partidos e todos os países membros da UE) o aditamento 44 pode fazê-lo facilmente clicando na seguinte hiperligação: 

https://www.votewatch.eu/en/term9-situation-of-fundamental-rights-in-the-european-union-annual-report-for-the-years-2018-2019-motion-f-95.html.

Os eurodeputados portugueses que votaram CONTRA o aditamento 44 foram todos os eurodeputados do PS (Isabel Carvalhais, Sara Cerdas, Maria Manuel Leitão Marques, Margarida Marques, Pedro Marques, Manuel Pizarro, Isabel Santos, Pedro Silva Pereira, Carlos Zorrinho), todos os eurodeputados do PSD (Álvaro Amaro, Maria da Graça Carvalho, José Manuel Fernandes, Cláudia Monteiro de Aguiar, Lídia Pereira, Paulo Rangel) e o único eurodeputado do CDS (Nuno Melo).

Votaram A FAVOR do aditamento 44 os dois eurodeputados do Bloco de Esquerda (Marisa Matias, José Gusmão), os dois eurodeputados do PCP (João Ferreira, Sandra Pereira) e o deputado não-inscrito, ex-PAN (Francisco Guerreiro).

3. O aditamento 44

Recordo que o aditamento 44 de Clare Daly, que foi chumbado, tinha o seguinte teor (ver coluna do lado direito):                                                     


Proposta de resolução W

Alteração e aditamento 44


Considerando que os alertadores [Ingl. “whistleblowers”] desempenham um papel essencial em qualquer democracia aberta e transparente;  que os alertadores são fundamentais para promover a transparência, a democracia e o Estado de direito, ao revelarem comportamentos ilícitos ou repreensíveis que põem em causa o interesse público, como actos de corrupção, infracções penais ou conflitos de interesses, que constituem ameaças aos direitos e liberdades dos cidadãos;


Considerando que as revelações dos alertadores [Ingl. “whistleblowing”] constituem um aspeto fundamental da liberdade de expressão e desempenham um papel essencial na detecção e comunicação de irregularidades, bem como no reforço da responsabilidade e transparência democráticas; que as revelações dos alertadores representam uma fonte essencial de informação no combate à criminalidade organizada, assim como na investigação, identificação e divulgação de casos de corrupção nos sectores público e privado; que os jornalistas e outros profissionais da comunicação social na UE são alvo de inúmeros ataques, ameaças e pressões por parte de intervenientes estatais e não estatais; que a detenção e o processo penal contra Julian Assange estabelecem um precedente perigoso para os jornalistas, conforme foi afirmado pela Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa1‑a; que a protecção adequada dos alertadores [Ingl. “whistleblowers”], tanto a nível da UE como a nível nacional e internacional, bem como o reconhecimento do papel importante desempenhado pelos alertadores na sociedade, são condições prévias necessárias para garantir a eficácia desse papel; [1]

………………………

 1-a Resolution 2317 (2020) of the Parliamentary Assembly of the Council of Europe on threats to media freedom and journalists’ security in Europe

          ………………………

4. A declaração de Clare Daly

A própria Clare Daly votou contra o relatório final do qual foi relatora pelo facto de este não ter incorporado o aditamento 44 e outros aditamentos, alguns dos quais também da sua lavra. Esta foi a declaração que fez justificando a sua posição (o destaque a amarelo foi acrescentado por mim):


Sr. Presidente, ao apresentar este relatório, gostaria de reconhecer o enorme interesse que ele encerra. Tivemos mais de 600 alterações e aditamentos complexos e muitas vezes contraditórios, por isso não tem sido um processo fácil. Gostaria de agradecer especialmente à minha magnífica equipa, Megan, Lide e Eadaoin. Gostaria de agradecer ao Secretariado da Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos, e ao pessoal de todos os grupos políticos pela sua paciência e profissionalismo. Não há dúvida. A Carta [dos Direitos Fundamentais da União Europeia] é um documento importante que contém direitos que, se fossem postos em prática, permitiriam que todos os cidadãos alcançassem todo o seu potencial e levassem uma vida digna.
Clare Daly

Mas temos de ser honestos: estamos a milhões de quilómetros dessa situação. A consciência dos direitos consignados na Carta é baixa, há uma total falta de integração nas prioridades económicas e políticas, e pior ainda, em vários Estados-Membros, os direitos fundamentais estão a ser atacados e minados. Portanto, este relatório foi uma oportunidade para ganharmos algum recuo, olharmos para o que está a acontecer e perguntarmo-nos porquê. Estou muito contente por termos conseguido manter uma forte secção de direitos económicos e sociais no início porque, embora os direitos fundamentais sejam absolutos em teoria, se não tivermos um tecto estável sobre a cabeça ou acesso à educação ou acesso a cuidados de saúde, então só podemos sonhar em ter os nossos direitos protegidos.

Fico feliz pelo relatório reconhecer o impacto na desigualdade de cortes nas despesas públicas, mas lamento não podermos chamá-los pelo seu nome certo: austeridade. Fico contente com os pontos sobre os direitos sexuais e reprodutivos, sobre os retrocessos e a criminalização da acção humanitária. Mas, embora reconheça isso, lamento profundamente a fraqueza deste relatório devido à nossa incapacidade de nos unirmos e de chamarmos a atenção para abusos e nomear os países que os cometem — uma timidez que não é replicada quando falamos de países fora da UE. Temos agora a situação absurda de existir um relatório de direitos fundamentais em que não podemos mencionar um país, nem mesmo no corpo do texto, nem mesmo numa nota de rodapé se vier do Conselho da Europa e tiver o nome de um país no seu título. Colegas, isto é uma loucura total.

George Orwell disse: «Se a liberdade significa alguma coisa, significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir». É óbvio que há pessoas aqui que não querem ouvir falar da Catalunha, o que não me surpreende porque se trata de uma acusação ao Estado espanhol e à UE. Mas é um bom exemplo do problema deste relatório, porque, em vez de o fazermos abertamente, como o Conselho da Europa o fez, temos um relatório de direitos fundamentais que trata da liberdade de expressão, em que a exposição de motivos foi expurgada por ter tido a audácia de mencionar o facto de haver deputados na prisão com penas superiores a 10 anos por organizarem um plebiscito democrático. Lamento, mas se isso não é igual ao que o relatório condena como o uso de um sistema judicial para fins políticos com o propósito de silenciar uma oposição, então não sei o que seja.

Mas os grandes grupos [multinacionais de eurodeputados] não queriam isso. Não conseguiram lidar com a verdade, por isso, após a votação da comissão, nove meses após a publicação da exposição de motivos, essa declaração, que nunca foi votada, teve de ser proibida. E fiquem a saber que me sinto um pouco como o autor de A Alegria do Sexo, um livro que foi banido na Irlanda e do qual nunca ninguém tinha ouvido falar até ser banido, e depois todos o queriam ler. Destarte, uma exposição de motivos de que normalmente ninguém quer saber já foi publicada, sob a forma de brochura, em inglês e espanhol, e está actualmente a ser traduzida para catalão. Muito obrigado por isso.

Portanto, os direitos fundamentais devem transcender o interesse próprio e o jogo político. Eles deviam ser o grande igualizador, que se aplica sem olhar a quem és tu ou de que país és. Se ignorarmos isso, isso só nos leva ao beco sem saída de um relatório sobre direitos fundamentais que trata de alertadores [Ingl. “whistleblowers”] e de liberdade de imprensa, mas que omite mencionar Julian Assange e o perigoso precedente que se abriria para o jornalismo na UE se a Administração Trump conseguisse extraditá-lo para os EUA e encarcerá-lo 175 anos numa prisão de alta segurança. Este é o maior caso de agressão à liberdade de imprensa da nossa geração e continuamos em silêncio.

Votei a favor do relatório ir a plenário na esperança de que o bom senso prevalecesse e que fosse melhorado aqui e que questões como estas viessem de novo a lume. Mas se não forem, não hesitarei em votar contra este relatório porque é melhor que não tenhamos um relatório do que termos um relatório fraco ou hipócrita. Talvez então enfrentemos a verdade de que, apesar de toda a nossa conversa fiada sobre direitos fundamentais, temos tido pessoas a encher as ruas da Bulgária há meses contra um partido corrupto no poder, engordado com dinheiro da UE.Temos migrantes deixados a apodrecer e a infectar-se em campos de detenção, enquanto barcos com mulheres grávidas e crianças são repelidos para o mar pelas forças estatais na Grécia. Temos migrantes violados com ramos de árvores pelas forças estatais na Croácia. Temos muçulmanos perseguidos na França. E, sim, temos parlamentares na prisão em Espanha. Portanto, esta é a vossa Europa, e a escolha é clara. Ou papagueamos generalidades sobre os direitos fundamentais ou pomos a Carta [dos Direitos Fundamentais da União Europeia] em prática. Ando nisto há dez anos, sou muito clara na escolha do lado onde me situo. (Terça-Feira, 24 de Novembro de 2020) [2]

5. Significado do caso Julian Assange

Descobri recentemente (para grande e desagradável surpresa minha) que tenho amigos que não sabiam bem quem é Julian Assange e que desconheciam os motivos pelos quais está preso numa prisão de alta segurança no Reino Unido há mais de um ano e meio. Se assim é, presumo que serão muitas as pessoas que se encontram no mesmo estado de ignorância acerca desta importantíssima questão.

Permitam-me, por isso, lembrar que Julian Assange é um destemido jornalista australiano, o fundador da WikiLeaks, ao qual devemos a divulgação de toda a espécie de factos de interesse geral e de crimes de alto coturno, incluindo crimes contra a humanidade que, por vontade dos deuses, deveriam ser segredos bem guardados fora do alcance do comum dos mortais.

A WikiLeaks é uma gigantesca biblioteca virtual dos documentos mais perseguidos do mundo — mais de 10 milhões. «Damos asilo a esses documentos, analisamo-los, publicitamo-los e arranjamos mais» (J.Assange, entrevista, Spiegel On Line, 20-07-2015). Pela sua meritória actividade, Julian Assange e a WikiLeaks já ganharam mais de 15 dos mais prestigiados prémios de jornalismo.

Em 12 de Abril de 2019, Assange foi raptado da Embaixada do Equador em Londres – país que lhe tinha dado asilo político e onde vivia sitiado há 7 anos por temer ser extraditado directa ou indirectamente (via Suécia ou Austrália) para os EUA – por homens não identificados, muito provavelmente agentes à paisana das polícias secretas do Reino Unido (já que se movimentaram sempre com todo o à-vontade sob o olhar complacente de agentes fardados da Polícia Metropolitana), sequestrado em parte incerta e posteriormente encarcerado em Belmarsh, uma prisão de alta-segurança destinada a autores de crimes violentos — tráfico de drogas, posse e venda de explosivos, agressão sexual, violação, assalto à mão armada, rapto, homicídio involuntário, tentativa de homicídio, homicídio, crimes de terrorismo.

A prisão de alta-segurança Belmarsh, na zona ocidental Londres, foi comparada várias vezes com a prisão militar da base naval de Guantanamo Bay dos EUA, num enclave de Cuba

O governo de Sua Majestade britânica efectuou este rapto e este sequestro numa prisão oficial – ambos actos sem precedentes nos anais do Reino Unido, um país que se gaba de ter inventado o habeas corpus – para satisfazer um pedido de extradição de Assange feito pelo governo de Donald Trump. Sobre Assange impende a ameaça de ser condenado a uma pena que poderá ir até 170 anos de prisão, se for extraditado para os EUA e aí julgado ao abrigo do Computer Fraud and Abuse Act (1984) – «uma lei de definição mínima [do crime que postula] que pode ter consequências maximamente destrutivas», segundo a caracterização do advogado Tor Ekeland (Wired, 5-07-2019) – e do Espionage Act (1917).

De que é acusado Assange para merecer tão dura e mirabolante pena? De crimes hediondos? Não, precisamente do contrário. Assange é acusado de ter cometido o delito (pelo visto de lesa-majestade) de ter denunciado publicamente, com provas irrefutáveis – centenas de milhares de documentos secretos, incluindo videofilmes, que lhe foram transmitidas pelo então soldado e analista dos serviços secretos militares americanos em comissão de serviço no Iraque, Bradley Manning –, hediondos crimes de guerra cometidos por elementos das Forças Armadas dos EUA no Iraque. O rapto, sequestro em prisão e pedido de extradição de Assange configuram o maior atentado à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa cometido nos países ditos democráticos desde a 2ª guerra mundial. Se tiver êxito, nunca mais nenhum jornalista (e com maioria de razão nenhum simples cidadão) poderá relatar factos incómodos e publicar verdades inconvenientes para os poderes estabelecidos sem correr o risco de ser caçado e sequestrado como um animal feroz onde quer que esteja, encarcerado em Belmarsh, Guantanamo ou outra qualquer prisão de alta-segurança e sentenciado à prisão perpétua ou pior.

Foi este atentado sem precedentes contra os direitos fundamentais [3] que os eurodeputados do PS, do PSD e do CDS quiseram silenciar com o seu voto contra o supracitado aditamento 44 a um relatório anual (2018-2019) sobre… os direitos fundamentais (!!!) na União Europeia. Para mim, isto diz tudo sobre a natureza política e moral destes deputados.

6. Passado e futuro do caso Julian Assange

Não me vou alargar mais sobre o passado do caso Assange. Remeto os leitores interessados para dois textos que escrevi sobre o assunto no ano passado neste mesmo blogue:

Hackers, Crackers e Whistleblowers, publicado em 12-09-2019. Hiperligação:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2019/09/tema-3-hackers-crackerse-whistleblowers.html

Julian Assange Corre Perigo, publicado em 14-04-2019. Hiperligação:

https://tertuliaorwelliana.blogspot.com/2019/04/tema-2-sinto-mo-muito-honrado.html

Este último serve de introdução a um notável texto sobre Assange do seu compatriota John Pilger, uma lenda viva do jornalismo independente.

Publiquei também, em 17-04-2019, neste blogue, um Post-Scriptum sobre a campanha, então em curso, para impedir a extradição de Assange para os EUA — e que foi bem sucedida, porque passou, entretanto, mais de um ano e meio e ele ainda não foi extraditado. Esse P.S. vem a seguir ao texto de Pilger.

Julian Assange, em 2014, quando habitava na embaixada de Londres da República do  Equador que lhe concedera asilo político. Foto: Creative Commons

Com a eleição de Joe Biden para a presidência dos EUA, as probabilidades de conseguirmos libertar Assange e de anular o pedido de extradição que impende sobre ele aumentaram consideravelmente, como julgo que será evidente para todos. Isso sucede não por Biden ser “boa pessoa” ou “melhor pessoa” do que Trump, mas porque a supremacia dos EUA como potência hegemónica (vulgo, a sua posição como manda-chuva mundial) está muito mais enfraquecida hoje em dia do que há 4 anos, quando Trump foi eleito, dadas as profundas divisões internas que existem na classe dominante americana e que se avolumaram durante o consulado de Trump.

Mas uma conjuntura mais favorável à acção não passa disso mesmo. Se formos amigos e defensores das liberdades e direitos fundamentais, não podemos baixar os braços. Assange só será libertado se a campanha para o libertar prosseguir e se ampliar. Voltarei por isso a este assunto.

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                                                          Notas

[1] A tradução é da minha responsabilidade.

[2] A tradução é da minha responsabilidade. 

[3] Se instado a justificar a conduta celerada que tem tido no caso Julian Assange (o que ninguém no Parlamento ou na imprensa britânica se deu ao trabalho de fazer), o governo Tory de Sua Majestade Britânica invocaria muito provavelmente a “prerrogativa real”. Este é um vetusto dispositivo feudal qualificado de “constitucional” (em novilíngua orwelliana, bem entendido, porque o Reino Unido não tem Constituição escrita, muito menos uma Constituição aprovada por sufrágio universal), em virtude do qual o governo pode apropriar-se discricionariamente, e sem a autorização do parlamento britânico, dos poderes absolutos outrora atríbuídos ao monarca real – designado, na gíria jurídica, por a “Coroa” – para agir fora da lei (v.Thomas Poole, “United Kingdom: The royal prerogative”. I*CON, International Journal of Constitutional Law, (2010), Vol. 8 Nº. 1 146 – 155; Sebastian Payne, “The Royal Prerogative”, in The Nature of the Crown: A legal and political analysis. Maurice Sunkin & Sebastian Payne, eds., Oxford University Press 1999).

Apesar dos juristas britânicos não se entenderem sobre a definição da “prerrogativa real” ou mesmo sobre o alcance dos poderes que estão sob a sua alçada, todos estão de acordo num ponto: é impossível falar na prerrogativa real sem evitar ouvir o tilintar das grilhetas medievais dos fantasmas do passado — uma frase que se tornou favorita entre os juízes em casos que envolvem a prerrogativa («it is practically impossible in this corner of British public law to avoid, in a phrase that has become a favorite among judges in cases involving the prerogative, “the clanking of mediaeval chains of the ghosts of the past”», Poole, op.cit., p.147).

Não é a primeira vez que os governos de Sua Majestade Britânica se servem da prerrogativa real para satisfazer subservientemente os desejos dos governos dos EUA. Convém recordar que foi também ao abrigo da “prerrogativa real” que foi tomada a decisão de expulsar a população nativa do Arquipélago de Chagos, no fim da década de 1960 e princípio da década de 1970, para que os EUA pudessem instalar aí uma base militar.

Mas nenhum destes despudorados e brutais atentados contra os direitos e liberdades fundamentais impede que a grande maioria dos políticos profissionais, dos politólogos, dos comentadores e dos jornalistas dos meios de comunicação social aproveite todas as ocasiões para nos apresentar o Reino Unido como o modelo acabado do “Estado de direito [!!] democrático [!!!!]”.