Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

29 setembro, 2023

 

Um insólito e grotesco (mas esclarecedor) 

macrossurto de russofobia

José Catarino Soares

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9.º artigo da série

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!

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Este homem, de cabelo branco e braço estendido, teve de esperar até aos 98 anos para as suas proezas, como ex-combatente nazi, serem finalmente reconhecidas por um país do chamado “Ocidente alargado” como grandes feitos heróicos. Chama-se Yaroslav Hunka. Durante a Segunda Guerra Mundial combateu na 14.ª Divisão de granadeiros das Waffen SS (o ramo militar da organização Schutzstaffel [cuja abreviatura era SS] do Partido Nazi de Adolf Hitler), também conhecida como 1.ª Divisão Ucraniana ou Divisão Galícia, pelo facto de ser composta de voluntários ucranianos da Galícia (região actualmente repartida entre a parte ocidental da Ucrânia e a Polónia).

1. A 14.ª Divisão das Waffen SS

A 14.ª divisão das Waffen SS combateu na Ucrânia, Polónia, Eslováquia e na ex-Jugoslávia. De acordo com o “Centro de Estudos do Holocausto dos Amigos de Simon Wiesenthal”, a 1.ª Divisão Ucraniana das Waffen SS «foi responsável pelo assassínio em massa de civis inocentes com um nível de brutalidade e malevolência inimaginável» [1]

Na Galícia, por exemplo, massacraram aldeias inteiras de residentes polacos, incluindo mulheres e crianças, alegando que estavam associados aos guerrilheiros soviéticos.  Além disso, a Divisão Galícia das Waffen SS esteve envolvida noutros casos de violência genocida. Por exemplo, participou na repressão da revolta antinazi na Eslováquia e também na repressão brutal e violenta do movimento de guerrilha antinazi na Jugoslávia. Em Março de 1945, passou a chamar-se Primeira Divisão Ucraniana do Exército Nacional Ucraniano, antes de se render às forças britânicas dois meses mais tarde, em Maio de 1945 [2].

2. O parlamento canadiano ovaciona de pé um SS ucraniano

Yaroslav Hunka recebeu uma ovação de pé do parlamento canadiano «por ter combatido contra os russos durante a 2.ª Guerra Mundial» (sic). A foto foi tirada quando Hunka agradecia os aplausos numa galeria do parlamento canadiano. Isto aconteceu em 22 de Setembro de 2023, depois do discurso que Zelensky proferiu nesse parlamento nesse dia.Ver aqui:

https://twitter.com/UnityNewsNet/status/1705841969845403788?Fbclid=Iw AR1LcOunxaf8EA3_4nET2ylLLKzKbBSyGPWCuwzd5RQZQ4h0wtrTCfPKKC0

No dia seguinte, a SIC Notícias informava que:

O presidente da Câmara dos Comuns no Canadá [Anthony Rota] pediu desculpa após ter convidado e proporcionado uma ovação no parlamento a um antigo combatente ucraniano da II Guerra Mundial que lutou ao lado de tropas nazis. Anthony Rota desconhecia a pertença de Yaroslav Hunka na organização paramilitar nazi Waffen-SS. Na passada sexta-feira, Volodymyr Zelensky foi discursar no parlamento canadiano e, após isso, houve uma homenagem a Yaroslav Hunka de 98 anos, com todos os membros da Câmara de pé a aplaudir. No entanto, após este acontecimento viral, muitos grupos judaicos alertaram que Hunka pertenceu a uma organização paramilitar nazi Waffen-SS entre 1943 e 1945. A organização seria [“seria” não, era, J.C.S.] uma unidade estrangeira criada pela SS em países sob ocupação nazi. Oriundo da Ucrânia, mas residente no Canadá, Yaroslav foi apresentado como «um herói da luta pela independência da Ucrânia contra a Rússia». Um erro crasso que levou ao pedido de desculpas de Anthony Rota, presidente da Câmara dos Comuns.

3. Erro crasso, mas inocente?

Como podemos constatar, a SIC Notícias (à semelhança dos demais órgãos do sistema mediático dominante de comunicação social) apresentou a homenagem do parlamento canadiano ao SS ucraniano Yaroslav Hunka como tendo sido “um erro crasso”, mas inocente. O presidente do parlamento canadiano, Anthony Rota, desconheceria o verdadeiro passado de Hunka. Pensava que Hunka era um herói ucraniano e, afinal, descobriu que ele era, de facto, um nefando SS.

Esta é a foto de Yaroslav Hunka, quando era membro da 14.ª Divisão de granadeiros da Waffen SS
(1.ª Divisão Ucraniana ou Divisão Galícia). A foto foi descoberta e fornecida pelo professor Ivan Katchanovski [@I_Katchanovski, Twitter ou X] — um politólogo ucraniano que ensina na Universidade de Otava (Canadá). 
 

É uma desculpa esfarrapada. Quem pode acreditar que o presidente do parlamento canadiano (ou, o que para o caso vem a ser o mesmo, o seu quadro de assessores) e o primeiro-ministro do Canadá (ou, o que para o caso vem a ser o mesmo, os serviços secretos de informações do governo federal do Canadá) desconheciam a identidade de Hunka ‒ o seu convidado de honra (para além de Zelensky) ‒ e das demais pessoas autorizadas a entrar no parlamento num dia tão especial como aquele, em que Zelensky tinha sido convidado a discursar no parlamento pelo primeiro-ministro Justin Trudeau e por Anthony Rota?

«Temos aqui na Câmara, hoje, um canadiano de origem ucraniana, um veterano de guerra, da Segunda Guerra Mundial, que lutou contra os russos pela independência da Ucrânia e continua a apoiar as tropas [da Ucrânia], apesar de já ter 98 anos. O seu nome é Yaroslav Hunka. /…/ É um herói ucraniano e um herói canadiano e nós estamos-lhe gratos por todo o serviço que prestou» — disse Rota, em guisa de apresentação. Ao ouvirem estas palavras, os deputados canadianos levantaram-se todos ‒ assim como Trudeau, Zelensky e a esposa de Zelensky ‒ e brindaram Yaroslav Hunka com uma prolongada ovação.

É óbvio que Rota sabia perfeitamente quem era Hunka, o seu convidado de honra.

Nesta foto, Karina Gould, do Partido Liberal, ministra dos Assuntos Parlamentares [“leader of the government in the House of Commons of Canada”], e Anthony Rota, presidente do Parlamento canadiano [“speaker of the House of Commons”] e membro do mesmo partido (à direita), dão as mãos a Yaroslav Hunka, depois da homenagem de que este foi alvo durante a sessão plenária extraordinária desse parlamento dedicada a Volodymyr Zelensky. Não consegui identificar o indivíduo do meio, que enverga uma camisa ucraniana e que esteve sempre ao lado de Hunka na galeria do parlamento. Foto: @karinagould [publicada antes do escândalo da identidade de Hunka ter rebentado]. 

Em vez de lapsos de memória e falhas de segurança conducentes a um “erro crasso” (mas inocente), parece-me, pois, mais plausível admitir que Rota ‒ ou Trudeau e Rota de comum acordo, tanto mais que são do mesmo partido, o Partido Liberal ‒ tenha(m) decidido fazer um brilharete para agradar a Zelensky e ao influente “lobby” ucraniano-canadiano que, no Canadá, tem apoiado os sucessivos governos (Yatsenyuk, Poroshenko e Zelensky) saídos do golpe de Estado violento e inconstitucional de 22 de Fevereiro de 2014.

A foto seguinte, publicada pela neta de Yaroslav Hunka, abona em favor desta conjectura. Nela, a senhora Theresa Hunka informa-nos que a foto foi tirada quando o seu avô aguardava na recepção que Trudeau e Zelensky o viessem cumprimentar. E sabemos pelo chefe do grupo parlamentar do Partido Conservador (o principal partido da oposição), Pierre Poilievre, que esse encontro teve lugar [3]. Deve, portanto, haver fotos desse encontro, embora não tenham vindo a público. Não é de excluir, aliás, que tenham, entretanto, sido destruídas num “buraco da memória”, atendendo ao embaraço que produziriam se fossem publicadas.  


4. Um brilharete com um devastador efeito de boomerang

Seja como for, uma coisa é certa. Trudeau prometeu a Zelensky que o seu governo lhe daria mais 650 milhões de dólares canadianos em ajuda militar nos próximos três anos. Esta quantia vem somar-se aos 8.000 milhões de dólares canadianos já entregues desde 24 de Fevereiro de 2022, dos quais 1.500 milhões em ajuda militar.

Se a homenagem a Hunka foi, como conjecturo, um brilharete que Rota e Trudeau quiseram fazer para celebrarem da melhor maneira o apoio incondicional a Zelensky e à continuação da guerra na Ucrânia até ao último soldado ucraniano, então, temos de concluir que foi um brilharete que teve um devastador efeito de boomerang.

Compreende-se facilmente porquê. O Canadá contribuiu com mais de 1 milhão de homens (a esmagadora maioria dos quais eram voluntários) para o combate contra a Alemanha nazi durante a Segunda Guerra Mundial. Convém recordar que o Canadá tinha, na altura, apenas 11 milhões de habitantes (actualmente tem 38,2 milhões). Mais de 45 mil soldados canadianos morreram na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, sobretudo no desembarque nas praias da Normandia e na campanha da Normandia, e cerca de 55.000 ficaram feridos.

Por isso, para os veteranos canadianos sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, para os sobreviventes judeus, polacos, ucranianos russófonos e russos vítimas das matanças das Waffen SS, e para os cidadãos canadianos cujos pais, avós e bisavós combateram contra o nazismo (ou que foram vítimas das suas atrocidades), o espectáculo insólito dos deputados da Câmara dos Comuns do Canadá a erguerem-se em bloco, todos sem excepção, para homenagear uma relíquia viva do nazismo, deve ter sido, presumo, insuportável e não pode ter deixado de gerar uma grande comoção e revolta.

Zelensky exultante e de punho fechado saúda Yaroslav Hunka na galeria do parlamento canadiano, ladeado pela sua esposa e por Justin Trudeau que aplaudem de pé Yaroslav Hunka. Foto: Politico.com

Como foi isso possível?

Um facto importante a ter em conta é este: antes do início da segunda guerra na Ucrânia (24.02.2022), 4% dos canadianos eram de origem ucraniana. Muitos deles são orgulhosos descendentes dos correligionários de Stepan Bandera e dos combatentes da 14.ª Divisão das Waffen SS ‒ como Yaroslav Hunk e como o já falecido Dmytro Dontsov (o mentor ideológico de Stepan Bandera) ‒ que fugiram da Europa para o Canadá no fim da Segunda Guerra Mundial, para não serem julgados pelos seus crimes de guerra [4].

Segundo o historiador Irving Abella (presidente do Canadian Jewish Congress de 1992 a 1995 e presidente da Canadian Historical Association de 1999 a 2000) mais de 2.000 criminosos de guerra e colaboradores nazis da 2.ª Guerra Mundial foram acolhidos no Canadá, apesar da oposição e da indignação do Congresso Judaico Canadiano [5]. «Se há uma palavra para descrever as atitudes do Canadá [perante os criminosos de guerra nazis] nos últimos 50 anos é “apatia”» — declarou Abella em 1997 [6].

Uma prova disso é o relatório final da “Comissão de Inquérito sobre criminosos de guerra” (relacionados com as actividades da Alemanha nazi) de Dezembro de 1986, presidida pelo juiz Jules Deschênes. Nesse seu relatório, a Comissão limita-se, por exemplo, a compilar estimativas diversas do número de criminosos de guerra que encontraram refúgio no Canadá e a opinar que muitas delas são exageradas.

Dois exemplos mais. A Comissão Deschênes, embora tenha sido oficialmente constituída para apurar toda a verdade sobre o tema que lhe deu origem, passou uma esponja sobre o cadastro da 14.ª Divisão das Waffen SS, alegando ter falta de legislação adequada e de provas para incriminar os seus membros. Acresce que a segunda parte do relatório final da Comissão, que dizia respeito a alegações contra indivíduos específicos, permanece confidencial e nunca foi tornada pública.

O “lobby” dos orgulhosos descendentes canadianos dos correligionários de Dontsov e Bandera inclui a vice-primeira-ministra (e também ministra das finanças) do Canadá, Christina Freeland. O seu avô materno, Mikhail Khomiak (mais tarde, no Canadá para onde fugiu, mudou o nome para Michael Chomiak), que ela defende com determinação, foi o editor-chefe do jornal anti-semita, anti-russo e antipolaco, “Krakivski Visti”, financiado pelo regime nazi e publicado em Cracóvia (Polónia) durante a ocupação nazi (1940-1945)

5. Russofobia

É óbvio que os parlamentares canadianos tinham obrigação de saber que os ucranianos que «combateram a Rússia na Segunda Guerra Mundial» pertenciam ou às Waffen SS ou à Organização dos Nacionalistas Ucranianos [OUN, no acrónimo ucraniano] chefiado pelo filonazi Stepan Bandera.

Mas admitamos ‒ só para podermos raciocinar ‒ que não sabiam, que os 338 membros do parlamento canadiano constituem um selecto grupo de ignorantes encartados que nada sabem sobre a Segunda Guerra Mundial. Qual seria, então, a sua motivação para se levantarem todos de supetão e dispensarem uma prolongada ovação a um homem que lhes foi apresentado como “um veterano de guerra que combateu os russos”? Pois, eu só vejo uma, que dá pelo nome de “russofobia” — uma variedade de ódio étnico muito em voga na Ucrânia pós-1991 e que aumentou brutalmente de intensidade e letalidade depois do golpe de Estado de Fevereiro de 2014 que instalou o regime actualmente vigente na Ucrânia. 

Quando a russofobia se alia com os interesses estratégicos da potência hegemónica dominante, os EUA, os resultados podem ser (e têm sido) muitos e diversos, mas sempre desastrosos. Um deles foi o insólito e grotesco macrossurto de russofobia que ocorreu no parlamento canadiano no dia em que Zelensky o visitou.

6. Controlar os danos, se possível com um buraco da memória

Apesar da notícia da SIC Notícias que transcrevi mais acima, não esperemos que os deputados canadianos e o governo canadiano venham a reconhecer que a russofobia e o alinhamento completo com os interesses estratégicos hegemónicos do seu vizinho americano foram as reais motivações da sua entusiástica ovação de pé a Yaroslav Hunka.

Pelo contrário, para salvar a face e fazer esquecer o seu vergonhoso comportamento, os deputados canadianos e o governo canadiano tentam agora sacudir a água do capote e controlar os danos.

A primeira coisa que fizeram foi arranjar um bode expiatório e um único. “A culpa do que se passou é toda de Rota, o presidente do parlamento”, afirmou, em substância, a ministra dos Assuntos Parlamentares, a senhora Karina Gould, com voz doce. Perante isto, o homem não teve outro remédio senão demitir-se, como aliás lhe competia e como lhe exigia não só a oposição, mas também (e publicamente) o seu próprio partido. Esse acto era necessário para prevenir e deflectir o pedido de demissão do primeiro-ministro Trudeau — que até agora ainda não surgiu e que é duvidoso que venha surgir do principal partido da oposição.

A segunda coisa que fizeram foi mais criativa, embora também possa ser considerada, de um outro ponto de vista, como um exemplo perfeito do apotegma: «a Vida imita a arte bem mais do que Arte imita a vida» [7].

É que se trata de uma iniciativa que parece ter sido congeminada no “Ministério da Verdade” do romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de Georges Orwell. Se não vejamos. A mesma senhora Karina Gould, pediu, na segunda-feira, dia 25 de Setembro, a aprovação unânime no parlamento canadiano de uma moção que propõe que «se apague da acta dos debates da Câmara dos Comuns» e de «qualquer registo multimédia da Câmara» tudo o que se passou relativamente à homenagem a Yaroslav Hunka: as palavras de elogio do ex-presidente da Câmara dos Comuns, a ovação unânime e de pé de todos os deputados, assim como de Trudeau, Zelensky e sua esposa; os gestos de agradecimento de Hunka nas galerias do parlamento, etc. [8]. Em resumo, doravante todos fariam de conta que esses acontecimentos nunca ocorreram, para paz e sossego das suas consciências.  

A espantosa moção de Karina Gould, se fosse aprovada [não foi, diga-se de passagem] seria, de facto, um perfeito “buraco da memória” saído direitinho do mundo ficcional de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro para o mundo político actual [9].

Notas e referências

[1] Daniel Otis, “How was veteran Yaroslav Hunka's military unit linked to the Nazis?.” CTVNews.ca, September 26, 2023.

[2] Ivan Katchanovski, “The Politics of World War II in Contemporary Ukraine.” Journal of Slavic Military Studies, 27:210–233, 2014.

[3] https://twitter.com/PierrePoilievre/status/1706047009747038709

[4] Na nota 25 do meu livro “Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal” (editora Primeiro Capítulo. Agosto de 2023), elucido brevemente quem foram os filonazis ucranianos Dontsov e Bandera e dou alguns exemplos da sua extraordinária influência na Ucrânia contemporânea.

[5] https://www.thecanadianencyclopedia.ca/en/article/irving-abella.

[6] Anthony Depalma, “Canada Called Haven for Nazi Criminals.” New York Times, February 3, 1997.

[7] O apotegma é de Oscar Wilde, no seu ensaio de 1891: “A decadência da mentira: uma reflexão” (editora Guerra e Paz. Maio de 2022).

[8] https://www.youtube.com/watch?v=_65-VMhNIis

[9] Um “buraco da memória” no romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro é um dispositivo de apagamento e silenciamento dos factos de um tipo ainda mais grave do que a censura, pois tem como objetivo reescrever a história de modo a torná-la completamente alinhada com as necessidades e os caprichos dos detentores do poder.

22 setembro, 2023

 Temas 2 e 3

Afinal, o míssil que atingiu

o mercado de Kostiantynivka

era ucraniano…

José Catarino Soares 

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8.º artigo da série

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!

 

1. O ataque ao mercado de Kostiantynivka

Em 6 de Setembro de 2023, ocorreu um ataque com um míssil ao mercado de Kostiantynivka, uma cidade controlada pelos ucranianos no Leste da Ucrânia. A carga de fragmentos de metal do míssil que atingiu o mercado dessa cidade, perfurou janelas e paredes, matou 15 civis e feriu mais de 30 outros, ficando alguns deles desfigurados.

Menos de duas horas depois, o Presidente Volodymyr Zelensky culpou os «terroristas russos» pelo ataque, e muitos orgãos mediáticos de comunicação social do chamado “Ocidente alargado” seguiram-lhe na peugada. O costume.

2. As crenças de Helena Ferro Gouveia apresentadas como notícia

Um deles foi a CNN Portugal, pela boca da senhora Helena Ferro Gouveia, que é apresentada por esta estação de televisão como uma comentadora “especialista de relações internacionais”. Esta comentadora, confortavelmente instalada em Lisboa, declarou peremptoriamente (antes de qualquer investigação idónea feita in loco por peritos militares) que tinham sido os russos e, mais ainda, que o tinham feito para ameaçar e amedrontar Antony Bliken, ministro dos Negócios Estrangeiros (“State Department”) dos EUA, de visita a Kiev nesse dia.


Manchete, foto e legenda da CNN Portugal

3. A culpa é sempre dos russos

Durante três dias seguiu-se uma intensa campanha do sistema mediático dominante de comunicação social em que os russos foram alvo de todos os vitupérios.

Contudo, rapidamente, alguns genuínos especialistas -- como o major-general Carlos Branco (em Portugal) ou o major Scott Ritter (nos EUA) -- trataram de apontar algumas suspeitas sobre a origem desse míssil que a senhora Helena Ferro Gouveia e centenas de outros comentadores da sua igualha nunca comtemplaram.

«Através de imagens de videovigilância, soava estranho que as pessoas olhassem para o som do projéctil que vinha da direcção da Ucrânia antes de rebentar no mercado. Claro que o major-general [Carlos Branco], como tantos outros, foram acusados, uma vez mais, de estarem a seguir a narrativa russa apenas por desmentirem a versão ucraniana, que é tantas vezes repetida cegamente pelos órgãos de comunicação social sem qualquer verificação» — observou o jornalista independente português Bruno Amaral de Carvalho, sediado na Donbass, no seu canal do Telegram (18 de Setembro 2023).

Nos dias seguintes, o caso iria mudar radicalmente de figura, no sentido apontado pelo major-general Carlos Branco e pelo major Scott Ritter (este no próprio dia do ataque). Seis jornalistas do New York Times estudaram relatos de testemunhas oculares, recolheram fragmentos do míssil, observaram vestígios do seu impacto no solo, examinaram as imagens das câmaras de vigilância e chegaram a conclusões diametralmente opostas às da senhora Helena Ferro Gouveia e dos seus émulos.

4. O New York Times vs. Helena Ferro Gouveia

Segundo um artigo publicado no New York Times em 18 de Setembro, imagens de câmaras de vigilância mostram que o míssil atingiu Konstiantynivka vindo de território controlado pela Ucrânia, e não de áreas ocupadas pelo exército russo. Esta suposição baseia-se no facto de que, no momento da aproximação do míssil, pelo menos quatro transeuntes se voltam simultaneamente para a câmara, ou seja, na direcção do território controlado pela Ucrânia. Além disso, pouco antes da explosão, o reflexo do míssil é visível em dois carros estacionados, indicando a direcção de deslocamento do noroeste, tal como o major-general Carlos Branco já tinha sugerido.

New York Times, 18 de Novembro de 2023

As autoridades ucranianas tentaram impedir que alguns dos jornalistas do New York Times autores da investigação tivessem acesso aos destroços do míssil e à área de impacto, mas os jornalistas acabaram por conseguir chegar ao local, entrevistar testemunhas e recolher os restos das munições utilizadas. Segundo escrevem no seu artigo de 18 de Setembro de 2023, eles têm provas de que poucos minutos antes da explosão no mercado, os militares ucranianos lançaram dois mísseis terra-ar em direção à linha de frente a partir da cidade de Druzhkovka, situada a 15 quilómetros a noroeste de Konstantynivka. Em Druzhkovka, havia repórteres do jornal que ouviram sons de lançamentos de mísseis às 14h. A explosão em Konstantynivka ocorreu quatro minutos após o lançamento dos mísseis. A informação sobre o lançamento de dois mísseis foi confirmada em entrevista ao jornal por um militar ucraniano que pediu o anonimato.

5. Na guerra, a verdade é sempre a primeira vítima

Em resumo, agora, é o próprio New York Times que põe em causa a versão ucraniana e admite ter sido um míssil ucraniano que falhou o seu alvo (russo) a atingir letalmente o mercado de Kostiantynivka.

«Pontualmente, ao contrário do primeiro ano da guerra, a imprensa norte-americana, por vezes até bem mais do que a europeia, destapa as verdades incómodas de um conflito em que não há inocentes. Será o New York Times também putinista?», pergunta Bruno Amaral de Carvalho no mesmo bilhete público.

É óbvio que não. Se o New York Times pode ser apodado de alguma coisa relativamente às guerras na Ucrânia será de “bidenista” ou “zelenskysta” ou coisa semelhante.

Será que a senhora Helena Ferro Gouveia e os seus émulos se vão retractar e pedir desculpa aos espectadores das suas acusações infundadas e caluniosas? É óbvio que não. São pessoas como ela que mantêm vivo e sempre actual o aforismo que serve de título a esta secção. Numa guerra, a verdade é a vítima de eleição de tais comentadores e a procura da verdade a sua última preocupação.

 

29 julho, 2023

 

Editora: Primeiro Capítulo; Data de publicação: 21-07-2023;
          Páginas: 188; ISBN: 978-989-37-5851-9; Género: Não-Ficção;
Idioma: Português


Papel € 18,00; Ebook  € 5,00. Pode ser encomendado na FNAC, BERTRAND e LIVRARIA MARTINS

https://www.livrariaatlantico.com/nao-ficcao/dissipando-a-nevoa-artificial-da-guerra-um-roteiro-para-o-fim-das-guerras-na-ucrania-a-paz-na-europa-e-o-desarmamento-nuclear-universal

SINOPSE

As guerras na Ucrânia são uma grande tragédia humana, sobretudo para o povo ucraniano, com consequências e reverberações de âmbito europeu e mundial. Este livro descortina e analisa as causas contribuintes dessas guerras ‒ que foram duas (e não uma, como vulgarmente se acredita): uma que começou em Maio de 2014 e outra que começou em Fevereiro de 2022, an­tes de se terem fundido militarmente numa só, em Fevereiro de 2023 ‒ as­sim como as justificações que os beligerantes e os seus apoiantes deram para as iniciar e prosseguir.

As conclusões a que chega são contrárias às que são voz corrente, tal como ela se faz ouvir e ver todos os dias nos jornais e revistas de referên­cia, nos canais de televisão e nas emissoras de rádio de grande audiên­cia, alimentados pelas agências noticiosas globais mais importantes: Associated Press (AP), Reuters, Agence France Press (AFP), Deutsche Presse-Agentur (DPA). Uma delas é que essas guerras eram ambas evitáveis. Uma outra, a de que é possível pôr-lhes fim imediatamente com uma solução de paz justa que erradique as causas dos três problemas que as originaram. O livro apresenta essa solução de “ficha tripla”.

Além do seu cortejo infindável de mortos, feridos, desaparecidos em com­bate, capturados pelo inimigo, deslocados e refugiados e das enormes destruições materiais que tem causado, a segunda guerra na Ucrânia teve também muitos outros efeitos gravosos. O mais gravoso de todos consistiu em ter aumentado enormemente a possibilidade-de-ocorrer uma guerra nuclear mundial ‒ que seria a primeira do género, mas também a última ‒ para níveis de actualização potencial sem precedentes. O livro descreve essa ameaça medonha e o modo de a esconjurar através de um processo de iniciativa cidadã conducente ao desarmamento nuclear universal.

 

ÍNDICE

0. Preâmbulo………………………………………………………………………    9

                  1. Causas da primeira guerra na Ucrânia…………………………………………...................

2. Causas da segunda guerra na Ucrânia………………………………….............

3. A colossal patranha da anexação da Crimeia pela Rússia...................................

4. Uma guerra provocada…………………………………………………………. 51

4.1. Uma séria provocação………………………………………………………... 51

4.2. Um erro fatídico………………………………………………………………    53

4.3. Nyet quer dizer Nyet.......................................................................................... ……………………………………………………...55

4.4. Entra a Rand Corporation……………………………………………………. 61

5. Uma guerra injustificada?....................................................................................  ……………………………………...........................63

5.1. Explicar não é justificar..................................................................................... ……………………………………...........................63

5.2. Cronologia dos acontecimentos imediatamente anteriores à invasão………... 64

 5.3.  A justificação da Rússia.....................................................................................  …………………………………………………….  67

6. Discussão dos argumentos justificativos da Rússia……………………………. 71

6.1.  Os artigos 1.º e 51.º da Carta das Nações Unidas……………………………    71

6.2. A questão da legítima defesa colectiva………………………………………. 72

6.3. A questão da integridade territorial…………………………………………... 75

6.4. A questão do genocídio………………………………………………………. 78

6.4.1. Duas perguntas................................................................................................

6.4.2. O construto "Responsabilidade de Proteger.....................................................

6.4.3. Uma caixa de Pandora.....................................................................................  ……………………………………………………..82

6.4.4. Duplicidade de critérios…………………………………………………….87

6.5. A questão das armas nucleares……………………………………………….. 90

6.5.1. O argumento de Putin sobre a ameaça existencial à Rússia……………….. 90

6.5.2.  Guerra preventiva e guerra preemptiva……………………………………    92

7. Caracterização da Operação Militar Especial………………………………….. 95

8. Ordem internacional baseada-em-regras: bem prega Frei Tomás……………... 99

9. As guerras na Ucrânia eram evitáveis……………………………………….....…105

9.1. As responsabilidades dos EUA e dos países-membros da OTAN………........…...107

9.2. A responsabilidade de Zelensky........................................................................  …………………………………………….111

10. O caminho para a paz na Ucrânia…………………………………………......…117

11. Uma ameaça permanente à existência da humanidade......................................

11.1. Oligarcas para todos os gostos........................................................................

11.2. Destruição mutuamente assegurada…............................................................ ……………………………………126

12. Rumo a um planeta sem armas nucleares..........................................................……………………………………135

Notas e Referências suplementares..........................................................................  ……………………………………………143

 

03 julho, 2023

 Temas 2 e 3

 

O rebentamento da barragem

 de Nova Kakhovka

e outros alegados crimes de guerra

― Qui Bono? Qui Malo?

(Parte 1: O Ministério da Verdade da União Europeia)

 

José Catarino Soares

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7º. artigo da série

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!

 

1. O rebentamento da barragem de Nova Kakhovka

Não sei, obviamente, qual foi causa suficiente, ou quais foram as causas contribuintes [1], do rebentamento da barragem de Nova Kakhovka em 6 de Junho de 2023.

Há, logicamente, várias possibilidades a considerar. Poderá ter rebentado como resultado (1) de um acto de sabotagem, ou (2) de uma cedência estrutural da barragem ao desgaste causado por múltiplos ataques militares que tem sofrido desde o início da segunda guerra na Ucrânia (24 de Fevereiro de 2022 até à data). No caso de ter sido um acto de sabotagem, poderá ter sido realizado (1.a) pelas tropas ucranianas (com a ajuda ou não dos seus aliados da OTAN), ou (1.b) pelas tropas russas. Só uma investigação independente (das partes beligerantes, embora com a sua participação), isenta e competente poderá apurar qual destas hipóteses é a verdadeira — tanto mais que a Ucrânia excluiu liminarmente a hipótese (2) e que a Ucrânia e a Rússia se acusam mutuamente de serem os autores do acto de sabotagem que constitui a hipótese (1).  

2. A Comissão Europeia e a sua ciência infusa 

Não obstante isso, é forçoso constatar que Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia; Joseph Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia; Janez Lenarčič, comissário europeu para a gestão de crises, e Dana Spinant, porta-voz da Comissão Europeia, não precisam de nenhuma investigação independente, isenta e competente para chegarem a uma conclusão firme sobre este assunto. Elas e eles já sabem, de antemão, qual é a resposta: “Foi a Rússia quem fez explodir a barragem. Caso encerrado”.

A Rússia terá de pagar pelos crimes de guerra cometidos na Ucrânia.  A destruição da barragem, um ataque ultrajante às infra-estruturas civis, põe em risco milhares de pessoas na região de Kherson (Ursula von der Leyen, Twitter, 6 de Junho de 2023).

Os ataques da Rússia contra infra-estruturas civis críticas ucranianas atingiram hoje um nível sem precedentes com a destruição da barragem da central hidroeléctrica de Kakhovka. A União Europeia condena este ataque com a maior veemência possível. Representa uma nova dimensão das atrocidades russas e pode constituir uma violação do direito internacional, nomeadamente do direito humanitário internacional (Joseph Borrell e Janez Lenarčič, 6 de Junho de 2023).

A Rússia está lá [na Ucrânia], a bombardear e a atirar salvas de artilharia, e a Ucrânia está a defender-se, pelo que a Rússia é a principal responsável pelo que se está a passar na Ucrânia... e esta é a primeira afirmação que temos de ter em mente quando analisamos este incidente e qualquer outra coisa (Dan Spinant, 9 de Junho de 2023).

Mas, perguntar-se-á, como sabem estes altos dignitários da Comissão Europeia o que só uma investigação independente, isenta e competente poderá vir a apurar sobre a causa ou causas do rebentamento da barragem de Nova Kakhovka? Sabem-no graças à ciência infusa, da qual, manifestamente, crêem terem sido ungidos em virtude dos cargos que ocupam.

3. Censura prévia e “superioridade moral do Ocidente”

“Ciência infusa” é um outro nome para “ignorância indouta e atrevida”. Quando a ciência infusa conquista o poder político, a primeira coisa que faz é tentar manter o grande público num estado permanente (i) de ignorância parcial selectiva relativamente ao que realmente se passa e (ii) de credulidade relativamente ao que os dignitários do poder político dizem sobre o que realmente se passa.

A União Europeia tomou duas medidas principais para conseguir alcançar esses dois objectivos relativamente às guerras que se travam na Ucrânia. A primeira foi a de censurar todas as notícias, todas as opiniões e todos os testemunhos oriundos da Rússia, da República Popular de Luhansk (RPL) e da República Popular de Donetsk (RPD) — três dos quatro países beligerantes directamente envolvidos nas guerras que se travam na Ucrânia, o quarto sendo a própria Ucrânia.

As únicas notícias e opiniões e os únicos testemunhos autorizados no espaço da União Europeia são aqueles que são oriundos do governo ucraniano e das agências de comunicação social ao seu serviço, dos órgãos mediáticos de comunicação social da Ucrânia e dos países seus aliados no autoproclamado “Ocidente alargado”,  em particular os países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN, também conhecida como NATO pelos falantes de língua inglesa e pelos seus imitadores portugueses) e da União Europeia (UE) — duas organizações que têm 21 países-membros em comum.  

Destarte, no dia 2 de Março de 2022, o Conselho Europeu (o órgão máximo da União Europeia, constituído pelos chefes de Estado ou de Governo dos 27 Estados‑Membros da UE, mais o presidente do Conselho Europeu, mais a presidente da Comissão Europeia) decidiu censurar drasticamente o que os cidadãos dos países da UE podem ouvir e ver nas estações de rádio e radiotelevisão sobre a Rússia. Para isso, baniu a estação de televisão russa Russia Today (RT) e as suas filiais ‒ RT English, RT United Kingdom, RT Germany, RT France, RT Spanish ‒ assim com a agência internacional de notícias e  emissora de rádio internacional Sputnik, proibindo-as de operarem em todo o espaço da União Europeia, «nomeadamente através da sua transmissão ou distribuição por quaisquer meios como cabo, satélite, IPTV [ou TVIP], fornecedores de serviços Internet, plataformas ou aplicações de partilha de vídeos na Internet, quer novos, quer pré-instalados».

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, justificou esta medida da seguinte maneira:

A Russia Today e a Sputnik, bem como as suas filiais, deixarão de poder divulgar as suas mentiras para justificar a guerra de Putin e semear a divisão na nossa União. Por isso, estamos a desenvolver ferramentas para proibir a sua desinformação tóxica e prejudicial na Europa (Statement by President von der Leyen on further measures to respond to the Russian invasion of Ukraine, 27 February 2022).


«Permitir que os cidadãos dos países da União Europeia possam aceder livremente aos orgãos mediáticos de comunicação social da Rússia sem a nossa autorização? Uuuu!…Que horror !!»

Na mesma ordem de ideias, o Conselho Europeu justificou as suas medidas censórias assim: 

As acções sistemáticas de manipulação de informações e de desinformação por parte do Kremlin são usadas como instrumento operacional na sua agressão à Ucrânia. Constituem igualmente uma ameaça significativa e directa à ordem e segurança públicas da União /…/ A Federação da Rússia desenvolveu uma campanha sistemática de desinformação, manipulação de informação e distorção dos factos a fim de reforçar a sua estratégia de desestabilização dos seus países vizinhos, bem como da UE e dos seus Estados-Membros  (Council of the EU. Press release. 2 March 2022) [N.E., os realces a negrito pertencem ao original] [N.E.= nota editorial]

No dia 9 de Junho de 2022, o Conselho Europeu acrescentou à sua lista mais três órgãos mediáticos russos de comunicação social: Rossiya RTR/RTR Planeta, Rossiya 24/Russia 24 e TV Centre International (TVCI).

A empresa EutelSat S.A. ‒ o terceiro maior operador privado de satélites de radiodifusão do mundo ‒ apressou-se a declarar que removeria a RTR Planeta e a Russia 24 dos seus satélites, tal como já o tinha feito relativamente à RT. Não foi a única empresa oligopolista a fazê-lo. Todas as empresas oligopolistas que controlam as principais plataformas electrónicas das redes mediáticas sociais se apressaram a obedecer às ordens do Conselho Europeu e da Comissão Europeia, desde a primeira hora: Alphabet Google’s Inc (através do YouTube, do News Search e do Google Play Store), Meta Plataforms Inc (através do Facebook e do Instagram), Microsoft Corporation (através da Microsoft Star, MSN.com, Microsoft Store e do motor de busca Bing), Apple (através do Apple Store), Twitter, TikTok, Reditt. Belo exemplo da autoproclamada e tão gabada independência da “iniciativa privada” e dos “mercados” em relação ao poder de Estado!

Mas não é o único exemplo. Logo no dia seguinte à proibição da RT e da Sputnik pela UE, essa decisão foi saudada e apoiada pelo ERGA [European Regulators Group of Audiovisual Media Services], o Grupo de Reguladores Europeus dos Serviços de Comunicação Social Audiovisual, ou seja, a associação europeia das firmas que vendem publicidade nos canais de televisão e rádio — uma associação da qual faz parte um grupo empresarial português dono de uma estação de televisão: a SIC-Impresa. O ERGA decidiu suspender imediatamente todos os membros russos da associação, entre eles os seguintes: EMG (Europa Media Group), Everest Sales, Gazprom-Media, Media-1, NRA (National Advertising Alliance) e Russian Media Group. No seu comunicado de imprensa de 2 de Março de 2022, em que comentava a proibição da RT e da Sputnik pela UE, o ERGA deixou claro que estava «unido» e «empenhado em contribuir para a aplicação rápida e eficaz das medidas por todas as partes interessadas». 

Como forte sinal da nossa chefia [leadership, no original] e contributo para o esforço internacional em isolar a Rússia da comunidade internacional, suspendemos todos os serviços de todos os membros russos.

O FaceBook e o Instagram foram mesmo até ao ponto de proclamar que autorizariam a publicação de bilhetes públicos (ingl. “posts”) com “tiradas de ódio” (ingl. “hate speech”), desde que os seus autores fôssem ucranianos a viver na Ucrânia (!!!). Belo exemplo da autoproclamada e tão gabada “superioridade moral” do “Ocidente alargado”! 

Finalmente, no dia 22 de Dezembro de 2022, o Conselho Europeu completou a sua lista de órgãos mediáticos russos de comunicação social proscritos do espaço público da União Europeia acrescentando-lhe mais quatro estações de televisão russas: NTV, Pervyi Kanal, Rossiya 1, Ren TV. Esta medida censória foi justificada da seguinte maneira:

Acrescentámos a NTV, a Pervyi Kanal, a Rossiya 1 e a Ren TV [à lista] porque todas elas são propriedade do Estado russo ou estão sob a influência do Kremlin e divulgam desinformação e propaganda russas.

Estas decisões são, presumo, verdadeiramente espantosas para quem viva na ilusão de que a União Europeia é um espaço onde reina o mais escrupuloso respeito pelos direitos e liberdades civis — em particular os que constam do artigo 11.º da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” [DDHC], aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte de França em 26 de Agosto de 1789, do artigo 19.º da “Declaração Universal dos Direitos Humanos” [DUDH], aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro de  1948, e do artigo 11.º da “Carta do Direitos Fundamentais da União Europeia [CDFUE], proclamada pelo Parlamento Europeu, o Conselho Europeu e a Comissão Europeia em 12 de  Outubro de 2012.   

―Artigo 11.º [DDHC] - A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do Homem; todo o cidadão pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos previstos na Lei. [N.E. Salvo menção em contrário, nesta como nas demais citações deste artigo, o realce, por meio de negrito, foi acrescentado ao original]

― Artigo 19.º [DUDH] -Todo o ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

― Artigo 11.º [CDFUE]- (Liberdade de expressão e de informação)

1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras.

2. São respeitados a liberdade e o pluralismo dos meios de comunicação social.


   «Respeitar o artigo 11.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789); o artigo 19.º da Declaração
Universal dos Direitos Humanos
 (1948) ou mesmo o artigo 11.º da Carta do Direitos Fundamentais da União Europeia (2012)? Uuuuu!….Que horror!»

O Conselho Europeu violou e continua a violar estes três artigos. O Conselho Europeu arroga-se o direito de decidir o que é informação, o que é propaganda e o que é desinformação; o que é um órgão de informação e o que é um órgão de propaganda [2]. Além disso e pior do que isso, arroga-se o direito de decidir a que tipo de informação e desinformação e a que tipo de propaganda é que os cidadãos dos países que integram a UE podem ter acesso, visto que ninguém minimamente advertido acredita que a propaganda, a desinformação, as notícias fraudulentas e a distorção dos factos sejam apanágio exclusivo dos órgãos mediáticos de comunicação social e dos governantes de um único país ‒ a Rússia ‒, de que estariam isentos os órgãos mediáticos da comunicação social e os governantes da Ucrânia, dos países membros da UE, dos países membros da OTAN e dos demais países do “Ocidente alargado”.

Por último, mas não menos importante, o Conselho Europeu arrogou-se poderes liberticidas para os quais não tem, sequer, qualquer respaldo legal. Como salientou Ricardo Gutiérrez, secretário-geral da Federação Europeia de Jornalistas (EFJ, na sigla em Inglês),

A regulação dos meios de comunicação não entra na competência da UE. /…/ Acreditamos que a UE não tem qualquer direito de dar ou tirar licenças de emissão. Essa é uma competência exclusiva dos Estados-membros [3].

Gutiérrez tem razão no que diz. Dois reputados juristas ‒ a professora Natali Helberger, da Faculdade de Direito da Universidade de Amesterdão (Holanda) e o professor Wolfgang Schulz, da Faculdade de Direito da Universidade de Hamburgo (Alemanha) ‒ explicaram a gravidade e o carácter inédito da decisão do Conselho Europeu.

Há apenas alguns meses, uma frase como esta [de proibir órgãos mediáticos de comunicação social, N.E.de um decreto regulamentar do Conselho da UE teria sido impensável. Um princípio sacrossanto da ordem mediática europeia é a proibição da censura estatal. Será que esta proibição vai contra os próprios valores e liberdades que a União Europeia tenta defender? E, em caso afirmativo, quais são as implicações?

Ao proibir certos meios de comunicação social de estarem disponíveis na União Europeia, o Conselho está a intervir numa área (a regulação dos meios de comunicação social) que é normalmente deixada ao critério dos Estados-Membros. É indiscutível ‒ e foi confirmado muitas vezes pelo Tribunal de Justiça Europeu ‒ que é da exclusiva responsabilidade dos Estados-Membros moldar o panorama dos meios de comunicação social; isto faz parte da sua competência cultural. Mesmo assim, a maioria dos Estados-Membros permaneceu calada perante a erosão da sua autoridade. O espírito geral é que precisamos de nos unir para sermos duros com a Rússia [4].

Mesmo que isso implique espezinhar a Carta do Direitos Fundamentais da União Europeia!

No seu comunicado, Gutiérrez chamou também a atenção para efeitos não pretendidos, mas bem reais, da medida do Conselho Europeu:

Este acto de censura pode ter um efeito totalmente contraproducente nos cidadãos que seguem os meios agora banidos

Natali Helberger e Wolfgang Schulz indicam e contextualizam historicamente dois desses efeitos colaterais:

O que nos leva a um problema potencial e fundamental da proibição, nomeadamente o facto de os cidadãos europeus, os decisores políticos e os jornalistas poderem ter um interesse muito legítimo em procurar uma impressão autêntica das narrativas da propaganda russa. Uma das raízes históricas da liberdade de informação na Europa reside na experiência de proibir a escuta de “emissoras inimigas” por regimes opressivos. Um efeito colateral problemático dessa proibição é o facto de forçar os conteúdos da RT e da Sputnik a ficarem na sombra, impedindo os cidadãos da UE e os meios de comunicação social de reconhecerem e formularem uma resposta resiliente à propaganda errada, e afectando o seu direito a receber informação (ibidem).

Um outro efeito colateral ‒ acrescento eu ‒ é o de levar os cidadãos dos países membros da UE e da OTAN a concluir que a UE tem receio que os meios de comunicação social russos que ela decidiu banir possam trazer ao conhecimento do público factos, testemunhos e notícias que ela gostaria de esconder...

Ao contrário da decisão tomada pelos governantes europeus, o secretário-geral da EFJ defende que teria sido uma melhor medida contra-atacar «a desinformação de meios propagandistas – ou alegadamente propagandistas – ao expor os seus erros factuais ou mau jornalismo» [5].

Gutiérrez parece confundir propaganda e desinformação (cf. nota [2]). Mas, tirando isso, é óbvio que a sua prescrição seria a indicada se incumbisse ao Conselho Europeu ou à Comissão Europeia (a instância da UE que sugere, prepara e executa as medidas do Conselho Europeu) a função ou a tarefa de combater a desinformação e o mau jornalismo, venha ela de onde vier e seja onde for que ele seja praticado. Contudo, é também óbvio que essa não é, de modo nenhum ‒ e ainda bem que assim é ‒ uma função nem uma tarefa do Conselho Europeu e da Comissão Europeia.

O que deve ser salientado relativamente à proibição de 13 órgãos mediáticos russos de comunicação social decretada pelo Conselho Europeu é o facto de ser uma decisão não só ilegítima, mas também duplamente celerada, porque não tem suporte legal nem nos tratados da União Europeia (como veremos mais adiante) nem nas constituições da maioria dos países pertencentes à UE. Não o tem, seguramente, no caso de Portugal.

O artigo 37.º (Liberdade de expressão e informação) da Constituição da República Portuguesa, diz o seguinte:

1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.

2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.

No seu afã proibicionista e inquisitorial, alegadamente antiPutin, o Conselho Europeu “esqueceu-se” que as suas medidas contra a liberdade de expressão, a liberdade de imprensa e o direito à informação são medidas próprias dos regimes políticos que tanto diz execrar e que qualifica de “autocráticos” — como alega ser o caso do regime…de Putin! [6]

Apesar do silêncio cúmplice dos governos e de muitos partidos com assento parlamentar por essa Europa fora (Portugal inclusive), houve quem, nas organizações profissionais e sindicais da chamada sociedade civil, se alarmasse ao compreender imediatamente que a UE se comprazia a dar um tiro no pé sem sequer pestanejar, sinal de que tem pés de barro, não de carne e osso.

É o caso do jornalista Joaquim Vieira, fundador e presidente do “Observatório da Imprensa”, em Portugal, que declarou: 

Não é o bom caminho, e acho difícil conseguir-se defender esta decisão. Para todos os efeitos é censura. Eu não estou de acordo. O que nos distingue das ditaduras é a possibilidade de livre expressão. Às tantas vão dizer que somos iguais ao regime de Putin [7].

Tal como Gutiérrez, mas mais incisivamente, Joaquim Vieira alertou também para os danos reputacionais inerentes a esta decisão da UE.

Seria melhor que [ela] não tivesse existido, porque isso mostrava a superioridade moral que nós, no Ocidente, temos sobre um regime como o de Putin.

O silenciamento dos meios de comunicação russos no espaço da UE ‒ concluiu Joaquim Vieira ‒ vai «contra o código genético de uma sociedade aberta».

Na verdade, os danos reputacionais que a UE causou a si própria ao tomar estas suas medidas contra o direito de informar, de se informar de ser informado sem impedimentos nem discriminações e independentemente de fronteiras, são ainda maiores do que os indicados por Joaquim Vieira.

O regime de Putin não proibiu a população russa de aceder aos órgãos mediáticos de comunicação social dos países da UE e da OTAN a pretexto de se defender contra uma campanha sistemática e internacional de desinformação, manipulação mediática de informações e distorção dos factos contra a sua denominada “Operação Militar Especial” na Ucrânia. E seria lógico que o tivesse feito se compartilhasse a concepção que o Conselho Europeu e a Comissão Europeia têm da liberdade de expressão e informação – “Liberdade de expressão e informação sim, mas só a dos órgãos mediáticos de comunicação social autorizados por nós” ‒, mais do que não seja a título de represálias. Mas a verdade é que o não fez [8]. 

Por conseguinte, se o regime de Putin for comparado, neste particular, com os regimes em vigor na UE, não pode deixar de aparecer como o paladino «da possibilidade de livre expressão» e da «sociedade aberta». Destarte ‒ ironia das ironias ‒ é ele que pode reivindicar uma «superioridade moral» (!) relativamente ao «Ocidente» sem receio de um desmentido…   

4. A União Europeia veste a pele do Big Brother

No romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell, um país chamado Oceania é governado por um partido todo-poderoso, tutelado por um personagem misterioso e omnipresente, afectuosamente apelidado de “Irmão Mais Velho” (ingl. “Big Brother”), que vela dia e noite pelo bem-estar e a saúde mental dos cidadãos de Oceania [9]. O lema do partido é: “GUERRA É PAZ. LIBERDADE É ESCRAVIDÃO.  IGNORÂNCIA É FORÇA”.

Para isso, o partido do Irmão Mais Velho construiu vários instrumentos de poder deveras originais, entre ao quais o Duplipensar (a arte de sustentar duas ideias contraditórias ao mesmo tempo e de aceitar ambas), a Novilíngua (a língua oficial da Oceania, baseada no Inglês-padrão, mas expurgada de todas as palavras que descrevem ideias políticas “não ortodoxas” e com um vocabulário muitíssimo reduzido para limitar o leque de ideias que podem ser expressas e garantir um discurso “politicamente correcto” em todas as circunstâncias) e os quatro Ministérios omnipotentes: da Paz, da Verdade, do Amor e da Abundância.

Sucintamente, o Ministério da Paz ocupa-se da organização da guerra; o Ministério da Verdade ocupa-se com o fabrico de mentiras; o Ministério do Amor ocupa-se com a organização da tortura e o Ministério da Abundância ocupa-se com a organização da fome. Estes nomes oximorónicos não são «nem acidentais, nem resultam da hipocrisia vulgar: são exercícios deliberados de Duplipensar» (George Orwell, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro).

O Ministério da Verdade (MINIVER na Novilíngua de Oceania) rege-se pela palavra de ordem “Ignorância é Força”. A sua missão é controlar a informação que chega aos cidadãos, censurando todas as notícias e opiniões que possam embaciar, questionar, criticar ou contestar as políticas do partido governante e as directivas do Irmão Mais Velho. Para o conseguir, o Ministério da Verdade difunde um fluxo contínuo de informações falsas, mentiras e notícias fraudulentas, enquanto reescreve continuamente a história de Oceania e do mundo em função das necessidades e conveniências políticas do partido governante em cada momento.

      Representação artística do edifício do Ministério da Verdade (MINIVER) no romance 
  Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell. Na frontaria principal do edifício
pode ler-se
Ignorance is Strenght (Ignorância é Força); Freedom is Slavery
(Liberdade é Escravidão); War is Peace (Guerra é Paz).
Autor da gravura: Seth Sua.

Num raro comentário sobre esse seu romance, publicado em 6 de Junho de 1949, George Orwell declarou:

Não creio que o tipo de sociedade que descrevi [no romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro] irá necessariamente ocorrer, mas estou convencido (lembrando, claro, o facto de que o livro é uma sátira) de que algo parecido poderia ocorrer [10] [itálicos no original]

Acabámos de ver um exemplo disso no modo como a Comissão Europeia e o Conselho Europeu resolveram recriar em Bruxelas uma versão do Ministério da Verdade (MINIVER) de Oceania a pretexto da segunda guerra na Ucrânia.

Mas convém acrescentar, em abono da verdade completa, que não foram apenas a Comissão Europeia e o Conselho Europeu que actuaram nesse sentido. Foi também o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), cuja missão consiste em «fiscalizar a legalidade dos actos das instituições da União Europeia, assegurar o respeito, pelos Estados-Membros, das obrigações decorrentes dos Tratados, e interpretar o direito da União a pedido dos juízes nacionais» (https://curia.europa.eu/jcms/jcms/Jo2_6999/pt/).

Em 27 de Julho de 2022, o Tribunal Geral da União Europeia (um dos dois ramos do Tribunal de Justiça da União Europeia), pronunciou o seu veredicto relativamente ao processo judicial movido pela RT France contra o Conselho Europeu. O Tribunal Geral considerou que a proibição da RT France na UE não violava o direito à liberdade de expressão (!!!).

Ronan Ó Fathaigh, professor no Instituto para as Leis da Informação da Universidade de Amsterdão, e Dirk Voorhoof, professor no Centro de Direitos Humanos da Universidade de Ghent e co-fundador da Legal Human Academy, escreveram um artigo intitulado Freedom of Expression and the EU’s Ban on Russia Today: A Dangerous Rubicon Crossed [“A liberdade de Expressão e a Proibição da Russia Today pela União Europeia: um perigoso Rubicão que foi atravessado”] [11]. Estes dois juristas arrasam completamente nesse seu artigo (e noutros artigos [12]) todos os argumentos do acórdão do Tribunal Geral da União Europeia e mostram o redondo vazio que se encontra por debaixo dos conceitos que usa — como por exemplo, o de “propaganda” (que não se encontra definido em parte nenhuma na legislação da UE), ou o de [publicações de] “origem estrangeira”, que um acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos [Association Ekin v. France], considerou não poder ser invocado para fundamentar medidas censórias contra a liberdade de imprensa.

Não vou aqui reproduzir tudo o que estes juristas dizem sobre a completa falta de respaldo legal do acórdão do Tribunal Geral da União Europeia sobre o processo que a RT France moveu contra o Conselho Europeu. Limitar-me-ei a respigar algumas das suas conclusões sobre alguns dos aspectos mais cínicos desse acórdão.

Em sexto lugar, o Tribunal Geral dá eco ao argumento do Conselho Europeu e da Comissão Europeia segundo o qual a essência do direito à liberdade de expressão não é restringida pela proibição, uma vez que outras possibilidades permanecem em aberto, como a investigação e as entrevistas efectuadas pelos jornalistas da RT France, a produção de programas e a distribuição dos seus programas fora da UE. Com este tipo de argumentos, qualquer interferência na liberdade de expressão pode ser justificada, uma vez que existem sempre outras alternativas. É quase cínico sugerir que a essência dos direitos dos jornalistas não fica substancialmente restringida ou ameaçada enquanto os jornalistas puderem efetuar entrevistas e investigação, sem terem a possibilidade de fazer chegar ao público essas entrevistas e os resultados da sua investigação. Sem a possibilidade de tornar a informação pública e disponível para outros, o direito à liberdade de expressão é restringido na sua própria essência.

A mesma observação pode ser feita em relação à consideração do Tribunal Geral de que a proibição da RT France não afecta a possibilidade de os seus programas serem distribuídos fora da UE /…/ 

Em suma,

Não é exagero dizer que o acórdão sobre a RT France abre um precedente extremamente perigoso para a liberdade de expressão na Europa, e há uma série de críticas fundamentais a fazer ao acórdão.

5. O guião mais usitado do Ministério da Verdade da União Europeia

A segunda medida principal que o Ministério da Verdade da União Europeia tomou para conseguir alcançar os seus dois objectivos relativamente às guerras que se travam na Ucrânia ‒ manter o grande público num estado permanente (i) de ignorância parcial selectiva relativamente ao que realmente se passa e (ii) de credulidade relativamente ao que os dignitários do poder político dizem sobre o que realmente se passa ‒ foi a de adoptar alguns guiões muito simples para todas a suas declarações. Um desiderato complementar desses guiões seria o de poderem servir também de linhas orientadoras ao sistema mediático dominante de comunicação social no seu tratamento noticioso e opinativo da actualidade.

Julgo que Jean Neige [13] e Tucker Carlson [14] independentemente um do outro, conseguiram ambos descortinar o teor de um desses guiões ‒ o mais usitado de todos ‒ através de uma análise fina dos seus tropos recorrentes no fluxo noticioso e opinativo fornecido pelo sistema mediático dominante de comunicação social [15]. Por comodidade de expressão, vou denominá-lo o “guião da [crença postiça na] maldade absoluta de Putin” ou, se preferirem, o “guião da [crença postiça na] superlativa maldade putinesca”. Ei-lo, então, nas palavras de Jean Neige: 

No cenário da demonização [de Putin e dos Russos, N.E.], o adversário não é humano nem racional; ele representa o Mal absoluto, e o Mal não tem outro objetivo senão cometer o Mal. É impressionante constatar quantas centenas de milhões de pessoas  podem ser convencidas por este pensamento simplista e pronto-a-pensar, que parece destinar-se a crianças de 7 anos (Jean Neige, Retour sur les allégations de crimes de guerre russes en Ukraine: Boutcha (3/6). France Soir. 7 septembre 2022).

E nas palavras de Tucker Carlson:

“Putin é a maldade em figura de gente [uma variante deste tropo é que Putin é um imprevisível psicopata, sem rival em imprevisibilidade no pequeno e selecto mundo dos estadistas; outra variante é a de que é um perigosíssimo facínora, sem rival em perigosidade no pequeno e selecto mundo dos estadistas, N.E.]. E as pessoas más fazem coisas más pelo puro e obscuro prazer de serem más. Neste caso particular [o do rebentamento da barragem de Nova Kakhovka, N.E.], Putin atacou-se a si próprio, o que é a coisa mais maldosa que alguém pode fazer, e que está, por conseguinte, perfeitamente de acordo com a natureza de um homem tão mau”. É esta a explicação deles (Tucker in Twitter. Episode 1. June 2023).

Desafortunadamente, não sei quem é o autor deste excelente cartoon

“Deles” quem? De governantes como Ursula von der Leyen, Joseph Borrell, Charles Michel, Joe Biden/Antony Blinken/Victoria Nuland, Lindsey Graham, Andrzej Duda, Boris Johnson/Liz Truss/Rishi Sunak, Emmanuel Macron, Olaf Scholz, Annalena Baerbock, Sanna Marin, Eva Magdalena Andersson, Giorgia Meloni, Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa, entre outros, e de comentadores, como, por exemplo, em Portugal, José Milhazes, Germano de Almeida, Nuno Rogeiro, Ricardo Costa, todos, por sinal, da SIC Notícias. Mas podíamos citar muitos outros comentadores noutras estações e canais de televisão.

No caso recente do rebentamento da barragem de Nova Kakhovka, todos os comentadores que ouvi na RTP e nas televisões comerciais estabelecidas em território português, com uma única excepção [16], produziram os seus comentários em estrita conformidade com o guião da maldade absoluta de Putin.

Não tenho dúvidas de que se trata de uma operação russa (José Milhazes, SIC Notícias, 6-6-2023).

Onde vai Milhazes buscar as suas certezas inabaláveis? Obviamente que não é a factos que provem o que afirma, porque Milhazes não tem nenhum. Conjecturo, pois, que Milhazes tem como único fundamento da sua atoarda a crença postiça na maldade absoluta de Putin.

O primeiro objetivo dos russos com a destruição da barragem era impedir que os ucranianos progredissem rapidamente até à Crimeia” (Nuno Rogeiro, “Leste-Oeste”, Expresso, 11-06-2023).

Como sabe Nuno Rogeiro que os russos destruíram a barragem? A pergunta não pode ser respondida porque Rogeiro não sabe o que diz saber. Não é possível saber o que quer que seja por ciência infusa. Rogeiro acredita, isso sim, tal como o seu parceiro Milhazes, que foi isso que aconteceu. Conjecturo, pois, que compartilha também com Milhazes a crença postiça na maldade absoluta de Putin. É essa crença postiça que confere uma vaga aparência de verosimilhança às acusações que fazem, visto que podemos esperar toda a espécie de maldades de alguém superlativamente maldoso.

Os russos minaram há vários meses a barragem de Kakhovka e a central hidroelétrica. Zelensky tinha alertado em Outubro que a catástrofe ocorrida há dias poderia acontecer a qualquer momento. A explosão da barragem é um crime impensável. Mas era, na verdade, uma tragédia quase anunciada — que atrasa dramaticamente os planos da contraofensiva ucraniana a Sul (Germano Almeida, “Compreender o conflito: tragédia impensável”, SIC Notícias, 08-6.2023).

Como sabe Germano de Almeida que os russos minaram há meses a barragem de Nova Kakhovka e a central hidroeléctrica? A pergunta não pode ser respondida porque Germano de Almeida não sabe o que diz saber. Não é possível saber nada por ciência infusa. Germano de Almeida diz que se trata de um “crime impensável”, cujo autor, por conseguinte, só pode ser alguém superlativamente maldoso. Quem? Putin, naturalmente, para quem acredita na sua maldade absoluta de Putin, ou se comporta como se acreditasse nela.Voltaremos, na 2.ª parte deste artigo, a esta ideia do rebentamento da barragem de Nova Kakhovka como “crime impensável”, que tem que se lhe diga, como veremos.

6. Um precioso conselho com mais de 2100 anos

A Turquia propôs a constituição de uma comissão de inquérito independente (de ambos os beligerantes), isenta e competente para investigar a causa ou as causas do rebentamento da barragem de Nova Kakhovka. O governo de Zelensky rejeitou imediatamente essa proposta. Zelensky e os seus colaboradores são grandes amigos da verdade e da transparência, como se constata.

Não estamos, porém, condenados a assistir de dentes cerrados, mas impotentes, ao desfile das notícias fraudulentas do Ministério da Verdade da União Europeia e dos seus retransmissores no sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado”. Apesar de não sabermos quem (ou o que) fez rebentar a barragem de Nova Kakhovka e apesar da falta de uma comissão de inquérito independente sobre esse acontecimento, podemos fazer muitos progressos no sentido da descoberta da verdade acerca desta questão se seguirmos um conselho com mais de 2.100 anos.

Cícero imortalizou-o em Pro Sexto Roscio Amerino [“Em prol de Sextus Roscius de Ameria”], um discurso que proferiu na barra do tribunal em defesa de Sextus Roscius, um cidadão romano acusado de ter assassinado o seu pai (80 a.C.). Convém saber que o crime de parricídio era o mais grave de todos para os Romanos.

L. Cassius ille, quem populus Romanus verissimum et sapientissimum iudicem putabat, identidem in causis quaerere solebat, qui bono fuisset?   (Cícero, Pro Roscio Amerino, §§ 84, 86)

ou seja, traduzindo: 

Lúcio Cássio [Lucius Cassius Longinus Ravilla, eleito tribuno da plebe em 137 a.C., eleito cônsul em 127 a.C. e eleito recenseador em 125 a.C., N.E.], que o povo romano considerava um juiz extremamente justo e sábio, perguntava sempre nos julgamentos a que presidia: “quem ganha/beneficia com isto?” [Minha tradução, com a ajuda da tradução inglesa de Cícero, Defence Speechs (translated with Introductions and Notes by D. H. Berry. Oxford World Classics. Oxford University Press. 2000, pp.34-35] 

Em suma, disse-nos Lúcio Cássio, decorre da natureza humana que ninguém comete um crime premeditado sem a esperança de um benefício ou de um ganho. Daí a pergunta: Qui bono fuisset? [“quem ganha/beneficia com isto?”] ou, para abreviar, Qui bono?

7.  O teste de Cássio

Sigamos, então, o conselho de Lúcio Cássio ‒ como o fez o próprio Cícero, com muito êxito [17] ‒ se quisermos deslindar, ainda que incompleta e preliminarmente, os alegados crimes de guerra cometidos no decurso da segunda guerra na Ucrânia.

Quando nos parecer que ambos os contendores em liça ‒ Rússia e Ucrânia ‒ podem ambos beneficiar com tal ou tal (alegado) crime de guerra, nada nos impede de aperfeiçoarmos a pergunta de Lúcio Cássio ‒ Qui bono? ‒ completando-a com o seu dual ‒ Qui malo? [“Quem perde/sofre (ou quem fica prejudicado) com isso?] ‒ e acrescentando a ambas o advérbio “mais”. Assim:

A)   Quem beneficia/ganha (mais) com este crime?

B)    Quem perde/sofre (mais) ‒ ou quem fica (mais) prejudicado ‒ com este crime?

Para efeitos mnemónicos, proponho que denominemos estas duas perguntas o teste de Cássio.

Os méritos do teste de Cássio, como princípio de investigação criminal, não precisam de ser realçados. Foram sobejamente demonstrados ao longo de dois milénios. Para além de nos ensinar a pensar com conta, peso e medida ‒ tal como a Navalha de Ockam, um seu congénere mais novo ‒ o teste de Cássio também um outro condão: permite-nos romper imediatamente o casulo de estupidez auto-infligida em que os funcionários do MINIVER da UE nos querem encerrar, quando alegam as suas atoardas como se fôssem verdades indubitáveis. 

Na segunda parte deste artigo, a publicar oportunamente, aplicaremos o teste de Cássio a alguns alegados crimes de guerra dos últimos 16 meses aos quais o sistema mediático dominante do “Ocidente alargado” deu grande destaque. Refiro-me, nomeadamente, à chacina de Bucha (no oblast de Kiev), aos bombardeamentos da central nuclear de Zaporíjia e ao rebentamento da barragem de Nova Kakhovka (no oblast de Kherson). 

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Notas e Referências


[1] Os acontecimentos e processos não-aleatórios têm causas que podem ser de dois tipos: suficiente (se uma só causa for bastante para explicar a sua ocorrência) ou contribuinte (se forem várias causas a contribuir para a sua ocorrência).

[2]Propaganda” e “desinformação” são dois conceitos bem distintos. Fazer propaganda de algo (X) consiste em difundir aquilo que (na opinião do difusor) merece ser propagado acerca de X (e que pode ser verdadeiro ou falso). Desinformar consiste em difundir cientemente informações falsas. As “notícias fraudulentas” (ingl. “fake news”) são a modalidade mais frequente de desinformação nos dias que correm.

[3] Ver “União Europeia silencia meios de informação russos na Europa, e há quem fale em censura”. Sol, 4 de Março de 2022.

[4] Natali Helberger & Wolfgang Schulz, “Understandable, but still wrong. How freedom of communication suffers in the zeal for sanctions”. Media@LSE blog, June 10th, 2022.

[5] Ver nota 4.

[6] Só por indouta e atrevida ignorância se pode afirma que o regime de Putin é uma autocracia. Na tipologia dos regimes políticos que perfilho, o regime de Putin qualifica-se como sendo uma oligarquia electiva iliberal. A mesma qualificação se aplica ao regime de Zelensky na Ucrânia até ao início da segunda guerra na Ucrânia (24 de Fevereiro de 2022). Entretanto, no decorrer desta guerra, o regime de Zelensky evoluiu rapidamente para uma oligarquia liberticida.

[7] Ver nota 4.

[8] Não confundir “redes sociais mediáticas” e “órgãos mediáticos de comunicação social”. As primeiras são fontes de informação avulsa e muitas vezes apócrifa, cujos agentes não estão subordinados a nenhum código deontológico comum, auto-elaborado e auto-instituído. As segundas são fontes de informação jornalística, cujos agentes são profissionais que se regem, ou deveriam reger, por um código deontológico comum, auto-elaborado e auto-instituído: a “Declaração dos Deveres e Direitos dos Jornalistas”, conhecida por Declaração de Munique. Salvo melhor informação, as únicas represálias que o governo russo fez relativamente às decisões do Conselho Europeu contra os órgãos mediáticos russos de comunicação social, tiveram como alvo duas redes sociais mediáticas americanas (Facebook e Instagram), cujo acesso foi bloqueado na Rússia, e não órgãos mediáticos de comunicação social sediados na Europa ou noutras paragens do “Ocidente alargado”. No texto principal deste artigo (secção 3), evoquei o comportamento do Facebook e do Instagram que motivou essas represálias por parte do governo russo.

[9] Big Brother é habitualmente traduzido, literalmente, por Grande Irmão. É uma má tradução, que atesta um conhecimento muito escasso ou nulo da língua inglesa no seu registo idiomático.

[10] Excerto de uma carta, entretanto perdida, escrita em 16 de Junho de 1949 por Orwell a Francis A. Henson, dirigente sindical do United Automobile Workers dos EUA, respondendo a perguntas sobre o romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (Letter to F. A. Henson. “The Complete Essays, Journalism and Letters of George Orwell [CEJL] [volume] IV: In Front of Your Nose 1945-1950. Ed. Sonia Orwell and Ian Angus. New York: Harcourt, 1968: 502). Excertos desta carta foram também publicados na revista Life, em 25 de Julho de 1949, e no New York Times Book Review, em 31 de Julho de 1949. A carta é reproduzida na íntegra em Jeffrey Meyers, George Orwell:The Critical Heritage 24 (que cita o CEJL) e novamente em Anonymous, George Orwell’s statement on Nineteen Eighty-Four, e parcialmente citada em Newsinger, Orwell’s Politics 122, em Howe, 1984: History as Nightmare, p. 324 note, e em Howe “1984: Enigmas of Power”, p. 107).

[11] Ronan Ó Fathaigh and Dirk Voorhoof, “Freedom of Expression and the EU’s ban on Russian Today. A Dangerous Rubicon Crossed”, Communications Law — The Journal of Computer, Media and Telecommunications Law, 2022/4 (ISSN 17467616), 186-192 (https://www.bloomsburyprofessional.com/uk/journals-looseleafs/journals/communications-law/).

[12] Dick Voorhoof, “EU silences Russian state media: a step in the wrong direction”, Inforrm’s Blog, The International Forum for Responsible Media Blog, 8 May 2022, e Columbia University Global Freedom of Expression/Publications, 9 May 2022;  Dick Voorhoof & Ronan Ó Fathaigh, “Case Law, EU: RT France v. Council: General Court finds ban on Russia Today not a violation of right to freedom of expression”, Inforrm’s Blog, The International Forum for Responsible Media Blog, 19 August 2022 (https://inforrm.org/2022/08/19/case-law-eu-rt-france-v-council-general-court-finds-ban-on-russia-today-not-a-violation-of-right-to-freedom-of-expression-ronan-o-fathaigh-and-dirk-voorhoof/).

[13] Jean Neige é um jornalista francês que foi funcionário do Ministério da Defesa francês e observador internacional (OSCE, UE, ONU) na ex-Jugoslávia, na Ásia central e na Ucrânia, especialmente na região da Donbass. 

[14] Tucker Carlson é um jornalista americano muito arguto e traquejado conhecido do grande público pelo seu desassombro e acutilância. Um pormenor importante a salientar é que Tucker Carlson é, politicamente falando, um conservador — ou seja, um homem de uma corrente política que, no cânone ocidental (estabelecido pela revolução francesa de 1789), se situa à direita do espectro político parlamentar. Mas Tucker Carlson é também um estrénuo defensor da liberdade de expressão e de imprensa (garantida no primeiro aditamento da Declaração dos Direitos [1791] aditada à Constituição americana) e um estrénuo adversário do envolvimento militar, das intervenções militares e das guerras dos EUA no estrangeiro. De um ponto de vista europeu pouco informado, parece haver aqui uma contradição, porque essas são posições que são (ou foram, outrora) tradicionalmente associadas à esquerda política, tanto na Europa como nos EUA. Mas já não é assim, há muitas décadas, nos EUA, onde os “liberals” (um termo que os americanos usam como quase-sinónimo de “pessoa de esquerda” e “progressista”) e muitos “lefties” (um termo que os americanos usam para denominar pessoas que se situam à esquerda dos “liberals” no campo económico) são estrénuos defensores do “discurso politicamente correcto” (que prevalece, para eles, sobre a liberdade de expressão e de imprensa) e do envolvimento militar, das intervenções militares e das guerras dos EUA no estrangeiro (que se justificam, para eles, em nome da defesa dos “valores ocidentais”). Uma evolução da esquerda parlamentar, em parte semelhante, teve lugar na Europa, onde os partidos da chamada Internacional Socialista e os partidos oriundos do chamado eurocomunismo são todos pró-OTAN, pró-armamento nuclear e, por conseguinte, belicistas q.b. Mas há uma diferença importante entre a direita política americana e a direita política europeia. Um homem com posições semelhantes às de Tucker Carlson não existe, por exemplo, no panorama jornalístico português. Se existisse, seria muito possivelmente tratado como um execrável “radical” de esquerda por toda a direita parlamentar portuguesa e como um execrável “populista” de direita por quase toda a esquerda parlamentar.

[15] Denomino “sistema mediático dominante de comunicação social” o conjunto formado pelos jornais e revistas mundanas de grande circulação (incluindo os jornais e revistas ditas de referência), os canais de televisão e as emissoras de rádio de grande audiência, assim como a agências noticiosas globais mais importantes: Associated Press (AP), Reuters, Agence France Press (AFP), Deutsche Presse-Agentur (DPA), Australian Associated Press (AAP), African Press Association (APA).

[16] A excepção foi a do major-general Carlos Branco, que produz os seus comentários na CNN Portugal.

[17] Cícero conseguiu a absolvição de Sextus Rocius, o seu cliente, graças a uma utilização inteligente da pergunta de Cássio. E conseguiu também, seguindo a mesma linha de investigação, a absolvição de outros clientes seus.