Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

28 novembro, 2023

 

O que é o HAMAS? [*]

[parte 1]

José Catarino Soares

1. Caracterização

O HAMAS (aqui, e só desta vez, escrito em maiúsculas para lembrar que é o acrónimo árabe para “Movimento de Resistência Islâmica”) é um partido nacionalista, islamista (do ramo sunita), jihadista, teocrático, da Palestina. O seu lema resume bem o seu ideário:

«Alá é o nosso alvo, o Profeta é nosso modelo, o Corão é a nossa constituição, a Jihad é o nosso caminho e morrer por amor a Alá é o nosso desejo supremo» (artigo 8.º da Carta de Princípios do Hamas).

Fica claro, presumo, que a emancipação dos palestinianos nunca poderá ser alcançada pondo este lema em prática.

2. Composição

O Hamas tem três ramos distintos e autónomos: uma entidade caritativa (que estabeleceu e gere uma extensa rede de hospitais, escolas, jardins-de-infância, orfanatos, bibliotecas, clubes juvenis e outros serviços sociais), criada em 1973; uma entidade política (que governa a Faixa de Gaza desde 2006, administrativamente auxiliada pela Autoridade Nacional Palestiniana [1]), criada em 1987; e uma entidade militar (as brigadas Izz al-Din al-Qassam), criada em 1991.

3. O Hamas e a luta armada

Convém saber que a própria ONU reconhece, desde 3 de Dezembro de 1982, através da resolução 37/43 da sua 90.ª assembleia geral, a legitimidade de o povo palestiniano recorrer à luta armada para conquistar o seu direito à autodeterminação. As brigadas Izz al-Din al-Qassam são a maneira como o Hamas interpreta e dá corpo a essa luta armada.

Assim, estas brigadas empregam tácticas de guerrilha (TG) para combater as forças armadas e policiais de Israel, o Estado ocupante e opressor dos palestinianos. Todavia, empregam também tácticas terroristas (TT) contra a população civil israelita, o que constitui uma interpretação abusiva da resolução 37/43.

As TG incluem missões de reconhecimento especial; acções de sabotagem, destruição ou remoção de obstáculos; emboscadas; ataques com morteiros, foguetes, mísseis e drones; surtidas, operações de busca, resgate e salvamento — todas elas dirigidas, regra geral, contra alvos militares e policiais. As TT incluem (tt.1) ataques suicidas, cujo êxito, depende, necessariamente, da morte do(s) agente(s) atacante(s) (e.g. homens-bomba); (tt.2) missões quase suicidas, nas quais os perpetradores podem ou não morrer pelas suas próprias mãos (e.g. sequestro de um avião ou de um navio); (tt.3) colocação furtiva de diferentes tipos de engenhos explosivos improvisados em locais frequentados ou utilizados por muita gente (e.g., centros comerciais, esplanadas, autocarros, aviões), (tt.4) acções terroristas com alvos altamente remuneradores [na lógica do terrorismo [2]] (e.g., assassinatos selectivos; rapto, sequestro e troca de reféns) — todas elas dirigidas, regra geral, contra elementos, grupos e organizações da sociedade civil.


Desfile das brigadas Izz al-Din al-Qassam, do Hamas, em Gaza. Foto: Associated Press.

4. Divergências na caracterização do Hamas

O sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado” (SMDCSOA para abreviar) faz vista grossa sobre a estrutura tripartida do Hamas. Armado com esta análise vesga, faz questão de nos repetir todos os dias que o Hamas é, tão-somente, uma organização terrorista — o que já vimos ser um erro, mesmo se reduzíssemos o Hamas apenas às brigadas Izz al-Din al-Qassam.  Além disso, apresenta essa caracterização defeituosa como se ela fosse universalmente aceite.

Mas isso também não é verdade. Não há unanimidade entre os Estados que fazem parte da ONU sobre a caracterização do Hamas. Por exemplo, Israel, EUA, UE (Portugal inclusive), Canadá e Japão consideram o Hamas uma organização terrorista. Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e Egipto consideram terrorista apenas o braço armado do Hamas: as brigadas Izz al-Din al-Qassam. Rússia, China, Turquia, Irão, Brasil, África do Sul e Noruega não consideram o Hamas (nem o seu braço armado) uma organização terrorista.

Para alguns comentadores do SMDCSOA, tanto os governantes dos países pertencentes aos dois últimos grupos, como os cidadãos dos países pertencentes ao primeiro grupo que compartilham a posição desses governantes neste particular, são “idiotas úteis do Hamas[3].

5. Falhas analíticas

Pode discutir-se a razão de ser destas discrepâncias sobre a caracterização do Hamas, que são parcimoniosamente noticiadas pelo SMDCSOA. A meu ver, estão todas ligadas a duas falhas analíticas:

(i) a falha em reconhecer que o Hamas é semelhante a uma hidra com três cabeças. Se uma for cortada (as brigadas Izz al-Din al-Qassam, por exemplo), as outras duas não desapareceriam como por encanto, porque dispõem de uma forte base social de apoio: a resistência do povo palestiniano à opressão multiforme e sufocante do Estado de Israel.

(ii) a falha em distinguir TG e TT e em reconhecer que o Hamas, através do seu braço armado, emprega ambas.

Seja como for, o SMDCSOA nunca ou raramente nos dirá três coisas essenciais (ver secções 6, 7 e 9), sem as quais não é possível compreender a actuação do Hamas, incluindo o seu ataque em 7 de Outubro de 2023 (ver secção 8).

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[*] Publicado originalmente no blogue Estátua de Sal, em 6 de Novembro de 2023 https://estatuadesal.com/2023/11/06/o-que-e-o-hamas-parte-i/

[continua]

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Notas e Referências

[1] O Hamas governa a Faixa de Gaza com a ajuda da ANP (dirigida pela Al-Fatha, organização bem mais antiga e rival do Hamas) que co-financia e co-administra os serviços de saúde e de educação da Faixa de Gaza. Este facto é raramente mencionado nas análises sobre o Hamas e sobre Gaza. 

[2] A lógica do terrorismo consiste em planear e realizar com êxito acções violentas que causem medo intenso ou espalhem medo intenso na população que apoia os seus inimigos políticos e em conseguir fazê-lo de uma forma altamente remuneradora — isto é, que potencie ao máximo, nessa população, o efeito de terror resultante dos danos físicos causados às suas vítimas imediatas (que podem ser desproporcionalmente diminutos relativamente à grande intensidade e abrangência do terror que geram).

[3] Ver, por exemplo, Jorge Almeida Fernandes (doravante JAF, para abreviar), “Os idiotas úteis do Hamas.” (O Estado da Coisas. Público 3 de Novembro de 2023). Para este comentador, «As vítimas palestinianas dos bombardeamentos [de Israel] são de uma natureza muito diferente das vítimas do Hamas». Porquê? Porque (P1) umas vítimas, argumenta JAF, as vítimas de Israel, são o resultado de «efeitos colaterais» dos bombardeamentos; ao passo que (P2) as outras, as vítimas do Hamas, são o resultado de «assassínios planeados». Assim, deduz-se que, para este comentador, os governantes e militares de Israel não cometem crimes de guerra nem crimes contra a humanidade, só os dirigentes e combatentes do Hamas o fazem.  O conceito de “efeitos colaterais” de JAF é, como se vê, muito elástico porque inclui, por exemplo, os 72 funcionários da United Nations Relief and Works Agency (UNRWA), uma agência humanitária da ONU, e as 3.648 crianças e menores vítimas mortais dos bombardeamentos israelitas em Gaza desde 8 de Outubro de 2023.

Mas só não vê quem não quer que estes bombardeamentos são «assassínios planeados» em grande escala e a grande distância, assassínios por atacado — mas que podem também tomar uma forma mais personalizada, como acontece amiúde. O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, declarou a propósito de um dos mais recentes desta última espécie: «Estou horrorizado com o ataque em Gaza [de 3 de Novembro] contra uma caravana de ambulâncias à porta do hospital Al Shifa. As imagens de corpos espalhados na rua em frente ao hospital são angustiantes», disse, acrescentando: «Há quase um mês que os civis em Gaza, incluindo crianças e mulheres, estão sitiados, não recebem ajuda, são mortos e bombardeados fora das suas casas». (“Israel admits airstrike on ambulance near hospital that witnesses say killed and wounded dozens.” CNN, November 4, 2023). Presumo que Guterres será, para JAF, um dos «idiotas úteis do Hamas». É uma conclusão que faz sentido, se admitirmos as suas premissas, (P1) e (P2). Todavia, para entendermos o qualificativo de “idiota útil” que JAF emprega na sua análise do conflito israelo-palestiniano, faz também todo o sentido aplicar a JAF a distinção que ele faz da natureza das vítimas palestinianas de Israel e das vítimas israelitas do Hamas, mas sem aceitar (como ele pretende) que umas valem menos do que as outras quando as contamos. Se o fizermos, chegamos à conclusão de que JAF se coloca do lado do contendor mais poderoso, mais mortífero e mais impiedoso — ou seja, para empregar a sua própria terminologia, que ele se assume como “um idiota útil de Israel”; quiçá (presumo) com muita honra e orgulho de o ser.

 

 

04 novembro, 2023

 Tema 3

O que é Gaza?

José Catarino Soares

A Faixa de Gaza (doravante Gaza, para abreviar) é uma parte do antigo território da Palestina, hoje quase todo ele ocupado por Israel. É um território exíguo, situado na costa leste do Mediterrâneo. Tem uma área de 365 km2, um pouco menor do que a do concelho de Redondo (369,5 km2) e um pouco maior do que a do concelho de Alter do Chão (362 km2), em Portugal continental.

A população actual de Gaza é de 2,1 milhões de habitantes, maioritariamente árabe-palestiniana. Não há judeus israelitas em Gaza, nem árabes israelitas, que representam 1,8 milhões de habitantes (21% da população de Israel) e que preferem autodenominar-se “palestinianos de Israel”. Cerca de metade da população de Gaza (47,3%) são crianças e jovens com menos de 18 anos. Gaza é a terceira região mais densamente povoada do mundo: 5.839 habitantes por quilómetro quadrado. Para se ter um termo de comparação, podemos recorrer outra vez aos dois concelhos portugueses supramencionados. O concelho de Redondo tem 6.300 habitantes e o de Alter do Chão tem 3.044 habitantes (números de 2021), com uma densidade populacional de 17 habitantes por km2 e 8,4 habitantes por km2, respectivamente.

Gaza tem uma linha de costa de 40 km. Tem duas fronteiras terrestres: uma, maior, com Israel, ao longo de 59 km, a norte e a oeste; outra, menor, com o Egipto, ao longo de 13 km, a sul (ver mapa abaixo).

Mapa da Faixa de Gaza. Autor: Lencer, retocado e traduzido para Português por Indech.
Fonte: 
Wikipédia.

Desde Junho 2007 que Israel, com a colaboração do Egipto, mantem um drástico bloqueio económico e comercial a Gaza, que se agravou a partir do dia 7 de Outubro de 2023. O bloqueio a Gaza é mantido, militarmente, por terra, mar e ar. O bloqueio impede a livre circulação de pessoas: ninguém pode entrar e sair de Gaza sem autorização das forças militares de Israel e do Egipto. Este regime só é um pouco menos apertado para os habitantes de Gaza que tenham necessidades médicas graves. Esses habitantes são, por vezes, autorizados a atravessar a fronteira e a procurar auxílio médico em hospitais de Israel.

 Por outro lado, o bloqueio só permite a entrada de bens considerados de primeira necessidade (água potável, electricidade, alimentos, vestuário, calçado, medicamentos, combustíveis, produtos de higiene) e de ajuda humanitária, após um controle minucioso de seu conteúdo. E mesmo a importação desses bens e o fornecimento dessa ajuda são discricionariamente reduzidos ou proibidos sempre que o governo de Israel entende fazê-lo. É o que acontece actualmente, depois de o governo de Netanyahu ter cortado a água, a electricidade, o combustível, os víveres e o medicamentos à população de Gaza, em represália pelo ataque do Hamas em 7 de Outubro último. 

O bloqueio económico e comercial a Gaza foi imposto depois do Hamas ter vencido as eleições parlamentares de 25 de Janeiro de 2006. Nesse dia, foram realizadas eleições nos territórios palestinos (Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental) para escolher os 132 membros do Conselho Legislativo da Palestina (CLP), órgão legislativo da Autoridade Nacional Palestiniana (ANP). Os resultados finais da eleição deram a vitória ao Hamas, com 74 assentos no CLP. A criatura (Hamas) começava a escapar ao seu patrocinador (Israel) [1] que julgou, ao instaurar o bloqueio, conseguir mantê-lo sob rédea curta. Mas tudo o que conseguiu foi, pelo contrário, aumentar o prestígio dos dirigentes do Hamas aos olhos da população palestiniana, em especial em Gaza, conferindo-lhe uma auréola de resistentes intransigentes, impolutos e incorruptíveis, ao contrário dos dirigentes da Al-Fatah, a componente (laica) até então maioritária da Organização de Libertação da Palestina (OLP) que domina a ANP.

Com o bloqueio económico e comercial, as condições de vida em Gaza deterioraram-se rápida e gravemente. A pobreza aumentou de 38,8% para 53,0%, de 2011 a 2016, deixando pobres um em cada dois gazenses. Durante a segundo trimestre de 2022, a taxa de desemprego era de 44% em Gaza. A insegurança alimentar em Gaza permanece alta: 63%. Jimmy Carter, ex-presidente dos EUA, não estava a exagerar quando disse, em 2009:

«[Os palestinianos da Faixa de Gaza] estão a ser tratados mais como animais do que como seres humanos... Nunca antes na história uma grande comunidade como esta foi devastada por bombas e mísseis e depois foi privada dos meios para se reparar» (Reuters, June 16, 2009).

Os seres humanos pertencem, biologicamente, ao reino Animalia. Somos, portanto, animais, pelo que presumo que Carter queria dizer “animais ferozes”. Vale a pena notar que Carter exprimiu, inadvertidamente e com 14 anos de antecedência, o pensamento profundo dos governantes israelitas. O actual ministro da defesa de Israel, Yoan Gallant, esclareceu que os palestinianos de Gaza são “animais ferozes” (“human animals” no seu Inglês macarrónico) e o embaixador de Israel na Alemanha, Ron Prosor, declarou que os palestinianos de Gaza são “animais [ferozes] sedentos de sangue” (“bloodthirsty animals” no original). E acrescentou:  

«As pessoas que vimos a violar, a matar e a disparar contra famílias, crianças pequenas e a queimar pessoas vivas nas suas próprias casas são as pessoas de Gaza» afirmou. «Por isso, tentar diferenciá-las [dos militantes do Hamas] é um verdadeiro problema» (Político, October 12, 2023).

Em 2010, o primeiro-ministro (conservador) britânico David Cameron chamou a Gaza «uma prisão a céu aberto», suscitando a ira de Israel, velho aliado do Reino Unido. Em Fevereiro de 2015, Banksy, o conhecido artista de rua britânico, deslocou-se a Gaza para chamar a atenção para a situação dos palestinianos após o devastador ataque israelita que ocorrera no Verão anterior. Relativamente aos murais que pintou em Gaza, escreveu:

«Gaza é frequentemente descrita como “a maior prisão a céu aberto do mundo” porque ninguém pode entrar ou sair. Mas isso parece um pouco injusto para as prisões — elas não têm a sua electricidade e água potável cortadas aleatoriamente quase todos os dias» (The Independent, February 27, 2015).

Como disse um residente de Rafah: «Isto é pior do que a prisão.... Na prisão, podemos estar seguros. Aqui estamos em perigo a toda a hora» (Reuters, August 19, 2001), nomeadamente por causa dos bombardeamentos.. E disse-o em Agosto de 2001, catorze anos antes de Banksy ter dito o mesmo por outras palavras.  

7 de Dezembro de 2021. Membros da Segurança Israelita gesticulam numa abertura da (então) recém-concluída barreira construída por Israel ao longo da fronteira com a Faixa de Gaza, em Erez, no Sul de Israel. Foto: Reuters/Ammar Awadi.

O que é, então, Gaza? Creio que Baruch Kimmerling (1939-2007), professor da Universidade Hebraica, deu a resposta mais certeira: «o maior campo de concentração que alguma vez existiu». Mas já não é suficiente. Hoje temos de acrescentar: é também «um campo de matança» [«a killing field», Norman Finkelstein] e a maior morgue a céu aberto do planeta [2]

 Gaza. 1 de Novembro de 2023. Fonte:Ammon News Agency
              

Notas

[1] Num texto a publicar ulteriormente, intitulado “O que é o Hamas?”, elucidarei a razão de ser desta relação patrocinador/criatura patrocinada. 

[2] Esta apreciação acaba de ser confirmada (28.11.2023) por Francesca Albanese, relatora especial da ONU para os territórios palestinianos ocupados, que declarou:

«Houve uma suspensão das hostilidades após 24 horas de intensificação dos bombardeamentos, muito violentos. As pessoas vêem o nível de violência. Vêem o nível de catástrofe. A ONU, com a qual estou em contacto permanente, diz que a situação em Gaza é muito pior do que o estimado. Mais de metade das infra-estruturas foi destruída. Há uma estimativa de 13 mil mortos, 30 mil feridos e três mil pessoas ainda debaixo dos escombros » (Francesca Albanese: “Israel tem a capacidade militar para levar a cabo um genocídio em Gaza”. Público, 28 de Novembro de 2023 [ênfase por meio de traço grosso acrescentado ao original]. https://www.publico.pt/2023/11/28/mundo/entrevista/francesca-albanese-israel-capacidade-militar-levar-cabo-genocidio-gaza-2071650?).

29 setembro, 2023

 

Um insólito e grotesco (mas esclarecedor) 

macrossurto de russofobia

José Catarino Soares

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9.º artigo da série

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!

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Este homem, de cabelo branco e braço estendido, teve de esperar até aos 98 anos para as suas proezas, como ex-combatente nazi, serem finalmente reconhecidas por um país do chamado “Ocidente alargado” como grandes feitos heróicos. Chama-se Yaroslav Hunka. Durante a Segunda Guerra Mundial combateu na 14.ª Divisão de granadeiros das Waffen SS (o ramo militar da organização Schutzstaffel [cuja abreviatura era SS] do Partido Nazi de Adolf Hitler), também conhecida como 1.ª Divisão Ucraniana ou Divisão Galícia, pelo facto de ser composta de voluntários ucranianos da Galícia (região actualmente repartida entre a parte ocidental da Ucrânia e a Polónia).

1. A 14.ª Divisão das Waffen SS

A 14.ª divisão das Waffen SS combateu na Ucrânia, Polónia, Eslováquia e na ex-Jugoslávia. De acordo com o “Centro de Estudos do Holocausto dos Amigos de Simon Wiesenthal”, a 1.ª Divisão Ucraniana das Waffen SS «foi responsável pelo assassínio em massa de civis inocentes com um nível de brutalidade e malevolência inimaginável» [1]

Na Galícia, por exemplo, massacraram aldeias inteiras de residentes polacos, incluindo mulheres e crianças, alegando que estavam associados aos guerrilheiros soviéticos.  Além disso, a Divisão Galícia das Waffen SS esteve envolvida noutros casos de violência genocida. Por exemplo, participou na repressão da revolta antinazi na Eslováquia e também na repressão brutal e violenta do movimento de guerrilha antinazi na Jugoslávia. Em Março de 1945, passou a chamar-se Primeira Divisão Ucraniana do Exército Nacional Ucraniano, antes de se render às forças britânicas dois meses mais tarde, em Maio de 1945 [2].

2. O parlamento canadiano ovaciona de pé um SS ucraniano

Yaroslav Hunka recebeu uma ovação de pé do parlamento canadiano «por ter combatido contra os russos durante a 2.ª Guerra Mundial» (sic). A foto foi tirada quando Hunka agradecia os aplausos numa galeria do parlamento canadiano. Isto aconteceu em 22 de Setembro de 2023, depois do discurso que Zelensky proferiu nesse parlamento nesse dia.Ver aqui:

https://twitter.com/UnityNewsNet/status/1705841969845403788?Fbclid=Iw AR1LcOunxaf8EA3_4nET2ylLLKzKbBSyGPWCuwzd5RQZQ4h0wtrTCfPKKC0

No dia seguinte, a SIC Notícias informava que:

O presidente da Câmara dos Comuns no Canadá [Anthony Rota] pediu desculpa após ter convidado e proporcionado uma ovação no parlamento a um antigo combatente ucraniano da II Guerra Mundial que lutou ao lado de tropas nazis. Anthony Rota desconhecia a pertença de Yaroslav Hunka na organização paramilitar nazi Waffen-SS. Na passada sexta-feira, Volodymyr Zelensky foi discursar no parlamento canadiano e, após isso, houve uma homenagem a Yaroslav Hunka de 98 anos, com todos os membros da Câmara de pé a aplaudir. No entanto, após este acontecimento viral, muitos grupos judaicos alertaram que Hunka pertenceu a uma organização paramilitar nazi Waffen-SS entre 1943 e 1945. A organização seria [“seria” não, era, J.C.S.] uma unidade estrangeira criada pela SS em países sob ocupação nazi. Oriundo da Ucrânia, mas residente no Canadá, Yaroslav foi apresentado como «um herói da luta pela independência da Ucrânia contra a Rússia». Um erro crasso que levou ao pedido de desculpas de Anthony Rota, presidente da Câmara dos Comuns.

3. Erro crasso, mas inocente?

Como podemos constatar, a SIC Notícias (à semelhança dos demais órgãos do sistema mediático dominante de comunicação social) apresentou a homenagem do parlamento canadiano ao SS ucraniano Yaroslav Hunka como tendo sido “um erro crasso”, mas inocente. O presidente do parlamento canadiano, Anthony Rota, desconheceria o verdadeiro passado de Hunka. Pensava que Hunka era um herói ucraniano e, afinal, descobriu que ele era, de facto, um nefando SS.

Esta é a foto de Yaroslav Hunka, quando era membro da 14.ª Divisão de granadeiros da Waffen SS
(1.ª Divisão Ucraniana ou Divisão Galícia). A foto foi descoberta e fornecida pelo professor Ivan Katchanovski [@I_Katchanovski, Twitter ou X] — um politólogo ucraniano que ensina na Universidade de Otava (Canadá). 
 

É uma desculpa esfarrapada. Quem pode acreditar que o presidente do parlamento canadiano (ou, o que para o caso vem a ser o mesmo, o seu quadro de assessores) e o primeiro-ministro do Canadá (ou, o que para o caso vem a ser o mesmo, os serviços secretos de informações do governo federal do Canadá) desconheciam a identidade de Hunka ‒ o seu convidado de honra (para além de Zelensky) ‒ e das demais pessoas autorizadas a entrar no parlamento num dia tão especial como aquele, em que Zelensky tinha sido convidado a discursar no parlamento pelo primeiro-ministro Justin Trudeau e por Anthony Rota?

«Temos aqui na Câmara, hoje, um canadiano de origem ucraniana, um veterano de guerra, da Segunda Guerra Mundial, que lutou contra os russos pela independência da Ucrânia e continua a apoiar as tropas [da Ucrânia], apesar de já ter 98 anos. O seu nome é Yaroslav Hunka. /…/ É um herói ucraniano e um herói canadiano e nós estamos-lhe gratos por todo o serviço que prestou» — disse Rota, em guisa de apresentação. Ao ouvirem estas palavras, os deputados canadianos levantaram-se todos ‒ assim como Trudeau, Zelensky e a esposa de Zelensky ‒ e brindaram Yaroslav Hunka com uma prolongada ovação.

É óbvio que Rota sabia perfeitamente quem era Hunka, o seu convidado de honra.

Nesta foto, Karina Gould, do Partido Liberal, ministra dos Assuntos Parlamentares [“leader of the government in the House of Commons of Canada”], e Anthony Rota, presidente do Parlamento canadiano [“speaker of the House of Commons”] e membro do mesmo partido (à direita), dão as mãos a Yaroslav Hunka, depois da homenagem de que este foi alvo durante a sessão plenária extraordinária desse parlamento dedicada a Volodymyr Zelensky. Não consegui identificar o indivíduo do meio, que enverga uma camisa ucraniana e que esteve sempre ao lado de Hunka na galeria do parlamento. Foto: @karinagould [publicada antes do escândalo da identidade de Hunka ter rebentado]. 

Em vez de lapsos de memória e falhas de segurança conducentes a um “erro crasso” (mas inocente), parece-me, pois, mais plausível admitir que Rota ‒ ou Trudeau e Rota de comum acordo, tanto mais que são do mesmo partido, o Partido Liberal ‒ tenha(m) decidido fazer um brilharete para agradar a Zelensky e ao influente “lobby” ucraniano-canadiano que, no Canadá, tem apoiado os sucessivos governos (Yatsenyuk, Poroshenko e Zelensky) saídos do golpe de Estado violento e inconstitucional de 22 de Fevereiro de 2014.

A foto seguinte, publicada pela neta de Yaroslav Hunka, abona em favor desta conjectura. Nela, a senhora Theresa Hunka informa-nos que a foto foi tirada quando o seu avô aguardava na recepção que Trudeau e Zelensky o viessem cumprimentar. E sabemos pelo chefe do grupo parlamentar do Partido Conservador (o principal partido da oposição), Pierre Poilievre, que esse encontro teve lugar [3]. Deve, portanto, haver fotos desse encontro, embora não tenham vindo a público. Não é de excluir, aliás, que tenham, entretanto, sido destruídas num “buraco da memória”, atendendo ao embaraço que produziriam se fossem publicadas.  


4. Um brilharete com um devastador efeito de boomerang

Seja como for, uma coisa é certa. Trudeau prometeu a Zelensky que o seu governo lhe daria mais 650 milhões de dólares canadianos em ajuda militar nos próximos três anos. Esta quantia vem somar-se aos 8.000 milhões de dólares canadianos já entregues desde 24 de Fevereiro de 2022, dos quais 1.500 milhões em ajuda militar.

Se a homenagem a Hunka foi, como conjecturo, um brilharete que Rota e Trudeau quiseram fazer para celebrarem da melhor maneira o apoio incondicional a Zelensky e à continuação da guerra na Ucrânia até ao último soldado ucraniano, então, temos de concluir que foi um brilharete que teve um devastador efeito de boomerang.

Compreende-se facilmente porquê. O Canadá contribuiu com mais de 1 milhão de homens (a esmagadora maioria dos quais eram voluntários) para o combate contra a Alemanha nazi durante a Segunda Guerra Mundial. Convém recordar que o Canadá tinha, na altura, apenas 11 milhões de habitantes (actualmente tem 38,2 milhões). Mais de 45 mil soldados canadianos morreram na Europa durante a Segunda Guerra Mundial, sobretudo no desembarque nas praias da Normandia e na campanha da Normandia, e cerca de 55.000 ficaram feridos.

Por isso, para os veteranos canadianos sobreviventes da Segunda Guerra Mundial, para os sobreviventes judeus, polacos, ucranianos russófonos e russos vítimas das matanças das Waffen SS, e para os cidadãos canadianos cujos pais, avós e bisavós combateram contra o nazismo (ou que foram vítimas das suas atrocidades), o espectáculo insólito dos deputados da Câmara dos Comuns do Canadá a erguerem-se em bloco, todos sem excepção, para homenagear uma relíquia viva do nazismo, deve ter sido, presumo, insuportável e não pode ter deixado de gerar uma grande comoção e revolta.

Zelensky exultante e de punho fechado saúda Yaroslav Hunka na galeria do parlamento canadiano, ladeado pela sua esposa e por Justin Trudeau que aplaudem de pé Yaroslav Hunka. Foto: Politico.com

Como foi isso possível?

Um facto importante a ter em conta é este: antes do início da segunda guerra na Ucrânia (24.02.2022), 4% dos canadianos eram de origem ucraniana. Muitos deles são orgulhosos descendentes dos correligionários de Stepan Bandera e dos combatentes da 14.ª Divisão das Waffen SS ‒ como Yaroslav Hunk e como o já falecido Dmytro Dontsov (o mentor ideológico de Stepan Bandera) ‒ que fugiram da Europa para o Canadá no fim da Segunda Guerra Mundial, para não serem julgados pelos seus crimes de guerra [4].

Segundo o historiador Irving Abella (presidente do Canadian Jewish Congress de 1992 a 1995 e presidente da Canadian Historical Association de 1999 a 2000) mais de 2.000 criminosos de guerra e colaboradores nazis da 2.ª Guerra Mundial foram acolhidos no Canadá, apesar da oposição e da indignação do Congresso Judaico Canadiano [5]. «Se há uma palavra para descrever as atitudes do Canadá [perante os criminosos de guerra nazis] nos últimos 50 anos é “apatia”» — declarou Abella em 1997 [6].

Uma prova disso é o relatório final da “Comissão de Inquérito sobre criminosos de guerra” (relacionados com as actividades da Alemanha nazi) de Dezembro de 1986, presidida pelo juiz Jules Deschênes. Nesse seu relatório, a Comissão limita-se, por exemplo, a compilar estimativas diversas do número de criminosos de guerra que encontraram refúgio no Canadá e a opinar que muitas delas são exageradas.

Dois exemplos mais. A Comissão Deschênes, embora tenha sido oficialmente constituída para apurar toda a verdade sobre o tema que lhe deu origem, passou uma esponja sobre o cadastro da 14.ª Divisão das Waffen SS, alegando ter falta de legislação adequada e de provas para incriminar os seus membros. Acresce que a segunda parte do relatório final da Comissão, que dizia respeito a alegações contra indivíduos específicos, permanece confidencial e nunca foi tornada pública.

O “lobby” dos orgulhosos descendentes canadianos dos correligionários de Dontsov e Bandera inclui a vice-primeira-ministra (e também ministra das finanças) do Canadá, Christina Freeland. O seu avô materno, Mikhail Khomiak (mais tarde, no Canadá para onde fugiu, mudou o nome para Michael Chomiak), que ela defende com determinação, foi o editor-chefe do jornal anti-semita, anti-russo e antipolaco, “Krakivski Visti”, financiado pelo regime nazi e publicado em Cracóvia (Polónia) durante a ocupação nazi (1940-1945)

5. Russofobia

É óbvio que os parlamentares canadianos tinham obrigação de saber que os ucranianos que «combateram a Rússia na Segunda Guerra Mundial» pertenciam ou às Waffen SS ou à Organização dos Nacionalistas Ucranianos [OUN, no acrónimo ucraniano] chefiado pelo filonazi Stepan Bandera.

Mas admitamos ‒ só para podermos raciocinar ‒ que não sabiam, que os 338 membros do parlamento canadiano constituem um selecto grupo de ignorantes encartados que nada sabem sobre a Segunda Guerra Mundial. Qual seria, então, a sua motivação para se levantarem todos de supetão e dispensarem uma prolongada ovação a um homem que lhes foi apresentado como “um veterano de guerra que combateu os russos”? Pois, eu só vejo uma, que dá pelo nome de “russofobia” — uma variedade de ódio étnico muito em voga na Ucrânia pós-1991 e que aumentou brutalmente de intensidade e letalidade depois do golpe de Estado de Fevereiro de 2014 que instalou o regime actualmente vigente na Ucrânia. 

Quando a russofobia se alia com os interesses estratégicos da potência hegemónica dominante, os EUA, os resultados podem ser (e têm sido) muitos e diversos, mas sempre desastrosos. Um deles foi o insólito e grotesco macrossurto de russofobia que ocorreu no parlamento canadiano no dia em que Zelensky o visitou.

6. Controlar os danos, se possível com um buraco da memória

Apesar da notícia da SIC Notícias que transcrevi mais acima, não esperemos que os deputados canadianos e o governo canadiano venham a reconhecer que a russofobia e o alinhamento completo com os interesses estratégicos hegemónicos do seu vizinho americano foram as reais motivações da sua entusiástica ovação de pé a Yaroslav Hunka.

Pelo contrário, para salvar a face e fazer esquecer o seu vergonhoso comportamento, os deputados canadianos e o governo canadiano tentam agora sacudir a água do capote e controlar os danos.

A primeira coisa que fizeram foi arranjar um bode expiatório e um único. “A culpa do que se passou é toda de Rota, o presidente do parlamento”, afirmou, em substância, a ministra dos Assuntos Parlamentares, a senhora Karina Gould, com voz doce. Perante isto, o homem não teve outro remédio senão demitir-se, como aliás lhe competia e como lhe exigia não só a oposição, mas também (e publicamente) o seu próprio partido. Esse acto era necessário para prevenir e deflectir o pedido de demissão do primeiro-ministro Trudeau — que até agora ainda não surgiu e que é duvidoso que venha surgir do principal partido da oposição.

A segunda coisa que fizeram foi mais criativa, embora também possa ser considerada, de um outro ponto de vista, como um exemplo perfeito do apotegma: «a Vida imita a arte bem mais do que Arte imita a vida» [7].

É que se trata de uma iniciativa que parece ter sido congeminada no “Ministério da Verdade” do romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de Georges Orwell. Se não vejamos. A mesma senhora Karina Gould, pediu, na segunda-feira, dia 25 de Setembro, a aprovação unânime no parlamento canadiano de uma moção que propõe que «se apague da acta dos debates da Câmara dos Comuns» e de «qualquer registo multimédia da Câmara» tudo o que se passou relativamente à homenagem a Yaroslav Hunka: as palavras de elogio do ex-presidente da Câmara dos Comuns, a ovação unânime e de pé de todos os deputados, assim como de Trudeau, Zelensky e sua esposa; os gestos de agradecimento de Hunka nas galerias do parlamento, etc. [8]. Em resumo, doravante todos fariam de conta que esses acontecimentos nunca ocorreram, para paz e sossego das suas consciências.  

A espantosa moção de Karina Gould, se fosse aprovada [não foi, diga-se de passagem] seria, de facto, um perfeito “buraco da memória” saído direitinho do mundo ficcional de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro para o mundo político actual [9].

Notas e referências

[1] Daniel Otis, “How was veteran Yaroslav Hunka's military unit linked to the Nazis?.” CTVNews.ca, September 26, 2023.

[2] Ivan Katchanovski, “The Politics of World War II in Contemporary Ukraine.” Journal of Slavic Military Studies, 27:210–233, 2014.

[3] https://twitter.com/PierrePoilievre/status/1706047009747038709

[4] Na nota 25 do meu livro “Dissipando a Névoa Artificial da Guerra: um roteiro para o fim das guerras na Ucrânia, a paz na Europa e o desarmamento nuclear universal” (editora Primeiro Capítulo. Agosto de 2023), elucido brevemente quem foram os filonazis ucranianos Dontsov e Bandera e dou alguns exemplos da sua extraordinária influência na Ucrânia contemporânea.

[5] https://www.thecanadianencyclopedia.ca/en/article/irving-abella.

[6] Anthony Depalma, “Canada Called Haven for Nazi Criminals.” New York Times, February 3, 1997.

[7] O apotegma é de Oscar Wilde, no seu ensaio de 1891: “A decadência da mentira: uma reflexão” (editora Guerra e Paz. Maio de 2022).

[8] https://www.youtube.com/watch?v=_65-VMhNIis

[9] Um “buraco da memória” no romance Mil Novecentos e Oitenta e Quatro é um dispositivo de apagamento e silenciamento dos factos de um tipo ainda mais grave do que a censura, pois tem como objetivo reescrever a história de modo a torná-la completamente alinhada com as necessidades e os caprichos dos detentores do poder.

22 setembro, 2023

 Temas 2 e 3

Afinal, o míssil que atingiu

o mercado de Kostiantynivka

era ucraniano…

José Catarino Soares 

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8.º artigo da série

Tanta mentira, tanta omissão deliberada, tanta falsidade, tanta confusão de ideias sobre as guerras na Ucrânia!

 

1. O ataque ao mercado de Kostiantynivka

Em 6 de Setembro de 2023, ocorreu um ataque com um míssil ao mercado de Kostiantynivka, uma cidade controlada pelos ucranianos no Leste da Ucrânia. A carga de fragmentos de metal do míssil que atingiu o mercado dessa cidade, perfurou janelas e paredes, matou 15 civis e feriu mais de 30 outros, ficando alguns deles desfigurados.

Menos de duas horas depois, o Presidente Volodymyr Zelensky culpou os «terroristas russos» pelo ataque, e muitos orgãos mediáticos de comunicação social do chamado “Ocidente alargado” seguiram-lhe na peugada. O costume.

2. As crenças de Helena Ferro Gouveia apresentadas como notícia

Um deles foi a CNN Portugal, pela boca da senhora Helena Ferro Gouveia, que é apresentada por esta estação de televisão como uma comentadora “especialista de relações internacionais”. Esta comentadora, confortavelmente instalada em Lisboa, declarou peremptoriamente (antes de qualquer investigação idónea feita in loco por peritos militares) que tinham sido os russos e, mais ainda, que o tinham feito para ameaçar e amedrontar Antony Bliken, ministro dos Negócios Estrangeiros (“State Department”) dos EUA, de visita a Kiev nesse dia.


Manchete, foto e legenda da CNN Portugal

3. A culpa é sempre dos russos

Durante três dias seguiu-se uma intensa campanha do sistema mediático dominante de comunicação social em que os russos foram alvo de todos os vitupérios.

Contudo, rapidamente, alguns genuínos especialistas -- como o major-general Carlos Branco (em Portugal) ou o major Scott Ritter (nos EUA) -- trataram de apontar algumas suspeitas sobre a origem desse míssil que a senhora Helena Ferro Gouveia e centenas de outros comentadores da sua igualha nunca comtemplaram.

«Através de imagens de videovigilância, soava estranho que as pessoas olhassem para o som do projéctil que vinha da direcção da Ucrânia antes de rebentar no mercado. Claro que o major-general [Carlos Branco], como tantos outros, foram acusados, uma vez mais, de estarem a seguir a narrativa russa apenas por desmentirem a versão ucraniana, que é tantas vezes repetida cegamente pelos órgãos de comunicação social sem qualquer verificação» — observou o jornalista independente português Bruno Amaral de Carvalho, sediado na Donbass, no seu canal do Telegram (18 de Setembro 2023).

Nos dias seguintes, o caso iria mudar radicalmente de figura, no sentido apontado pelo major-general Carlos Branco e pelo major Scott Ritter (este no próprio dia do ataque). Seis jornalistas do New York Times estudaram relatos de testemunhas oculares, recolheram fragmentos do míssil, observaram vestígios do seu impacto no solo, examinaram as imagens das câmaras de vigilância e chegaram a conclusões diametralmente opostas às da senhora Helena Ferro Gouveia e dos seus émulos.

4. O New York Times vs. Helena Ferro Gouveia

Segundo um artigo publicado no New York Times em 18 de Setembro, imagens de câmaras de vigilância mostram que o míssil atingiu Konstiantynivka vindo de território controlado pela Ucrânia, e não de áreas ocupadas pelo exército russo. Esta suposição baseia-se no facto de que, no momento da aproximação do míssil, pelo menos quatro transeuntes se voltam simultaneamente para a câmara, ou seja, na direcção do território controlado pela Ucrânia. Além disso, pouco antes da explosão, o reflexo do míssil é visível em dois carros estacionados, indicando a direcção de deslocamento do noroeste, tal como o major-general Carlos Branco já tinha sugerido.

New York Times, 18 de Novembro de 2023

As autoridades ucranianas tentaram impedir que alguns dos jornalistas do New York Times autores da investigação tivessem acesso aos destroços do míssil e à área de impacto, mas os jornalistas acabaram por conseguir chegar ao local, entrevistar testemunhas e recolher os restos das munições utilizadas. Segundo escrevem no seu artigo de 18 de Setembro de 2023, eles têm provas de que poucos minutos antes da explosão no mercado, os militares ucranianos lançaram dois mísseis terra-ar em direção à linha de frente a partir da cidade de Druzhkovka, situada a 15 quilómetros a noroeste de Konstantynivka. Em Druzhkovka, havia repórteres do jornal que ouviram sons de lançamentos de mísseis às 14h. A explosão em Konstantynivka ocorreu quatro minutos após o lançamento dos mísseis. A informação sobre o lançamento de dois mísseis foi confirmada em entrevista ao jornal por um militar ucraniano que pediu o anonimato.

5. Na guerra, a verdade é sempre a primeira vítima

Em resumo, agora, é o próprio New York Times que põe em causa a versão ucraniana e admite ter sido um míssil ucraniano que falhou o seu alvo (russo) a atingir letalmente o mercado de Kostiantynivka.

«Pontualmente, ao contrário do primeiro ano da guerra, a imprensa norte-americana, por vezes até bem mais do que a europeia, destapa as verdades incómodas de um conflito em que não há inocentes. Será o New York Times também putinista?», pergunta Bruno Amaral de Carvalho no mesmo bilhete público.

É óbvio que não. Se o New York Times pode ser apodado de alguma coisa relativamente às guerras na Ucrânia será de “bidenista” ou “zelenskysta” ou coisa semelhante.

Será que a senhora Helena Ferro Gouveia e os seus émulos se vão retractar e pedir desculpa aos espectadores das suas acusações infundadas e caluniosas? É óbvio que não. São pessoas como ela que mantêm vivo e sempre actual o aforismo que serve de título a esta secção. Numa guerra, a verdade é a vítima de eleição de tais comentadores e a procura da verdade a sua última preocupação.