Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

23 outubro, 2015


TEMA 3


E SE…?

E se os partidos de esquerda com assento parlamentar se unissem mesmo para governar a favor de quem neles votou e daqueles que votaram em branco ou nulo ou que se abstiveram por não acreditarem que isso, embora desejável, fosse alguma vez possível?

O mínimo que se pode dizer é que seria uma solução inédita em Portugal. Tão inédita que a direita portuguesa anda num frenesim.

"O usurpador”, “A fraude pós-eleitoral”, “Isto pode não acabar bem”, “O partido dos enganados”, “Costa no seu labirinto”, “O marciano”, “Este homem não é de confiança”, “Maioria de bloqueio”,“Ai preocupem-se, preocupem-se…”, “Antes do dilúvio”, ”,“Ora, aí está ela: a «esquerda unida»!”, “Situação excelente, mas não desesperada”.

Estes são alguns dos títulos de artigos que expressam o temor profundo com que a direita portuguesa vê a possibilidade de constituição de um governo PS apoiado no parlamento pelo BE e pela CDU [PCP+PEV].

Que as direitas (ou, para simplificar, a direita) detestem as esquerdas (ou a esquerda, para simplificar), e vice-versa, nada tem de surpreendente. É um facto com mais de 200 anos, com fundas raízes culturais, e está para durar não sabemos quantos mais. Há, no entanto, em vários dos artigos citados, dois temas já várias vezes ensaiados pelos defensores mais desbocados da direita: “1. a democracia só é aceitável quando a direita tem a maioria dos votos e dos mandatos. 2. E quando assim acontece, não há freios constitucionais que se lhe possam opor”. Os seus defensores não podem ser acusados de excesso de zêlo porque o exemplo e o incentivo lhes vem de cima.

A Constituição como impecilho

Convém recordar os ataques de Passos Coelho contra «a falta de bom senso» dos juízes do Tribunal Constitucional (TC), encarados como o último impecilho às medidas de «austeridade» da troika que o seu governo se obrigou a aplicar indo ainda mais além, culminando na frase imorredoira que proferiu na universidade de verão do PSD:

Já alguém perguntou aos 900 mil desempregados de que lhes valeu a Constituição até hoje? (Público. 1-9-2013) 

Não sei se alguém perguntou, mas a resposta está ao alcance de todos.

O TC produziu oito acórdãos negativos sobre medidas de austeridade e medidas anti-laborais da maioria PSD-CDS: sobre o Orçamento do Estado para 2012 (Acórdão 353/2012), o Orçamento do Estado para 2013 (Acórdão 187/2013), o Regime Jurídico de Requalificação dos Trabalhadores em Funções Públicas (Acórdão 474/2013), as alterações ao Código do Trabalho (Acórdão 602/2013), o Regime de Convergência dos Sistemas de Pensões do Sector Público e do Sector Privado (Acórdão 862/2013), o Orçamento do Estado para 2014 (Acórdão 413/2014), a contribuição de sustentabilidade (Acórdão 575/2014) as normas da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas que permitiam a intervenção do Governo na celebração dos Acordos Colectivos de Empregador Público (ACEP) nas autarquias (Acordão 494/2015).

Concretamente, o TC considerou inconstitucionais o corte do subsídio de férias e Natal aos funcionários públicos com salários superiores a 600 euros; o alargamento dos cortes nos contratos de docência e investigação; os cortes nos subsídios de doença e de desemprego, respectivamente de 5% e de 6%; os despedimentos na função pública ao fim de 12 meses na mobilidade especial e novas normas do Código do Trabalho de despedimento por extinção do posto de trabalho e inadaptação; o corte de salários na função pública entre 2,5% e 12% a partir de 2014; o corte de 10% nas pensões de aposentação, reforma, invalidez e sobrevivência de valor mensal superior a 600 euros do sistema contributivo dos funcionários públicos (Caixa Geral de Aposentações); o corte permanente de 2% de todas as pensões do sistema contributivo (tanto dos aposentados da função pública como os do sector privado) de valor mensal entre 1000 e 2000 euros, de 5,5% sobre o remanescente das pensões de valor mensal até 3 500 euros, e de 3,5 % sobre a totalidade das pensões de valor mensal superior a 3 500 euros; a ingerência do governo na celebração de contratos colectivos de trabalho entre sindicatos e autarquias locais.

Daqui se conclui que a Constituição valeu, e muito, para evitar, entre muitas outras coisas, que houvessem ainda mais desempregados e que os desempregados ficassem ainda mais desamparados.

Para a direita, estas decisões do Tribunal Constitucional são uma afronta que merece castigo severo. E os seus dirigentes já prometeram que, de futuro, tratarão de escolher com mais cuidado os juízes desse Tribunal para não terem surpresas desagradáveis.  

Passos Coelho considerou que os juízes do Tribunal Constitucional, «que determinam a inconstitucionalidade de diplomas em circunstâncias tão especiais» deveriam estar sujeitos a «um escrutínio muito maior do que o feito» até hoje.

«Como é que uma sociedade com transparência e maturidade democrática pode conferir tamanhos poderes a alguém que não foi escrutinado democraticamente», questionou Pedro Passos Coelho, apontando para o caso dos Estados Unidos da América em que os juízes «escolhidos para este efeito têm um escrutínio extremamente exigente», disse.

«Não temos sido tão exigentes quanto deveríamos ter sido», sublinhou, durante a intervenção que fez esta noite, em Coimbra, no encerramento da primeira conferência do ciclo comemorativo dos 40 anos da fundação do PSD" (TSF. 5-6-2014).

Teresa Leal Coelho, vice-presidente do PSD, considera que o Tribunal Constitucional (TC) deve sofrer “sanções jurídicas” pelas decisões de inconstitucionalidade emitidas nas últimas semanas por parte do Tribunal de Justiça da União Europeia (…) 

A dirigente social-democrata diz que os objectivos do Executivo e dos dois partidos em coligação foram discutidos com os juízes antes destes irem para o Ratton, mas alguns dos juízes cuja candidatura foi apontada “criaram a ilusão de que tinham uma visão filosófico-política que seria compatível com aquilo que é o projecto reformista que temos para Portugal no âmbito da integração na  União Europeia”.

« Nós tivemos a ilusão de que esta era a perspetiva dos nomes que candidatámos a juízes do TC. Parece que não passou de uma ilusão”, apontou Teresa Leal Coelho»" (Observador. 10-6-2014).

Bonaparte à portuguesa

O tema 1 acaba de ser glosado, mais uma vez, por António Barreto — ex-militante do PCP, ex-militante do PS, ex-ministro, ex-militante do Movimento dos Reformadores —  em termos inexcedivelmente claros:

O PCP, que já derrubou dois governos socialistas, foi durante quarenta anos um seguro de vida da direita. A impossibilidade genética de aliança dos socialistas com os comunistas dava, sem justa causa, uma "folga" aos partidos de direita. Mas era, do ponto de vista da democracia, razoável. Na verdade, o PCP não faz parte das soluções democráticas. («Situação Excelente, mas não desesperada». Diário de Notícias. 21-10-2015).

Só que o tal “seguro de vida da direita” parece ter esgotado o seu prazo de validade. E isso, segundo António Barreto, não augura nada de bom. Mas a situação, acrescenta, embora excelente para a esquerda, não é todavia desesperada para a direita. Porquê ? Porque há um outro “seguro de vida” a que a direita pode recorrer: o Presidente da República. Ouçamos então o que este tem a dizer:


Na Comunicação ao País que realizei no dia 6 de outubro, afirmei que Portugal necessita de uma solução governativa que assegure a estabilidade política. (…)

Neste contexto, e tendo ouvido os partidos representados na Assembleia da República, indigitei hoje, como Primeiro-Ministro, o Dr. Pedro Passos Coelho, líder do maior partido da coligação que venceu as eleições do passado dia 4 de outubro.(...)

Tive também presente que a União Europeia é uma opção estratégica do País. Essa opção foi essencial para a consolidação do regime democrático português e continua a ser um dos fundamentos da nossa democracia e do modelo de sociedade em que os Portugueses querem viver, uma sociedade desenvolvida, justa e solidária.(…) Fora da União Europeia e do Euro o futuro de Portugal seria catastrófico.(…)



Depois de termos executado um exigente programa de assistência financeira, que implicou pesados sacrifícios para os Portugueses, é meu dever, no âmbito das minhas competências constitucionais, tudo fazer para impedir que sejam transmitidos sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados, pondo em causa a confiança e a credibilidade externa do País que, com grande esforço, temos vindo a conquistar. (…)

Se o Governo formado pela coligação vencedora pode não assegurar inteiramente a estabilidade política de que o País precisa, considero serem muito mais graves as consequências financeiras, económicas e sociais de uma alternativa claramente inconsistente sugerida por outras forças políticas. (Comunicação ao País do Presidente da República sobre a indigitação do Primeiro-Ministro. Palácio de Belém, 22 de outubro de 2015).


Em resumo, no que depender de Cavaco Silva, não haverá em Portugal um governo PS com um acordo de incidência parlamentar com o BE e a CDU, mesmo que o governo PSD-CDS seja rejeitado na Assembleia da República. É uma declaração de índole claramente bonapartista. Nos regimes bonapartistas (uma invenção de Napoleão Bonaparte), o imperador (ou o presidente da república ou o primeiro-ministro) actua como um déspota, mas um déspota que busca construir uma imagem de homem-providencial, o único capaz de interpretar os desejos e aspirações do povo.

Esta proclamação do Presidente da República é uma continuação e um desenvolvimento do tema 2: “a Constituição da República Portuguesa só é respeitável se for a direita a governar. E quando a direita governa,  a sua vontade prevalece sobre a Constituição”.

Prevalecerá? A ver vamos. 

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