Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

19 outubro, 2015

TEMA 3


ORA, AÍ ESTÁ ELA OUTRA VEZ:
 A DIREITA UNIDA,
MAS DESTA VEZ MINORITÁRIA

De todos os artigos e proclamações [incluindo a do Presidente da República na sua alocução de 22-10-2015] que têm vindo a lume desde as eleições legislativas em que é defendida a tese bonapartista segundo a qual a coligação PSD-CDS deve governar mesmo que seja rejeitada na Assembleia da República e mesmo que os partidos rejeitantes se unam para formar um governo maioritário,  o mais bem feito e erudito é o de Manuel Villaverde Cabral, do qual extraí as seguintes passagens:

Faz mais de três semanas que aqui anunciei – dia 20 de Setembro passado – que «vinha aí a frente popular». Para quem escutasse com atenção os ruídos de fundo e tivesse presente a memória política portuguesa, os sinais eram inconfundíveis.
Se a Coligação [PSD+CDS] que governou até agora aproveitou legitimamente as condições impostas pela crise para exercer o poder político, o PS pretende agora – nada mais, nada menos – do que «acabar com a austeridade», deixando de cumprir as medidas a que o país continua a estar obrigado, enquanto membro da UE e da Zona Euro, quando sabe de antemão que não poderá fazê-lo; tudo isso para aceder ao poder. (Manuel Villaverde Cabral. «Ora, aí está ela: “a esquerda unida”».  Observador. 13-10-2015)

Em suma, segundo Manuel Villaverde Cabral, para um governo de direita com uma  maioria parlamentar é legítimo e razoável cortar salários e pensões do regime contributivo, facilitar os despedimentos, diminuir salários, precarizar os contratos de trabalho, empurrar os jovens para a emigração, aumentar os impostos que recaem sobre os assalariados e pensionistas do sistema contributivo, desmantelar a segurança social, degradar o serviço nacional de saúde e a escola pública, reduzir as verbas para a ciência, vender as empresas públicas mais valiosas e rentáveis, desde que tudo isso permita pagar os calotes e as falcatruas dos “bancos maus”, manter e aumentar as taxas de juro dos “bancos bons”, garantir às empresas cotadas na bolsa continuarem a pagar os seus impostos na Holanda e noutras praças financeiras e não diminuir a parte dos impostos que é entregue pontualmente aos parceiros das parcerias público-privadas. A isto se chama, na gíria de M. Villaverde Cabral, «cumprir as nossas obrigações como membros da UE e da zona Euro». Mas é uma rematada loucura que um governo de esquerda com uma maioria parlamentar possa tentar desapertar este garrote que sufoca a maioria da população e adoptar políticas públicas que conduzam a uma melhoria das suas condições de vida. A isto se chama, na gíria de M. Villaverde Cabral, «frente popular».

Adiante se verá quais são os argumentos aduzidos por M. Villaverde Cabral para sustentar estas duas teses. Resta esclarecer a origem da expressão «frente popular» que ele utiliza no seu artigo. Está carregada de significado, mas não significa o mesmo para a direita e para a esquerda.  E muitos eleitores desconhecem esse significado.

A « FRENTE POPULAR »


A «frente popular» de que fala M. Villaverde Cabral é uma alusão ao governo do Front Populaire em França (1936-1938), um governo de coligação formado por dois partidos: a S.F.I.O (vulgo, o partido socialista francês, um partido social-democrata criado em 1905), dirigido na altura por Léon Blum, e o partido radical (o mais antigo partido francês, criado em 1901; um partido da pequena e média burguesia republicana e laica que ainda hoje perdura, com outro nome, l’Union des Démocrates et Indépendants), com o apoio no parlamento do PC francês. M.V. Cabral diz: «vem aí a frente popular» como se dissesse «vem aí a peste» ou «vem aí o papão». Mas o que fez o governo da Frente popular, para justificar esse temor?

O governo do Front Populaire teve uma vida curta e um triste fim. Os radicais — com o apoio relutante dos socialistas (incluindo o próprio Blum, que viria a arrepender-se de o ter feito) e o apoio dos comunistas (obedecendo às directivas de Estaline, que tinha assinado um pacto de não agressão mútua com Hitler) — assinaram, dois anos depois, os acordos de Munique (que entregaram os Sudetas e a Checoslováquia a Hitler, confortando-o na ideia de que poderia invadir também a França sem perdas excessivas, o que efectivamente veio a acontecer). Em 1940, a direita (os radicais e a ala mais à direita dos socialistas) votaram a entrega do poder absoluto ao marechal Pétain. Logo de seguida, este celebrou com Hitler um acordo para dividir a França ocupada em duas zonas distintas: uma onde a Alemanha nazi poderia pilhar, saquear e escravizar a seu bel-prazer, a outra um protectorado da Alemanha nazi, administrado com as botas cardadas de Pétain, com o apoio do exército e das polícias de Hitler.

Não é pois a esta série de acontecimentos que a direita portuguesa alude quando fala com temor da «frente popular». Será então às medidas de política industrial, comercial e financeira (aquilo a que os economistas chamam na sua gíria «política económica») que o governo do « Front Populaire » tomou antes de se desfazer?

Vejamos. Esse governo foi eleito com um programa social-democrata: «o pão, a paz e a liberdade». Com esse objectivo, nacionalizou a indústria aeronáutica, os caminhos de ferro (foi nesta altura que foi criada a SNCF [Société Nationale des Chemins de fer Français], que ainda hoje perdura) e a indústria de armamento. Não ousou nacionalizar o Banque de France (o equivalente, pelas suas funções, do Banco de Portugal antes da entrada de Portugal no euro), mas decretou uma golden share (uma participação accionista detida pelo Estado, que, apesar de ser minoritária, confere poderes especiais) sobre esse banco (até então dominado pelos seus 200 maiores accionistas privados, as chamadas «200 famílias» ou o «muro do dinheiro», que tinham destruído em 1925 o governo da «coligação das esquerdas» [«cartel des gauches»]). Criou ainda a Junta Nacional do Trigo («Office National interprofessionel du Blé») para regular o comércio do trigo e produtos derivados (farinhas, panificação, rações para o gado, etc.), garantir preços adequados aos agricultores e neutralizar os intermediários açambarcadores e os especuladores (este organismo ainda hoje perdura, com um outro nome).

É impossível atribuir a estas medidas concretas, ou a este tipo de medidas, o temor que o nome « frente popular » infunde na direita. Os dois governos provisórios do general De Gaulle (Junho 1944-Janeiro 1946) e o governo provisório de Félix Gouin (Janeiro-Junho 1946), logo após a libertação da França, fizeram muito mais nacionalizações (do Banco de França e dos principais bancos de depósito, da produção e distribuição do gás e da electricidade, das minas de carvão, das fábricas de motores de avião Gnome e Rhône, da Air France, das fábricas de automóveis Renault, das grandes companhias de seguros) e muito mais intervenções de índole económica (criação do comissariado para a energia atómica, criação da agência nacional para a melhoria da habitação, etc.) do que o governo do Front Populaire. E nenhum historiador, nem mesmo M. Villaverde Cabral, poderá negar que o general de Gaulle era um político de direita e que Félix Gouin era um social-democrata moderado. Convém recordar que foi graças a estas medidas que a França recuperou a sua independência e o seu vigor industrial, perdidos com a ocupação, a pilhagem e o saque da Alemanha nazi.

Com efeito, como é bem sabido, as nacionalizações são muitas vezes um modo de impedir que o capitalismo sem freios (ou, como dizem os economistas neoclássicos, “o mecanismo auto-regulador do mercado”) se devore a si mesmo. Mesmo quando não são mais tarde revertidas (as chamadas «privatizações»), acabam por ser muito rendosas para muitas empresas privadas e para os seus accionistas, através das chamadas parcerias público-privadas, das encomendas preferenciais, dos subsídios e das isenções fiscais do Estado aos seus parceiros privados. E é o Estado que assume também, muitas vezes, a parte de leão nas enormes despesas de investigação e desenvolvimento de novas tecnologias de ponta, muitas delas oriundas dos laboratórios, dos centros de investigação e das universidades públicas, que são transferidas mais tarde para o sector privado a custo zero. Basta lembrar aqui, a título de exemplo, que a França, graças a múltiplas intervenções do Estado (incluindo nacionalizações) se tornou uma potência aeronáutica, tanto no domínio civil como também no domínio militar — aviões de passageiros (Caravelle, Concorde, Falcon, Airbus, etc.), aviões de transporte (A400M, etc.), caças de combate (Mirage, Rafale), helicópteros (Super-Puma, Cougar), veículos aéreos remotamente tripulados, vulgo “drones” (Neuron), mísseis (Meteor, Milan), satélites de reconhecimento (Helios), foguetes de sondagem (Veronique, etc.) — e que tem a rede ferroviária mais avançada do mundo (TGV, etc.).

Raramente ou nunca se verá, é verdade, um banqueiro que se preze, ou um investidor de grande gabarito, ou um economista neoclássico (vulgo, de tendência «neoliberal»), reconhecer em público estes factos (embora o possam fazer em privado). São tabu, algo que encaram como uma ameaça mortal à sua doutrina: “o Estado deve reduzir-se às suas funções de “soberania”: polícias, forças armadas e tribunais; tudo o mais deve se entregue ao cuidado do mecanismo auto-regulador do mercado. A intervenção do Estado fora destes estritos limites, sobretudo quando visa proteger os direitos dos trabalhadores assalariados e dos desempregados, é economicamente perniciosa (porque restringe a liberdade [da iniciativa privada]) e politicamente perigosa (porque promove, ainda que talvez não intencionalmente, a ideia maluca do socialismo)”.

Mas se o governo do Front Populaire mostrou rapidamente que não era uma frente (« front ») unida, houve outras medidas que tomou  que fazem jus ao nome «popular» pelo qual ficou conhecido e pelo qual é lembrado — apesar do seu triste fim. E são elas que explicam o alarme de M. Villaverde Cabral.

O governo de Léon Blum lançou um programa nacional de obras de utilidade pública para reduzir o desemprego (directamente inspirado no Works Projects Admnistration do presidente Roosevelt nos EUA) e promoveu a assinatura dos chamados acordos de Matignon (o palácio Matignon é o nome da residência oficial do 1º Ministro francês). Esses acordos, firmados entre os representantes patronais e as direcções dos sindicatos, foram o modo encontrado por ambos para termo à greve geral espontânea com ocupação das fábricas, empresas e locais de trabalho que, nessa altura, se espalhou pela França e colheu de surpresa as centrais sindicais, CGT e CGTU. Os acordos estipulavam a semana de 40 horas (8 horas por dia x 5 dias), o direito de eleição pelos trabalhadores, por voto secreto, de delegados sindicais nas empresas, a proibição dos despedimentos sem justa causa, a contratação colectiva (contratos colectivos de trabalho negociados entre as organizações patronais e os sindicatos) e um aumento dos salários de 7% a 12% consoante as profissões e as indústrias. Logo a seguir, o governo prolongou a escolaridade obrigatória (até aos 14 anos), criou o subsídio de desemprego, o sistema contributivo das pensões de aposentação, o direito a duas semanas de férias (13 dias + 2 fins de semana), sem perda de salário, para todos os assalariados, e um desconto substancial nos bilhetes de comboio para os trabalhadores em férias (que ainda hoje perdura) — uma ideia do socialista Léo Lagrange, sub-secretário de Estado do Desporto e Lazeres, o mesmo que organizou as “Olimpíadas Populares” (como alternativa aos Jogos Olímpicos organizados pela Alemanha de Hitler, em 1936). 600 mil pessoas em 1936, 1 milhão e 800 mil em 1937, vão gozar, pela primeira nas suas vidas, umas férias, muitas delas aproveitando a rede de pousadas da juventude («auberges de jeunesse», outra ideia impulsionada por Lagrange), que ainda hoje existem.

Enfim, tudo coisas verdadeiramente horríveis, inventadas no “ministério da preguiça” (foi assim que a direita francesa cognominou imediatamente a secretaria de Estado de Lagrange), impensáveis até então, que nós, em Portugal, só conseguimos descobrir quão horríveis eram, quarenta anos depois, com o 25 de Abril de 1974. 

EM MEMÓRIA DE LAGRANGE

Lagrange morreu prematuramente. Tinha apenas 40 anos. Mas quando cheguei a França, em 1968, foi numa dessas pousadas da juventude de que ele tinha sido o promotor trinta anos antes, o Auberge de Jeunesse de Toulouse, que encontrei guarida e onde vivi os primeiros 3 meses, porque os preços eram muito baixos e podíamos cozinhar as nossas refeições na cozinha comum equipada com todos os apetrechos, incluindo louça. Para fazer algum dinheiro, trabalhava num terminal de camiões TIR, a descarregar sacos, caixas  e caixotes.

EPIFANIAS

Não sei se M. Villaverde Cabral teve experiências semelhantes de preguiça proletária. Mas mesmo que as tivesse tido, duvido que tivessem qualquer influência duradoura na sua personalidade, definida pelo próprio do seguinte modo:

O meu auto-retrato tem um lado Dr. Jekyll/Mr. Hyde. O Mr. Hyde não será um perigo para as pessoas, um terror. A relação é talvez a contrária (M. Villaverde Cabral, entrevistado por Anabela Mota Ribeiro. Público. 2000).

O que sabemos ao certo é que, na mesma altura, em Paris onde se encontrava exilado, ele fazia a apologia, nos “Cadernos de Circunstância” (1967-1970), das ideias ultra-esquerdistas do grupo italiano Potere Operaio, entremeada com umas escapadelas a Itália para cavaquear com o seu amigo Toni Negri, o dirigente-filósofo desse grupo, e distribuir panfletos do Potere Operaio às portas da fábrica da Fiat em Turim, e noutras fábricas (em Porto Maghera, Veneza e Bolonha).

Em 1979, Negri viria a ser condenado a 12 anos de cárcere sob a acusação, entre outros alegados crimes dos quais se proclamou também inocente, de ser a eminência parda por detrás das Brigadas Vermelhas e do sequestro e assassinato de Aldo Moro. No mesmo ano, Manuel Villaverde Cabral doutorava-se em História em Paris, depois de ter sido admitido como assistente na universidade portuguesa em 1974, onde diz ter descoberto a sua vocação de professor. Em 1974, abandona a sua militância marxista-leninista (primeiro no PCP, depois na FAP [um grupo maoísta de que foi co-fundador], depois na ultra-esquerda italiana e francesa) para se dedicar à sociologia e à carreira académica («Entrevista a Manuel Villaverde Cabral por José Neves», Análise Social, vol. XLVI (200), 2011, 522-537; Manuel Villaverde Cabral. «O encanto da sociologia», entrevista por António Guerreiro. Público. 19-01-2014).  Mas o bichinho da política não o largou. Em 1984 é um dos fundadores do « Clube da Esquerda Liberal», um cenáculo de ex-marxistas-leninistas-maoístas convertidos ao liberalismo económico.

Quinze anos depois da sua epifania com a ultra-esquerda italiana e  com o seu mentor, o filósofo Negri (de quem, entretanto, se afastou politicamente mas de quem continua, como afirmou recentemente, a ser amigo), Manuel Villaverde Cabral teve a sua segunda epifania, desta vez com a direita indígena. Foi o encontro com essa grande figura de estadista que se chama Aníbal Cavaco Silva (veja-se o relato que Cavaco Silva faz desse encontro no volume 1 da sua Autobiografia Política), e de se ter deixado seduzir pela sua visão exaltante de um Portugal moderno e desenvolvido (um país sem indústria transformadora de monta [salvo a construção civil], com um sector de pescas e uma agricultura residuais, mas com boas estradas, dedicado aos serviços [com o turismo à cabeça]). Nessa altura, M. Villaverde Cabral era director da Biblioteca Nacional (1985-1990), cargo para o qual havia sido nomeado como « prémio » pelo apoio que deu à candidatura de Mário Soares.

Sim, era um nível de... Vocês [os brasileiros] chamam governo, e é governo. São nomeações de primeiro-ministro, portanto, é governo, mas a gente não gosta de se olhar como político. Mas é evidente: fui para a Biblioteca Nacional porque o primeiro-ministro Mário Soares me convidou, é óbvio. Não podia ir de outra maneira, não é? E isso tinha que ver com o tal Clube da Esquerda Liberal. Foi um presente que ele me deu, eu percebi muito bem. (CABRAL, Manuel Villaverde. Manuel Villaverde Cabral (depoimento, 2010). Rio de Janeiro, CPDOC/FGV; LAU/IFCS/UFRJ; ISCTE/IUL; IIAM. 2011. 28 p.)

É por isso interessante ouvi-lo, trinta anos depois desse presente, dissertar sobre o «emprego clientelar que caracteriza o actual regime» e sobre a renovação dos «técnicos superiores do “back office”» (de que o cargo de director da Biblioteca Nacional será, presume-se, um bom exemplo) que vieram substituir os oriundos do salazarismo.  

Quem conhece a administração,bem como as «empresas públicas», sabe que há demasiadas diferenças entre os funcionários do «front office» e os do «back office» para os confundir e sabe também que a categoria dos «técnicos superiores» – oriunda do salazarismo, com os seus privilégios devidos à raridade e efectiva tecnicidade das licenciaturas – se multiplicou sem freio e deu lugar à principal forma de emprego clientelar que caracteriza o actual regime. Foi esse o principal mecanismo de aumento da tal «nova classe média» a que todos se referem, com razão, como o cerne do sistema partidário e eleitoral! (M. Villaverde Cabral. «A desestatização: esclarecimento e desenvolvimentos». Observador. 17-05-2015).

Estas duas citações dão bem a ideia da oscilação pendular entre os dois lados do seu autor: o sociólogo que há 15 anos não tem mãos a medir para atender a todas as encomendas que lhe fazem (cf. «Manuel Villaverde Cabral entrevistado por José Neves», op.cit. p. 534) e o arauto espalha-brasas da direita neoliberal. Dito de outro modo - e pedindo de empréstimo as suas próprias metáforas - o seu lado Mr. Hyde deixou de se esconder. Agora fala copiosamente e com entusiasmo juvenil de como o Dr. Jekyll — o outro lado do seu «eu», o tal que infunde terror — trocou a cartilha radical da sua antiga luminária, o dr. Toni Negri, pela cartilha radical do seu novo messias: o dr. Pedro Passos Coelho.

É admirável. Ouçamo-lo, no seu melhor, em 2011, logo após a tomada de posse do governo PSD-CDS, quando o dr. Ricardo Salgado ainda era «o dono disto tudo», ouvido com unção pelos partidos do chamado “arco da governação” (na versão Paulo Portas), explicar quem mandou vir a troika e vaticinar jubilosamente tudo o mais que se lhe seguiu com Passos Coelho ao leme e a «mãozinha de Deus» (sic) a guiar-lhe o rumo.

PORTUGAL À FRENTE 
(visto pelos binóculos de M.V.C)

De repente, com a crise mundial – é verdade que é a crise mundial que põe à mostra a nossa situação que não vai poder ser compensada com dinheiro, empurrando com a barriga – fomos apanhados literalmente com as calças na mão. E agora temos que puxar as calcinhas e disfarçar o máximo. (…)
Depois há os bancos, que eram credores do Estado, aconteceu-lhes que quando o devedor deve 100 está tramado, quando deve 100 mil, quem se trama é o credor. Estou a pensar, em particular, no BES. O BES é uma entidade política. Foi o senhor dr. Ricardo Salgado que mandou vir o FMI. Nessa quarta-feira de manhã, os bancos disseram: “É a última vez que a gente empresta e só emprestamos se chamarem o FMI”. E foi assim que o Teixeira dos Santos chamou o FMI, o outro [José Sócrates] mandou-se ao ar, atirou com o telemóvel.

Somos, portanto, governados pelo dr. Ricardo Salgado.

Somos governados pela dívida que criámos. Mas a certa altura também fomos governados pela Mota-Engil. E o aeroporto e o TGV têm a ver exclusivamente com isso. Provavelmente, precisamos de um aeroporto novo na perspectiva do turismo, do clima, que será a nossa grande indústria! Há coisas boas! Há um vento… O nosso Passos Coelho foi bafejado pela sorte. Nós estamos a tentar sair por obrigação e também por virtude de uma situação pela qual o Partido Socialista é 100 por cento responsável, na minha opinião.

Mas acabou de falar na crise mundial.

Quando eu digo que é responsável o Partido Socialista é no sentido em que o PS, tendo tido a missão histórica ingrata de desfazer a revolução do 25 de Abril – e ter desfeito bastante – não conseguiu desfazer tudo. Nós continuámos num socialismo, de baixo nível evidentemente, mas um socialismo…
 (…) Mas é preciso um governo liberal e no xadrez político-partidário português só podia ser este governo PSD-CDS, não podia ser outro.

Mas as pessoas vão ganhar menos, vão ter menos subsídios de desemprego, o desemprego vai aumentar. É uma coisa terrível para o governo.

As pessoas sabem que isso vai acontecer e que não há alternativa. Do ponto de vista estritamente político, Passos Coelho tem a mãozinha de Deus por baixo.

Mas como é que um país como este…

Este país é um país muito tradicional, muito convencional, serôdio, preguiçoso, até isso tem de ser sacudido. A história de Portugal é de letargia e um ataque, um momento de despertar. Mas Portugal enquanto houver batatas não desaparece.

Mas como é que este governo vai aguentar a troika? Embora haja o alargar do cinto da cimeira da semana passada, isto vai ser muito duro para as pessoas. Como é que vão votar outra vez no PSD, alegremente?

Se o PSD estes quatro anos conseguir inverter a curva, eu estou por eles.

Mas como é que o país pode crescer?

Repare, depois da recessão há sempre [crescimento]… A recessão até agora não provocou nada.

Aumentou o desemprego.

Sim, mas temos válvulas de segurança que estão a funcionar perfeitamente. A migração e a emigração.

 (…) Mas se cada ministro vai ficar embaraçado de cada vez que for preciso fechar uma empresa, então o melhor é desistirem já. O ataque aos desempregados é importante. Nós vamos ter mais desempregados com menos apoios. Aí há um défice de equidade. Quanto à emigração, ainda há pouco tempo ouvi o senhor embaixador do Brasil dizer que podemos ir para lá… Se temos de ir, vamos, foi sempre o nosso destino. Aliás, Portugal é mar. Terra é para pôr os pés e a cabeça sempre a olhar para o mar, quando é que eu me vou embora… E depois volto, como emigrante. Com o meu farnelzinho, com o seu peculiozinho. Nós temos jovens com formação…

Que têm de ir embora porque não vão arranjar emprego cá…

Mas já não é a mesma emigração. Também não vão mandar remessas, nem viver num bairro de lata, como os outros faziam e depois tinham uma casa de três pisos em Fornos de Algodres. Porque eram de lá e era para os vizinhos de lá que eles trabalhavam. Foi o Jacques Delors que acabou com os bairros da lata à força. Eu estive lá, em Maio de 68, 69. E entre o dia em que ele disse ”vou erradicar os bairros da lata” e os bairros da lata foram erradicados demorou para aí dois anos. A nossa esperança é que a China pare de correr. É como o problema do bailout e dos Estados Unidos…

Não vai haver bailout [resgate financeiro]…

Não, mas se fosse preciso a China “bailava” [= poderia ser obrigada a pedir um resgate financeiro para evitar a bancarrota] completamente porque eles precisam que os americanos comprem aquela tralha toda que fabricam.

Acho que é um mundo muito difícil, muito competitivo, que as pessoas não gostam, mas o que têm de fazer é ir para outra. Este, é de facto, também, um momento de oportunidades. Muitas das pessoas que estão a ficar desempregadas vão fazer empresas e vão dizer daqui a 10 ou 15 anos “olha pá, perdi o emprego e afinal agora estou rico”. Claro que é uma minoria, mas é essa a dinâmica. E não vale a pena as pessoas protestarem. Para aquela coisa da esquerda, eu realmente já não dou. A fingirem que têm uma alternativa. Mas qual alternativa?

(Excertos de uma entrevista de M. Villaverde Cabral ao jornal «i», em Julho de 2011. Os parênteses rectos foram acrescentados ao original)

Sem comentários:

Enviar um comentário

Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana