Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

23 outubro, 2015


TEMA 3


E SE…?

E se os partidos de esquerda com assento parlamentar se unissem mesmo para governar a favor de quem neles votou e daqueles que votaram em branco ou nulo ou que se abstiveram por não acreditarem que isso, embora desejável, fosse alguma vez possível?

O mínimo que se pode dizer é que seria uma solução inédita em Portugal. Tão inédita que a direita portuguesa anda num frenesim.

"O usurpador”, “A fraude pós-eleitoral”, “Isto pode não acabar bem”, “O partido dos enganados”, “Costa no seu labirinto”, “O marciano”, “Este homem não é de confiança”, “Maioria de bloqueio”,“Ai preocupem-se, preocupem-se…”, “Antes do dilúvio”, ”,“Ora, aí está ela: a «esquerda unida»!”, “Situação excelente, mas não desesperada”.

Estes são alguns dos títulos de artigos que expressam o temor profundo com que a direita portuguesa vê a possibilidade de constituição de um governo PS apoiado no parlamento pelo BE e pela CDU [PCP+PEV].

Que as direitas (ou, para simplificar, a direita) detestem as esquerdas (ou a esquerda, para simplificar), e vice-versa, nada tem de surpreendente. É um facto com mais de 200 anos, com fundas raízes culturais, e está para durar não sabemos quantos mais. Há, no entanto, em vários dos artigos citados, dois temas já várias vezes ensaiados pelos defensores mais desbocados da direita: “1. a democracia só é aceitável quando a direita tem a maioria dos votos e dos mandatos. 2. E quando assim acontece, não há freios constitucionais que se lhe possam opor”. Os seus defensores não podem ser acusados de excesso de zêlo porque o exemplo e o incentivo lhes vem de cima.

A Constituição como impecilho

Convém recordar os ataques de Passos Coelho contra «a falta de bom senso» dos juízes do Tribunal Constitucional (TC), encarados como o último impecilho às medidas de «austeridade» da troika que o seu governo se obrigou a aplicar indo ainda mais além, culminando na frase imorredoira que proferiu na universidade de verão do PSD:

Já alguém perguntou aos 900 mil desempregados de que lhes valeu a Constituição até hoje? (Público. 1-9-2013) 

Não sei se alguém perguntou, mas a resposta está ao alcance de todos.

O TC produziu oito acórdãos negativos sobre medidas de austeridade e medidas anti-laborais da maioria PSD-CDS: sobre o Orçamento do Estado para 2012 (Acórdão 353/2012), o Orçamento do Estado para 2013 (Acórdão 187/2013), o Regime Jurídico de Requalificação dos Trabalhadores em Funções Públicas (Acórdão 474/2013), as alterações ao Código do Trabalho (Acórdão 602/2013), o Regime de Convergência dos Sistemas de Pensões do Sector Público e do Sector Privado (Acórdão 862/2013), o Orçamento do Estado para 2014 (Acórdão 413/2014), a contribuição de sustentabilidade (Acórdão 575/2014) as normas da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas que permitiam a intervenção do Governo na celebração dos Acordos Colectivos de Empregador Público (ACEP) nas autarquias (Acordão 494/2015).

Concretamente, o TC considerou inconstitucionais o corte do subsídio de férias e Natal aos funcionários públicos com salários superiores a 600 euros; o alargamento dos cortes nos contratos de docência e investigação; os cortes nos subsídios de doença e de desemprego, respectivamente de 5% e de 6%; os despedimentos na função pública ao fim de 12 meses na mobilidade especial e novas normas do Código do Trabalho de despedimento por extinção do posto de trabalho e inadaptação; o corte de salários na função pública entre 2,5% e 12% a partir de 2014; o corte de 10% nas pensões de aposentação, reforma, invalidez e sobrevivência de valor mensal superior a 600 euros do sistema contributivo dos funcionários públicos (Caixa Geral de Aposentações); o corte permanente de 2% de todas as pensões do sistema contributivo (tanto dos aposentados da função pública como os do sector privado) de valor mensal entre 1000 e 2000 euros, de 5,5% sobre o remanescente das pensões de valor mensal até 3 500 euros, e de 3,5 % sobre a totalidade das pensões de valor mensal superior a 3 500 euros; a ingerência do governo na celebração de contratos colectivos de trabalho entre sindicatos e autarquias locais.

Daqui se conclui que a Constituição valeu, e muito, para evitar, entre muitas outras coisas, que houvessem ainda mais desempregados e que os desempregados ficassem ainda mais desamparados.

Para a direita, estas decisões do Tribunal Constitucional são uma afronta que merece castigo severo. E os seus dirigentes já prometeram que, de futuro, tratarão de escolher com mais cuidado os juízes desse Tribunal para não terem surpresas desagradáveis.  

Passos Coelho considerou que os juízes do Tribunal Constitucional, «que determinam a inconstitucionalidade de diplomas em circunstâncias tão especiais» deveriam estar sujeitos a «um escrutínio muito maior do que o feito» até hoje.

«Como é que uma sociedade com transparência e maturidade democrática pode conferir tamanhos poderes a alguém que não foi escrutinado democraticamente», questionou Pedro Passos Coelho, apontando para o caso dos Estados Unidos da América em que os juízes «escolhidos para este efeito têm um escrutínio extremamente exigente», disse.

«Não temos sido tão exigentes quanto deveríamos ter sido», sublinhou, durante a intervenção que fez esta noite, em Coimbra, no encerramento da primeira conferência do ciclo comemorativo dos 40 anos da fundação do PSD" (TSF. 5-6-2014).

Teresa Leal Coelho, vice-presidente do PSD, considera que o Tribunal Constitucional (TC) deve sofrer “sanções jurídicas” pelas decisões de inconstitucionalidade emitidas nas últimas semanas por parte do Tribunal de Justiça da União Europeia (…) 

A dirigente social-democrata diz que os objectivos do Executivo e dos dois partidos em coligação foram discutidos com os juízes antes destes irem para o Ratton, mas alguns dos juízes cuja candidatura foi apontada “criaram a ilusão de que tinham uma visão filosófico-política que seria compatível com aquilo que é o projecto reformista que temos para Portugal no âmbito da integração na  União Europeia”.

« Nós tivemos a ilusão de que esta era a perspetiva dos nomes que candidatámos a juízes do TC. Parece que não passou de uma ilusão”, apontou Teresa Leal Coelho»" (Observador. 10-6-2014).

Bonaparte à portuguesa

O tema 1 acaba de ser glosado, mais uma vez, por António Barreto — ex-militante do PCP, ex-militante do PS, ex-ministro, ex-militante do Movimento dos Reformadores —  em termos inexcedivelmente claros:

O PCP, que já derrubou dois governos socialistas, foi durante quarenta anos um seguro de vida da direita. A impossibilidade genética de aliança dos socialistas com os comunistas dava, sem justa causa, uma "folga" aos partidos de direita. Mas era, do ponto de vista da democracia, razoável. Na verdade, o PCP não faz parte das soluções democráticas. («Situação Excelente, mas não desesperada». Diário de Notícias. 21-10-2015).

Só que o tal “seguro de vida da direita” parece ter esgotado o seu prazo de validade. E isso, segundo António Barreto, não augura nada de bom. Mas a situação, acrescenta, embora excelente para a esquerda, não é todavia desesperada para a direita. Porquê ? Porque há um outro “seguro de vida” a que a direita pode recorrer: o Presidente da República. Ouçamos então o que este tem a dizer:


Na Comunicação ao País que realizei no dia 6 de outubro, afirmei que Portugal necessita de uma solução governativa que assegure a estabilidade política. (…)

Neste contexto, e tendo ouvido os partidos representados na Assembleia da República, indigitei hoje, como Primeiro-Ministro, o Dr. Pedro Passos Coelho, líder do maior partido da coligação que venceu as eleições do passado dia 4 de outubro.(...)

Tive também presente que a União Europeia é uma opção estratégica do País. Essa opção foi essencial para a consolidação do regime democrático português e continua a ser um dos fundamentos da nossa democracia e do modelo de sociedade em que os Portugueses querem viver, uma sociedade desenvolvida, justa e solidária.(…) Fora da União Europeia e do Euro o futuro de Portugal seria catastrófico.(…)



Depois de termos executado um exigente programa de assistência financeira, que implicou pesados sacrifícios para os Portugueses, é meu dever, no âmbito das minhas competências constitucionais, tudo fazer para impedir que sejam transmitidos sinais errados às instituições financeiras, aos investidores e aos mercados, pondo em causa a confiança e a credibilidade externa do País que, com grande esforço, temos vindo a conquistar. (…)

Se o Governo formado pela coligação vencedora pode não assegurar inteiramente a estabilidade política de que o País precisa, considero serem muito mais graves as consequências financeiras, económicas e sociais de uma alternativa claramente inconsistente sugerida por outras forças políticas. (Comunicação ao País do Presidente da República sobre a indigitação do Primeiro-Ministro. Palácio de Belém, 22 de outubro de 2015).


Em resumo, no que depender de Cavaco Silva, não haverá em Portugal um governo PS com um acordo de incidência parlamentar com o BE e a CDU, mesmo que o governo PSD-CDS seja rejeitado na Assembleia da República. É uma declaração de índole claramente bonapartista. Nos regimes bonapartistas (uma invenção de Napoleão Bonaparte), o imperador (ou o presidente da república ou o primeiro-ministro) actua como um déspota, mas um déspota que busca construir uma imagem de homem-providencial, o único capaz de interpretar os desejos e aspirações do povo.

Esta proclamação do Presidente da República é uma continuação e um desenvolvimento do tema 2: “a Constituição da República Portuguesa só é respeitável se for a direita a governar. E quando a direita governa,  a sua vontade prevalece sobre a Constituição”.

Prevalecerá? A ver vamos. 

19 outubro, 2015

TEMA 3


ORA, AÍ ESTÁ ELA OUTRA VEZ:
 A DIREITA UNIDA,
MAS DESTA VEZ MINORITÁRIA

De todos os artigos e proclamações [incluindo a do Presidente da República na sua alocução de 22-10-2015] que têm vindo a lume desde as eleições legislativas em que é defendida a tese bonapartista segundo a qual a coligação PSD-CDS deve governar mesmo que seja rejeitada na Assembleia da República e mesmo que os partidos rejeitantes se unam para formar um governo maioritário,  o mais bem feito e erudito é o de Manuel Villaverde Cabral, do qual extraí as seguintes passagens:

Faz mais de três semanas que aqui anunciei – dia 20 de Setembro passado – que «vinha aí a frente popular». Para quem escutasse com atenção os ruídos de fundo e tivesse presente a memória política portuguesa, os sinais eram inconfundíveis.
Se a Coligação [PSD+CDS] que governou até agora aproveitou legitimamente as condições impostas pela crise para exercer o poder político, o PS pretende agora – nada mais, nada menos – do que «acabar com a austeridade», deixando de cumprir as medidas a que o país continua a estar obrigado, enquanto membro da UE e da Zona Euro, quando sabe de antemão que não poderá fazê-lo; tudo isso para aceder ao poder. (Manuel Villaverde Cabral. «Ora, aí está ela: “a esquerda unida”».  Observador. 13-10-2015)

Em suma, segundo Manuel Villaverde Cabral, para um governo de direita com uma  maioria parlamentar é legítimo e razoável cortar salários e pensões do regime contributivo, facilitar os despedimentos, diminuir salários, precarizar os contratos de trabalho, empurrar os jovens para a emigração, aumentar os impostos que recaem sobre os assalariados e pensionistas do sistema contributivo, desmantelar a segurança social, degradar o serviço nacional de saúde e a escola pública, reduzir as verbas para a ciência, vender as empresas públicas mais valiosas e rentáveis, desde que tudo isso permita pagar os calotes e as falcatruas dos “bancos maus”, manter e aumentar as taxas de juro dos “bancos bons”, garantir às empresas cotadas na bolsa continuarem a pagar os seus impostos na Holanda e noutras praças financeiras e não diminuir a parte dos impostos que é entregue pontualmente aos parceiros das parcerias público-privadas. A isto se chama, na gíria de M. Villaverde Cabral, «cumprir as nossas obrigações como membros da UE e da zona Euro». Mas é uma rematada loucura que um governo de esquerda com uma maioria parlamentar possa tentar desapertar este garrote que sufoca a maioria da população e adoptar políticas públicas que conduzam a uma melhoria das suas condições de vida. A isto se chama, na gíria de M. Villaverde Cabral, «frente popular».

Adiante se verá quais são os argumentos aduzidos por M. Villaverde Cabral para sustentar estas duas teses. Resta esclarecer a origem da expressão «frente popular» que ele utiliza no seu artigo. Está carregada de significado, mas não significa o mesmo para a direita e para a esquerda.  E muitos eleitores desconhecem esse significado.

A « FRENTE POPULAR »


A «frente popular» de que fala M. Villaverde Cabral é uma alusão ao governo do Front Populaire em França (1936-1938), um governo de coligação formado por dois partidos: a S.F.I.O (vulgo, o partido socialista francês, um partido social-democrata criado em 1905), dirigido na altura por Léon Blum, e o partido radical (o mais antigo partido francês, criado em 1901; um partido da pequena e média burguesia republicana e laica que ainda hoje perdura, com outro nome, l’Union des Démocrates et Indépendants), com o apoio no parlamento do PC francês. M.V. Cabral diz: «vem aí a frente popular» como se dissesse «vem aí a peste» ou «vem aí o papão». Mas o que fez o governo da Frente popular, para justificar esse temor?

O governo do Front Populaire teve uma vida curta e um triste fim. Os radicais — com o apoio relutante dos socialistas (incluindo o próprio Blum, que viria a arrepender-se de o ter feito) e o apoio dos comunistas (obedecendo às directivas de Estaline, que tinha assinado um pacto de não agressão mútua com Hitler) — assinaram, dois anos depois, os acordos de Munique (que entregaram os Sudetas e a Checoslováquia a Hitler, confortando-o na ideia de que poderia invadir também a França sem perdas excessivas, o que efectivamente veio a acontecer). Em 1940, a direita (os radicais e a ala mais à direita dos socialistas) votaram a entrega do poder absoluto ao marechal Pétain. Logo de seguida, este celebrou com Hitler um acordo para dividir a França ocupada em duas zonas distintas: uma onde a Alemanha nazi poderia pilhar, saquear e escravizar a seu bel-prazer, a outra um protectorado da Alemanha nazi, administrado com as botas cardadas de Pétain, com o apoio do exército e das polícias de Hitler.

Não é pois a esta série de acontecimentos que a direita portuguesa alude quando fala com temor da «frente popular». Será então às medidas de política industrial, comercial e financeira (aquilo a que os economistas chamam na sua gíria «política económica») que o governo do « Front Populaire » tomou antes de se desfazer?

Vejamos. Esse governo foi eleito com um programa social-democrata: «o pão, a paz e a liberdade». Com esse objectivo, nacionalizou a indústria aeronáutica, os caminhos de ferro (foi nesta altura que foi criada a SNCF [Société Nationale des Chemins de fer Français], que ainda hoje perdura) e a indústria de armamento. Não ousou nacionalizar o Banque de France (o equivalente, pelas suas funções, do Banco de Portugal antes da entrada de Portugal no euro), mas decretou uma golden share (uma participação accionista detida pelo Estado, que, apesar de ser minoritária, confere poderes especiais) sobre esse banco (até então dominado pelos seus 200 maiores accionistas privados, as chamadas «200 famílias» ou o «muro do dinheiro», que tinham destruído em 1925 o governo da «coligação das esquerdas» [«cartel des gauches»]). Criou ainda a Junta Nacional do Trigo («Office National interprofessionel du Blé») para regular o comércio do trigo e produtos derivados (farinhas, panificação, rações para o gado, etc.), garantir preços adequados aos agricultores e neutralizar os intermediários açambarcadores e os especuladores (este organismo ainda hoje perdura, com um outro nome).

É impossível atribuir a estas medidas concretas, ou a este tipo de medidas, o temor que o nome « frente popular » infunde na direita. Os dois governos provisórios do general De Gaulle (Junho 1944-Janeiro 1946) e o governo provisório de Félix Gouin (Janeiro-Junho 1946), logo após a libertação da França, fizeram muito mais nacionalizações (do Banco de França e dos principais bancos de depósito, da produção e distribuição do gás e da electricidade, das minas de carvão, das fábricas de motores de avião Gnome e Rhône, da Air France, das fábricas de automóveis Renault, das grandes companhias de seguros) e muito mais intervenções de índole económica (criação do comissariado para a energia atómica, criação da agência nacional para a melhoria da habitação, etc.) do que o governo do Front Populaire. E nenhum historiador, nem mesmo M. Villaverde Cabral, poderá negar que o general de Gaulle era um político de direita e que Félix Gouin era um social-democrata moderado. Convém recordar que foi graças a estas medidas que a França recuperou a sua independência e o seu vigor industrial, perdidos com a ocupação, a pilhagem e o saque da Alemanha nazi.

Com efeito, como é bem sabido, as nacionalizações são muitas vezes um modo de impedir que o capitalismo sem freios (ou, como dizem os economistas neoclássicos, “o mecanismo auto-regulador do mercado”) se devore a si mesmo. Mesmo quando não são mais tarde revertidas (as chamadas «privatizações»), acabam por ser muito rendosas para muitas empresas privadas e para os seus accionistas, através das chamadas parcerias público-privadas, das encomendas preferenciais, dos subsídios e das isenções fiscais do Estado aos seus parceiros privados. E é o Estado que assume também, muitas vezes, a parte de leão nas enormes despesas de investigação e desenvolvimento de novas tecnologias de ponta, muitas delas oriundas dos laboratórios, dos centros de investigação e das universidades públicas, que são transferidas mais tarde para o sector privado a custo zero. Basta lembrar aqui, a título de exemplo, que a França, graças a múltiplas intervenções do Estado (incluindo nacionalizações) se tornou uma potência aeronáutica, tanto no domínio civil como também no domínio militar — aviões de passageiros (Caravelle, Concorde, Falcon, Airbus, etc.), aviões de transporte (A400M, etc.), caças de combate (Mirage, Rafale), helicópteros (Super-Puma, Cougar), veículos aéreos remotamente tripulados, vulgo “drones” (Neuron), mísseis (Meteor, Milan), satélites de reconhecimento (Helios), foguetes de sondagem (Veronique, etc.) — e que tem a rede ferroviária mais avançada do mundo (TGV, etc.).

Raramente ou nunca se verá, é verdade, um banqueiro que se preze, ou um investidor de grande gabarito, ou um economista neoclássico (vulgo, de tendência «neoliberal»), reconhecer em público estes factos (embora o possam fazer em privado). São tabu, algo que encaram como uma ameaça mortal à sua doutrina: “o Estado deve reduzir-se às suas funções de “soberania”: polícias, forças armadas e tribunais; tudo o mais deve se entregue ao cuidado do mecanismo auto-regulador do mercado. A intervenção do Estado fora destes estritos limites, sobretudo quando visa proteger os direitos dos trabalhadores assalariados e dos desempregados, é economicamente perniciosa (porque restringe a liberdade [da iniciativa privada]) e politicamente perigosa (porque promove, ainda que talvez não intencionalmente, a ideia maluca do socialismo)”.

Mas se o governo do Front Populaire mostrou rapidamente que não era uma frente (« front ») unida, houve outras medidas que tomou  que fazem jus ao nome «popular» pelo qual ficou conhecido e pelo qual é lembrado — apesar do seu triste fim. E são elas que explicam o alarme de M. Villaverde Cabral.

O governo de Léon Blum lançou um programa nacional de obras de utilidade pública para reduzir o desemprego (directamente inspirado no Works Projects Admnistration do presidente Roosevelt nos EUA) e promoveu a assinatura dos chamados acordos de Matignon (o palácio Matignon é o nome da residência oficial do 1º Ministro francês). Esses acordos, firmados entre os representantes patronais e as direcções dos sindicatos, foram o modo encontrado por ambos para termo à greve geral espontânea com ocupação das fábricas, empresas e locais de trabalho que, nessa altura, se espalhou pela França e colheu de surpresa as centrais sindicais, CGT e CGTU. Os acordos estipulavam a semana de 40 horas (8 horas por dia x 5 dias), o direito de eleição pelos trabalhadores, por voto secreto, de delegados sindicais nas empresas, a proibição dos despedimentos sem justa causa, a contratação colectiva (contratos colectivos de trabalho negociados entre as organizações patronais e os sindicatos) e um aumento dos salários de 7% a 12% consoante as profissões e as indústrias. Logo a seguir, o governo prolongou a escolaridade obrigatória (até aos 14 anos), criou o subsídio de desemprego, o sistema contributivo das pensões de aposentação, o direito a duas semanas de férias (13 dias + 2 fins de semana), sem perda de salário, para todos os assalariados, e um desconto substancial nos bilhetes de comboio para os trabalhadores em férias (que ainda hoje perdura) — uma ideia do socialista Léo Lagrange, sub-secretário de Estado do Desporto e Lazeres, o mesmo que organizou as “Olimpíadas Populares” (como alternativa aos Jogos Olímpicos organizados pela Alemanha de Hitler, em 1936). 600 mil pessoas em 1936, 1 milhão e 800 mil em 1937, vão gozar, pela primeira nas suas vidas, umas férias, muitas delas aproveitando a rede de pousadas da juventude («auberges de jeunesse», outra ideia impulsionada por Lagrange), que ainda hoje existem.

Enfim, tudo coisas verdadeiramente horríveis, inventadas no “ministério da preguiça” (foi assim que a direita francesa cognominou imediatamente a secretaria de Estado de Lagrange), impensáveis até então, que nós, em Portugal, só conseguimos descobrir quão horríveis eram, quarenta anos depois, com o 25 de Abril de 1974. 

EM MEMÓRIA DE LAGRANGE

Lagrange morreu prematuramente. Tinha apenas 40 anos. Mas quando cheguei a França, em 1968, foi numa dessas pousadas da juventude de que ele tinha sido o promotor trinta anos antes, o Auberge de Jeunesse de Toulouse, que encontrei guarida e onde vivi os primeiros 3 meses, porque os preços eram muito baixos e podíamos cozinhar as nossas refeições na cozinha comum equipada com todos os apetrechos, incluindo louça. Para fazer algum dinheiro, trabalhava num terminal de camiões TIR, a descarregar sacos, caixas  e caixotes.

EPIFANIAS

Não sei se M. Villaverde Cabral teve experiências semelhantes de preguiça proletária. Mas mesmo que as tivesse tido, duvido que tivessem qualquer influência duradoura na sua personalidade, definida pelo próprio do seguinte modo:

O meu auto-retrato tem um lado Dr. Jekyll/Mr. Hyde. O Mr. Hyde não será um perigo para as pessoas, um terror. A relação é talvez a contrária (M. Villaverde Cabral, entrevistado por Anabela Mota Ribeiro. Público. 2000).

O que sabemos ao certo é que, na mesma altura, em Paris onde se encontrava exilado, ele fazia a apologia, nos “Cadernos de Circunstância” (1967-1970), das ideias ultra-esquerdistas do grupo italiano Potere Operaio, entremeada com umas escapadelas a Itália para cavaquear com o seu amigo Toni Negri, o dirigente-filósofo desse grupo, e distribuir panfletos do Potere Operaio às portas da fábrica da Fiat em Turim, e noutras fábricas (em Porto Maghera, Veneza e Bolonha).

Em 1979, Negri viria a ser condenado a 12 anos de cárcere sob a acusação, entre outros alegados crimes dos quais se proclamou também inocente, de ser a eminência parda por detrás das Brigadas Vermelhas e do sequestro e assassinato de Aldo Moro. No mesmo ano, Manuel Villaverde Cabral doutorava-se em História em Paris, depois de ter sido admitido como assistente na universidade portuguesa em 1974, onde diz ter descoberto a sua vocação de professor. Em 1974, abandona a sua militância marxista-leninista (primeiro no PCP, depois na FAP [um grupo maoísta de que foi co-fundador], depois na ultra-esquerda italiana e francesa) para se dedicar à sociologia e à carreira académica («Entrevista a Manuel Villaverde Cabral por José Neves», Análise Social, vol. XLVI (200), 2011, 522-537; Manuel Villaverde Cabral. «O encanto da sociologia», entrevista por António Guerreiro. Público. 19-01-2014).  Mas o bichinho da política não o largou. Em 1984 é um dos fundadores do « Clube da Esquerda Liberal», um cenáculo de ex-marxistas-leninistas-maoístas convertidos ao liberalismo económico.

Quinze anos depois da sua epifania com a ultra-esquerda italiana e  com o seu mentor, o filósofo Negri (de quem, entretanto, se afastou politicamente mas de quem continua, como afirmou recentemente, a ser amigo), Manuel Villaverde Cabral teve a sua segunda epifania, desta vez com a direita indígena. Foi o encontro com essa grande figura de estadista que se chama Aníbal Cavaco Silva (veja-se o relato que Cavaco Silva faz desse encontro no volume 1 da sua Autobiografia Política), e de se ter deixado seduzir pela sua visão exaltante de um Portugal moderno e desenvolvido (um país sem indústria transformadora de monta [salvo a construção civil], com um sector de pescas e uma agricultura residuais, mas com boas estradas, dedicado aos serviços [com o turismo à cabeça]). Nessa altura, M. Villaverde Cabral era director da Biblioteca Nacional (1985-1990), cargo para o qual havia sido nomeado como « prémio » pelo apoio que deu à candidatura de Mário Soares.

Sim, era um nível de... Vocês [os brasileiros] chamam governo, e é governo. São nomeações de primeiro-ministro, portanto, é governo, mas a gente não gosta de se olhar como político. Mas é evidente: fui para a Biblioteca Nacional porque o primeiro-ministro Mário Soares me convidou, é óbvio. Não podia ir de outra maneira, não é? E isso tinha que ver com o tal Clube da Esquerda Liberal. Foi um presente que ele me deu, eu percebi muito bem. (CABRAL, Manuel Villaverde. Manuel Villaverde Cabral (depoimento, 2010). Rio de Janeiro, CPDOC/FGV; LAU/IFCS/UFRJ; ISCTE/IUL; IIAM. 2011. 28 p.)

É por isso interessante ouvi-lo, trinta anos depois desse presente, dissertar sobre o «emprego clientelar que caracteriza o actual regime» e sobre a renovação dos «técnicos superiores do “back office”» (de que o cargo de director da Biblioteca Nacional será, presume-se, um bom exemplo) que vieram substituir os oriundos do salazarismo.  

Quem conhece a administração,bem como as «empresas públicas», sabe que há demasiadas diferenças entre os funcionários do «front office» e os do «back office» para os confundir e sabe também que a categoria dos «técnicos superiores» – oriunda do salazarismo, com os seus privilégios devidos à raridade e efectiva tecnicidade das licenciaturas – se multiplicou sem freio e deu lugar à principal forma de emprego clientelar que caracteriza o actual regime. Foi esse o principal mecanismo de aumento da tal «nova classe média» a que todos se referem, com razão, como o cerne do sistema partidário e eleitoral! (M. Villaverde Cabral. «A desestatização: esclarecimento e desenvolvimentos». Observador. 17-05-2015).

Estas duas citações dão bem a ideia da oscilação pendular entre os dois lados do seu autor: o sociólogo que há 15 anos não tem mãos a medir para atender a todas as encomendas que lhe fazem (cf. «Manuel Villaverde Cabral entrevistado por José Neves», op.cit. p. 534) e o arauto espalha-brasas da direita neoliberal. Dito de outro modo - e pedindo de empréstimo as suas próprias metáforas - o seu lado Mr. Hyde deixou de se esconder. Agora fala copiosamente e com entusiasmo juvenil de como o Dr. Jekyll — o outro lado do seu «eu», o tal que infunde terror — trocou a cartilha radical da sua antiga luminária, o dr. Toni Negri, pela cartilha radical do seu novo messias: o dr. Pedro Passos Coelho.

É admirável. Ouçamo-lo, no seu melhor, em 2011, logo após a tomada de posse do governo PSD-CDS, quando o dr. Ricardo Salgado ainda era «o dono disto tudo», ouvido com unção pelos partidos do chamado “arco da governação” (na versão Paulo Portas), explicar quem mandou vir a troika e vaticinar jubilosamente tudo o mais que se lhe seguiu com Passos Coelho ao leme e a «mãozinha de Deus» (sic) a guiar-lhe o rumo.

PORTUGAL À FRENTE 
(visto pelos binóculos de M.V.C)

De repente, com a crise mundial – é verdade que é a crise mundial que põe à mostra a nossa situação que não vai poder ser compensada com dinheiro, empurrando com a barriga – fomos apanhados literalmente com as calças na mão. E agora temos que puxar as calcinhas e disfarçar o máximo. (…)
Depois há os bancos, que eram credores do Estado, aconteceu-lhes que quando o devedor deve 100 está tramado, quando deve 100 mil, quem se trama é o credor. Estou a pensar, em particular, no BES. O BES é uma entidade política. Foi o senhor dr. Ricardo Salgado que mandou vir o FMI. Nessa quarta-feira de manhã, os bancos disseram: “É a última vez que a gente empresta e só emprestamos se chamarem o FMI”. E foi assim que o Teixeira dos Santos chamou o FMI, o outro [José Sócrates] mandou-se ao ar, atirou com o telemóvel.

Somos, portanto, governados pelo dr. Ricardo Salgado.

Somos governados pela dívida que criámos. Mas a certa altura também fomos governados pela Mota-Engil. E o aeroporto e o TGV têm a ver exclusivamente com isso. Provavelmente, precisamos de um aeroporto novo na perspectiva do turismo, do clima, que será a nossa grande indústria! Há coisas boas! Há um vento… O nosso Passos Coelho foi bafejado pela sorte. Nós estamos a tentar sair por obrigação e também por virtude de uma situação pela qual o Partido Socialista é 100 por cento responsável, na minha opinião.

Mas acabou de falar na crise mundial.

Quando eu digo que é responsável o Partido Socialista é no sentido em que o PS, tendo tido a missão histórica ingrata de desfazer a revolução do 25 de Abril – e ter desfeito bastante – não conseguiu desfazer tudo. Nós continuámos num socialismo, de baixo nível evidentemente, mas um socialismo…
 (…) Mas é preciso um governo liberal e no xadrez político-partidário português só podia ser este governo PSD-CDS, não podia ser outro.

Mas as pessoas vão ganhar menos, vão ter menos subsídios de desemprego, o desemprego vai aumentar. É uma coisa terrível para o governo.

As pessoas sabem que isso vai acontecer e que não há alternativa. Do ponto de vista estritamente político, Passos Coelho tem a mãozinha de Deus por baixo.

Mas como é que um país como este…

Este país é um país muito tradicional, muito convencional, serôdio, preguiçoso, até isso tem de ser sacudido. A história de Portugal é de letargia e um ataque, um momento de despertar. Mas Portugal enquanto houver batatas não desaparece.

Mas como é que este governo vai aguentar a troika? Embora haja o alargar do cinto da cimeira da semana passada, isto vai ser muito duro para as pessoas. Como é que vão votar outra vez no PSD, alegremente?

Se o PSD estes quatro anos conseguir inverter a curva, eu estou por eles.

Mas como é que o país pode crescer?

Repare, depois da recessão há sempre [crescimento]… A recessão até agora não provocou nada.

Aumentou o desemprego.

Sim, mas temos válvulas de segurança que estão a funcionar perfeitamente. A migração e a emigração.

 (…) Mas se cada ministro vai ficar embaraçado de cada vez que for preciso fechar uma empresa, então o melhor é desistirem já. O ataque aos desempregados é importante. Nós vamos ter mais desempregados com menos apoios. Aí há um défice de equidade. Quanto à emigração, ainda há pouco tempo ouvi o senhor embaixador do Brasil dizer que podemos ir para lá… Se temos de ir, vamos, foi sempre o nosso destino. Aliás, Portugal é mar. Terra é para pôr os pés e a cabeça sempre a olhar para o mar, quando é que eu me vou embora… E depois volto, como emigrante. Com o meu farnelzinho, com o seu peculiozinho. Nós temos jovens com formação…

Que têm de ir embora porque não vão arranjar emprego cá…

Mas já não é a mesma emigração. Também não vão mandar remessas, nem viver num bairro de lata, como os outros faziam e depois tinham uma casa de três pisos em Fornos de Algodres. Porque eram de lá e era para os vizinhos de lá que eles trabalhavam. Foi o Jacques Delors que acabou com os bairros da lata à força. Eu estive lá, em Maio de 68, 69. E entre o dia em que ele disse ”vou erradicar os bairros da lata” e os bairros da lata foram erradicados demorou para aí dois anos. A nossa esperança é que a China pare de correr. É como o problema do bailout e dos Estados Unidos…

Não vai haver bailout [resgate financeiro]…

Não, mas se fosse preciso a China “bailava” [= poderia ser obrigada a pedir um resgate financeiro para evitar a bancarrota] completamente porque eles precisam que os americanos comprem aquela tralha toda que fabricam.

Acho que é um mundo muito difícil, muito competitivo, que as pessoas não gostam, mas o que têm de fazer é ir para outra. Este, é de facto, também, um momento de oportunidades. Muitas das pessoas que estão a ficar desempregadas vão fazer empresas e vão dizer daqui a 10 ou 15 anos “olha pá, perdi o emprego e afinal agora estou rico”. Claro que é uma minoria, mas é essa a dinâmica. E não vale a pena as pessoas protestarem. Para aquela coisa da esquerda, eu realmente já não dou. A fingirem que têm uma alternativa. Mas qual alternativa?

(Excertos de uma entrevista de M. Villaverde Cabral ao jornal «i», em Julho de 2011. Os parênteses rectos foram acrescentados ao original)

02 outubro, 2015

TEMA 2


CIÊNCIA DE PACOTILHA

(a propósito das eleições de 4 de Outubro)

No Público de 29-09-2015, um investigador italiano, de seu nome Luigi Castelli, do Centro de Neurociências Cognitivas da universidade de Pádua, vem informar-nos que « não cumprir promessas eleitorais não implica sanções ».

Concretizando, no seu douto parecer, os políticos profissionais podem mentir à vontade, dar o dito por não dito, fazer exactamente o contrário do que afirmaram antes de ser eleitos, que os cidadãos não os vão castigar por esse comportamento, quando lhes for dado oportunidade para isso (numas eleições, por exemplo).

O «psicólogo» (é o termo que o Público emprega para o definir) Luigi Castelli diz-nos que « não tem dúvidas quanto ao facto de ser de somenos importância o não cumprimento das promessas eleitorais, ou seja não tem consequências negativas para o incumpridor. Neste caso, o político ».

« Para qualquer um de nós », diz o sr. Castelli, « é muito fácil esquecer, razão pela qual são feitas tantas promessas. Com o correr do tempo, uma promessa sobrepõe-se à anterior com facilidade. O político invoca sempre as circunstâncias − aliás, um dos atributos dos políticos é conseguir mudar a agenda e basta fazê-lo para se esfumar a promessa não cumprida». Por isso, este perito em neurociências cognitivas considera ainda válidas as observações de Quinto Túlio, irmão mais novo de Cícero, sobre a forma de ganhar as eleições: « Se faltares a uma promessa, as consequências são incertas e o número de pessoas afectadas é reduzido ». Era assim no ano 64 antes de Cristo. E continua a ser assim hoje, afirma, desenvolto, o neurocientista cognitivo Luigi Castelli, sem parecer reparar que, ao fazê-lo, nos diz que as novéis “ciências neurocognitivas” não nos conseguem dizer nada de novo, nada que não se conheça, sem elas, há (pelo menos) 2079 anos!

Em suma, segundo o senhor Castelli, somos (todos) muito parecidos, se não mesmo iguais, a um rebanho de carneiros obedientes e ovelhas bem comportadas, entretidos todos os dias a tasquinhar as suas ervinhas, e ruminando: «que bem que sabem», «como é, afinal, tão lindo este prado» (se abstrairmos da presença daquele cão de guarda acolá, mas não digamos mal dele: ele pode ser rude e morder-nos nas canelas, mas o pastor contratou-o para nos defender dos lobos maus que vivem além, na floresta escura »), esquecidos já das maldades que o pastor nos fez na véspera e na antevéspera, e na ante-antevéspera.

Não tenho dúvidas de que William James, Jean Piaget, Lev Vigotsky, Egon Brunswick e tantos outros psicólogos, oferecerão as suas obras completas como prenda ao nosso Luigi Castelli, quando este chegar à antecâmara do paraíso dos psicólogos, com esta amigável dedicatória como bónus: « Luigi, tens ainda uma oportunidade de te redimires das análises fumarentas da política que andaste a fazer lá na Terra, usurpando o nome « psicologia ». Toda a tua “ciência neurocognitiva” é uma versão requentada da « República»  de Platão, um tratado brilhante sobre a maneira como organizar a sociedade para que seja um vale de lágrimas para uns e a terra do leite e do mel para outros. Admiramos o teu inaudito descaramento, mas é a admiração contrita que nos suscitam todos os vendedores de banha de cobra. Fica pois a saber que esta antecâmara deserta em que te encontras (a que chamamos “habitáculo de desinfestação”), não é o local onde nós habitamos. É um local vagamente parecido com o que o teu compatriota Dante chamava « o purgatório », só que, aqui, o único suplício que infligimos a pessoas como tu é a actividade que constitui para nós o maior prazer. Sim, adivinhaste, estudar. Não te faltará tempo para aprenderes alguma coisa. Alegra-te. Tens a eternidade toda para te cultivares. Quando achares que aprendestes alguma coisa de psicologia, quando deixares de esconder a tua ignorância e a tua má-fé atrás de nomes espampanantes (mas com mais buracos do que um queijo suíço) como “ciências neurocognitivas”, chama-nos. Estamos ali, na porta ao lado ».

Mas voltemos à actualidade e adoptemos provisoriamente as categorias platónicas de Luigi Castelli: ovelhas, carneiros, pastores, cães de guarda, etc. Olhemos o mundo como ele o olha e traduzamos a sua ciência neurocognitiva em linguagem comum. Através de uma conferência de imprensa imaginária no Centro Cultural de Belém.

Perguntador: O senhor é um cientista neurocognitivo. Por isso, causa-me alguma estranheza a maneira como fala. Acredita mesmo que o eleitorado português é constituído maioritariamente por carneiros e ovelhas?

Cientista neoplatónico: Creio que sim, metaforicamente falando, claro. Não tenho nada contra que se utilize o vocabulário corrente: dirigentes ou «leaders» ou governantes, eleitores ou cidadãos, etc. Mas nós, cientistas neurocognitivos, preferimos utilizar um vocabulário mais enxuto e preciso. Por isso, falamos em «pastores» e «rebanho». É, na sua essência, a polaridade básica subjacente às modernas democracias, a que chamamos democracias pastoris. Dou-vos um exemplo actual.  As sondagens dão uma maioria à coligação Pàf  (PSD e CDS) que suporta o actual governo. Isso só pode ser explicado pela existência de um sector muito vasto da vossa população que interiorizou a narrativa do governo. Recordo-vos o essencial dessa narrativa, não na linguagem adornada que utilizam os pastores para se dirigirem ao rebanho, mas na linguagem enxuta que utilizamos para a descodificar.

O que dá algo como isto:  “ Portuguesas e Portugueses ! Sois, como bem sabeis, pacíficos e cordatos carneiros e ovelhas. Nós somos, como também bem sabeis, os vossos pastores, e com muito orgulho. É um privilégio sermos os pastores de um rebanho tão sereno como o vosso. Não nos agrada de todo, como malevolamente insinuam os carneiros e ovelhas mutantes, verdadeiras aberrações, termos sido forçados pelos nossos credores a tosquiar-vos à bruta e a mandarmos os nossos cães morder-vos forte e feio nas canelas durante estes anos invernosos, para acudir às necessidades urgentes de liquidez dos nossos banqueiros, dos nossos parceiros privados das parcerias público-privadas, do nosso sector exportador, enfim, daqueles que fazem o mundo pular e avançar. Mas não havia outra opção. Os vossos pastores anteriores (e também, hélas, alguns dos pastores da nossa própria família anteriores aos anteriores) não nos deixaram outra opção. Queriam aplicar-vos uma dose  de um medicamento homeopático chamado PEC 4. Não podia ser! A homeopatia, como sabem, é medicina para papalvos. Para grandes males, grandes remédios. Numa emergência destas era preciso aplicar doses maciças de um medicamento poderoso e com provas dadas, chamado « austeridade », inventado nos laboratórios do FMI, a empresa farmacêutica especializada nos males da economia com mais pergaminhos no mundo inteiro. É um remédio amargo, com efeitos secundários devastadores. Mas resulta!”.

Perguntador: Desculpe interrompê-lo. Mesmo assim, é espantoso constatar a bonomia ou pelo menos a resignação com que o povo português aceitou esse remédio, comparado com o que aconteceu na Grécia, por exemplo. A única explicação que me ocorre é uma frase de Oliveira Salazar (paz à sua alma) que gostava de dizer que o povo português é, cito, um “povo de brandos costumes”. Será esta uma explicação válida?

Cientista neoplatónico (rindo): Bem, podemos dizer que sim, se tivermos o cuidado de inverter o nexo de causalidade implícito na sua pergunta. Não é ao povo português que devemos atribuir a brandura dos seus costumes; é a política do Dr. Salazar, uma combinação muito bem doseada, durante quarenta anos, de coerção estatal brutal (PIDE, Tarrafal, etc.) sobre as ovelhas ranhosas − as ovelhas mutantes como nós lhes chamamos hoje − com uma narrativa muito bem construída para as ovelhas normais (« Beber vinho é dar o pão a 1 milhão de portugueses», « Houve sempre e haverá sempre pobres e ricos», « Somos pobres mas honrados», etc.).

Claro, os tempos não são os mesmos. A narrativa dos pastores tem de evoluir, tem de adaptar-se às transformações do nosso mundo. Em democracia, a coerção estatal brutal não funciona. Mais, é contraproducente. Produz efeitos ecológicos favoráveis ao aparecimento de um número muito elevado de ovelhas e carneiros mutantes. Isso é péssimo para a estabilidade governativa e para a confiança dos investidores, os dois factores a que as agências de notação financeira são supersensíveis. É a receita garantida para a dívida soberana de um país receber a menção «lixo» dessas agências, à qual se segue o cortejo de consequências avassaladoras que todos conhecemos bem. Por isso, o vosso governo, muito judiciosamente, produziu uma narrativa bem adaptada às novas circunstâncias. Uma narrativa simples, como convém às mentes crédulas, um tanto ou quanto infantis, das ovelhas e dos carneiros normais (sem desprimor para os senhores jornalistas aqui presentes, que coloco numa categoria diferente, pois cabe-lhes o nobre papel de servirem de mediadores, de mensageiros, entre os pastores e os rebanhos, metaforicamente falando, claro).

Perguntadora: E em que categoria se coloca o senhor?

Cientista neoplatónico: Bem, obviamente, numa categoria diferente da sua, senhora jornalista. Nós somos cientistas, observadores imparciais da realidade que vos descrevi; a realidade neurocognitiva dos seres humanos, tal como ela se manifesta nas sociedades modernas.   

Mas permitam-me que regresse ao ponto em que estava quando o seu colega  me fez a pergunta anterior à sua (perguntas ambas muito pertinentes, por sinal, e que desde já agradeço). Eu preparava-me precisamente para descrever a segunda componente da narrativa do governo.

Algo como isto: “Portuguesas e Portugueses! O governo anterior (e os outros governos anteriores da mesma família de pastores) deu-vos erva a mais, prados verdejantes a mais para poderdes tasquinhar a vosso bel-prazer. Foram governos esbanjadores. Mas não há almoços grátis, como o nosso mais eminente economista está fartinho de explicar. Agora chegou a hora de pagar a factura desse comportamento um tanto ou quanto estouvado, desculpem-nos a franqueza. A verdade é que vivíeis acima das vossas possibilidades. Por isso tivemos, ainda que a contragosto, de vos tosquiar a eito, à bruta mesmo, mas foi para vosso bem. E tivemos também de reduzir drasticamente a vossa ração de erva diária, para nosso grande pesar. Aproveitamos esta oportunidade para agradecer e louvar o trabalho notável da sociedade civil, em particular do Banco Alimentar e das IPSS. Essas organizações permitiram mitigar as agruras dos mais vulneráveis aos rigores da austeridade. Mas agora o país está diferente. Mais pobre, sem dúvida, mas mais esbelto, mais saudável, mais bem ajustado aos desafios da competitividade internacional, com as finanças controladas”.

Perguntador: E acredita que o eleitorado interiorizou essa narrativa?

Cientista neoplatónico: Sim, não há outra explicação para os resultados das sondagens. Ponhamos a coisa assim. A maioria do eleitorado pensa que os governantes actuais são mentirosos contumazes. Mas um sector muito vasto acredita que essa é a característica mais saliente de todos os políticos. E considera:  “Vale mais ser tosquiado por pastores já conhecidos do que por  pastores desconhecidos, que poderão ser ainda piores − mais  brutos, mais boçais, mais velhacos” − como lhes é dito, de resto, todos os dias pelos governantes actuais (risos). É esse o segredo da grande estabilidade dos partidos do arco da governação e mesmo daqueles que se situam fora desse arco.  

Perguntador: Pedia-lhe um comentário sobre algumas declarações de um nosso colega jornalista, publicadas hoje mesmo, na sua coluna habitual num diário de referência, que parecem ir no sentido do que o senhor disse, mas que, por outro lado, parecem contradizê-lo. Passo a citar:

Afinal, como é possível que num Portugal espremido até à última gota de IVA, de sobrecarga de IRS, de 13º mês, de terrível precariedade e impiedosa austeridade, quatro em cada dez eleitores ainda se mostre disponível para votar em quem nos governou desde 2011? O povo embruteceu de vez?” («O desgraçadismo foi sobrevalorizado»,  João Miguel Tavares. Público.1-10-2015).

Cientista neoplatónico: Não penso que seja pertinente atribuir essa tendência de voto ao « embrutecimento do povo ». Não se trata disso. Trata-se do modo muito profissional, muito competente, como certos pastores conduzem o seu rebanho através de narrativas adequadas às circunstâncias em permanente mutação nas nossas modernas democracias pastoris.

O mesmo perguntador: Espere um pouco. Eu ainda não tinha terminado. Mais adiante o nosso colega escreve o seguinte − passo a citar:

Não, o povo não embruteceu de vez (…). É verdade que boa parte dos portugueses que vão votar na coligação não estão satisfeitos com a governação de Passos Coelho e Paulo Portas. Eu próprio, no próximo domingo, vou votar PàF mais ou menos com a mesma convicção com que os comunistas votaram Mário Soares em 1986. Trata-se de engolir, não direi um sapo, mas, pelo menos, uma rã. Só que não tenho alternativa à rã − não há um único partido que esteja a criticar a coligação por aquilo que ela merece ser criticada. Todos os políticos batem na tecla da austeridade, quando todos os não-políticos têm a perfeita consciência de que a austeridade era inevitável; toda a esquerda acusa o Governo de ter ido além da troika, quando o maior erro do Governo foi ter ficado aquém da troika.

Perante estas declarações, gostaria de lhe colocar uma pergunta. O senhor afirmou há pedaço, que nós, jornalistas, pertencíamos a uma categoria distinta das que apelidou de rebanho e pastores, visto que nos incumbe a função de mensageiros entre elas. Por isso, a minha pergunta é esta: “ É legítimo que um jornalista afirme publicamente que acredita na narrativa dos pastores quando se dirige ao rebanho? Não estará, ao fazê-lo, a afastar-se da sua missão e a afirmar que é também, afinal, não um mensageiro mas (mais) um membro do rebanho?”

Cientista neoplatónico: A sua pergunta levanta questões delicadas que, infelizmente, não posso abordar aqui com a profundidade que merecem, porque me estão a fazer sinal (este zumbido que ouvem é o meu telemóvel a vibrar) de que terei de pôr termo a esta conferência de imprensa dentro de dez minutos no máximo, para atender a outros compromissos.  Limitar-me-ei por isso a exprimir a minha posição em termos gerais, de princípio.

Os jornalistas não estão obrigados a manter uma estrita imparcialidade analítica no exercício da sua profissão. Esse é um dever ao qual só nós, cientistas neurocognitivos, estamos vinculados. Mas considero desejável que os jornalistas tentem emular tanto quanto possível os cientistas neurocognitivos neste particular. Isso é importante se quiserem manter a sua credibilidade junto do rebanho e até junto dos pastores. Os pastores apreciam os jornalistas pela sua capacidade de transmitirem as suas narrativas ao rebanho da maneira mais eficaz possível. Não lhes pedem para afirmarem ao rebanho se  acreditam ou não, e com que grau de convicção,  na bondade das narrativas e mensagens que eles, pastores, dirigem ao rebanho. É fácil entender qual a razão para evitar esses “excessos de zêlo” − digamos assim, para não ferir susceptibilidades. É que, quando os jornalistas procedem desse modo, estão a desqualificar-se, a pôr-se ao nível de uma vulgar ovelha e de um vulgar carneiro. Isso é contraproducente, porque o que as ovelhas e os carneiros normais mais apreciam é a ideia de que os jornalistas têm um acesso privilegiado aos pastores, que são capazes de conversar com eles de igual para igual e depois simplificar as suas narrativas, mas que são também capazes de manter as suas distâncias como mensageiros. O mensageiro não tem de dizer (nem deve) se acredita ou não acredita na verdade ou na sinceridade da mensagem de que é portador. Aliás, essa questão da verdade das narrativas dos pastores, tal como a questão da sinceridade com que as produzem, são completamente irrelevantes na análise do fenómeno político. O que conta é saber se os pastores conseguem ou não fazer com que o rebanho acredite nas suas narrativas.

Perguntador: Gostaria que desenvolvesse o pouco mais a diferença entre o conceito de «povo embrutecido», que o senhor diz rejeitar, e o seu conceito de «rebanho». A mim, francamente, parecem-me ambos pejorativos. É tratar  os cidadãos que não pertencem à classe política, e eles são a esmagadora maioria, como seres estúpidos, destituídos de discernimento.

Cientista neoplatónico: Mas de modo nenhum! «Rebanho» e «pastores» são metáforas cognitivas que utilizamos para tornar perfeitamente inteligível um processo complexo, e inteligível, em primeiro lugar, aos jornalistas, a quem incumbe, como eu disse, a função extremamente importante de mensageiros. São termos que não têm nada de pejorativo. São como os « sabores»  e as «cores»  dos quarks de que falam os físicos, que são, também eles, rótulos puramente analíticos. Nenhum físico saboreou um quark, que eu saiba, ou comprou uma gravata ou um vestido da sua cor de quark favorita! (risos)

 Dou-vos um exemplo recente, muito esclarecedor. Existem cerca de 2 milhões e meio de pensionistas do regime contributivo da segurança social. Destes, uma parte minoritária mas considerável (mais de 300 mil) é constituída por pessoas aposentadas ou reformadas que auferem pensões superiores a 1350 euros. São as pessoas que fizeram maiores descontos para o regime contributivo da segurança social, porque auferiam maiores salários do que os demais pensionistas pelo facto de serem pessoas com mais habilitações, com as profissões mais qualificadas (professores, médicos, engenheiros, etc.). Estes pensionistas  viram-se obrigados pelo governo PSD-CDS a pagar uma Contribuição Extraordinária de Solidariedade (belo oximoro!), um imposto especialmente e exclusivamente formatado para os atingir. Foi o grupo social que pagou a maior factura da política de austeridade, porque estes pensionistas tiveram também de pagar a sobretaxa de IRS e os aumentos de IRS decorrentes da diminuição de escalões que foi aplicada a todos os outros cidadãos. E a maioria destes pensionistas, por serem ex-funcionários públicos, tiverem ainda que pagar os aumentos decretados pelo governo nos descontos para a ADSE. Mais, se não fosse o vosso tribunal constitucional a impedi-lo, o governo PSD-CDS teria ido ainda mais longe, transformando esse imposto num corte permanente de 2% a 3,5% para todas as pensões em pagamento a partir de 1000 euros.

Seria portanto natural que estas pessoas se organizassem para defender os seus direitos adquiridos. Porque se trata de facto de um direito adquirido. As pensões que essas pessoas auferem não são uma benesse de nenhum governo. São um salário diferido, que resulta dos descontos que efectuaram durante a sua vida activa sobre o seu salário e dos descontos que as suas entidades patronais fizeram também com esse fim, uns e outros deduzidos do valor que essas pessoas produziram com  o seu trabalho. E o que vimos nós? Nasceu, de facto, como sabem, uma nova organização vocacionada para esse fim, chamada APRe!. Mas esta organização só conseguiu reunir uns milhares de associados entre as centenas de milhares de potenciais sócios.

Isto permite-nos tirar duas conclusões. Uma é que os mais de 200 ou 300  mil pensionistas que não aderiram a essa organização, que não mexeram uma palha para se oporem ao corte das suas pensões, apesar de terem razões de sobra para isso, mostram bem a eficácia da narrativa austeritária do governo que há pouco vos descrevi. Estas pessoas assimilaram bem essa narrativa. Engoliram tudo, se assim posso dizer: anzol, linha e chumbada. Continuam, em suma, a serem ovelhas e carneiros normais, incapazes de imaginar uma vida sem pastores nem cães de guarda. Há quem faça juízos de valor negativos sobre este facto e sobre o comportamento do governo para com estas pessoas. Mas eu não vou por aí. Como cientista social neurocognitivo encaro estes factos objectivamente. E objectivamente são factos muito reconfortantes. Provam a robustez do principal axioma da moderna ciência social neurocognitiva: a estratificação das sociedades modernas em dois grandes grupos, aqueles que designamos por rebanho e pastores, respectivamente.

A outra conclusão que podemos tirar destes factos, de um ponto de vista neurocognitivo, é que a APRe! é uma associação de ovelhas e carneiros mutantes. Este crescimento súbito de mutantes numa faixa etária avançada é, em si mesmo, um facto deveras intrigante, porventura inédito na Europa, que teremos de estudar melhor. Significa que há um risco potencial muito sério de a política de austeridade poder descarrilar. Foi o que só não aconteceu por um triz na Grécia, onde o número de mutantes de todo o género e de todas as idades cresceu exponencialmente em pouco tempo e assumiu proporções assustadoras. É um risco que não foi previsto pelos pastores, nem mesmo (devo reconhecê-lo a contragosto) por nós, cientistas neurocognitivos. E já que estamos em maré de confidências, permitam-me que vos confidencie também que fomos completamente colhidos de surpresa pelo fenómeno social APRe! Não julgávamos possível que ocorressem mutações deste género em pessoas de cabelos grisalhos ou brancos. Julgávamos que o gene da rebeldia (um gene recessivo) só se manifestava esporadicamente na adolescência. Este é um dos factos que nós costumamos ensinar aos nossos alunos sob a forma de um aforismo brincalhão: “Aos vinte anos muitos de nós querem mudar o mundo. Aos trinta queremos mudar de vida. Aos 40 só queremos mudar os móveis da nossa sala de estar ou mudar de automóvel. Aos 60 só queremos sopas e sossego”. Mas vejamos as coisas pelo seu lado positivo. As ovelhas e os carneiros mutantes continuam a ser uma pequena minoria, nesta como em qualquer outra faixa etária, comparada com a maioria de carneiros e ovelhas normais. Isso significa que as nossas democracias pastoris são estáveis.  

Perguntadora: E os indecisos, não estará a subestimar à sua importância? São uma percentagem considerável. Podem decidir o resultado à última hora, se maioria deles for constituída, para empregar os seus termos, por carneiros e ovelhas mutantes.

Cientista neoplatónico: Os indecisos são uma categoria heterogénea. Uma parte já decidiu em quem votar. Vota neste ou naquele partido, ou vota nulo ou em branco (este é o grupo onde provavelmente encontramos mais carneiros e ovelhas mutantes). Mas vota. Só que se recusa a revelar o sentido do seu voto aos inquiridores. É, aliás,  a razão  pela qual as sondagens falham muitas vezes, sobretudo quando os brancos e nulos decidem “votar útil”, o que significa votar num partido considerado “um mal menor”, o partido com menos possibilidades de os desiludir, porque têm poucas ou nenhumas ilusões nos partidos. A outra parte dos chamados indecisos, que são a maioria, não vai votar. Vai-se abster. Nas eleições de 2011 a abstenção foi de 42%, números redondos. Uma parte muito importante deste sector, abstem-se sempre. São aqueles que consideramos serem as ovelhas e os carneiros genomicamente puros. São os que acham, simplesmente, que a sua sina é ser tosquiada, pois é esse o triste fado das ovelhas e carneiros contra o qual não vale a pena lutar. O seu credo político pode ser resumido assim: “Para quê votar, se todos os pastores se equivalem? Por isso, tanto faz que seja este ou aquele pastor. Façamos o que fizermos, os pastores, sejam eles quais forem, são mais espertos do que nós, carneiros e ovelhas”. É reconfortante saber que esta categoria de eleitores está connosco há mais de dois milénios. O meu colega Quinto Túlio, num estudo pouco conhecido mas notável, detectou a sua presença na Roma antiga. São o esteio mais sólido de todas as democracias …e também, devo dizê-lo, de todas as ditaduras (risos).

Nesse momento, o telemóvel do cientista neurocognitivo começa de novo a vibrar em cima da mesa. O cientista recolhe o telemóvel, guarda-o no bolso do casaco e diz: «Lamento, mas o meu tempo esgotou-se. Não poderei responder a mais perguntas. Boa tarde. Foi um prazer estar convosco. Até a uma próxima oportunidade».

**********

Como o nosso “psicólogo neurocognitivo” se foi embora, ficaram muitas  perguntas por lhe fazer, em especial sobre as próximas eleições de 4 de Outubro. São, todas, perguntas comezinhas, para as quais é fácil encontrar  resposta sem necessidade de recorrer às categorias ovinas, caninas e pastoris da sua sopa de pedra platónica onde se mesclam, quase inextricavelmente,  a descrição de factos, alguma perspicácia, o cinismo, a fanfarronice, a auto-ilusão e o embuste. Para as formularmos e lhes respondermos basta ter memória, respeito pelos factos, saber um pouco de aritmética, ouvir com atenção e ler com igual atenção o que dizem de viva voz e o que escrevem os candidatos às próximas eleições. Mas todas as perguntas que a mim me interessaria fazer e responder se podem resumir, neste momento e para não nos alongarmos mais, a uma só:

Como derrotar a política de « austeridade » que tem sido aplicada nos últimos quatro anos e meio, cujos efeitos conhecemos bem (corte nos salários e nas pensões do sistema contributivo, cortes na ciência e na educação, enorme aumento dos impostos, enorme aumento do desemprego, enorme aumento da emigração por motivos de sobrevivência, enorme aumento do trabalho precário e sem direitos, privatização das empresas públicas mais valiosas e rentáveis: CTT, EDP, REN, ANA, etc.)?

A resposta parece-me evidente. O primeiro passo é derrotar nas eleições de 4 de Outubro os seus fautores: o governo PSD-CDS, a coligação Pàf. É votar para evitar o pior, afastando estes dois partidos do governo.

Quem deseje este resultado deve saber (se é que ainda não sabe) que a abstenção não conta. A abstenção significa aceitar continuar a ser tosquiado como um carneiro ou como uma ovelha, se a coligação Pàf tiver a maioria dos votos. É o tipo de comportamento que permite aos Castelli deste mundo darem um semblante de veracidade à sua ciência de pacotilha.

Votar nulo ou em branco é legítimo. Mas quem tencione votar em branco ou nulo, deve saber (se é que ainda não sabe) que a lei eleitoral separa à partida esses votos dos restantes votos. Os votos nulos ou em branco não têm qualquer influência no apuramento dos resultados.

José Catarino Soares (2-10-2015).