Gostaria de conseguir escrever este diário fazendo jus ao lema que encerra a resposta à seguinte adivinha (que me foi contada pelo meu amigo João Viegas Fernandes): «Qual é a semelhança entre um pára-quedas e a mente humana? É o facto de tanto um como a outra só nos serem úteis, salvando-nos a vida, se estiverem bem abertos».
UM BALANÇO PROVISÓRIO E MUITO PARCELAR DA PANDEMIA DA COVID-19 EM PORTUGAL
José Manuel Catarino Soares
Em 19 de Abril 2010 fez um mês que entrou em vigor o estado de emergência
em Portugal. Construí duas tabelas comparativas que permitem estabelecer um
balanço, ainda que provisório e muito parcelar, da evolução da pandemia do novo
coronavírus em Portugal.
Tabela 1
Tabela 1
Como se pode constatar pela tabela 1, a nossa situação, em Portugal, não é tão má como a de outros países bem mais ricos que o nosso. Estamos melhor do que a Espanha, a França, a Itália, o Reino Unido e (fora da Europa) os EUA, em todos os parâmetros importantes (as 3 últimas colunas da 1ª tabela). Comparamos bem, inclusivamente, com a Alemanha. Estamos um pouco atrás dela em número de mortes por 1 milhão de habitantes e em número de casos confirmados de infecção por 1 milhão de habitantes. E estamos à frente dela (e de todos os outros países que seleccionei) em número de testes de diagnóstico por 1 milhão de habitantes.
A comparação mais interessante é com a Chéquia. A Chéquia (ou República
Checa) tem uma população de 10,6 milhões de habitantes, um pouco superior à de
Portugal (10,2 milhões), e o tamanho do seu território (78.866 Km2)
é um pouco inferior ao de Portugal continental (89.015 Km2). É pois
um país muito semelhante ao nosso nestes dois aspectos estruturais, e noutros
ainda da mesma índole que não vem agora ao caso mencionar. Mas as semelhanças noutros aspectos, ainda que de outra índole, não se
ficam por aqui.
A Chéquia registou o seu primeiro caso confirmado de Covid-19 um dia antes
(1 de Março) do primeiro caso confirmado em Portugal (2 de Março). Decretou o
estado de calamidade ou de emergência 1 dia antes (11 de Março) de Portugal o ter feito (12 e 18 de Março), com
medidas semelhantes em tudo às que vigoram em Portugal. Salvo uma, que o
governo checo tomou, mas que o governo português não tomou até à data: o uso
OBRIGATÓRIO de máscara por toda a população em todos os espaços públicos:
supermercados, lojas, autocarros, comboios, jardins, etc. E isso parece ter
feito toda (ou quase toda) a diferença entre os números da tabela 1 — quer os
números brutos, quer os rácios — e que
valem até ao dia 19 de Abril.
Casos confirmados de infecção por Covid-19: Portugal (20.026), Chéquia (6.657).
Mortes por Covid-19: Portugal (714), Chéquia (181). Número de casos confirmados
de infecção por 1 milhão de habitantes: Portugal (1.982), Chéquia (622). Número
de mortes de Covid-19 por 1 milhão de habitantes: Portugal (70), Chéquia (17).
Chéquia, Praga, 16 de Abril de 2020. Pessoas com máscara de protecção individual fazem bicha diante de uma geladaria. Foto de Michal Cizek, AFP, via Getty Images |
A Chéquia bate-nos em tudo, salvo no número de testes de diagnóstico por 1 milhão de habitantes, em que levamos a melhor (última coluna da tabela 1). Julgo, por isso mesmo, que a razão da superioridade dos invejáveis êxitos da Chéquia relativamente a Portugal se deve EXCLUSIVAMENTE ao uso generalizado de máscara de protecção individual pela população em todos os espaços públicos, sobretudo os fechados e muito povoados — transportes públicos, supermercados, lojas, etc.
Vale a pena notar que o uso generalizado de máscaras na Chéquia começou por ser um movimento de activistas # Máscaras Para Todos. Porém, bem depressa se transformou num movimento de massas. Em apenas três dias, quase 100% da população checa já usava máscara de protecção individual, levando o governo a decretar, ex post facto, o seu uso obrigatório, para não correr atrás do prejuízo que a sua omissão traria para a sua imagem. Moral da história: não precisamos de esperar por um decreto do governo para tomarmos a iniciativa e nos protegermos à maneira checa.
Claro, isso não significa deixar de cumprir as outras medidas de protecção individual em vigor, em particular a distância proxémica de 2 metros, a higiene frequente das mãos com água e sabão e a etiqueta respiratória. Significa acrescentar-lhes mais uma, tão ou mais importante do que as outras. Também não significa açambarcarmos as máscaras cirúrgicas e menos ainda as máscaras filtrantes FFP1, FPP2/N95 e FFP3 (também conhecidas por respiradores) que tanta falta fazem aos profissionais de saúde. Tendo em conta a escassez ACTUALMENTE existente — e enquanto ela durar, e não durará muito tempo * — de máscaras cirúrgicas e máscaras ditas sociais, podemos fazer nós próprios máscaras sociais caseiras de protecção individual. Foi o que os checos fizeram, como é explicado neste vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=HhNo_IOPOtU
Os checos deram largas à sua criatividade no fabrico de máscaras caseiras de protecção individual. Há máscaras para todos os gostos. |
P.S. Um amigo meu fez uma objecção ao facto que aqui apresentei para explicar a superioridade dos resultados da Chéquia relativamente aos de Portugal, na luta contra a pandemia de Covid-19. O uso generalizado de máscaras de protecção individual pela população checa — afirmou — não é a única (nem talvez sequer a principal) razão para essa superioridade. Haveria que entrar em linha de conta, também, com o sistema nacional de saúde checo (incluindo o ensino da medicina) que, no seu entender, é melhor (na cobertura e na qualidade do atendimento hospitalar) e mais robusto do que português. Isso seria um resquício — acrescentou — dos tempos do regime socialista que vigorava nesse país. Esse resquício teria conseguido sobreviver à reinstauração do capitalismo que se seguiu à chamada “revolução de veludo” na ex-Checoslováquia.
Não estou suficientemente informado para avaliar a veracidade desta genealogia do sistema nacional de saúde checo. Mas discordo do rótulo “socialismo” (ou “socialismo real”) aplicado quer à ex-URSS, quer aos países do leste europeu que eram seus satélites nos tempos do ex-Pacto de Varsóvia. Nenhum desses países foi alguma vez socialista. Chamo ao sistema económico que neles vigorava criptocapitalismo de Estado e qualifico o sistema político que neles vigorava de oligarquia totalitária. A esta caracterização genérica, cabe acrescentar esta importante particularidade do tipo de oligarquia totalitária que vigorava nesses países (que a distinguia tipologicamente de outras oligarquias totalitárias e que justifica, aliás, o prefixo “cripto-” da caracterização do seu sistema económico): a de ter adoptado uma camuflagem socialista, destinada a legitimar o seu poder irrestrito aos olhos dos povos que governava. Estes são, porém, assuntos que não podem ser aqui aprofundados como merecem, mas que discuti noutro lugar (cf. o artigo Rumo à Democracia Integral, em especial a sua nota 23, publicado no blogue Sítio com Vista [https://sitewithaview.ovh/]).
Seja como for, isso em nada afecta a afirmação segundo a qual o sistema nacional saúde checo é superior ao português. Não tenho os meios de endossar ou rebater esta afirmação, por ignorância absoluta das peculiaridades do sistema nacional de saúde checo. Mesmo assim, julgo que a objecção desse meu amigo não colhe.
Ainda que déssemos de barato, apenas para argumentar, que o sistema nacional de saúde checo é melhor do que o português, essa superioridade só poderia explicar uma hipotética superioridade dos seus resultados em quatro parâmetros: (i) o número de testes de diagnóstico da doença por 1 milhão de habitantes, (ii) o número de pessoas recuperadas da doença por 1 milhão de habitantes, (iii) o número de dias de internamento hospitalar das pessoas recuperadas antes de terem alta (sendo a recuperação atestada por dois testes negativos com um intervalo de 24 horas) por 1 milhão de habitantes, (iv) o número de dias passados em unidades de cuidados intensivos das pessoas recuperadas (antes de passarem à enfermaria) por 1 milhão de pessoas.
Infelizmente (porque seria muito interessante conhecê-los) não sei onde possam ser encontrados tais resultados (se é que existem), salvo no que respeita ao parâmetro (i). Ora, relativamente a (i), como se vê na tabela 1, o sistema nacional de saúde checo não apresenta melhores resultados do que o português, bem pelo contrário.
Em suma, o número de pessoas infectadas com o vírus causador da doença Covid-19 — quer sejam pré-sintomáticas, assintomáticas ou sintomáticas — não depende da qualidade de atendimento hospitalar do sistema nacional de saúde de um país. Depende exclusivamente (ou quase exclusivamente) da qualidade das medidas de saúde pública adoptadas pela população e pelas autoridades sanitárias para proteger a população da propagação desse vírus. Mantenho, por conseguinte, a tese de que a superioridade dos resultados alcançados até à data pela Chéquia relativamente a Portugal, nesta matéria, se deve exclusivamente ao uso generalizado de máscaras de protecção individual pela população em todos os espaços públicos, visto que as demais medidas tomadas nos dois países são idênticas e foram tomadas praticamente na mesma data e numa fase de propagação do vírus muito semelhante.
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* «Mais
de 200 empresas portuguesas estão prontas para fabricar máscaras sociais, já recomendadas
pela DGS – Direção-Geral da Saúde – para utilizar em espaços fechados. O número
foi anunciado esta terça-feira pelo secretário de Estado da Saúde, António
Lacerda Sales, na conferência de imprensa diária sobre o número de contagiados
pelo novo coronavírus. O Infarmed já publicou as normas que as empresas devem
respeitar para a produção das máscaras. “Estas empresas estão disponíveis para
colocar no mercado máscaras em tecido de uso único, ou mesmo reutilizáveis, que
não conseguindo cumprir com os requisitos de segurança, saúde e desempenho
estabelecidos nas legislações aplicáveis aos dispositivos médicos e aos
equipamentos de proteção individual, poderão conformar-se com os requisitos a
serem definidos para uma utilização comunitária”, informa esta terça-feira o
Infarmed em comunicação feita na página oficial». Dinheiro Vivo, 14
de Abril de 2020.
* «A Covid-19
está a alterar os modelos de negócio de várias empresas. Os CTT continuam a
distribuir cartas e encomendas, mas a empresa de correios liderada por João
Bento vai também começar a comercializar máscaras e gel desinfetante nas lojas
por todo o país. “Tendo em conta o atual contexto de pandemia por Covid-19
em que vivemos, e tendo em conta a preocupação com a segurança e bem-estar dos
clientes, os CTT estão a comercializar estes produtos na sua rede de retalho,
procurando que os cidadãos se desloquem o menos possível na compra de bens
essenciais”, informa a empresa em comunicado. As máscaras cirúrgicas com
“certificação ASTM nível dois, de acordo com a diretiva da União Europeia”,
estarão à venda por 10 euros, o pack de seis unidades. Já o gel desinfetante
com 70% de álcool terá o preço unitário de cinco euros, para uma embalagem de
100 mililitros. A iniciativa surge depois de a Direção-Geral da da Saúde ter
recomendado o uso de máscaras de proteção a quem estiver em locais públicos
fechados. Contudo, numa altura em que este produto é escasso para os
profissionais de saúde na linha da frente do combate à pandemia, a recomendação
da DGS aplica-se apenas às “máscaras comunitárias” ou “sociais”». eco.sapo.pt,
21 de Abril de 2020.
Fábrica de máscaras cirúrgicas em
Nantong, província de Jiangsu, China. Foto de China Daily, via Reuters.
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