O que é o HAMAS? [*]
[parte 1]
José Catarino Soares
1. Caracterização
O
HAMAS (aqui, e só desta vez, escrito em maiúsculas para lembrar que é o
acrónimo árabe para “Movimento de Resistência Islâmica”) é um partido
nacionalista, islamista (do ramo sunita), jihadista, teocrático, da Palestina.
O seu lema resume bem o seu ideário:
«Alá
é o nosso alvo, o Profeta é nosso modelo, o Corão é a nossa constituição, a
Jihad é o nosso caminho e morrer por amor a Alá é o nosso desejo supremo»
(artigo 8.º da Carta de Princípios do Hamas).
Fica
claro, presumo, que a emancipação dos palestinianos nunca poderá ser alcançada
pondo este lema em prática.
2. Composição
O
Hamas tem três ramos distintos e autónomos: uma entidade caritativa (que
estabeleceu e gere uma extensa rede de hospitais, escolas, jardins-de-infância,
orfanatos, bibliotecas, clubes juvenis e outros serviços sociais), criada em
1973; uma entidade política (que governa a Faixa de Gaza desde 2006,
administrativamente auxiliada pela Autoridade Nacional Palestiniana [1]),
criada em 1987; e uma entidade militar (as brigadas Izz al-Din al-Qassam),
criada em 1991.
3. O Hamas e a luta
armada
Convém
saber que a própria ONU reconhece, desde 3 de Dezembro de 1982, através da
resolução 37/43 da sua 90.ª assembleia geral, a legitimidade de o povo
palestiniano recorrer à luta armada para conquistar o seu direito à
autodeterminação. As brigadas Izz al-Din al-Qassam são a maneira como o Hamas
interpreta e dá corpo a essa luta armada.
Assim,
estas brigadas empregam tácticas de guerrilha (TG) para combater as forças armadas e policiais
de Israel, o Estado ocupante e opressor dos palestinianos. Todavia, empregam
também tácticas terroristas (TT) contra a população civil israelita, o que
constitui uma interpretação abusiva da resolução 37/43.
As TG incluem missões de reconhecimento especial; acções de sabotagem, destruição ou remoção de obstáculos; emboscadas; ataques com morteiros, foguetes, mísseis e drones; surtidas, operações de busca, resgate e salvamento — todas elas dirigidas, regra geral, contra alvos militares e policiais. As TT incluem (tt.1) ataques suicidas, cujo êxito, depende, necessariamente, da morte do(s) agente(s) atacante(s) (e.g. homens-bomba); (tt.2) missões quase suicidas, nas quais os perpetradores podem ou não morrer pelas suas próprias mãos (e.g. sequestro de um avião ou de um navio); (tt.3) colocação furtiva de diferentes tipos de engenhos explosivos improvisados em locais frequentados ou utilizados por muita gente (e.g., centros comerciais, esplanadas, autocarros, aviões), (tt.4) acções terroristas com alvos altamente remuneradores [na lógica do terrorismo [2]] (e.g., assassinatos selectivos; rapto, sequestro e troca de reféns) — todas elas dirigidas, regra geral, contra elementos, grupos e organizações da sociedade civil.
Desfile das brigadas Izz al-Din al-Qassam, do Hamas, em Gaza. Foto: Associated Press. |
4. Divergências na
caracterização do Hamas
O
sistema mediático dominante de comunicação social do “Ocidente alargado”
(SMDCSOA para abreviar) faz vista grossa sobre a estrutura tripartida do Hamas.
Armado com esta análise vesga, faz questão de nos repetir todos os dias que o
Hamas é, tão-somente, uma organização terrorista — o que já vimos ser um erro,
mesmo se reduzíssemos o Hamas apenas às brigadas Izz al-Din al-Qassam. Além disso, apresenta essa caracterização
defeituosa como se ela fosse universalmente aceite.
Mas isso também não é verdade. Não há unanimidade entre os Estados que fazem parte da ONU sobre a caracterização do Hamas. Por exemplo, Israel, EUA, UE (Portugal inclusive), Canadá e Japão consideram o Hamas uma organização terrorista. Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e Egipto consideram terrorista apenas o braço armado do Hamas: as brigadas Izz al-Din al-Qassam. Rússia, China, Turquia, Irão, Brasil, África do Sul e Noruega não consideram o Hamas (nem o seu braço armado) uma organização terrorista.
Para
alguns comentadores do SMDCSOA, tanto os governantes dos países pertencentes
aos dois últimos grupos, como os cidadãos dos países pertencentes ao primeiro
grupo que compartilham a posição desses governantes neste particular, são “idiotas úteis do Hamas” [3].
5. Falhas analíticas
Pode
discutir-se a razão de ser destas discrepâncias sobre a caracterização do
Hamas, que são parcimoniosamente noticiadas pelo SMDCSOA. A meu ver, estão
todas ligadas a duas falhas analíticas:
(i)
a falha em reconhecer que o Hamas é semelhante a uma hidra com três cabeças. Se
uma for cortada (as brigadas Izz al-Din al-Qassam, por exemplo), as outras duas
não desapareceriam como por encanto, porque dispõem de uma forte base social de
apoio: a resistência do povo palestiniano à opressão multiforme e sufocante do
Estado de Israel.
(ii)
a falha em distinguir TG e TT e em reconhecer que o Hamas, através do seu braço
armado, emprega ambas.
Seja
como for, o SMDCSOA nunca ou raramente nos dirá três coisas essenciais (ver secções
6, 7 e 9), sem as quais não é possível compreender a actuação do Hamas,
incluindo o seu ataque em 7 de Outubro de 2023 (ver secção 8).
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[*] Publicado originalmente no blogue Estátua de Sal, em 6 de Novembro de 2023 https://estatuadesal.com/2023/11/06/o-que-e-o-hamas-parte-i/
[continua]
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Notas e Referências
[1] O
Hamas governa a Faixa de Gaza com a ajuda da ANP (dirigida pela Al-Fatha,
organização bem mais antiga e rival do Hamas) que co-financia e co-administra
os serviços de saúde e de educação da Faixa de Gaza. Este facto é raramente
mencionado nas análises sobre o Hamas e sobre Gaza.
[2] A
lógica do terrorismo consiste em planear e realizar com êxito acções violentas
que causem medo intenso ou espalhem medo intenso na população que apoia os
seus inimigos políticos e em conseguir fazê-lo de uma forma altamente
remuneradora — isto é, que potencie ao máximo, nessa população, o efeito de
terror resultante dos danos físicos causados às suas vítimas imediatas (que
podem ser desproporcionalmente diminutos relativamente à grande intensidade e
abrangência do terror que geram).
[3] Ver,
por exemplo, Jorge Almeida Fernandes (doravante JAF, para abreviar), “Os
idiotas úteis do Hamas.” (O Estado da Coisas. Público 3 de Novembro de
2023). Para este comentador, «As vítimas
palestinianas dos bombardeamentos [de Israel] são
de uma natureza muito diferente das vítimas do Hamas». Porquê? Porque
(P1) umas vítimas, argumenta JAF, as vítimas de Israel, são o resultado de «efeitos colaterais» dos bombardeamentos; ao passo
que (P2) as outras, as vítimas do Hamas, são o resultado de «assassínios planeados». Assim, deduz-se que, para
este comentador, os governantes e militares de Israel não cometem crimes de
guerra nem crimes contra a humanidade, só os dirigentes e combatentes do Hamas
o fazem. O conceito de “efeitos colaterais” de JAF é, como se vê, muito
elástico porque inclui, por exemplo, os 72 funcionários da United Nations
Relief and Works Agency (UNRWA), uma agência humanitária da ONU, e as 3.648
crianças e menores vítimas mortais dos bombardeamentos israelitas em Gaza desde
8 de Outubro de 2023.
Mas
só não vê quem não quer que estes bombardeamentos são «assassínios
planeados» em grande escala e a grande distância, assassínios por
atacado — mas que podem também tomar uma forma mais personalizada, como
acontece amiúde. O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, declarou a
propósito de um dos mais recentes desta última espécie: «Estou horrorizado com o ataque em Gaza [de 3 de
Novembro] contra uma caravana de ambulâncias à
porta do hospital Al Shifa. As imagens de
corpos espalhados na rua em frente ao hospital são angustiantes», disse,
acrescentando: «Há quase um mês que os civis em
Gaza, incluindo crianças e mulheres, estão sitiados, não recebem ajuda, são
mortos e bombardeados fora das suas casas». (“Israel admits airstrike on ambulance near hospital
that witnesses say killed and wounded dozens.” CNN,
November 4, 2023). Presumo que Guterres será, para JAF, um dos «idiotas úteis do Hamas». É uma conclusão que faz
sentido, se admitirmos as suas premissas, (P1) e (P2). Todavia, para
entendermos o qualificativo de “idiota útil”
que JAF emprega na sua análise do conflito israelo-palestiniano, faz também
todo o sentido aplicar a JAF a distinção que ele faz da natureza das vítimas
palestinianas de Israel e das vítimas israelitas do Hamas, mas sem aceitar
(como ele pretende) que umas valem menos do que as outras quando as contamos.
Se o fizermos, chegamos à conclusão de que JAF se coloca do lado do contendor
mais poderoso, mais mortífero e mais impiedoso — ou seja, para empregar a sua própria
terminologia, que ele se assume como “um idiota
útil de Israel”; quiçá (presumo)
com
muita honra e orgulho de o ser.