ORA, AÍ ESTÁ ELA OUTRA VEZ:
A DIREITA UNIDA,
MAS DESTA VEZ MINORITÁRIA
De todos os artigos e proclamações [incluindo a do Presidente da República na sua alocução de 22-10-2015] que têm vindo a lume desde as eleições legislativas em que é defendida a tese bonapartista segundo a qual a coligação PSD-CDS
deve governar mesmo que seja rejeitada na Assembleia da República e mesmo que
os partidos rejeitantes se unam para formar um governo maioritário, o mais bem feito e erudito é o de Manuel
Villaverde Cabral, do qual extraí as seguintes passagens:
Faz mais de três semanas que aqui anunciei – dia 20 de Setembro passado – que «vinha aí a ‘frente popular’». Para quem escutasse com atenção os ruídos de fundo e tivesse presente a
memória política portuguesa, os sinais eram inconfundíveis.
Se a Coligação [PSD+CDS] que governou até agora aproveitou
legitimamente as condições impostas pela crise para exercer o poder político, o PS pretende agora – nada mais,
nada menos – do que «acabar com a austeridade», deixando de cumprir as
medidas a que o país continua a estar obrigado, enquanto membro da UE e da Zona
Euro, quando sabe de antemão que não poderá fazê-lo; tudo isso para aceder ao poder. (Manuel Villaverde Cabral. «Ora, aí está ela: “a esquerda unida”». Observador.
13-10-2015)
Em suma, segundo Manuel Villaverde Cabral, para um governo de direita com uma maioria parlamentar é legítimo e razoável cortar salários e pensões do regime
contributivo, facilitar os despedimentos, diminuir salários, precarizar os
contratos de trabalho, empurrar os jovens para a emigração, aumentar os
impostos que recaem sobre os assalariados e pensionistas do sistema
contributivo, desmantelar a segurança social, degradar o serviço nacional de
saúde e a escola pública, reduzir as verbas para a ciência, vender as empresas
públicas mais valiosas e rentáveis, desde que tudo isso permita pagar os
calotes e as falcatruas dos “bancos maus”, manter e aumentar as taxas de juro
dos “bancos bons”, garantir às empresas cotadas na bolsa continuarem a pagar os
seus impostos na Holanda e noutras praças financeiras e não diminuir a parte
dos impostos que é entregue pontualmente aos parceiros das parcerias público-privadas.
A isto se chama, na gíria de M. Villaverde Cabral, «cumprir as nossas
obrigações como membros da UE e da zona Euro». Mas é uma rematada loucura que um governo de esquerda com uma maioria parlamentar possa tentar desapertar este garrote que sufoca a maioria da população e adoptar políticas
públicas que conduzam a uma melhoria das suas condições de vida. A isto se
chama, na gíria de M. Villaverde Cabral, «frente popular».
Adiante se
verá quais são os argumentos aduzidos por M. Villaverde Cabral para sustentar
estas duas teses. Resta esclarecer a origem da expressão «frente popular» que
ele utiliza no seu artigo. Está carregada de significado, mas não significa o
mesmo para a direita e para a esquerda. E
muitos eleitores desconhecem esse significado.
A « FRENTE POPULAR »
A «frente popular» de que fala M. Villaverde
Cabral é uma alusão ao governo do Front
Populaire em França (1936-1938), um governo de coligação formado por dois
partidos: a S.F.I.O (vulgo, o partido socialista francês, um partido
social-democrata criado em 1905), dirigido na altura por Léon Blum, e o partido
radical (o mais antigo partido francês, criado em 1901; um partido da pequena e
média burguesia republicana e laica que ainda hoje perdura, com outro nome, l’Union des Démocrates et Indépendants),
com o apoio no parlamento do PC francês. M.V. Cabral diz: «vem aí a frente
popular» como se dissesse «vem aí a peste» ou «vem aí o papão». Mas o que fez o
governo da Frente popular, para justificar esse temor?
O governo do Front Populaire teve uma vida curta e um triste fim. Os radicais —
com o apoio relutante dos socialistas (incluindo o próprio Blum, que viria a
arrepender-se de o ter feito) e o apoio dos comunistas (obedecendo às
directivas de Estaline, que tinha assinado um pacto de não agressão mútua com
Hitler) — assinaram, dois anos depois, os acordos de Munique (que entregaram os
Sudetas e a Checoslováquia a Hitler, confortando-o na ideia de que poderia
invadir também a França sem perdas excessivas, o que efectivamente veio a
acontecer). Em 1940, a direita (os radicais e a ala mais à direita dos socialistas) votaram a entrega do poder absoluto ao marechal Pétain. Logo de seguida, este
celebrou com Hitler um acordo para dividir a França ocupada em duas zonas distintas:
uma onde a Alemanha nazi poderia pilhar, saquear e escravizar a seu bel-prazer,
a outra um protectorado da Alemanha nazi, administrado com as botas cardadas de
Pétain, com o apoio do exército e das polícias de Hitler.
Não é pois a esta série de acontecimentos que a direita
portuguesa alude quando fala com temor da «frente popular». Será então às
medidas de política industrial, comercial e financeira (aquilo a que os
economistas chamam na sua gíria «política económica») que o governo do « Front
Populaire » tomou antes de se desfazer?
Vejamos. Esse governo foi eleito com um
programa social-democrata: «o pão, a paz e a liberdade». Com esse objectivo, nacionalizou
a indústria aeronáutica, os caminhos de ferro (foi nesta altura que foi criada
a SNCF [Société Nationale des Chemins de fer Français], que ainda hoje perdura) e a
indústria de armamento. Não ousou nacionalizar o Banque de France (o
equivalente, pelas suas funções, do Banco de Portugal antes da entrada de
Portugal no euro), mas decretou uma golden
share (uma participação accionista detida pelo Estado, que, apesar de ser
minoritária, confere poderes especiais) sobre esse banco (até então dominado
pelos seus 200 maiores accionistas privados, as chamadas «200 famílias» ou o
«muro do dinheiro», que tinham destruído em 1925 o governo da «coligação das
esquerdas» [«cartel des gauches»]). Criou ainda a Junta Nacional do Trigo
(«Office National interprofessionel du Blé») para regular o comércio do trigo e
produtos derivados (farinhas, panificação, rações para o gado, etc.), garantir
preços adequados aos agricultores e neutralizar os intermediários
açambarcadores e os especuladores (este organismo ainda hoje perdura, com um
outro nome).
É impossível atribuir a estas medidas
concretas, ou a este tipo de medidas, o temor que o nome « frente popular » infunde
na direita. Os dois governos provisórios do general De Gaulle (Junho
1944-Janeiro 1946) e o governo provisório de Félix Gouin (Janeiro-Junho 1946), logo
após a libertação da França, fizeram muito mais nacionalizações (do Banco de
França e dos principais bancos de depósito, da produção e distribuição do gás e
da electricidade, das minas de carvão, das fábricas de motores de avião Gnome e
Rhône, da Air France, das fábricas de automóveis Renault, das grandes
companhias de seguros) e muito mais intervenções de índole económica (criação
do comissariado para a energia atómica, criação da agência nacional para a
melhoria da habitação, etc.) do que o governo do Front Populaire. E nenhum historiador, nem mesmo M. Villaverde
Cabral, poderá negar que o general de Gaulle era um político de direita e que
Félix Gouin era um social-democrata moderado. Convém recordar que foi graças a
estas medidas que a França recuperou a sua independência e o seu vigor
industrial, perdidos com a ocupação, a pilhagem e o saque da Alemanha nazi.
Com efeito, como é bem sabido, as nacionalizações
são muitas vezes um modo de impedir que o capitalismo sem freios (ou, como
dizem os economistas neoclássicos, “o mecanismo auto-regulador do mercado”) se
devore a si mesmo. Mesmo quando não são mais tarde revertidas (as chamadas
«privatizações»), acabam por ser muito rendosas para muitas empresas privadas e
para os seus accionistas, através das chamadas parcerias público-privadas, das
encomendas preferenciais, dos subsídios e das isenções fiscais do Estado aos
seus parceiros privados. E é o Estado que assume também, muitas vezes, a parte
de leão nas enormes despesas de investigação e desenvolvimento de novas
tecnologias de ponta, muitas delas oriundas dos laboratórios, dos centros de
investigação e das universidades públicas, que são transferidas mais tarde para
o sector privado a custo zero. Basta lembrar aqui, a título de exemplo, que a
França, graças a múltiplas intervenções do Estado (incluindo nacionalizações) se
tornou uma potência aeronáutica, tanto no domínio civil como também no domínio militar
— aviões de passageiros (Caravelle, Concorde, Falcon, Airbus, etc.), aviões de
transporte (A400M, etc.), caças de combate (Mirage, Rafale), helicópteros
(Super-Puma, Cougar), veículos aéreos remotamente tripulados, vulgo “drones”
(Neuron), mísseis (Meteor, Milan), satélites de reconhecimento (Helios),
foguetes de sondagem (Veronique, etc.) — e que tem a rede ferroviária mais
avançada do mundo (TGV, etc.).
Raramente ou nunca se verá, é verdade, um
banqueiro que se preze, ou um investidor de grande gabarito, ou um economista
neoclássico (vulgo, de tendência «neoliberal»), reconhecer em público estes factos (embora o
possam fazer em privado). São tabu, algo que encaram como uma ameaça mortal à
sua doutrina: “o Estado deve reduzir-se às suas funções de “soberania”: polícias,
forças armadas e tribunais; tudo o mais deve se entregue ao cuidado do
mecanismo auto-regulador do mercado. A intervenção do Estado fora destes estritos
limites, sobretudo quando visa proteger os direitos dos trabalhadores
assalariados e dos desempregados, é economicamente perniciosa (porque restringe
a liberdade [da iniciativa privada]) e politicamente perigosa (porque promove,
ainda que talvez não intencionalmente, a ideia maluca do socialismo)”.
Mas se o governo do Front Populaire mostrou rapidamente que não era uma frente (« front ») unida, houve outras
medidas que tomou que fazem jus ao nome
«popular» pelo qual ficou conhecido e pelo qual é lembrado — apesar do seu
triste fim. E são elas que explicam o alarme de M. Villaverde Cabral.
O governo de Léon Blum lançou um programa
nacional de obras de utilidade pública para reduzir o desemprego (directamente
inspirado no Works Projects Admnistration
do presidente Roosevelt nos EUA) e promoveu a assinatura dos chamados acordos de Matignon (o palácio Matignon é o nome da residência oficial do 1º Ministro francês). Esses acordos, firmados entre os representantes
patronais e as direcções dos sindicatos, foram o modo encontrado por ambos para termo à greve geral espontânea com ocupação das fábricas, empresas e
locais de trabalho que, nessa altura, se espalhou pela França e colheu de
surpresa as centrais sindicais, CGT e CGTU. Os acordos estipulavam a semana de
40 horas (8 horas por dia x 5 dias), o direito de eleição pelos trabalhadores,
por voto secreto, de delegados sindicais nas empresas, a proibição dos
despedimentos sem justa causa, a contratação colectiva (contratos colectivos de
trabalho negociados entre as organizações patronais e os sindicatos) e um
aumento dos salários de 7% a 12% consoante as profissões e as indústrias. Logo
a seguir, o governo prolongou a escolaridade obrigatória (até aos 14 anos),
criou o subsídio de desemprego, o sistema contributivo das pensões de
aposentação, o direito a duas semanas de férias (13 dias + 2 fins de semana),
sem perda de salário, para todos os assalariados, e um desconto substancial nos
bilhetes de comboio para os trabalhadores em férias (que ainda hoje perdura) —
uma ideia do socialista Léo Lagrange, sub-secretário de Estado do Desporto e
Lazeres, o mesmo que organizou as “Olimpíadas Populares” (como alternativa aos
Jogos Olímpicos organizados pela Alemanha de Hitler, em 1936). 600 mil pessoas
em 1936, 1 milhão e 800 mil em 1937, vão gozar, pela primeira nas suas vidas,
umas férias, muitas delas aproveitando a rede de pousadas da juventude
(«auberges de jeunesse», outra ideia impulsionada por Lagrange), que ainda hoje
existem.
Enfim, tudo coisas verdadeiramente horríveis,
inventadas no “ministério da preguiça”
(foi assim que a direita francesa cognominou imediatamente a secretaria de
Estado de Lagrange), impensáveis até então, que nós, em Portugal, só
conseguimos descobrir quão horríveis eram, quarenta anos depois, com o 25 de
Abril de 1974.
EM
MEMÓRIA DE LAGRANGE
Lagrange morreu prematuramente. Tinha apenas 40
anos. Mas quando cheguei a França, em 1968, foi numa dessas pousadas da
juventude de que ele tinha sido o promotor trinta anos antes, o Auberge de Jeunesse de Toulouse, que
encontrei guarida e onde vivi os primeiros 3 meses, porque os preços eram muito
baixos e podíamos cozinhar as nossas refeições na cozinha comum equipada com
todos os apetrechos, incluindo louça. Para fazer algum dinheiro, trabalhava num
terminal de camiões TIR, a descarregar sacos, caixas e caixotes.
EPIFANIAS
Não sei se M. Villaverde Cabral teve
experiências semelhantes de preguiça proletária. Mas mesmo que as tivesse tido,
duvido que tivessem qualquer influência duradoura na sua personalidade,
definida pelo próprio do seguinte modo:
O meu
auto-retrato tem um lado Dr. Jekyll/Mr. Hyde. O Mr. Hyde não será um perigo
para as pessoas, um terror. A relação é talvez a contrária (M. Villaverde Cabral, entrevistado por Anabela Mota Ribeiro. Público. 2000).
O que sabemos ao certo é que, na mesma altura,
em Paris onde se encontrava exilado, ele fazia a apologia, nos “Cadernos de
Circunstância” (1967-1970), das ideias ultra-esquerdistas do grupo italiano Potere Operaio, entremeada com umas escapadelas a Itália para
cavaquear com o seu amigo Toni Negri, o dirigente-filósofo desse grupo, e
distribuir panfletos do Potere Operaio
às portas da fábrica da Fiat em Turim, e noutras fábricas (em Porto Maghera,
Veneza e Bolonha).
Em 1979, Negri viria a ser condenado a 12 anos
de cárcere sob a acusação, entre outros alegados crimes dos quais se proclamou
também inocente, de ser a eminência parda por detrás das Brigadas Vermelhas e
do sequestro e assassinato de Aldo Moro. No mesmo ano, Manuel Villaverde Cabral
doutorava-se em História em Paris, depois de ter sido admitido como assistente na
universidade portuguesa em 1974, onde diz ter descoberto a sua vocação de
professor. Em 1974, abandona a sua militância marxista-leninista (primeiro no PCP,
depois na FAP [um grupo maoísta de que foi co-fundador], depois na ultra-esquerda italiana
e francesa) para se dedicar à sociologia e à carreira académica («Entrevista a
Manuel Villaverde Cabral por José Neves», Análise
Social, vol. XLVI (200), 2011, 522-537; Manuel
Villaverde Cabral. «O encanto da sociologia», entrevista por António Guerreiro.
Público. 19-01-2014). Mas o bichinho da política não o largou. Em
1984 é um dos fundadores do « Clube da Esquerda Liberal», um cenáculo de
ex-marxistas-leninistas-maoístas convertidos ao liberalismo económico.
Quinze anos depois da sua epifania com a
ultra-esquerda italiana e com o seu mentor, o filósofo Negri (de quem,
entretanto, se afastou politicamente mas de quem continua, como afirmou
recentemente, a ser amigo), Manuel Villaverde Cabral teve a sua segunda
epifania, desta vez com a direita indígena. Foi o encontro com essa grande
figura de estadista que se chama Aníbal Cavaco Silva (veja-se o relato que
Cavaco Silva faz desse encontro no volume 1 da sua Autobiografia Política), e de se ter deixado seduzir pela sua visão
exaltante de um Portugal moderno e desenvolvido (um país sem indústria transformadora
de monta [salvo a construção civil], com um sector de pescas e uma agricultura
residuais, mas com boas estradas, dedicado aos serviços [com o turismo à
cabeça]). Nessa altura, M. Villaverde Cabral era director da Biblioteca
Nacional (1985-1990), cargo para o qual havia sido nomeado como « prémio » pelo
apoio que deu à candidatura de Mário Soares.
Sim, era um nível de... Vocês [os brasileiros] chamam governo, e é governo. São nomeações de primeiro-ministro,
portanto, é governo, mas a gente não gosta de se olhar como político. Mas é
evidente: fui para a
Biblioteca Nacional porque o primeiro-ministro Mário Soares me convidou, é
óbvio. Não podia ir de outra maneira, não é? E isso tinha que ver com o tal
Clube da Esquerda Liberal. Foi um presente que ele me deu, eu percebi muito
bem. (CABRAL, Manuel Villaverde. Manuel Villaverde Cabral
(depoimento, 2010). Rio de Janeiro, CPDOC/FGV; LAU/IFCS/UFRJ; ISCTE/IUL;
IIAM. 2011. 28 p.)
É por isso interessante ouvi-lo, trinta anos
depois desse presente, dissertar sobre o «emprego clientelar que caracteriza o
actual regime» e sobre a renovação dos «técnicos superiores do “back office”» (de
que o cargo de director da Biblioteca Nacional será, presume-se, um bom exemplo)
que vieram substituir os oriundos do salazarismo.
Quem
conhece a administração,bem como as «empresas públicas», sabe que há demasiadas diferenças entre os funcionários
do «front office» e os do «back office» para os confundir e sabe também que a
categoria dos «técnicos superiores» – oriunda do salazarismo, com os seus
privilégios devidos à raridade e efectiva tecnicidade das licenciaturas – se
multiplicou sem freio e deu lugar à principal forma de emprego clientelar que
caracteriza o actual regime. Foi esse o principal mecanismo de aumento
da tal «nova classe média» a que todos se referem, com razão, como o cerne do
sistema partidário e eleitoral! (M. Villaverde Cabral. «A desestatização:
esclarecimento e desenvolvimentos». Observador.
17-05-2015).
Estas duas citações dão bem a ideia da
oscilação pendular entre os dois lados do seu autor: o sociólogo que há 15 anos não tem mãos a medir para atender a todas as encomendas que lhe fazem (cf. «Manuel Villaverde Cabral entrevistado por José Neves», op.cit. p. 534) e o arauto espalha-brasas da direita neoliberal. Dito de outro modo - e pedindo de empréstimo as suas próprias metáforas - o seu lado Mr. Hyde deixou de se esconder.
Agora fala copiosamente e com entusiasmo juvenil de como o Dr. Jekyll — o outro lado do seu «eu», o tal que infunde terror — trocou a cartilha radical da sua antiga
luminária, o dr. Toni Negri, pela cartilha radical do seu novo messias: o dr.
Pedro Passos Coelho.
É admirável.
Ouçamo-lo, no seu melhor, em 2011, logo após a tomada de posse do governo
PSD-CDS, quando o dr. Ricardo Salgado ainda era «o dono disto tudo», ouvido com
unção pelos partidos do chamado “arco da governação” (na versão Paulo Portas),
explicar quem mandou vir a troika e vaticinar jubilosamente tudo o mais que se
lhe seguiu com Passos Coelho ao leme e a «mãozinha de Deus» (sic) a
guiar-lhe o rumo.
PORTUGAL À FRENTE
(visto pelos binóculos de M.V.C)
De
repente, com a crise mundial – é verdade que é a crise
mundial que põe à mostra a nossa situação que não vai poder ser compensada com
dinheiro, empurrando com a barriga – fomos apanhados literalmente com as calças na mão. E agora temos que
puxar as calcinhas e disfarçar o máximo. (…)
Depois há os bancos, que eram credores do Estado, aconteceu-lhes que quando o devedor deve
100 está tramado, quando deve 100 mil, quem se trama é o credor. Estou a pensar, em particular,
no BES. O BES é uma
entidade política. Foi
o senhor dr. Ricardo Salgado que mandou vir o FMI. Nessa quarta-feira de manhã, os bancos disseram: “É a
última vez que a gente empresta e só emprestamos se chamarem o FMI”. E foi
assim que o Teixeira dos Santos chamou o FMI, o outro [José Sócrates]
mandou-se ao ar, atirou com o telemóvel.
Somos, portanto, governados pelo dr. Ricardo
Salgado.
Somos governados pela dívida que criámos. Mas a
certa altura também fomos governados pela Mota-Engil. E o aeroporto e o TGV têm
a ver exclusivamente com isso. Provavelmente, precisamos de um aeroporto novo na perspectiva do
turismo, do clima, que será a nossa grande indústria! Há coisas boas! Há um vento…
O nosso Passos Coelho
foi bafejado pela sorte. Nós estamos a tentar sair por obrigação e
também por virtude de uma situação pela qual o Partido Socialista é 100 por
cento responsável, na minha opinião.
Mas acabou de falar na crise mundial.
Quando
eu digo que é responsável o Partido Socialista é no sentido em que o PS, tendo tido a
missão histórica ingrata de desfazer a revolução do 25 de Abril – e ter
desfeito bastante – não conseguiu desfazer tudo. Nós continuámos num
socialismo, de baixo nível evidentemente, mas um socialismo…
(…) Mas é preciso um governo liberal e no xadrez político-partidário
português só podia ser este governo PSD-CDS, não podia ser outro.
Mas as pessoas vão ganhar menos, vão ter menos
subsídios de desemprego, o desemprego vai aumentar. É uma coisa terrível para o
governo.
As
pessoas sabem que isso vai acontecer e que não há alternativa. Do ponto de vista estritamente político, Passos Coelho tem a mãozinha de Deus por baixo.
Mas como é que um país como este…
Este
país é um país muito tradicional, muito convencional, serôdio, preguiçoso, até isso tem de ser sacudido. A história de Portugal é de letargia e
um ataque, um momento de despertar. Mas Portugal enquanto houver batatas não desaparece.
Mas como é que este governo vai aguentar a
troika? Embora haja o alargar do cinto da cimeira da semana passada, isto vai
ser muito duro para as pessoas. Como é que vão votar outra vez no PSD,
alegremente?
Se o
PSD estes quatro anos conseguir inverter a curva, eu estou por eles.
Mas como é que o país pode crescer?
Repare, depois da recessão há sempre [crescimento]… A recessão até
agora não provocou nada.
Aumentou o desemprego.
Sim,
mas temos válvulas de segurança que estão a funcionar perfeitamente. A migração
e a emigração.
(…) Mas se cada ministro vai
ficar embaraçado de cada vez que for preciso fechar uma empresa, então o melhor
é desistirem já. O ataque aos desempregados é importante. Nós vamos ter mais desempregados
com menos apoios. Aí há um défice de equidade. Quanto à emigração, ainda
há pouco tempo ouvi o senhor embaixador do Brasil dizer que podemos ir para lá…
Se temos de ir, vamos, foi sempre o nosso destino. Aliás, Portugal é mar. Terra é para pôr os pés e a
cabeça sempre a olhar para o mar, quando é que eu me vou embora… E depois
volto, como emigrante. Com o meu farnelzinho, com o seu peculiozinho.
Nós temos jovens com formação…
Que têm de ir embora porque não vão arranjar
emprego cá…
Mas já não é a mesma emigração. Também não vão
mandar remessas, nem viver num bairro de lata, como os outros faziam e depois
tinham uma casa de três pisos em Fornos de Algodres. Porque eram de lá e era
para os vizinhos de lá que eles trabalhavam. Foi o Jacques Delors que acabou
com os bairros da lata à força. Eu estive lá, em Maio de 68, 69. E entre o dia
em que ele disse ”vou erradicar os bairros da lata” e os bairros da lata foram
erradicados demorou para aí dois anos. A nossa esperança é que a China pare de correr. É
como o problema do bailout e dos
Estados Unidos…
Não vai haver bailout [resgate
financeiro]…
Não, mas se fosse preciso a China “bailava” [= poderia ser obrigada a pedir um resgate financeiro para evitar a bancarrota] completamente
porque eles precisam que os americanos comprem aquela tralha toda que fabricam.
Acho
que é um mundo muito difícil, muito competitivo, que as pessoas não gostam, mas o que têm de fazer é ir para outra. Este, é de facto, também, um momento de oportunidades.
Muitas das pessoas que estão a ficar desempregadas vão fazer empresas e vão
dizer daqui a 10 ou 15 anos “olha pá, perdi o emprego e afinal agora estou
rico”. Claro que é
uma minoria, mas é essa a dinâmica. E não vale a pena as pessoas protestarem. Para aquela coisa da esquerda,
eu realmente já não dou. A fingirem que têm uma alternativa. Mas qual
alternativa?
(Excertos de uma entrevista de M. Villaverde
Cabral ao jornal «i», em Julho de
2011. Os parênteses rectos foram acrescentados ao original)